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Resumo
Temos por objetivo apontar as principais contribuições de Maud Mannoni para a história da psicanálise. Para tanto, mencionaremos
as influências que marcaram em sua trajetória e aspectos centrais de sua obra: suas concepções sobre a loucura e a criança. A ideia é
tentar compreender de que maneira tais aspectos, ao se repetirem, ganham uma importância fundamental para a leitura de sua obra.
Isso convoca a duas perguntas: Por que a criança e o louco? Em quê a questão psiquiátrica e o lugar do analista se relacionam? É, pois,
por essa via que tentaremos construir nossa discussão em torno da ruptura que ela operou no embate que travou com a psiquiatria e
as instituições psiquiátricas e, ainda, sua relação com o lugar do analista na clínica com crianças.
Palavras-chave: Maud Mannoni, psicanálise, psiquiatria, clínica com crianças
Abstract
We aim to point out to the major contributions of Maud Mannoni in the history of psychoanalysis. For this, we want mention to the
influences that marked its trajectory and the key aspects of her work: the conceptions of madness and the child. The idea is to try
to understand how these aspects, being repeated, get a fundamental importance for the reading of her work. It summons for two
questions: Why the child and the insane? In what does the psychiatric issue and the place of the analyst are related? In this way we will
try to discuss about the rupture Maud Mannoni operated in the clash caught by her against the Psychiatry and psychiatric institutions,
and their relationship with the place of analyst in the clinic with children.
1
Psicanalista. Mestre em Psicologia pela UFC. Professora da Faculdade Maurício de Nassau. Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. - Seção
Fortaleza
(e-mail:rebecaescudeiro@gmail.com)
2
Professora Associada do Departamento de Psicologia e Coordenadora do Laboratório de Psicanálise da UFC. Diretora do Corpo Freudiano Escola de
Psicanálise - Seção Fortaleza (e-mail: laeria@terra.com.br)
va. Em sua prática, não aplicava conceitos prática e o poder da classe médica. Em
preestabelecidos e tratava a criança como Educação impossível, afirma que:
pessoa responsável e autônoma. O que lhe
O mérito da antipsiquiatria está em
fazia atentar para as diferentes posições
ter-se insurgido contra toda ideia
da criança nos momentos em que experi-
de uma administração da “loucu-
mentava uma tensão conflitiva. Diz ainda
ra”, deixando assim o campo livre
Mannoni que o que guiava Dolto era sua
à diversificação de experiências sem
interrogação sobre o desejo, distinguindo-
outro propósito que não seja esca-
-se, assim, de uma psicanálise centrada na
par a toda planificação. (Mannoni,
adaptação e na manipulação dos valores de
1977, p.15).
um sujeito. Tais aspectos exerceram influ-
ência na construção teórica de Maud Man-
noni e de sua escuta clínica com crianças. A partir das contribuições da psica-
Em sua autobiografia O que falta a verdade nálise articulavam-se, diante das discus-
para ser dita, diz sobre Dolto: sões antipsiquiátricas dessa época, algu-
Se, como educadora, eu a sinto, mas questões que envolviam um ponto de
antes como perigosa, no nível dos vista teórico e prático da psiquiatria. Por
efeitos de uma psicanálise “selva- exemplo, sobre a atividade do psicanalista,
gem”, como analista, eu lhe devo apontava-se que esta prática não fazia do
o ter me introduzido na análise e saber o monopólio do analista, o qual de-
transformado todas as minhas cer- veria, ao contrário, estar atento à verdade
tezas quanto à debilidade mental e que se depreende do discurso psicótico. As-
ao retardamento. É a ela que devo sim, sobre a intervenção e sua relação com
o ter começado mais tarde análises a linguagem, escreve Mannoni:
julgadas desesperadas. (Mannoni, A intervenção, em nome de um sa-
1990, p.26). ber instituído, das medidas intem-
pestivas de “cuidados” não pode se-
não esmagar aquilo que pede para
A problematização de Maud Mannoni
falar na própria linguagem da lou-
sobre as instituições hospitalares e edu-
cura e coagular um delírio, alienan-
cacionais, bem como a escuta da criança
do no mais alto grau o indivíduo.
e da psicose, se faz, portanto, numa re-
(Mannoni, 1971, p.12)
ferência a Dolto e suas conceitualizações.
Apesar de conduzir-se em sua trajetória
mais efetivamente na direção de Lacan, as
Muitos antipsiquiatras foram influen-
interrogações às que Dolto chama atenção
ciados pela psicanálise, apesar de não se-
são citadas e lembradas por Mannoni ao
rem psicanalistas. Tinham como proposta
longo de sua obra, integrando-se, nesse
modificar radicalmente a atitude do médi-
sentido, às suas proposições.
co diante do doente mental. A loucura se-
Em seu livro O psiquiatra, seu “lou- ria, através desse movimento, apreendida
co” e a psicanálise (1971), Mannoni já no de maneira diferente: o psiquiatra recon-
prefácio esclarece que a antipsiquiatria duziria a relação do louco com o saber e a
colocava em discussão o estatuto outor- verdade. As experiências antipsiquiátricas,
gado à loucura pela sociedade, posicio- por exemplo, de Laing e Cooper na Inglater-
nando-se contra a concepção conserva- ra deviam muito à experiência analítica, de
dora que existia na base da criação das onde buscavam reproduzir uma escuta que
instituições “alienantes” e provocando os sustentasse o discurso do paciente sem a
alicerces em que se fundamentavam a tentação da intervenção. Assim, esclare-
este seja “autorizado a viver” por seus pais, soubermos reconhecê-los através do dis-
o que implica, em casos graves, ajudá-los a curso do sujeito. Acredita que a questão de
ultrapassar sua angústia, para que se pos- saber se eles têm ou não de aparecer na
sa se expor ao “risco de viver”. A chegada cena analítica comparece como um falso
ao tratamento pela via de um outro demar- problema, uma vez que eles sempre aí ir-
ca uma particularidade no atendimento de romperão. O aparecimento real dos pais se
crianças e psicóticos que vai tornar neces- aceito pelo psicanalista permite, no discur-
sário, ao analista, um ressituar-se no tra- so do sujeito, o desaparecimento de uma
balho transferencial diante da clínica clás- palavra alienante, já que por vezes acaba
sica com o adulto neurótico. Existe, aqui, por ser dos pais a palavra que intervém no
uma transferência a ser manejada também lugar daquele. “Se negligenciamos a deman-
com os pais ou familiares daqueles que da dos pais, especialmente nos casos dos
vem para uma análise, uma vez que é de débeis e dos psicóticos, comprometemos, no
tais parentes, em geral, de onde se parte a plano técnico, a verdadeira marcha do trata-
demanda para os atendimentos com crian- mento, que ficará sempre a um nível super-
ças e psicóticos. ficial, artificial” (Mannoni, 1988, p.63).
Na análise de crianças o analista é Em A criança, sua “doença” e os ou-
constantemente confrontado com uma si- tros, a partir da discussão de alguns casos
tuação transferencial que engloba os pais. clínicos, Maud Mannoni afirma que existe
Desse modo, ouvir suas angústias não se- em análise de crianças diferentes transfe-
ria o mesmo que fazer uma terapia familiar, rências desde a do analista, a dos pais e
mas atentar-se aos significantes que cons- a da criança. Retoma que a criança doen-
tituem o fantasma que atravessa a narra- te pertence a um mal-estar coletivo, sendo
tiva do sujeito, a história que o constituiu. sua doença suporte para a angústia dos
Sobre um caso clínico de uma criança dé- pais, onde “tocando no sintoma da criança,
bil, em que a mãe fala: “Muito antes que arriscamo-nos a fazer emergir brutalmente
os médicos me dissessem, eu já sabia que o que nesse sintoma servia para alimentar
ele seria anormal” (Mannoni, 1988, p.34). ou, ao contrário, a diluir a ansiedade do
Mannoni adverte que “esta mãe, é preciso adulto”(Mannoni, 1980, p.73). Nesse mes-
fazê-la falar de si mesma e do seu sofrimen- mo sentido apresenta que a doença orgâ-
to, suportar a sua angústia, para que o filho nica grave numa criança comparece como
seja menos impregnado por ela” (Mannoni, marca nos pais em função da própria histó-
1988, p.34). Ainda nesse caminho, dian- ria deles, sendo isso que aparece na relação
te da pergunta “O psicanalista de crianças transferencial.
deve ou não ocupar-se dos pais? ” (Manno-
ni, 1988, p.34), assim diz a psicanalista: Mannoni, ao tratar da relação entre
sintoma e palavra, defende a tese de que a
Ao receber a mensagem dos pais, situação do indivíduo no sintoma pode ser
não se está fazendo a psicotera- compreendida como o “efeito de um desco-
pia deles. É colocando-se ao nível nhecimento num certo tipo de relação com
do tratamento da criança que esta o Outro”. Isso destaca a importância de o
mensagem não deve escapar ao analista situar o que no discurso do seu
analista, especialmente nos casos paciente está direcionado ao outro (imagi-
em que filhos e pais formam um só nário) ou ao Outro (lugar da palavra), pois
corpo. (Mannoni, 1988, p.63). “desconhecendo-o, expomo-nos a graves
equívocos”. Assim, considera a autora:
Entende a autora que, no diálogo ana- Como analistas nós nos encontra-
lítico, os pais estão sempre presentes se mos em face de uma história fami-
Esse engodo institucional se daria tanto do, uma proposta em favor de um lugar que
num campo de atuação como no outro, já exista como uma instituição instrumen-
que se trata de uma posição de escuta que talizada, mas que, ao mesmo tempo, se
está atrelada, de forma semelhante, às de- preserve do perigo de se tornar totalitária
mandas institucionais. em suas características. Mannoni parece,
então, ter procurado englobar na noção
Em sua autobiografia, Maud Mannoni
que define como “instituição estourada” a
(1990) relata uma experiência numa insti-
crítica ao “peso da rotina administrativa
tuição educacional sobre a qual aponta “a
(...) que tende a criar uma situação que
inutilidade da existência na instituição de
torna impossível toda dialética” (Pereira,
uma equipe de analistas ‘especialistas em
2012, p.20).
psicose’ se esta permanece afastada da pró-
pria vida da instituição” (Mannoni, 1990, O “estouro da instituição” é entendido
p.41). O que a autora levanta, nesse momen- como o desvendamento da função que uma
to, é um problema que percorre as ativida- criança ocupa frente aos outros. Instaura-
des institucionais que envolvem o trabalho -se aqui uma dialética a partir de um objeto
do psicanalista, pois convoca uma posição de amor ausente, ou seja, a partir dos rom-
que não deve estar simplesmente atrelada a pimentos realizados no discurso coletivo
uma especialidade – por exemplo, da psicose que, mantido na instituição, congela-se em
– ou distanciada dos encalços que caracteri- um ritual adaptado à situação sintomática
zam a vida numa instituição. O que percebe criada entre seus participantes. “A crian-
Mannoni na experiência institucional citada ça rotulada de ‘louca’ não está disposta a
é que a instalação de uma equipe, ao invés abandonar facilmente o status da loucu-
de ajudar, acaba por servir primeiramente ra. Ela tem necessidade de ser ou ter um
para acentuar o sentimento de isolamento louco para sentir-se bem” (Mannoni 1977,
dos educadores, além de ocultar o mal-es- p.100). Assim, a noção de instituição estou-
tar na instituição, onde “os educadores se rada procura aproveitar-se de tudo o que
sentem, com as crianças, prisioneiros das de insólito possa surgir, portanto de tudo
estruturas extremamente hierarquizadas o que é da ordem do inesperado, do fan-
implantadas”(Mannoni, 1990, p.41). tástico. Desse modo, no lugar de oferecer
permanência, a estrutura da instituição vai
A autora introduz ao longo de seus
ofertar, numa base de permanência, aber-
trabalhos a noção de instituição estourada.
turas para o exterior. Constrói-se, assim,
O “estouro da instituição” consistiria na
um lugar de recolhimento que, no entan-
instauração de uma dialética que represen-
taria uma abertura a partir de dentro da to, dialoga com uma parte de fora, com um
instituição a um mundo exterior, criando externo, através de um trabalho ou projeto
“brechas de todos os gêneros”, possibilitan- para além da instituição. “Mediante essa
do que loucos (ou crianças) possam gozar oscilação de um lugar ao outro, poderá
de um lugar de recolhimento, um retiro, ao emergir um sujeito que se interrogue sobre
mesmo tempo em que preservar uma vida o que quer” (Mannoni, 1977, p.80).
fora da instituição. Ou seja, Maud Man- A noção de instituição estourada for-
noni pensa ao mesmo tempo numa críti- mulada por Maud Mannoni nos leva a um
ca radical às instituições, mas se recusa a questionamento: como pensar numa insti-
cair no engodo perverso de uma situação tuição que, por definição, é um lugar de ro-
em que tudo seria permitido, fechando os tina administrativa, mas que seja ao mes-
olhos para as demandas de tantos sujeitos mo tempo um espaço de abertura à palavra
excluídos em nossa sociedade por ter um livre, “fora do peso das convenções e inter-
lugar para viver. Conforma-se, nesse senti- dições sociais”? (Mannoni, 1977, p.76).
O que mais parece ter se aproximado possibilidade dialética para aqueles que
de uma experiência correspondente à no- chegam marcados por uma condição de
ção de instituição estourada foi a Escola “louco” ou “doente”.
Experimental Bonneuil sur-Marne, onde
Para alcançar o desiderato de uma
Mannoni trabalhou por volta de trinta
instituição que servisse, ao mesmo tempo,
anos de sua vida. Em setembro de 1969,
como lugar de refúgio e um espaço não-
nos conta ela em O psiquiatra, seu “lou-
-segregativo, os que participavam do coti-
co” e a psicanálise, que seria fundado um
diano da Bonneuil deparavam-se com ex-
Centro de Estudos e de Pesquisas Peda-
periências que chegavam mesmo a desafiar
gógicas e Psicanalíticas com a missão de
o papel da própria escola como instituição.
criar uma escola experimental direcionada
Nesse sentido, no intuito de preservar os
a crianças em dificuldade numa perspecti-
sujeitos da institucionalização de sua ‘en-
va não-segregativa. Assim surgiu a Escola
fermidade, a instituição estourada haveria
de Bonneuil. A equipe que ali trabalhava
de permitir sua própria negação como uma
era composta de três pessoas em regime
possibilidade, o que a tornava aberta a
de tempo integral e de treze estagiários, na
funcionar segundo critérios sempre novos
maioria psicólogos da Sorbonne. A propos-
quando a institucionalização de uma roti-
ta era que a instituição funcionasse como
na passava a ameaçar a liberdade de ser e
instrumento terapêutico. Adolescentes e
viver. Nesse sentido, ao ser perguntada por
crianças sob o signo da loucura eram en-
um jornalista sobre “no que Bonneuil é um
tão acolhidos numa perspectiva em que
lugar de aplicação da teoria freudiana?”,
a criação pudesse ser explorada a fim de
Mannoni respondeu:
possibilitar a emergência de um sujeito.
Buscava-se um distanciamento das prá- A pergunta me chocou: um lugar
ticas institucionais segregativas e adap- institucional não deve servir à apli-
tativas da época, possuindo este lugar, cação de uma teoria ou uma ideo-
características bem particulares em sua logia. Neste caso são sempre os pa-
proposta de trabalho. cientes que pagam o pato. Não se
pode utilizar um paciente para de-
Em seu livro Educação impossível,
monstrar a certeza de uma doutri-
Mannoni mostra a utilização da alternância
na. (Mannoni, 1990, p.109).
que faziam as crianças e adolescentes das
estadas entre Bonneuil e a província para
buscar uma possibilidade de fazer aparecer O primado da clínica aparece, por-
na ausência uma Outra cena. Apresenta, tanto, como central tanto na concepção de
também, como a tolerância à separação instituição estourada quanto na prática
variava, em sua duração, de uma criança buscada por Maud Mannoni no cotidiano
para outra. Existe uma duração de ausên- de trabalho da Escola de Bonneuil. Assim,
cia em que a criança pode se mostrar cria- no decorrer de sua trajetória, ela concen-
tiva. Esse tempo corresponde ao que ela tra seus esforços na direção de uma busca
guarda em si como imagem parental viva. da palavra perdida, da verdade e do esta-
Se essa duração é ultrapassada, a crian- tuto de sujeito. Buscou em suas ativida-
ça retoma seus estereótipos ou somatiza. des instaurar o lugar da dúvida, lugar este
Tem-se, então, na preocupação com o que que permitisse o questionamento sobre os
acontece com o paciente, a presença da di- modos de funcionamento das instituições
mensão analítica. (Mannoni, 1977). que recebiam as crianças e os “loucos” de
Mannoni tenta introduzir, no espaço toda ordem. Nesse sentido, Maud Manno-
de Bonneuil, um lugar em que haja uma ni operou mais uma ruptura ao combater
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