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- Condillae Helvétius Degérando Os PensadoréS Os PensadoréS Condillac Helvétius Degérando “As nogées abstratas sic absoluta- menie necesséfias para por ordem nos ossos conhecimentos porque elas in- dicam 2 cada idéia a sua classe, Eis qual deve ser Seu nico uso. Mas. ima- ginar que elas sejam feitas para condu- zir a conhecimentos particulares ¢ uma cegueira muito grande porque elas ndo se formam senao segundo es- ‘ses conhecimentos.”” CONDILLAC: Tratado dos Sistemas “Se todas as palavras de Ifnguas diferentes 56 designam objetos ou as relagdes desses objetos conosco e en+ te @, todo o espirito, conseqiente- mente, consiste em comparar quer nos- sas sensages, quer nossas idéias, isto €, em ver as semelhangas e as diferen- gas, as concordincias © as discordan- Gias que existem entre elas. Ora, co- mo o juizo é essa propria percepgao. ou, pelo menos, 0 enunciado dessa percepedo, segue-se que todas as ope- ragoes do espirito se reduzem ajuk gar. HELVETIUS: Do Espitito “A sensagio 6 a primeira fonte de nossas maneiras de ser ¢ de nossos Co nhecimentas; a imaginacao & a segun- da. DEGERANDO: Dos Signos © da Ade de Pensar. Os Pensadoré3 CASit Bed, 840801 Condillac, Etienne Bonnot de. 1715-1780, lextas escolhidos / Condillae, Helvétius, Degérande ; tradu de Lari Roberto Monzuni fet al.|.— 3. ed, — Sao Paulo : Abril Culta- ral, 1934, (Os pensadores) Incluk vida obra de Helwétiuy, Condillac © Degérando. Bibliogratia, 1. Conhecimento - ‘Teoria 2. Fitoyofia francesa 2. Materialismo 4, Pensamento 5. Psicologia 6, Sensualisma I. Helvétius, Claude Adrien, ITIS-1771. Ih, Degérando, JosepheMarie, 1772-1842. Ill. Moizani, Luis Roberta, LV. Titulo, ¥. eDb-194 “121 1485 “1403 “150 1 Indices para catslogo sistematicg; 1. Conbecimente : Teoria! Filosofia 121 losofia Francesa 194 3. Materialismo + Filosofia 146.3 4. Pensamente 5. Psieclogia 6. Sensualismo : Filosofia 145 CONDILLAC HELVETIUS DEGERANDO TEXTOS ESCOLHIDOS Tradugécs le Luis Roberto Monzani, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Nelson Alfredo Aguilar, Scarlett Z. Marton, Mary Amazonas Leite de Barros, Hélio Leite le Barros, Armando Mora D'Oliveira, Andreas Pavel, Franklin Leopoldo e Silva, Victor Knoll 1984 EDITOR; VICTOR CIVITA Titulos originsis: ‘Textos de Condiliae: Traité des Systomes Extrait Raisonné cle Traite des Sensations. La Langue des Catcuts hoxique ‘Texto de Helvetioss De l'Esprit ‘Texto de Degérando: Dek Signes et de Art ele Penser Considérés dans leurs Rapports Mutuels © Copyright desta edigho, Absl 8, A. Cultural, Si0 Paulo, 1973 — 2. edigia, 1980 — 3.*edigan, 198s Dineitos exclusivas sobre ax tradugGes deste Volume, ‘Abn 8.4, Cultural, Sio Paulo. Diseitos exclusives sobre "CONDILLAC, HELVETIUS, DEGERANDO — Vide © Obes", Abril $A. Cultural, $80 Paulo, Condillac Helvétius CONDILLAC HELVETIUS DEGERANDO VIDA E OBRA Consultoria: Marilena de Souza Chaui == SS Se mia das prineipais caracteristicas da filosofia francesa do sé- culo XVIII ¢ sua aposicae ao racionalismo do século arte- rior. O racionalismo do século XVII acreditava na possibilidade de se resolverem os problemas através do uso da razdo, mas esta era conce- bida como uma finalidade analitica a operar dedutivamente; a partir de idéias inatas, isto ¢, inerentes ao préprio intelecto humana, os fild- sofos racionalistas construiram entao sistemas abstratos de explicagao da realidade. Os filosofos franceses do século XVIII, ao contrario, em bora também “racionalistas”, concebiam a razio como uma fora que parte da experiéncia sensivel e desenvalye-se juntamente com ela. Desse modo, 0 lluminismo francés sintelizou as duas vertentes da filosofia moderna, o empirismo e @ racionalismo, e tirou de suas pre- Missas as Conseqliéncias mais extremadas. Por autre lado, a filosofia iluminista francesa manteve-se em as treita relagdo com os problemas da vida publica e, quanto mais agu- dos estes se tornavam, mais as teorias se faziam radicais. Ao lado cis- $0, 0s pensadores franceses do século XVIII, com raras excegdes, ndo consideravam 9 conhecimento cientifico come. privilégio dé poucos; ao contrario, predicavam suas idéias ao pova, empregando lingua gem relativamenta simples. Nesse gentido, foram as mais logitimas ex- press6es do luminismo, Segundo o historiador Wilhelm Windelband, essa vinculacde inti- ma entie a teoria ea pritica teria sida a principal razdo que impediu @ construgdo de um sistema completo ¢ original de filosofia. Apesar disso, o século XVII na Franca representou uma das épocas de mais intensa vida intelectual de toda a historia do Ocidente. Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), D’Alembert (1717-1783) @ Rousseau (1712-1778) sio Cansiderados os mais importantes pensadores desse perioda. Outros, menos conhecidos, fizeram contribuigées significativas, formulando idéias que, ¢m geral, se articularam as dos primeiros. Todos forma- vam, assim, um “individuo filosofante nico”, na expresso do hislo- riador Wilhelm Windelband. Reunidos em Paris, em relacao de ami- zade consiante, uma nova idéia que surgisse na mente de um deles imediatamente deitava raizes no espirita dos demais ¢ aparecia em suas obras, em diferentes linhas de desenvalyimento ¢ aplicacao. vil CONDILLAC - HELVETIUS - DEGERANDO. Por esas razées, nao se pode ter idéia completa dé Iluminismo francés sem o conhecimento da filosofia materialista elaborada por La Mettrie e Holbach, da sistematizagao da teoria sensualista do conheci- mento realizada por Condillac, do comportamentismo de Helvétius ©, ja nos fins do século XVIII, dos trabalhos tealizados pela escola dos ledlogos’’, que teve a frente Destutt de Tracy (1754-1836) e na qual se destacaram 9s trabalhos de Degérando. O homem-miquina Julien-Offroy de la Mettie nasceu em 1709, estudou no Colégio de Harcourt e na Universidade de Paris. Transferiuese depois pars a Faculdade de Reims, onde se doutorou em medicina no ano de 1733 Completou sua formacae de médico em Leyden (Holanda) De vulta a Franca, La Mettrie publicou, em 1745, sua primeira obra, Histéria Natural da Alma, que causou violenta reacéio da censt ra'em virtude das idéias materialistas que expunha. Exilouse entao fa Holanda, onde publicaria, em 1747, 0 mais conhecido do seus tra. balhos, O Homem-Maquina. Na Holanda, La Mettrie também foi alvo de violentos ataques Por causa de suas criticas as concepgdes religiosas. Novamente obri. gado a fugir, exilou-se na corte de Frederico Il da Prdssia (1712-1786). Em Berlim, La Metirie tornou-se membro da recém-fur. dada Academia Real de Ciéncias e péde escrever tranqiiilamente va- tios livros: O Homern-Planta (1748), O Sistema de Epicura '1750) & Discurso Sobre a Felicidade (1750), Antes de falecer, em 1751, La Metisie escreveu ainda varios trabalhos sobre medicina € uma série de panfletos polémicos e irdnicos, Em A Historia Natural da Alma, La Mettrie ataca 0 dualismo me- tafisico de Descartes (1596-1650), Malebranche (1638-1715), Espino- sa (1632-1677), Leibniz (1646-1716) © outros, sustentando a tese de que a alma deriva de formas orgdnicas especificas, produzidas por uma forca motriz inerente & matéria, da qual dependem as faculdades © operagoes mentais, A “histéria da alma’ torna-se, assim, assunto it da natureza e nio do tedlogo ou metafisico, Nessa ordem de idéias, La Mettrie procura mostrar como todas as fungdes intelec- ae dependem essencialmente do sistema nervoso, sobretudo do c& rebro, Em O Homem-Maquina, sustenta que ndo existe diferenca essen- cial entre as atividades involuntérias ou instintivas, e as conscientes ou voluntérias. Os Cois tipos de atividades explicar-se-iam pela relativa comple- xidade das estruturas mecénicas responsaveis por sua producao, O homem seria, assim, uma mdquina organica, entendida como sistema inte, com partes dinamicamente inter-telacionadas, ¢ orga- nizada para cumprir fins por ela mesma propostos. Ligaca a essa visio materialista do. homem, a ética defendida por La Mettrie colaca como finalidade das agdes humanas 0 £070 do prae er. Este, contudo, nao ¢ considerado como incompativel com 2 virtu. de, especialmente com o amor ao Préximo a servico da humanidade; elo contrério, La Mettrie sustenia que o verdadeito prazer inelul ° VIDAEOBRA IX amor. Este, no entanto, deveria ser totalmente desvinculado da cren- ca no sobrenatural. A ética de La Mettrie € humanista ¢ as religides sao consideradas por ele como contrarias & busca da felicidade. Por que temer a Deus? As teses maierialistas de La Mettrie também foram defendidas, em linhas gerais, por Paul Heirich Thiry, Bardo de Holbach. Nascido em Heidesheim, Alemanha, em 1723, Holbach mudou-se aos doze anos de idade para a capital francesa, onde viveu até sua morte, ocor rida em 1789. Muito rico, Holbach reunia em sua casa, em Paris, a maior parte dos grandes pensadores e cientistas da 6poca, formando com eles 0 grupo que redigiria a Enciclopédia, sob direcao de Dide- rot, para a qual contribuiu com vérios artigos, Além dos artigos escritos para a Enciclopedia, Holbach redigiy di- versos trabelhos, sobressaindo-se entre eles Sistema da Natureza ou as Leis do Mundo Fisico e de Munda Moral, publicado em 1770, sob o pseuddnimo de Jean-Baptiste Mirabaud, pois se tratava de expo- sicao do mais radical materialismo e ateismo. Para Halbach, existe apenas uma realidade: a matéria, organiza- da na natureza e possuidora por si mesma do movimento sem causa extranatural, Todos os acontecimentos seriam rigorasamente determi: nados pela prépria estrutura da matéria, ndo existindo providéncia di vina. Os diferentes tipos de movimento € transformagdo observados na natureza no seriam mais do que diferentes modos de ser da maté- ria, encadeados em sucessdo rigorosa de causas € efeitos. Os animais e vegetais estariam compostos de elementos inorganicos, organizados de maneira diferente dos seres inanimados. A natureza nao apresentas ria nenhum tipo de finalidade, ndo estando animada por nenhuma in- teligéncia ou razdo superior. A natureza, contudo, seria inteligivel e racional, no sentido de que pode ser compreendida e explicada pelo homem, A compreensio e explicacdo da natureza deveria ser ieita, segundo Holbach, dentro dos quadros das ciéncias naturais, Compreendendo a natureza, o homem poderia compreender tam- bém os mecanismes do temor aos deuses, aos sacerdotes, aos reis ¢ ags tiranos, emancipando-se e atingindo a libertagéo, ¢ conseqlente- mente, a felicidade. De acerdo com Holbach, a felicidade do individuo vinculase a da sociedace na qual sua vida esta inserida. Impée-se, portanto, co- mo dever ¢lico, a participagio de cada individuo na luta para que to- dos os homens se libertem dos temores e da supersti¢ao. Somente quando os homens estivessem persuadidos da necessidade de elimi- far todos os fantasmas que os perseguem, conseguiriam ser justos, bandosos € pacificos. Um bondoso materialista ‘As qualidades morais que Holbach sempre desejou para todes os homens — espirito de justi¢a, temperamento pacifico e, sobretudo, a bondade — encontram.so como tages essenciais da personalidade x CONDILLAC - HELVETIUS - DEGERANDO. de Claude-Adtien Helvétius. Parodoxalmente, as autoridades eclosias- tieas @ soliticas o consideravam um dos pensadores mais perigosos © subversivas da época. Heleétius nasceu em Paris, a 26 de jancite de 1715, filho do mé- dico particular da Rainha Maria Leszezynska, esposa de Luis KV. Hel- vélius estudou no Colégio Louis-le-Grand, por cujos bancos passara Voltaire no comeco do século. Com apenas 23 anos de idade, foi na meado para o cargo de “fermier général", fungao que lhe dava ¢ di- relto de Cobrar impostos, mediante o pagamento de umia quantia fixa ao Tesouro Real. Com isso ficou muito rico. Helvétius sempre fol, na entanto, um homem caridoso, tomando-se conhecido de seus con, temporaneos pelo espirito filantrépico ¢ pelo uso esclarecido que ta. ia da fortuna pessoal A primeira obra escrita por Helvétius foi um poema intitulado A Felicidade. em que celebra os prazeres da vida intelectual. Pouco de pols, em 1751, renunciou ao cargo de “fermier général”, eacou-se foi mora em sua propriedade rural, pasando a dedicar-se exclave: Mente ao trabalho filoséfico € literdrio. Em 1758, publicou sua principal obra, Sobre o Espitito, vausan- do celeuma em todos os setores, © livro aparecia numa Gpoca de Brande fepressio as tendéncias renovadoras € fol imediatamente con- denado pelas autoridades politicas ¢ eclesidsticas, como perigesamen- te herético e por conter opiniacs consideradas subversivas, Apesar das retratagées do autor, a obra foi queimada em praca. publica. Além disso, desagradou também a muitos de seus amigos. Voltaire cri- licou Sobre o Fspirito, um livea cheio de lugares-comuns, ¢m saa opi. nido. O mesmo fez Rousseau, afirmando que a personalidade bondo- $2 do autor entrava em contradi¢ao com os principios expostos na obra. ‘Como conseqiéncia do escandale ¢ausado pela publicacio de Sobre 0 Espirito, Helvétius foi obrigado a deixar temporariannante, + Franga. Viajou para a Inglaterra, em 1764, e, no ano seguinte, foi hés- pede de Frederico Il da Prissia, que tinha por ele grande adm ragio, Frederico I declararia em carta a D’Alembert, apés a morte de Helvé- tus em 1771: .. Seu cardter sempre suscitou minha admiragao. Tol. Vez devéssemos desojar que ele tivessé tomado como guia seu con. Ao, antes que sua cabeca,..”” As qualidades humanas de Helvétius aparecem claramento em gua obra péstuma, Sobre 0 Homem, na qual reafirma as toses sue ce encontram em Sobre o Espitito. Convencido de que a exclusdo dos in- dividuos da participacdo ativa na vida publica so pode condasns | felicidade, Ielvétius expressa Sofrimento sincero pela degradacéa @ desintegracao interna da sociedade de seu pats. A preocupacao com a felicidade do homem é a caracteristica de toda a obra filosofiea de Helvétius. Como em todos oe iluministas Iranceses, suas bases encontram-se na teoria empirista de Locke partir do Ensaio Sobre a Emendimento Humane de autoria do filésofo inglés, Helvétius consitoi uma doutrina que, em termos da psicologia do século 8X, poderia ser chamada de comportamento ambiental Assim como Locke, Helvétius sustenta gue a funcao primafia do espi humano € o simples fegistra das impressoes resultantes do Contato do sujeito cognoscente com a mundo exterior. A essa fungao MIDAEOBRA Xt priméria Helvétius dé 0 nome de “sensibilidade fisica’” © afitma ser cla nao apenas fonte exclusiva de tadas as idéias, juizos © memoria, como também das emogdes. Estas so definidas por Helvétius como variagoes das sensagées bisicas de prazer e dor, as quais acompa- nham qualquer impressao sensorial, como afirmava também o fildso- fo Condillac, A partir da premissa empitica de que a base da vida mental 6 constituida pelas sensag6es, Locke ¢ Condillac elaboraram uma teo- tia do conhecimento; Helvétius, no entanto, desenvolve uma psicolo- gia. A idéia basica desea psicologia 6 a de que as faculdades intelec- tuais, assim como todo o complexo de valores e motivacdes dos indi- viduos, devem ser explicadas unicamente como produtos da educa- Gao @ de tados os elementos que compaem o meio ambiente, desde a Fmomento de nascimento do individuo. Os elementos bioldgicos here- ditarios seriam uniformes em todos os individuos normais, nao sendo necessdrio levar em consideracso essas constantes na investigagao causal do comportamento, Helvetius procura, assim, combater nao sé a existéncia de idéias inatas (como fizeram Locke ¢ Condillac), mas também a existéncia de qualquer capacidade inaia. Para 0 autor de Sobre o Espirito, todas as Pessoas Normais Nascem Com os mesmoes talentas e inclinagdes nat rais, diferenciando- A virtude que os filésofos atribuem a essa espécie de principios € tio grande que seria natural que se trabalhasse para multiplicd-los. Os metafisicos se distinguiram nisso. Descartes, Malebranche, Leibniz © ouwos, cada um em concorréncia, nos deram com profusio, ¢ nfo devemos acusar seniio a nds mesmos se no penctramos nas coisas mais escondidas. 1 Amauld e Nicole na Ldgica ow Aric de Pensar, (N, da ed. francesa.) 7 Parie IV, cap. 7, (N. do A.) > Alusto & Légica ox Arte de Penser, parte IV; cap. 7. (N. da ed. francesa.) 4 CONDILLAC Os prineipios da segunda espécie sto suposigdes que se imaginam para explicar as coisas as quais no se poderia, de outra maneira, dar a razio,* Se as suposigdes nfio pareecm impossiveis, ¢ sé elas fornecem algum? xplicacio dos fenémenos conhecidys, os filésofos nfo duvidam que tenham descoberto os verdadeiros motores da natureza. Seria possivel, dizem eles, que uma suposi¢ao que fosse falsa desse resultados felizes? Dai nasceu a opiniio de que 4 explicagao dos fendmenos prove a verdade de uma suposicdo e que nio se deve julear um sistema pelos seus principios, mas come ele dé a razio das coisas. Nao se duvida que as suposigSes, num priv-ciro’ momento arbitrarias, tornam-se ineon- testéiveis pela habilidade com a qual’se as empregou. Os metafisicos foram to inventivos nessa segunda espécie de prinetpios quanto na primeira ¢, gracas aos seus cuidados, a metafisica nfo encontrou nada mais que possa ser um mistério para ela. Quem diz metafisica diz, na sua linguagem, a ciéneia das primeirns verdades, dos primeiros principios das coisas. Mas ¢ secessirio convir que esta ciéncia ndo se encontra nas suas obras, As nogbes ubstratas s80 apenas idéias formadas daquilo que hi de comum entre varias idéias particulars. Tal ¢ a nocao de animal: ela é extraida daquilo que pertence igualmente is idéias de homem, cavalo, macaco, etc, Desta meneira, una nogio abstrata serve, em aparéncia, para dar raz40 daquilo que s¢ nola nos objetos particulares. Se, por exemplo, se pergunta por que © cavalo anda, bebe, come, responder-se-i muito filosoficamente dizendo que niio € senio Porque cle ¢ um animal. Esta resposta, bem analisada, no quer, entretanto, dizer outra coisa senio que 0 cavalo anda, bebe, come porque, com efeito, ele anda, bebe, come. Mas ¢ raro que os homens niio se contentem com uma Primeira resposta, Dir-se-ia que sua curiosidade os conduz menos a instruir-se sobre alguma coisa do que a formular questées sobre muitas. O ar seguro de lum fildsofo se hes impde: Eles tgmerlam parecer muito pouco inteligenes se insistissem sobre o mesmo ponto. & suficiente que o oriculo scja formado de expressdes familiares as quais eles teriam vergonha de nio entender; ou, se no Podem esconder 1 obscuridade, um Unico olhar de seu mestre patecerin dissipi-la, Pode-se duvidar quando aquele 1 quem se entrega toda confiunga nio duvitia cle mesmo? Nilo hi, portant, motivo para se espantar que os principios absiratos tenham se multiplicade com tal intensidade ¢ tenham, sempre, sido olhados como a fonte de nossos conhecimentos. AS nog6es abstratus so absolutamente necessdrias para por ordem nos nossos conhetimentos porque elas indicam 3 cada idéia a sua classe, is qual deve ser seu tinico uso. Mas, imaginar que elas sejam feltas para condutir a conhecimentos purticulares € uma cegueira muito grande Porque elas nao sc formam senio segundo esses. conhecimentos. Quando eu censurar os principios abstratos nao seri necessirio Suspeitar que ¢u exija que nfo se deve servir-se mtis de nenhuma nocio abstrata, isso serd ridiculo: pretendo somente que nfo se os deva tomar nunca por principios proprios para nos conduzir a descobertas. Quanto as suposigées, clas sio um grande recurso para a ignoriineia, so muito cmodas; a imaginacao as forma com muito prazer, com muito pouca “ R, Descartes, Principiar da Filosofia, livro IM, § 44. (N. da ed. francese,) TRATADO ‘DOS SISTEMAS 3 dificuldade. E de seu Ieito que se criou, que se govern: © universo. Tudo isto nao custa mais que um sonho ¢ um filésofo sonha facilmente. Também nio € facil consultar bem a experiéncia ¢ recolher os fatos cous discernimento. E por isso que € raro que no tomemos por principios senda fatos bem constatados, ainda que, talvez, os tenhamos em maior némero do que pensamos; mas pela falta de habito de seguir esse procedimento ignoremos a maneira de aplicé-los Temos, verossimilmente, em nossas mios a explicaga de varios fenémenos ¢ vamos procuri-la bem loage de nds. Por excmplo, a gravidade dos corpos foi durante todo o tempo um fato bem constatado © s6 em nossos dias & que foi reconhecida coma um principio. > £ sobre os principios dessa tiltima espécie que esto fundados os verdadeiros sistemas; somente eles mereceriam ter esse nome. Porque nia é seniio por meio desses principios que podemos dar a razio das coisas das quais nos é permitido descobrir os motores. Chamarei sistemas abstratos aqueles que versam somente sobre principios abstratos; ¢ hipdteses uqueles que (ém apenas suposigées por fundamento, Pela combinagio dessas diferentes espécies de prineipios poder-se-do ainda formar diferentes espécies de sistemas; mas, como cles remeter-se-iam sempre, mais OU menos, a um dos irés que acabo de indicar, € inutil realizar novas classificagdes. Fatos bem constatados, cis propriamente os tnicos principios das ciéncias. Como, entio, foi possivel imaginar outros? £ o que iremos investigar. Os sistemas sio mais antigos que os filésofos: a natumza ordena fazé-los ¢ nio eram maus os que cram feitos quando os homens sbedeciam $6 a cla. Entio, um sistema era ¢ nao podia ser somente fruto da observagio, Nac se propunha ainda dar sazio a tudo; tinham-se neeessidades © ndo se procuravam senio os mejos de satis’azé-las. So a observagio podia fazer conhecer esses meios ¢ observa-se por que se era forgado. Na ignorancia disso que, mais tarde, se nomeou principio, tinha-se. pelo menos, a vantagem de evilar os erros: porque é necessario um comego de conhecimento. para extraviar-se, E parece que, freqtientemente, os filésofos tiverim apenas esse comeco. Os homens, portan‘o, observavam, isto é, notavam og fatos rela necessidades,, Porque se tinham poucas necessidndes, havia poucas observagdes a fazer, ¢ porque as nécessidades cram prementes era aro que houvesse engano: os cro pelo menos, néio podiam ser sendio passagciros: era-se logo advertido porque as necessidades nado eram satisfeitas. A observagio se reatizava, ainda, 86 de maneira tateante; nd era, portanto, sempre possivel assegurar-se de um fato logo que s¢ acreditava percebélo. Suspeitava-se, supunha-se ¢, na falta de coisa melhor, uma suposigao passiva Por uma descoberta que uma nova observacao confirmava ou desiruia Desie modo a natureza guiava os homens ¢ era desta mancira que eles se ives as suas 5 Cada ver que Condillac futu dessa twrceire espécie de principios pense em Newton. FN da ed, frances.) 6 CONDILLAC instrufam, sem noter que: iam de conhecimentos em conhecimentos por uma seqiiéncia de fatos bem observados. Quando realizaram as descobertas relativas as suas necessidades ¢ evidente gue para realizé-las num outro campo tiveram que seguir a mesma conduta. Uma primeira observagao, que teria sido apenas um tateio, teria levantado Conjeturas; estas conjeturas teriam indicado outras observagdes a fazer ¢ estas observagées teriam confirmado ou destruido os fatos supastos. Quando tiveram os fatos em grande quantidade para explicar os fenémenos dos quais se investigava 2 razio, os sistemas estavam acabados, de qualquer maneira, por eles mesmos, porque os fates sc teriam arranjado a si mesmos na ordem em que se explicavam sueessivamente uns aos outros. Entdo, ter-st-ia visto que em todo sistema hi um primeiro fato, um fato que é o comego ¢ que, Por esta razdo, se teria chamado principio: porque principio ¢ comeco stio duas palavras que significam originariamente » mesma coisa, As suposigdes nao sic, propriamente falando, senio conjunturas € se temos necessidade de formé-las € porque estamos condenados a tatear. Desde que as suposigSes scjam apenas conjunturas, nao sio fates. constatados: niio podem, portanto, ser o principio ou © comego de um sistema porque todo sistema se reduziria 2 uma conjuntura, Mas, se clas niio sio 0 principio ou o comego de um sistema, sto 0 Principio ou comego dos meios que temos para descabrir. Ora, porque sio 0 principio desses meios, acreditou-se que sio também o Principio do. sistema. Confundicam-se, portanto, duas coisas bem diferentes, A medida que adquirimos conhecimentos somos obrigados a distribui-los em diferentes classes: nio temos outros meios Para coloci-los em ordem. As Classes menos gerais compreendem os individuos ¢ as dcnominamos espécies com telaglo as classes mais geraix que denominamos génetos, As classes que so géneres, com relagio aquelas que thes sio subordinadas, tornam-se clas mesmas espécies com relago a outras Classes mais. gerais que elas: ¢ & assim que se chega de classe em classe a um géncro que as compreende todas: Quando a distribuigo esta realizada possufmos um meio bem rapido para nos darmos conta de nossos conhecimentos: ¢ 0 de comegar pelas classes mais gerais. Porque 0 género supremo é propriamente uma expresso abrevinda apenas que compreende todas as classes subordinadas ¢ que as abarea de uma vez, Quando digo ser, por exemplo, vejo substincia © modificade, corpo ¢ espirito, qualidade e propriedade; numa Palayra, vejo todas as divisdes e subdi- vises compreendidas entre 0 set ¢ os individuos. , portanto, por uma classe geral que devo comecar quando quero representar rapidamente uma mulidao de coisas; e, entio, pode-se dizer quo ela é um comeco ou um principio, Eis o Gue sc viu confusamente © se disse: ns idiias gerais, as miximas gerais sia os prineipios das ciéncias. Eu repito, portanto: s6 os fatos bem constatados podem ser os verdadsiros prineipios das ciéncias: c se se tomaram por principio de um sistema suposigdes ou maximas gerais & Porque, sem se dur conta do que se via, se notou que elas sio o principio ou come de alguma coisa, TRATADO DOS SISTEMAS 7 CapiTuLo IT Da invtilidade dos sistemas abstratos Os filésofos que acreditam nos principios abstrates nos dizem: considere com atengaio as idéias que mais s¢ aproximam da universalidade dos primeiros princfpios, forme proposigées © vocé teri verdades menos gerais; considere, em seguida, as id¢ias que mais se aproximam, pela sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer ¢ realize novas proposigdes, continue desta maneira; no se esquega de aplicar seus primciros prineipios a cada proposi¢ie que descobrir €, entiio, vocé desceri gradualmente dos principios gerais aos conhecimentos mais particulares. Segundo esses filésofos, Deus, criando nossas almas, contenta-se em gravar nelas certos principios gerais e os conhecimentos que adquirimos em seguida slo apenas dedugdes que fazemos desses principios inatos, Sabemos que nosso corpo € maior que nossa cabega porque as idéias de corpo © cabeca aplicamos © principio: o todo é maior que sus parte. Mas, para que nio scjamos surpreendidos ao realizar esta aplicagio sem nos apercebermos, adverte-se que ela se realiza Por uma operagio seercta ¢ que o hibito de termos de reiterar freqiientemente (os _mesmos juizos nos impede de notar a verdadeira fonte, De acotdo com esses fildsofos, os principios abstratos s4o, portanto, tio certamente a origem de nossos conhecimentos que, se de nds os tomam, nio concebem que, entre as verdades mais evidentes, haja alguma a0 nosso aleance. Mas cles invertem a ‘ordem de geragiio das nossas idéins. E tarefa das idéias mais faceis preparar a inteligéneia daquelas que © si0 menos. Ora, cada um pode conhecer, par sua propria experiéncia, que as idéias sto mais faiceis na proporcao em que siio menos abstratas ¢ que mais se aproximam dos sentidos, ¢ que, ao contririo, elas siio mais dificeis nas proporcio em que se distanciam dos sentidos e se tornam mais abstratas, A razio dessa experiéncia que todos os nossos conhecimentos procedem dos sentides, Uma idéia abstrata requer explicagio por uma idéia menos abstrata © assim sucessivamente até que se chegue a uma idéia particular ¢ sensivel. Além disso, 0 primeiro. objetivo de um fildsofo deve ser o de determinar exatamente suas idéias. As la particulares. sao determinadas por elas mesmas € somente elas 0 so: as nogdes absiratas sie, ao contririo, naturalmente vagas, no oferecem nada de fixo a nao ser que tenham sido determinadas por outras, Mas seria por nogdes ainda mais abstratas? Nao, sem duivida, porque estas nogdes teriam, elas mesmas, ainda mais necessidade de serem determinadas; € necessério, portanto, recorrer 4s idéias particulares. Com efcito, nada é mais proprio para oxplicar uma nogio que aquela que a engendrou. Consegliente- 8 CONDILLAC mente, erramos quando queremos que mosses conhecimentos tenham origem em principios absiraios. ¢ Mas, além disso, quai seriam esses prineipios) Seriam miiximas tao geral- menic reccbides que ninguém as ousa contesiar? £ dnpossivel que wne coisa seja € ndo seja ao mesmo tempos tudo aquite que é. é: © ouieas semelkanten, Procurar-se-a muito tempo por fildsofos que teaham dai extraido queisquer conhecimentos, Na especulacae todos. eles convém, na verdade, em gue os Primeiros principios sfo aquelcs que sio universalmente adotados: scu método fem mesmo alguma coisa de sedutor pela maneira pela qual ele se opresenta Inicialmente, Mas é eurioso segui-los na pritica, ver como s¢ separim bem ceilo © com que menospreza uns rejeitam os principios dos outros. Parece-me que nia se poderia entrar nessa investigagio sem se aperceber de-que essas espécies de proposicbes nfo sio suficicates para conduzir a quaisquer conhecimentes, Se 08 principios abstratos sic proposigGes gerais, werdadeiros em tocos os Sa80s possiveis, cles so menos conhecimentos que uma maneita abreviada de tomar véirios conhecimentos particularcs, adquiridos antes mesmo que sc tenha Pensado nos prineipies. @ rode & maior que sua parte significa: meu corpo & malor que meu brager meu brace de que minka mao; minka maa do que mew edo, ete, Nutt palavra, este axioma nio contém senio proposigées particularcs dessa espécie ¢ as verdades, as quais’ se imaginaya que ele conduz, foram conhecidas antes que ele 6 fosse. Esse método seria, portunto, cstéril se no tivesse por fundamenta sendo fais miximas, Temos, também, duas manciras para the conferir uma fecundidade aparente. A primeira consiste cm partir de propasigdes que, sendo verdadeiras em muitos casos, sobretudo por aqueles que muito surpreendem, dio margem @ suposicio de que o sio em todos os eusos, Nu verdade, se se os apreciav © se tiravam conseqiléncias exitas apendis, ¢ visivel que ele seria como os prin Sipios que acabamos de falar, Mas euidado: ao contritio, supde-se que sejam entio, uplici-los a coisas onde clas so upliciveis. © extrair consegiiéneins que parecerio muito novas porque elas nao estavam ai contides. ‘Tal & © principio dos Cartesianos: pode-se afirmar de uma coisa tudo aquilo gue esta contide ina fdgia clara que tems, Moswarei que ele nao & sempre verdadciro, * Essa maneira de conferir uma espécie de fecundidade 1a um sistema 2 € & mais habit: a segunda é mais grosscira, mas nio est em menos uso. Fla consiste em imaginar uma coisa que nia s¢ concehe. scgundo ume outra coisa cujas. idéias sio mais familiares; © quando, por esse meio, se estabeleceu uma certs quintidade de relagdes abstratas « de definigdes frivolas, ratioginava-se sobre uma coma se raciocinaria sobre ovins. & assim que a verdadciros em muitos casos onde sho. falsos. Pod Ibstrato fltcke soube vet qué ay midinnas absitates. nfo sio a fomte-de mosses conbesiaitey, Ele forneck razies que mio retome porque’ sun. obra ssid tus iis ce todo mane Neiast © Ensaio Sobre 1 Ratendimente, Humane, lives Wy cup. 7, 8996 IO Meng fim clo § 11 do mesme capitulo, a auoridade das matematicus se Ihe impde = ele conzord Aue ov principios sibsiraies scjarn empresados como prefiminares para euparve se vernon cenhecidas, Creio ter demonsirado a inutilidade ea abuso de se tomar tol. wantgie Veja-e a Ldgica ow Arte de Penser, CN. do Ad 7 Cap. 6 art. 2. (N. do ALL TRATADO DOS SISTEMAS 9 Tinguagem usada para os corpos serve a varios filsofos para a explicacao do que se passa na alma.? Basta que cles imaginem algumas relagGes entre essas duas substincias. Veremos alguns exemplos. Existem, portanto, trés espécies de principios abstratos em uso. Os primeiros slo proposigdes gerais, verdadeiras em todos os casos. Os segundos sio propo- sides verdadeiras pelos casos mais notdveis e que, por isso, se & levado a supor gue sio verdadsiras em todos os casos, Os iiltimos sio relagies vagas que se imaginam entre coisas de natureza totalmente: diferente. Esta andlise € suficiente para que se possa ver que, entre esses prineipios, alguns nao conduzem a nada e os outros nao conduzem senao ao erro. Eis, entretanto, todo o artificio dos sistemas abstratos. Se as reflexdes precedentes nfo forem suficientes para se conyencer da inutilidade desses princfpios, que se dé a alguém aqueles de uma ciéncia que ele ignora; poderia ele se aprofundar com to fracos recursos? Que ele medite estas maximas: @ rode é igual a todas as suas partes; a grandezas iguais junte grandezas iguais, os todos serio iguais: junte desiguais, eles serao desiguais; teria ele af alguma coisa para tornar-se um profundo geémetra? Mas, a fim de tornar isso mais sensivel, desejaria que arrancasse de seu gabinete ou da escola um desses filésofos que percebem uma tio grande fecundidade nos principios gerais ¢ que se oferega a cle o comando de um exército ou governo de um Estado. Se se fizesse justica a si mesmo, cle, sem divide, recusaria porque nao entende nem de guerra nom de politica; mas isso seria para ele a menor desculpa do mundo. A arte militar e a politica tém seus prinefpios gerais como twdas as outras ciéncias. Por que, portanto, nio poderia ele, se Ihe & ensinado, o que nio ¢ questio sendio de instantes, descobrir todas as conseqiiéncias c tornar-se, depois de algumas horas de met ‘Condé, um Turenne, um Richelieu, um Colbert? Quem o impediria de eseolher entre esses grandes homens? Sente-se quanto essa suposicio & ridicula porque nao é suficiente, para ter a reputagio de bom ministro ¢ de bom general, como para ter a de bom filésofo, perder-se em vis especulagSes, Mas pode-se exigir menos de um filésofo para bem raciocinar que de um general ou ministro para bem agir? Ora! Seria necessirio que estes tiltimos tivessem percebiclo ou, pelo menos, tivessem estudado com cuidado os detalhes das fungSes subalternas ¢ um filésofo tornar-se-ia, de golpe, um homem sabio, um homem para quem a natureza nao tem segredos, somente pelo encanto de duas ou trés proposigées. Uma outra consideragio, mais pertinente ainda, para demonstrar a. insu- ficigneia dos sistemas abstratos 6 0 {ato de que, nesse case, nao & possivel uma questo ser examinada em todos os seus iingulos. Porque as nogdes que formam esses principios, no sendo send idéias parciais, no se poderia fazer uso delas 2 mii ser que se faga abstragao de varias consideragées essenciais. E por isso que as matérias um pouco complicadas, tendo mil maneiras pelas quais seas pode tomar, déo-margem a grande mimero de sistemas abstratos. Pergunte-sc, por exemplo, qu é a origem do mal, Bayle estabelece sua resposta sobre os. prineipios da bondade, da santidade ¢ da onipoténcia de Deus; Malebranche 4 Alusio a Malebranche, (N. da ed. francesa.) 1 CONDILLAC Prefere os principios da ordem e da sabedoria; Leibniz cré que nio é necessétio mais que sua razio suficiente para explicar tudo; 0s, tedlogos empregam os Principios da liberdade, da providencia geral ¢ a queda de Adiia;® os socinianos negam ‘a preseiéncia divina; os origenistas asseguram que os castigos nao serio sremos; Espinosa nao admite sendio uma cega e fatal nevessidade: enfim, os maniqueisias acumularam, todo 0 tempo, principios sobre ‘principios, absurdos Sobre absurdos. Nao falo dos filésofes pagios que, raciocinando sobre principios diferentes, cairam em alguns desscs sistemas ou em outros como a metempsicose. Vé-se, por esse exemplo, como & impossivel construir sobre principios abstratos um sistema que abarque todas as partes de uma questo, “Entretanto, 98 filésofos nao oscilam. Nesses casos, cada um tem su sistema favorito 20 qual quer que todos os oviros cedam. A razio tem munto pouco a ver com 4 escolha que fazem; ordinariamente, sio us paixSes que decidem sozinhas, ‘Um cspirito naturalmente doce © generoso adatard os principios que se exiraem da bondade de Deus porque no encontra nada maior, mais belo que fazer o bem, Assim, esse deve sero primeiro caréter da divindade a0 qual tudo se deve reenviar. Um outro, em quem a imaginagdo € grande e as jdéias sto Preponklerantes, gostari mais dos princfpios que se tomam cmprestados da ordem © da sabedoria porque nada the causa mais gosto que um encudeaments de Causas ao infinito ¢ uma combinagio admiravel de todas as partes do universo, © @ infelicidade de todas as criaturas deve, por isso, ser uma conseqiiéneia necesstiria, Enfim, o cariter sombrio, melancdl ico, misantropo, odioso a sie aos outros, gostard das palavras como destino, fatalidade, necessidade, acaso, Porque, inquicto, descontente consigo ¢ com tudo que o rodeia, € obrigado a alharese como um objeto de despreza e horror ou a se persiiadir de que nio h@ nem bem nem mal, nem ordem nem desordem,. Pode cle hesitar? Sabedoria, honra, virtude, probidade: eis sons ‘viios; destino, fatalidade, Acaso, necessidide: eis 0 sew sistema, Seria muito presumir ou pensar que se posse Corrigir todos os homens Resse ponto, Quando a curiosidade se encontra unida 1 um pouca de imaginario, quer-se, também, levar a vista ao longe, quer-se tudo abarcar, tudo conhecer, Nesse projeto negligensiam-se o§ detalhes; as coisas ao nosso aleance; yoa-se sobre paises desconhecidos ¢ constroem-se sistemas. Entretanto, uma constante que, para se realizar uma visio geral e extensa, que seja fixa © segura, & necessirio comecar 2 tornar familiares as verdades particulares, ‘Talver quem tenha sido encontrado nos primeiros lugares ngo tenha sida um espltito mediocre Sendo porque negligenciou esse estudo. Talvez tenha merccido os elogios dados fos grandes homens, sc cuidasse com mais atengio de adquirit até os menores os de que Bayle, Malebranche, Leibniz ¢ os teSlogos se servem so. verdades: fads amiagem que eles tém sobre 0s principios dos sosinianos, dos origeniins lor onto Mas nenhuma dessas verdades & tio fecunds para nos dar a task Werte” Wee wees canes naduania, Giz que Deas é santo, bom, onipotente; enguna-se no fato de que ee ‘cientes ¢ quet com eles forntar Um. sistema, Di (cstinadas @ nos fazer conbecé-lo ¢ @ Igreja néo aprova os tedlogos que tentam tmdo explicar. (N. do A.) TRATADO DOS SISTEMAS i comhecimentos necessérics As fungdes As quais se destina. Uma sdbia conduta multiplicaria os -talentos ¢ desenvolveria os génios. Hoje em dia, alguns fisicos, 0s quimicos sobretudo, procuram unicamerte recolher os fendmenos porque reconheceram que é necessdrio abarcar os efeitos da natureza ¢ descobrit a dependéncia miitua, antes de colocar os principles que os explicam. O exemplo de seus predecessores Ihes serviu de ligio; querem, pelo menos, cvitar os erros que cngendra a mania dos sistemas. Seria de desejar que © resto dos filésofos os imitasse! Mas, em geral, nao se tem trabalhado sendo para aumentar 0 mtimero dos principios abstratos. Descartes, Malebranche, Leibniz e muitos outros viram em muitas maximas uma fecundidade que ninguém tinha notado antes. Quem sabe mesmo se, algum dia, as novos fildsofos nfo daria nascimento a novos. principios? Quantos sisicmas j4 ndo foram feitos? Quantos seriio feitos ainda? Se, 20 menos, se encontrasse um que fosse cecebido uniformemente por todos 9s seus partiddrios! Mas qual base comum se pode formar sobre sistemas que sofrem milhares de mudangas, passando por milhares de mios diferentes; que, joguetes dos caprichos, aparccem © desaparecem da mesma maneira; ¢ que se sustentam tio pouco que, freqiientemente, pode-se usi-los pura defender o pré eo contra? Que os homens, ao sair de um profundo sono, vendo-se no meio de um labirinto, cdloquem principios gerais para descobrir as conseqtiéncias — existe coisa mais ridieula? Eis, entretante, a conduta dos filésofos. Nascemos no meio de um labirinto onde milhares de desvios sio tragados para nos conduzir 20 erro; s¢ hé um caminho que conduza i verdade, cle niio s¢ mostra de in frequentemente ¢ aquele que parece menos digno de nossa confianca. Deveriamos, portanto, tomar muita precaugio. Avancemos lentamente, exa nemos cuidadosamente todos os lugares por onde passamos ¢ a conhegamos tio bem que estejamos em condigio de voltar sobre nossos pasos. mais importante encontrarmo-nos onde estivamos no inicio do que se crer, com ligeireza, fora do labirinto. Os capitulos seguintes dariio a prova. Carituto IT Do abuse dos sistemas abstratos Se eu quisesse reduzr a um sistema uma matéria, a qual teria aprofundaco todos os detalhes, teria que notar apenas as relagGes de suas diferentes partes e perceber aquelas onde estariam numa to grande ligdcéio que as conhecidas primeiramente’ seriam suficientes para dar a explicagio das outras, Entao cu teria principios cuja aplicacdo seria tio bem determinada que ndo seria possivel restringi-los nem estendé-los a casos de naturezas diferentes. Mas, quando se quer edificar um sistema sobre uma matéria cujos detalhes so totalmente desconhecidos, como fixar a extensdo dos prineipios? E, quando os princfpios’ SHO Vagos, COMO as expressGes terao alguma precisio? Se, entretanto, estou 1 CONDILLAC Prevenido de que posso adquirir conhecimentos unicamente por esta via, me entrego inteiramente; se coloco principios sobre principios, se extraio Consegiiéncias sobre consequéncias, impondo-os, em seguida, a mim mesmo, admirarei a fecundidade deste méiodo, aplaudir-me-ei de minhas pretensas descobertas ¢ nao duvidarei um instante da solidez do meu sistema: os Principios parecer-me-Zo naturais, as expressGes simples, claras e precisas ¢ as Conseqiiéncias perfeitamente extraidas, Assim, a primeiro abuso dos sistemas, aquele que ¢ a fontc de muitos outros, 6 que acreditamos adquirir verdadciros Conhecimentos quando nossos pensamentos nfo giram senio sobre palavras que nfo tém sentido determinado. Mais ainda: prevenidos pela facilidade © pela fecundidade dese método, nao pensamos em submeter ag cxame os principios sobre os quais raciocinamos, Ao contririo, hem persuadides de que sio a fonte de todos os nossos conhecimentos, quanto mais os empregamos menos temos eseripulos. Se se ousasse duvidar, a qual verdade poderiamos pretender? Eis 0 que consagrou essa méxima singular: ndo se deve colocar os principios em quesiao: maxima de um abuso tio grinde que nio hi erro que néio possa cngendrar. Esse axioma, irracional como é uma vez adotado, torna natural © pensar que nio se deve mais julgar um sistema seniio pela mancira que dé a razio dos fenémenos. Mesmo que esteja fundado sobre idéias as mais elaras, sobre fatos os mais segurcs, se falha neste aspecto & necessério rejeiti-lo © deve-se adotar um sistema absurdo quando explica tudo. Tal € 0 excesso de eegucita em que se eaiu. Darei, como exempta, aquilo que Bayle descreveu sobre o maniqueismo.2° “As idéins”, diz ele,! “mais seguras™ © mais claras de ordem nos ensinain que um ser que cxiste por si mesmo, que é necessirio, que eterno, deve ser Ainico, infinito, onipotente © dotado de todas as espécies de perfeigdes. Assim, consultando essas idéias, nfio se encontra nada de mais absurdo que a hipdtese de dois principios eternos © independentes um do outro, em que um deles no tem nenhuma bondade ¢ tem o poder de deter os designios do outro. Eis 0 que denoming razées @ priori, Elas nos conduzem necessariamente a rejeitar essa hipdtese ¢ a nao admitir seniio um principio de todas as coisas, Se fosse 86 isso para a bondude de um sistema, o processo estaria entregue 4 confusio de Zorozstro ¢ de todos os seus sectirios. Mas nfo ha sistema que, Para ser bom, no tenha necessidade destas duas coisas: a primeira, que as idéias sejam distintas, ¢ @ segunda, que possa explicar os fendmenos. Essas duas coisis so, com efeito, igualmente essenciais, Se as idéias claras © seguras no so suficientes para explicar os fendmenos, no se saberia formar um sistema; devemos'nos limitar a otha-las como verdades qué pertencem 4 uma ciéneia da qual nao se conhece ainda sendo uma pequena parte, Se as idélas stio absurdas, nada seria menos razodvel que tomé-las. por prineipios: seria querer explicar as coisas que nio se compreendem por outras das quais se eonceberia tod a falsidade, Daf seria neeessirio concluir que, suponde que 1G. Bayle, Diciondrio Histérico ¢ Critico, urtigo “Maniqueistas”. (N. da ed. francesa.) M Maniqueistas. (IN. do A.) ¥ Coloco cm grifo as expressdex que & necessirio ressaltar, (N. do A.) TRATADO DOS SISTEMAS 13 © sistema da unidade do principio no é suficiente para explicar os fenémenos, isso nfio & uma raxio para admitir como verdadeiro o sistema dos maniquefstas: falta-Ihe uma condicao essencial. Mas Bayle raciocina de uma maneira bem diferente. Desejando concluir que € necessdrio recorrer as luzes da revelagéo para arruinar o sistema dos maniqueistas, como se fosse necessiria a revelagio para desteuir uma opiniio que ele concorda ser contréria as idéias mais claras e mais distintas, finge uma disputa entre Melisso e Zoroastro e faz este tltimo falar da seguinte mancira: “Vocé me ultrapassa na beleza das idéias ¢ nas razdes @ priori ¢ eu o ultrapasso na explicagéo dos fendmenos © nas razées @ posterior?, ©, porque o principal carter de um bom sistema é 0 de ser capaz de dar a razio dat experiéncias © 36 a incapacidade de explicé-las é uma prova de que uma hipétese nao é boa, quao bela possa parecer, concorde que eu atinjo o alvo, admitindo dois principios, © que vor€ nfo o fuz, pois nio admite sengo um’ Bayle, supondo que o principal cardter de um sistema ¢ 0 de dar a razio dos fenémenos, adota um prejuizo dos mais geralmente recebidos e que € uma consegiiéncia do prinefpio: nao se deve colocar os principios em questao. E. facil dar a Melisso uma resposta mais razodvel que o argumento de Zoroastro. “Se as razées a priori dos dois sistemas, eu o faria dizer, fossem igualmente boas, seria necessdrio dar preferéncia aquele que explicasse os fendmenos. Mas, se um esti fundado em idéias claras e seguras e 0 outro sobre idéias absurdas, nao € necessdrio evar em conta o ultimo porque parece dar a explicagdo dos fenémenos; cle nlio 3 cxplica, nfo pode cxplicé-los, porque 0 verdadeiro nio poderia ter sua razio no falso, © cardter absurdo dos principios é, portanto, uma prova de que uma hipétese nio € boa. Esta, portanto, demonstrado que vocé no atingiu o objetivo. “Quanto a isso que voce diz, que uma suposigéio ¢ m4 pela dnica razio de ser incapaz de explicar os fenémenos, cu distingo: ela é m4, se essa incapacidade vem do fundo da suposigdo mesma, de maneira que por sua propria natureza seja insuficiente para explicar os fenémenos. Mas, se sua incapacidade advém dos limites do nosso espirito ¢ do fato de que nfo adquirimos ainda suficientes conhecimentos para torné-Ia capaz de dar 9 raz’o de tudo, é falo que seja ma. Por exemplo, eu reconheco somente um primeira principio Porque, como vocé concorda, é a idéia mais clara e mais segura; mas, ineapaz de penetrar as vias desse ser supremo, minhas luzes nao me sao suficientes para explicar suas obras, Limito-me a recolher as diferentes verdades que vém ao meu conhecimento e néo empreendo ligé-las e formar um sistema que explique todas as coniradigdes que voce imagina ver no universo, Que necessidade ha, com efeito, para a verdade do sistema que Deus se prescreveu, que eu possa compreerdé-lo? Convenha, portanto, que, se com um tnico principio cu nfo posso dar a razio dos fenémenos, voc nao tem o direito de concluir que, sendo assim, hd entio dois.” Seria necessério esiar muito prevenido para nao sentir o quanto esse raciocinio de Melisso seria mais sélido que aquele de Zoroastro. Os fisicos contribuiram ndo pouco para por em circulagdo este principio que diz: é suficiente para um sistema explicar os jendmenos. Eles tinham

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