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Resumo
Este ensaio apresenta uma investigação poética sobre o som e sua capacidade de se
espalhar além de fronteiras, de fazer vibrar peles, corpos e atmosfera, de criar territórios,
atravessamentos e desterritorializações, partindo de conceitos de Deleuze e Guattari. Tal
investigação se dá através de diferentes trabalhos e processos em curso, nos quais procuro
valorizar a escuta e o acaso, a participação, a voz do diferente, o desejo de chegar ao outro
através da multiplicidade dos sentidos. Busco criar territórios vivos e em fluxo com
“Atlântica” e “Cortina de Ruínas Leves”. O som imaginado ou sugerido por outras formas
também está presente: em textos, imagens, movimentos. Fabular sonoridades, criar
percursos-relatos, propor a escuta atenta e imaginativa, buscar uma arte de subjetivação
transformadora.
Abstract
This essay presents a poetic investigation on the sound and its ability to spread beyond the
borders, to vibrate skins, bodies and atmosphere, to create territories, crossings and
deterritorializations, starting from concepts of Deleuze and Guattari. This investigation is
performed through different works and ongoing processes, in which I try to value the listening
and the chance, the participation, the voice of the different, and the desire to reach the other
through a multiplicity of senses. I seek to create living territories in flux with “Atlântica” and
“Curtain of Light Ruins”. The imagined sound, or suggested by other forms, is also present in
texts, images, movements. To fable sounds, create story-routes, propose an attentive and
imaginative listening, seeking a transformative art of subjectification.
mutação – e ainda agem sobre seus restos, que voltaram a um recanto de abandono
privado. Anti-monumento transitório que aceita com leveza a entropia, souvenir de
esquecimentos cantantes.
caminho certo: o território é a Avenida, mas nunca sei bem aonde irei de fato, por
quanto tempo ficarei andando, se vou parar em alguns lugares, se seguirei alguém,
se vou puxar conversa com uma pessoa que me deixa mais curiosa, emocionada,
com vontade de um contato maior. Vou me guiando mais pelos sons que escuto e
despertam meu interesse do que por qualquer outro estímulo. Isso cria um percurso
um tanto caótico e errante, que foge à lógica, à pressa, à linha reta: percurso-
processo. Já andei em círculos e dei meias-voltas para seguir pessoas e seus sons.
Algumas vezes, por esquecimento ou alguma questão técnica – como pilhas fracas -
o gravador não estava gravando; mas vivi uma experiência que depois se transforma
e se junta a um gigantesco mapa em mutação. Sem o arquivo sonoro, busco outros
meios de construção, ínfimos blocos afetivos: pequenos objetos, restos, frutos de
coletas, imagens - e relatos como este. A fabulação, a ficção do real, o percurso-
relato: movimento fundamental e indispensável em todo o processo. O som passa
por muitos lugares aparentemente silenciosos.
O som se propaga pelo ar, pela água, passa barreiras, atravessa brechas, se
espalha todo, navega interstícios, cria e atravessa territórios em fluxo – e a minha
própria percepção parece adquirir estas características, perdendo um tanto do foco
perspectivo visual. Começo a imaginar como seria uma caminhada guiada pelo
olfato, outro sentido um tanto aéreo que certamente me levaria a derivas
semelhantes. Decido que os cheiros também fazem parte dos trajetos-relatos.
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Por trás da ronda das horas e dos pontos fortes da paisagem, encontramos,
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na verdade, palavras e linguagens [...]. O lugar se completa pela fala...
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É pelo Oceano que toda a dinâmica da Avenida se articula, é ele que faz as
praias e desenha seus contornos, junto às pedras e à areia. Horizonte da paisagem,
fonte de vida, trabalho, prazer e sobrevivência, alvo de homenagens, oferendas e
canções – e de exploração, poluição e morte. Pelo Oceano chegaram os primeiros
colonizadores e foram trazidos os escravos sobreviventes; o Atlântico é ligação,
separação e travessia do Brasil a Portugal e à África, simbolicamente cenário trágico
e imensa fronteira dessa história.
A arte, nesses aspectos, seria o ato de criar outros territórios, criar mundos
possíveis [...] Território não só como delimitação de domínios, mas como
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produção de mundos.
No entanto, o som serve de guia; o som, que se propaga sem ser detido por
diversos tipos de limites estabelecidos, serve bem ao propósito de uma investigação
que trata de atravessamentos, porosidade, contágio, fronteiras:
1
SCHAFER, Murray. Open Ears in The Auditory Culture Reader, ed. Michael Bull & Les Back, New York: Berg,
2003.
2
CAESAR, Rodolfo. Círculos Ceifados. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
3
KAHN, Douglas. Noise, Water, Meat: A History of Sounds In The Arts. Cambridge: MIT, 1999.
4
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 4. São Paulo: Editora 34,
1997, p.127.
13 OBICI, Giuliano. Condições da Escuta – Mídias e Territórios Sonoros, Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, p. 75.
14
HOLMES, Brian. Investigações Extra-Disciplinares – Para uma Nova Crítica das Instituições, Rio de Janeiro,
Concinnitas, ano 9, v. 1, n. 12, Julho 2008, p.12.
15
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1997.
16
GUATTARI, op. cit., p.15.
17
OBICI, op. cit., p. 78.
18
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1997,
p.101.
19
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 6.
20
AUGÉ, Marc. op. cit., p. 73.
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21
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano - Artes de Fazer, p. 206.
22
Ibid., pp.199-200
23
Ibid., p. 215.
24
Ibid., pp. 213-215.
25
AUGÉ, op. cit., p. 58.
26
HARAWAY, Donna. Antropologia do Ciborgue: As Vertigens do Pós-Humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000,
pp.105-106.
27
CERTEAU, op. cit., pp. 216-217.
Referências
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 4. São
Paulo: Editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. São Paulo: Editora 34, 1997.
HOLMES, Brian. Investigações Extra-Disciplinares – Para uma Nova Crítica das Instituições.
Rio de Janeiro, Concinnitas, ano 9, v. 1, n. 12, Julho 2008, pp. 7-13.
KAHN, Douglas. Noise, Water, Meat: A History of Sounds In The Arts. Cambridge: MIT,
1999.
SCHAFER, Murray. Open Ears in The Auditory Culture Reader, ed. Michael Bull & Les Back,
New York: Berg, 2003.
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Leandra Lambert