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Revista de Psicologia

O LOUCO, A CRIANÇA E O ANALISTA:


CONTRIBUIÇÕES DE MAUD MANNONI À PSICANÁLISE
THE INSANE, THE CHILD, AND THE ANALYST:
Revista
CONTRIBUTIONS OF MAUD MANNONI TO PSYCHOANALYSIS
de Psicologia

Rebeca de Souza Escudeiro 1 Laéria Fontenele 2

Resumo
Temos por objetivo apontar as principais contribuições de Maud Mannoni para a história da psicanálise. Para tanto, mencionaremos
as influências que marcaram em sua trajetória e aspectos centrais de sua obra: suas concepções sobre a loucura e a criança. A ideia é
tentar compreender de que maneira tais aspectos, ao se repetirem, ganham uma importância fundamental para a leitura de sua obra.
Isso convoca a duas perguntas: Por que a criança e o louco? Em quê a questão psiquiátrica e o lugar do analista se relacionam? É, pois,
por essa via que tentaremos construir nossa discussão em torno da ruptura que ela operou no embate que travou com a psiquiatria e
as instituições psiquiátricas e, ainda, sua relação com o lugar do analista na clínica com crianças.
Palavras-chave: Maud Mannoni, psicanálise, psiquiatria, clínica com crianças

Abstract
We aim to point out to the major contributions of Maud Mannoni in the history of psychoanalysis. For this, we want mention to the
influences that marked its trajectory and the key aspects of her work: the conceptions of madness and the child. The idea is to try
to understand how these aspects, being repeated, get a fundamental importance for the reading of her work. It summons for two
questions: Why the child and the insane? In what does the psychiatric issue and the place of the analyst are related? In this way we will
try to discuss about the rupture Maud Mannoni operated in the clash caught by her against the Psychiatry and psychiatric institutions,
and their relationship with the place of analyst in the clinic with children.

Keywords: Maud Mannoni, psychoanalysis, psychiatry, clinic with children

1
Psicanalista. Mestre em Psicologia pela UFC. Professora da Faculdade Maurício de Nassau. Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. - Seção
Fortaleza
(e-mail:rebecaescudeiro@gmail.com)
2
Professora Associada do Departamento de Psicologia e Coordenadora do Laboratório de Psicanálise da UFC. Diretora do Corpo Freudiano Escola de
Psicanálise - Seção Fortaleza (e-mail: laeria@terra.com.br)

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INTRODUÇÃO bém de um analista (como foi o caso


de Freud com os adultos) receber de
Maud Manoni foi um dos grandes
seu paciente um esclarecimento so-
marcos para o repensar da clínica psicana-
bre o que nele, analista, permane-
lítica com crianças e para a crítica dos pro-
cerá até então a salvo de todo ques-
blemas políticos e ideológicos envolvidos
tionamento ou sobre o aspecto da
nas instituições em geral. Suas caracterís-
“loucura” nele. (p.49)
ticas pessoais e seus posicionamentos po-
líticos tiveram um impacto no modo como
construiu seu legado teórico, o qual consi- Nos mostrou, assim, que a escuta
deramos que se deu menos pela via de uma analítica deve conduzir à uma ética que
sistematização conceitual e mais através consiste em facultar a palavra ao pacien-
de certos enfrentamentos, confrontos, po- te para que todos eles possam vir à advir
lêmicas, debates, cujos efeitos implicavam como sujeitos de seus discursos. Posição
na ultrapassagem de determinadas posi- contrária à de exclusão e segregação im-
ções conservadoras relativas às primeiras postas, amiúde, pelas práticas institu-
formas de psicanálise com crianças e, tam- cionais de cunho adaptativos e ideológi-
bém, quanto ao movimento psicanalítico. co. Ela, contribui para nos sensibilizar
Psiquiatra de formação, Maud Man- para o fato de que o lugar do analista não
noni tem com esse campo científico um for- pode ser pensado sem que consideremos
te diálogo que se mostra sempre recorrente o modo como se travam as suas relações
em seus trabalhos. Questões sobre a lou- políticas e institucionais no que tange os
cura, a segregação psiquiátrica, a institui- protocolos que se oferecem à formação do
ção asilar, a antipsiquiatria e a psicanálise psicanalista.
se entrelaçam, por vezes, ao longo de sua Dada sua atuação tanto em institui-
obra. Nesta destaca-se a centralidade de ções psiquiátricas com em instituições edu-
dois assuntos insistentemente abordados cacionais, ela demonstrou que a exclusão
por ela: o louco e a criança. do sujeito comparece tanto na estrutura de
O tratamento que dá à loucura guarda umas como das outras, o que não exclui-
um parentesco com aquele dado às crian- ria também a própria clínica psicanalítica,
ças, pois, em geral, ambos chegam à clínica pois quando o analista se coloca, em seu
psicanalítica a partir da demanda de um trabalho de escuta, numa posição que in-
outro. Situação que impõe um limite ao tra- viabiliza o acesso do sujeito a um saber so-
balho do analista, mas que a conduziram a bre sua verdade, situando-se, o analista, na
mesma posição que inviabiliza o advento do
considerá-los como os próprios limites do
sujeito em sua relação com sua verdade in-
analista. Melhor dizendo, do que ele pode
consciente, estaria ele tomando, da mesma
ou não suportar da prova a que lhe sub-
forma, seus pacientes como objeto. A au-
metem os seus pacientes. A loucura, para
tora contribuiu, ainda, para nos chamar a
Mannoni (1990), exerceria um verdadeiro
atenção para o fato de que, “num determi-
efeito de interpelação sobre o analista:
nado momento da história da psicanálise,
O analista que se deixa interpelar os psicanalistas chegaram – a exemplo dos
pela loucura (...) aceita, na verda- psiquiatras – a falar da doença, mas não
de, ser posto em questão no campo do doente” (Mannoni, 1980, p.15). Nes-
do seu próprio “inanalisado”. Esse se contexto, chamamos a atenção para a
ponto cego do analista é o viés por construção de uma reflexão acerca do lugar
onde se faz nele a abertura do in- do analista junto as instituições totalitárias
teresse terapêutico. Acontece tam- em seu pensamento:

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Notava eu que a psicanálise, longe parece uma convocatória à escuta da expe-


de subverter a psiquiatria (nesse riência clínica - tão presente nos trabalhos
domínio preciso, os efeitos do imen- desta psicanalista, além de antecipara a
so trabalho de Lacan continuava sua posição de enfrentamentos às institui-
sendo letra morta), era recuperada ções psiquiátricas totalitárias.
pela psiquiatria como técnica de
Ainda sobre sua experiência em hos-
complementação. A psicanálise ins-
pitais, é importante frisar a influência de
titucionalizada, em suas aplicações
Françoise Dolto, com quem trabalhou no
deformadoras que conhecemos,
hospital de Trousseau - um importante
serve de aval à própria ordem ins-
palco para sua formação -, e com quem
titucional e participa, portanto, de
manteve uma estreita relação - isso desde
sua conservação; daí a psicanálise
a proximidade pessoal, que envolveu sua
trair sua vocação. (Mannoni, 1977,
acolhida em Paris pela família Dolto até
p. 13).
seu casamento com Octave Mannoni - que
serviu de a referência em sua vida e re-
Mas, mais que discurso será sua sultou em colaborações importantes para
própria ação que procurará fazer viva a le- as sua concepção sobre a psicanálise com
tra de Lacan, a quem tampouco poupava crianças (Mannoni, 1990).
suas críticas quando entendia necessárias. Françoise Dolto, colaboradora e ami-
ga de Lacan por muito tempo, foi na Fran-
ça, uma psicanalista reconhecida por suas
inovações à psicanálise infantil. No Hospi-
UMA TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL E A tal de Trousseau, onde as terapias eram
ANTIPSIQUIATRIA conduzidas por ela na presença de médicos
e de analistas em formação, Maud Manno-
Foi expressiva a participação de
ni se viu marcada por uma abordagem da
Maud Mannoni na luta antimanicomial de
doença mental que a despertou para inter-
seu tempo. Seus escritos são incisivos na
rogações sobre os efeitos de um certo dis-
denúncia do caráter nefasto de hospitais,
curso (o do paciente e o do analista). Isso se
manicômios, hospícios, como “instituições
dava na medida em que percebia o incômo-
totais” do isolamento a que eram reduzidos
do que causava em alguns analistas o que
os loucos.
propunha sua supervisora clínica e enten-
É interessante salientar que em sua de que, ao dizer a verdade do paciente, esta
trajetória a experiência parece ter precedi- tocava no que havia de ponto cego em cada
do as formulações teóricas sobre a loucu- um (Mannoni, 1990).
ra ou, como disse no prefácio de Educação
Mannoni afirma que Dolto articulava
impossível: “Em Psiquiatria tive uma for-
suas hipóteses teóricas “à concepção da
mação essencialmente prática e vivi quan- imagem do corpo, de uma imagem arcaica,
do jovem, uma experiência hospitalar pri- em que a perda rouba do sujeito ‘a conti-
vilegiada” (Mannoni, 1977, p.11). Relata ali nuidade de seu ser’ a ponto de ele querer
que foi durante a Segunda Guerra Mun- morrer” (Mannoni, 1990, p.30-31). Esta
dial, quando levava pacientes para fora do imagem inconsciente do corpo é uma no-
hospital para alojá-los em “locais desabita- ção central na obra de Dolto, que atendia
dos” (p.11), que, “numa posição marginal” à sua preocupação de apreender as pri-
(p.11), se efetuou o seu “primeiro encon- meiras representações psíquicas do bebê,
tro com esses seres a que se dá o nome de visto que, para ela, desde o início ele se-
anormais” (p.11). Essa vivência prévia nos ria dotado de uma atividade representati-

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va. Em sua prática, não aplicava conceitos prática e o poder da classe médica. Em
preestabelecidos e tratava a criança como Educação impossível, afirma que:
pessoa responsável e autônoma. O que lhe
O mérito da antipsiquiatria está em
fazia atentar para as diferentes posições
ter-se insurgido contra toda ideia
da criança nos momentos em que experi-
de uma administração da “loucu-
mentava uma tensão conflitiva. Diz ainda
ra”, deixando assim o campo livre
Mannoni que o que guiava Dolto era sua
à diversificação de experiências sem
interrogação sobre o desejo, distinguindo-
outro propósito que não seja esca-
-se, assim, de uma psicanálise centrada na
par a toda planificação. (Mannoni,
adaptação e na manipulação dos valores de
1977, p.15).
um sujeito. Tais aspectos exerceram influ-
ência na construção teórica de Maud Man-
noni e de sua escuta clínica com crianças. A partir das contribuições da psica-
Em sua autobiografia O que falta a verdade nálise articulavam-se, diante das discus-
para ser dita, diz sobre Dolto: sões antipsiquiátricas dessa época, algu-
Se, como educadora, eu a sinto, mas questões que envolviam um ponto de
antes como perigosa, no nível dos vista teórico e prático da psiquiatria. Por
efeitos de uma psicanálise “selva- exemplo, sobre a atividade do psicanalista,
gem”, como analista, eu lhe devo apontava-se que esta prática não fazia do
o ter me introduzido na análise e saber o monopólio do analista, o qual de-
transformado todas as minhas cer- veria, ao contrário, estar atento à verdade
tezas quanto à debilidade mental e que se depreende do discurso psicótico. As-
ao retardamento. É a ela que devo sim, sobre a intervenção e sua relação com
o ter começado mais tarde análises a linguagem, escreve Mannoni:
julgadas desesperadas. (Mannoni, A intervenção, em nome de um sa-
1990, p.26). ber instituído, das medidas intem-
pestivas de “cuidados” não pode se-
não esmagar aquilo que pede para
A problematização de Maud Mannoni
falar na própria linguagem da lou-
sobre as instituições hospitalares e edu-
cura e coagular um delírio, alienan-
cacionais, bem como a escuta da criança
do no mais alto grau o indivíduo.
e da psicose, se faz, portanto, numa re-
(Mannoni, 1971, p.12)
ferência a Dolto e suas conceitualizações.
Apesar de conduzir-se em sua trajetória
mais efetivamente na direção de Lacan, as
Muitos antipsiquiatras foram influen-
interrogações às que Dolto chama atenção
ciados pela psicanálise, apesar de não se-
são citadas e lembradas por Mannoni ao
rem psicanalistas. Tinham como proposta
longo de sua obra, integrando-se, nesse
modificar radicalmente a atitude do médi-
sentido, às suas proposições.
co diante do doente mental. A loucura se-
Em seu livro O psiquiatra, seu “lou- ria, através desse movimento, apreendida
co” e a psicanálise (1971), Mannoni já no de maneira diferente: o psiquiatra recon-
prefácio esclarece que a antipsiquiatria duziria a relação do louco com o saber e a
colocava em discussão o estatuto outor- verdade. As experiências antipsiquiátricas,
gado à loucura pela sociedade, posicio- por exemplo, de Laing e Cooper na Inglater-
nando-se contra a concepção conserva- ra deviam muito à experiência analítica, de
dora que existia na base da criação das onde buscavam reproduzir uma escuta que
instituições “alienantes” e provocando os sustentasse o discurso do paciente sem a
alicerces em que se fundamentavam a tentação da intervenção. Assim, esclare-

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ce Mannoni, que um acordo e cooperação Situando-se como um projeto políti-


eram possíveis entre as atitudes antipsi- co, a antipsiquiatria buscava desmistificar
quiátricas e as pesquisas analíticas, o que o papel que a sociedade exigia que fosse
seria, todavia, impossível entre os usos psi- desempenhado pelo psiquiatra, alcançan-
quiátricos tradicionais e o modo de proce- do dessa forma o fundamento ideológico
der analítico (Mannoni, 1971). do saber psiquiátrico. Sobre isso, nos diz
Mannoni:
Nesse sentido, a aposta antipsiquiá-
trica de Maud Mannoni se apoiava no que A antipsiquiatria procura criar os
acreditava que o saber psicanalítico pode- locais de acolhida para a loucura,
ria proporcionar ao campo médico, ao mes- locais concebidos a um só tempo,
mo tempo no que ela fazia interrogar, entre como refúgio contra uma socieda-
os psicanalistas, acerca de uma conduta de opressiva e como um desafio em
que, muitas vezes, se aproximava mais das relação a estruturas médico-admi-
práticas tradicionais da psiquiatria do que nistrativas que desconhecem a ver-
para um espaço em que se abrisse para a dade e o poder de contestação que
verdade sob a qual se desvela a loucura na se desprendem do discurso da lou-
palavra do sujeito. cura. Uma verdade alienada escapa
ao psiquiatra, desde que tenha por
Mannoni procurava abordar em seus
única perspectiva a cura da loucura.
escritos não tanto a natureza ou as causas
A antipsiquiatria, se convida a uma
da loucura, mas a maneira pela qual esta
contestação radical de todas as ins-
era apreendida no contexto social. Sobre
tituições psiquiátricas, pretende-se,
esta relação de cuidados apontava a autora:
antes de mais nada e primacialmen-
O risco de objetivação (isto é, o risco te, apresentar como o lugar de onde
para o paciente de ser tratado como a doença mental poderá ser interro-
um objeto) não está ligado à condi- gada, segundo critérios diferentes
ção objetiva do “doente”; a objetiva- dos que se tomam de empréstimo a
ção pode ser considerada como um uma ideologia ou a concepções cien-
processus que se desenvolve no in- tificistas. (Mannoni, 1971, p.180).
terior da relação entre o “doente” e
a Sociedade que delega ao médico
cura e tutela em referência ao “do- A autora entende que o problema
ente” (Mannoni, 1971, p.237). apontado pela doença mental como pro-
vocação intolerável aos homens teria na
antipsiquiatria a base em que se deveria
A antipsiquiatria contestava a obriga- apoiar qualquer pesquisa relacionada à
ção dos cuidados atrelados a uma norma loucura. Ora, é justamente esse ponto que
de adaptação que pesava sobre os doentes ganha importância ainda maior para nós,
mentais e que podia aprisioná-los numa na medida em que situa mais aproximada-
outra forma de sistema repressivo. Manno- mente a relação entre o que, da perspectiva
ni chama atenção para o perigo de se dar de seu diálogo com a psiquiatria pode cola-
às conclusões médicas o caráter de uma borar para a reflexão sobre o lugar do ana-
sentença à qual não se poderia apelar e lista na clínica com crianças. A base apon-
onde se prenderia o sujeito com o pretexto tada como necessária a qualquer pesquisa
dos cuidados, transformando-se a cobertu- relacionada à loucura é essa mesma neces-
ra médica no papel policial pedido pela so- sária ao analista, que precisa dar conta do
ciedade que buscaria, com isso, uma certa que na ordem do intolerável da loucura e
proteção frente à loucura. também da criança, atinge sua escuta.

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No entanto, é preciso ainda relacio- Para Lacan, diz Mannoni, o problema


nar o que na loucura se aproxima estru- que a criança tem de enfrentar e o proble-
turalmente da posição da criança, no seu ma em que o psicótico se afundou se colo-
processo constitutivo. O que podemos ver é cam de uma alguma maneira na relação da
que, tanto o sintoma – na sua relação com criança com a palavra dos pais. Resgatan-
o fantasma – como as manifestações psicó- do o que está no cerne das interrogações de
ticas – em seu aprisionamento imaginário Lacan, ou seja, ao que se refere às relações
–, remontam a esse período inicial, de uma do sujeito com a linguagem, Mannoni re-
posição de objeto, de objeto do desejo do toma a noção de que o simbólico preexiste
Outro. Assim, é necessário adentrar nes- ao sujeito. Dessa forma, a criança tem seu
tas questões e desenvolver os aspectos que lugar no discurso dos pais antes mesmo do
envolvem as concepções de Maud Mannoni seu nascimento, sendo falada e nomeada
sobre a loucura e a criança. ao passo dos cuidados básicos nela empre-
endidos. Sobre os efeitos desses cuidados,
compreende a autora:
Algo na posição dos pais em relação
A LOUCURA E A CRIANÇA à “doença” de seus filhos deve po-
Maud Mannoni (1988), em seu livro der ser tocada, antes que o sintoma
A criança retardada e a mãe, denuncia a da criança, cristalizando-se, venha
amplitude de uma segregação que atingiu obstruir definitivamente a ques-
um grande número de crianças e interroga tão aberta ao nível dos pais (e que
uma certa forma de saber objetivado que remete a tudo que, na sua própria
deixa na sombra tudo o que no psiquiatra problemática edipiana, permaneceu
(e no pedagogo) se subtrai aos efeitos pro- dentro do não-simbolizável). (Man-
duzidos nele pela presença da loucura. A noni, 1971, p.184).
relação fantasmática se faz, aqui, de ma-
neira definidora na permanência de uma
Antes de avançarmos nesse ponto,
posição na qual a criança fica aprisionada,
que traz também uma interrogação sobre
desde um lugar marcado a partir dos pais
o lugar da loucura no discurso dos pais, é
ao lugar instituído pelo psiquiatra (e tam-
bém pelo pedagogo). importante pensar sobre como se define a
posição do sujeito em seu processo cons-
A criança “doente”, nos diz Mannoni, titutivo. De onde partiria a semelhança da
não se limita ao seu lugar no contexto do posição da criança com a posição do louco?
mito familiar; a criança “doente” entra tam- Em que tal relação contribui para pensar-
bém nas dimensões formais do mito social mos o lugar do analista na clínica?
do seu tempo. No plano social é estabele-
cido um acordo com o adulto onde o rótu- Ao pontuar que o psicótico, da mes-
lo de louco equivale a uma condenação da ma forma que a criança, é levado para o
qual não se pode mais sair, sendo o confi- analista por seus familiares, Mannoni abre
namento e a segregação em que é manti- um campo para que se possa pensar, em
do o “doente” perpetuador de um equívoco consequência disso, que não se pode abs-
impeditivo de sua cura (Mannoni, 1980). trair a história que se carrega junto de cada
As crianças nomeadas como loucas apri- sujeito. “Quando a ‘doença’ irrompe, é de
sionam-se então duplamente numa dimen- fato um drama que se desvela, um não-dito
são objetal que impede a emergência de um que se põe a falar na violência do sintoma”
sujeito que possa dispor de sua palavra, de (Mannoni, 1990, p.63). Diante dos confli-
seu desejo. tos apresentados pelo sujeito, é preciso que

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este seja “autorizado a viver” por seus pais, soubermos reconhecê-los através do dis-
o que implica, em casos graves, ajudá-los a curso do sujeito. Acredita que a questão de
ultrapassar sua angústia, para que se pos- saber se eles têm ou não de aparecer na
sa se expor ao “risco de viver”. A chegada cena analítica comparece como um falso
ao tratamento pela via de um outro demar- problema, uma vez que eles sempre aí ir-
ca uma particularidade no atendimento de romperão. O aparecimento real dos pais se
crianças e psicóticos que vai tornar neces- aceito pelo psicanalista permite, no discur-
sário, ao analista, um ressituar-se no tra- so do sujeito, o desaparecimento de uma
balho transferencial diante da clínica clás- palavra alienante, já que por vezes acaba
sica com o adulto neurótico. Existe, aqui, por ser dos pais a palavra que intervém no
uma transferência a ser manejada também lugar daquele. “Se negligenciamos a deman-
com os pais ou familiares daqueles que da dos pais, especialmente nos casos dos
vem para uma análise, uma vez que é de débeis e dos psicóticos, comprometemos, no
tais parentes, em geral, de onde se parte a plano técnico, a verdadeira marcha do trata-
demanda para os atendimentos com crian- mento, que ficará sempre a um nível super-
ças e psicóticos. ficial, artificial” (Mannoni, 1988, p.63).
Na análise de crianças o analista é Em A criança, sua “doença” e os ou-
constantemente confrontado com uma si- tros, a partir da discussão de alguns casos
tuação transferencial que engloba os pais. clínicos, Maud Mannoni afirma que existe
Desse modo, ouvir suas angústias não se- em análise de crianças diferentes transfe-
ria o mesmo que fazer uma terapia familiar, rências desde a do analista, a dos pais e
mas atentar-se aos significantes que cons- a da criança. Retoma que a criança doen-
tituem o fantasma que atravessa a narra- te pertence a um mal-estar coletivo, sendo
tiva do sujeito, a história que o constituiu. sua doença suporte para a angústia dos
Sobre um caso clínico de uma criança dé- pais, onde “tocando no sintoma da criança,
bil, em que a mãe fala: “Muito antes que arriscamo-nos a fazer emergir brutalmente
os médicos me dissessem, eu já sabia que o que nesse sintoma servia para alimentar
ele seria anormal” (Mannoni, 1988, p.34). ou, ao contrário, a diluir a ansiedade do
Mannoni adverte que “esta mãe, é preciso adulto”(Mannoni, 1980, p.73). Nesse mes-
fazê-la falar de si mesma e do seu sofrimen- mo sentido apresenta que a doença orgâ-
to, suportar a sua angústia, para que o filho nica grave numa criança comparece como
seja menos impregnado por ela” (Mannoni, marca nos pais em função da própria histó-
1988, p.34). Ainda nesse caminho, dian- ria deles, sendo isso que aparece na relação
te da pergunta “O psicanalista de crianças transferencial.
deve ou não ocupar-se dos pais? ” (Manno-
ni, 1988, p.34), assim diz a psicanalista: Mannoni, ao tratar da relação entre
sintoma e palavra, defende a tese de que a
Ao receber a mensagem dos pais, situação do indivíduo no sintoma pode ser
não se está fazendo a psicotera- compreendida como o “efeito de um desco-
pia deles. É colocando-se ao nível nhecimento num certo tipo de relação com
do tratamento da criança que esta o Outro”. Isso destaca a importância de o
mensagem não deve escapar ao analista situar o que no discurso do seu
analista, especialmente nos casos paciente está direcionado ao outro (imagi-
em que filhos e pais formam um só nário) ou ao Outro (lugar da palavra), pois
corpo. (Mannoni, 1988, p.63). “desconhecendo-o, expomo-nos a graves
equívocos”. Assim, considera a autora:
Entende a autora que, no diálogo ana- Como analistas nós nos encontra-
lítico, os pais estão sempre presentes se mos em face de uma história fami-

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liar. A evolução da cura é, em parte, para qualquer criança) necessita em pri-


função da maneira pela qual certa meira instância e acima de tudo, viver onde
situação é apreendida por nós. A seja possível o acesso à fantasia e à criação.
criança, que se nos traz, não está Um lugar que nomeie o sentido do tempo,
só, ocupa no fantasma de cada um que abra espaço para a tradição oral, atra-
dos pais um lugar determinado. (...) vés das histórias, dos mitos, dos contos e
A criança não pode ser isolada ar- que possibilite que a criança descubra “o
tificialmente de um certo contexto prazer de ter mãos que criam” (Mannoni,
familial, é-nos preciso no começo 1989, p. 72-73), pela via de um corpo de
contar com os pais, sua resistência ofícios artesanais, seja pela pintura, escul-
e a nossa. É porque estamos impli- tura etc.
cados na situação, nós e a nossa
A questão da falta comparece como
história pessoal, que podemos en-
ponto fundamental em relação à posição
contrar um sentido para a mensa-
de objeto ocupado pelo louco e pela crian-
gem da criança, mas que ao mesmo
ça, de um preenchimento a que ambos são
tempo somos levados a resistir a ela
convocados a realizar. A criança, no en-
(Mannoni, 1980, p.64).
tanto, tem como vimos a possibilidade, a
princípio, de escapar dessa condição de ser
Em outro contexto, Mannoni (1971) devorada pela mãe e de não se tornar, des-
esclarece que não se pode isolar o sinto- se modo, refém do grande Outro gozador.
ma da criança enferma nem diante de seu Esse lugar de gozo supostamente comple-
próprio discurso, nem frente ao discurso mentar encaminha o indivíduo para uma
que o constituiu, em essencial o discur- estruturação psicótica, traçada, assim, em
so dos pais. O discurso da criança acaba seus desígnios particulares. Não nos cabe
por preencher no discurso familiar “o vá- aqui o julgamento dessa saída, mas a ne-
cuo que aí cria uma verdade que não é dita cessária escuta, no lugar do analista, para
(Mannoni, 1971, p.195). Nesse sentido, o os fantasmas que compõe o caminho pelo
sintoma ganha a função de proteção con- qual se dirigiu a criança ou o louco em face
tra o saber da verdade em questão. No de- daqueles que, por eles, buscaram o trata-
mento psicanalítico.
sejo de tratar o sintoma, “é a criança que
rejeitamos”(p.195). Isso valeria também
para a análise de adultos e, em particular,
dos de estrutura psicótica. Sobre a forma
como se dá esse velamento na psicose,
AS INSTITUIÇÕES E O LUGAR DO ANA-
pontua:
LISTA
É digna de nota a seguinte afirmação
Na relação ao psicótico, tem-se
de Mannoni (1989): Através das crianças
a tendência a esquecer um pon-
excluídas e das Instituições que deveriam
to essencial: é diante de um apelo
ter sido criadas para conter sua exclusão,
ao qual o indivíduo não pode mais
recoloca-se o problema das estruturas que
responder que ele faz aparecer uma
uma Sociedade cria com suas Instituições e
abundância de modos de ser que também o problema de uma ética (Manno-
suporta uma certa linguagem como ni, 1989, p.77).
tal. (Mannoni, 1971, p.195).
Mas diante disso, defende que não
basta contestar a atitude defensiva de uma
Mannoni (1989) adverte que uma sociedade que exclui demasiado facilmente
criança psicótica (e ressalta que isso serve a criança ou o adulto “anormal”. É preci-

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so analisar a atitude inversa, nascida do sensível no domínio das psicoses


desconhecimento dessa defesa. (Manno- da criança. Porquanto a criança é
ni,1971). Nesse ponto o analista pode se objeto de um monopólio de “cuida-
ver preso à posição de reproduzir um dis- dos” que, no plano dos fatos, exclui
curso de normalização que corre o risco a psicanálise, uma vez que esta
comprometer a sua escuta analítica, por- última não é tolerada senão como
que se trata de uma lógica instaurada na servidão a um sistema que aliena.
sociedade à qual o analista pertence e que Desde que uma sociedade sonha
pode se estender, dessa forma, à sua po- em ordenar uma organização de
sição na clínica. Isso tem a ver com uma “cuidados”, fundamenta ela essa
ética – que não necessariamente vai corres- organização num sistema de prote-
ponder à ética do desejo na psicanálise – ção que é, antes de mais nada, uma
que ultrapassa o fazer clínico propriamen- rejeição da loucura. De uma manei-
te. Relaciona-se com uma lógica social, a ra paradoxal, “a ordem que cuida”
qual se pode ou não desejar responder. E o promove também a “violência” em
perigo está nessa resposta se querer fazer nome da adaptação. (Manoni, 1971,
no espaço de escuta do analista que não 244-245)
está ali isento em sua posição ética e po-
lítica diante das questões que envolvem a
cultura e o seu tempo. Desse modo, ela nos ensina que o psi-
canalista, ao realizar uma prática institu-
A obra de Mannoni, como pudemos cional, deve estar atento aos perigos de re-
destacar, é bastante marcada por suas produzir essa violência promovida em nome
críticas ao imaginário perpetrado pelas de uma ordem adaptativa. Esta convocação
instituições, o poder e o constrangimento social, que parte das demandas institucio-
do desejo (incluindo as instituições psica- nais, distancia o analista das dimensões da
nalíticas), Fendrik (2007) diz que, movida verdade e o do saber por que se enlaçam
pelo desejo de romper com os modos “es- o trabalho do psicanalista, independente-
clerosados” das instituições (incluindo as mente de onde ele ocorra. A partir disso,
psicanalíticas) e com os estereótipos teó- nos caberia a busca pela possibilidade de
ricos, Maud Mannoni almeja saber fazer dialogar com diferentes contextos e dis-
da e com a psicanálise uma prática viva e cursos sem perdermos nossas referencias
transformadora, sem por isso perder as re- éticas e sem ceder às exigências reprodu-
ferências sem as quais se correria o risco toras de um poder socialmente alienante,
de tornar-se uma psicoterapeuta simples- disfarçada de ética dos cuidados. O que
mente humanitária. Ao referir-se sobre o também poderia ocorrer no que diz respei-
trabalho clínico do psicanalista, Mannoni to ao lugar ocupado pelo analista na clíni-
questiona a possibilidade deste exercício ca com crianças.
poder inscrever-se em um sistema médico-
É interessante destacar, pode compa-
-administrativo que participa de uma alie-
recer também no lugar do analista na clí-
nação social e, ainda, em que se empreende
nica com crianças, na medida em que este
psicanálises de crianças em cadeia. Alerta-
é convocado institucionalmente, seja pela
-nos que
família, escola ou hospital, a responder so-
O quadro em que a psicanálise é le- cialmente a uma demanda adaptativa, o
vada a desenvolver-se compromete, que levaria o analista a reproduzir essa vio-
na maior parte do tempo, as condi- lência em nome de uma ordem que o afasta
ções necessárias à sua própria exis- da escuta do sujeito do inconsciente, por-
tência. Isso se mostra ainda mais tanto, da escuta do sujeito da psicanálise.

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Esse engodo institucional se daria tanto do, uma proposta em favor de um lugar que
num campo de atuação como no outro, já exista como uma instituição instrumen-
que se trata de uma posição de escuta que talizada, mas que, ao mesmo tempo, se
está atrelada, de forma semelhante, às de- preserve do perigo de se tornar totalitária
mandas institucionais. em suas características. Mannoni parece,
então, ter procurado englobar na noção
Em sua autobiografia, Maud Mannoni
que define como “instituição estourada” a
(1990) relata uma experiência numa insti-
crítica ao “peso da rotina administrativa
tuição educacional sobre a qual aponta “a
(...) que tende a criar uma situação que
inutilidade da existência na instituição de
torna impossível toda dialética” (Pereira,
uma equipe de analistas ‘especialistas em
2012, p.20).
psicose’ se esta permanece afastada da pró-
pria vida da instituição” (Mannoni, 1990, O “estouro da instituição” é entendido
p.41). O que a autora levanta, nesse momen- como o desvendamento da função que uma
to, é um problema que percorre as ativida- criança ocupa frente aos outros. Instaura-
des institucionais que envolvem o trabalho -se aqui uma dialética a partir de um objeto
do psicanalista, pois convoca uma posição de amor ausente, ou seja, a partir dos rom-
que não deve estar simplesmente atrelada a pimentos realizados no discurso coletivo
uma especialidade – por exemplo, da psicose que, mantido na instituição, congela-se em
– ou distanciada dos encalços que caracteri- um ritual adaptado à situação sintomática
zam a vida numa instituição. O que percebe criada entre seus participantes. “A crian-
Mannoni na experiência institucional citada ça rotulada de ‘louca’ não está disposta a
é que a instalação de uma equipe, ao invés abandonar facilmente o status da loucu-
de ajudar, acaba por servir primeiramente ra. Ela tem necessidade de ser ou ter um
para acentuar o sentimento de isolamento louco para sentir-se bem” (Mannoni 1977,
dos educadores, além de ocultar o mal-es- p.100). Assim, a noção de instituição estou-
tar na instituição, onde “os educadores se rada procura aproveitar-se de tudo o que
sentem, com as crianças, prisioneiros das de insólito possa surgir, portanto de tudo
estruturas extremamente hierarquizadas o que é da ordem do inesperado, do fan-
implantadas”(Mannoni, 1990, p.41). tástico. Desse modo, no lugar de oferecer
permanência, a estrutura da instituição vai
A autora introduz ao longo de seus
ofertar, numa base de permanência, aber-
trabalhos a noção de instituição estourada.
turas para o exterior. Constrói-se, assim,
O “estouro da instituição” consistiria na
um lugar de recolhimento que, no entan-
instauração de uma dialética que represen-
taria uma abertura a partir de dentro da to, dialoga com uma parte de fora, com um
instituição a um mundo exterior, criando externo, através de um trabalho ou projeto
“brechas de todos os gêneros”, possibilitan- para além da instituição. “Mediante essa
do que loucos (ou crianças) possam gozar oscilação de um lugar ao outro, poderá
de um lugar de recolhimento, um retiro, ao emergir um sujeito que se interrogue sobre
mesmo tempo em que preservar uma vida o que quer” (Mannoni, 1977, p.80).
fora da instituição. Ou seja, Maud Man- A noção de instituição estourada for-
noni pensa ao mesmo tempo numa críti- mulada por Maud Mannoni nos leva a um
ca radical às instituições, mas se recusa a questionamento: como pensar numa insti-
cair no engodo perverso de uma situação tuição que, por definição, é um lugar de ro-
em que tudo seria permitido, fechando os tina administrativa, mas que seja ao mes-
olhos para as demandas de tantos sujeitos mo tempo um espaço de abertura à palavra
excluídos em nossa sociedade por ter um livre, “fora do peso das convenções e inter-
lugar para viver. Conforma-se, nesse senti- dições sociais”? (Mannoni, 1977, p.76).

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O que mais parece ter se aproximado possibilidade dialética para aqueles que
de uma experiência correspondente à no- chegam marcados por uma condição de
ção de instituição estourada foi a Escola “louco” ou “doente”.
Experimental Bonneuil sur-Marne, onde
Para alcançar o desiderato de uma
Mannoni trabalhou por volta de trinta
instituição que servisse, ao mesmo tempo,
anos de sua vida. Em setembro de 1969,
como lugar de refúgio e um espaço não-
nos conta ela em O psiquiatra, seu “lou-
-segregativo, os que participavam do coti-
co” e a psicanálise, que seria fundado um
diano da Bonneuil deparavam-se com ex-
Centro de Estudos e de Pesquisas Peda-
periências que chegavam mesmo a desafiar
gógicas e Psicanalíticas com a missão de
o papel da própria escola como instituição.
criar uma escola experimental direcionada
Nesse sentido, no intuito de preservar os
a crianças em dificuldade numa perspecti-
sujeitos da institucionalização de sua ‘en-
va não-segregativa. Assim surgiu a Escola
fermidade, a instituição estourada haveria
de Bonneuil. A equipe que ali trabalhava
de permitir sua própria negação como uma
era composta de três pessoas em regime
possibilidade, o que a tornava aberta a
de tempo integral e de treze estagiários, na
funcionar segundo critérios sempre novos
maioria psicólogos da Sorbonne. A propos-
quando a institucionalização de uma roti-
ta era que a instituição funcionasse como
na passava a ameaçar a liberdade de ser e
instrumento terapêutico. Adolescentes e
viver. Nesse sentido, ao ser perguntada por
crianças sob o signo da loucura eram en-
um jornalista sobre “no que Bonneuil é um
tão acolhidos numa perspectiva em que
lugar de aplicação da teoria freudiana?”,
a criação pudesse ser explorada a fim de
Mannoni respondeu:
possibilitar a emergência de um sujeito.
Buscava-se um distanciamento das prá- A pergunta me chocou: um lugar
ticas institucionais segregativas e adap- institucional não deve servir à apli-
tativas da época, possuindo este lugar, cação de uma teoria ou uma ideo-
características bem particulares em sua logia. Neste caso são sempre os pa-
proposta de trabalho. cientes que pagam o pato. Não se
pode utilizar um paciente para de-
Em seu livro Educação impossível,
monstrar a certeza de uma doutri-
Mannoni mostra a utilização da alternância
na. (Mannoni, 1990, p.109).
que faziam as crianças e adolescentes das
estadas entre Bonneuil e a província para
buscar uma possibilidade de fazer aparecer O primado da clínica aparece, por-
na ausência uma Outra cena. Apresenta, tanto, como central tanto na concepção de
também, como a tolerância à separação instituição estourada quanto na prática
variava, em sua duração, de uma criança buscada por Maud Mannoni no cotidiano
para outra. Existe uma duração de ausên- de trabalho da Escola de Bonneuil. Assim,
cia em que a criança pode se mostrar cria- no decorrer de sua trajetória, ela concen-
tiva. Esse tempo corresponde ao que ela tra seus esforços na direção de uma busca
guarda em si como imagem parental viva. da palavra perdida, da verdade e do esta-
Se essa duração é ultrapassada, a crian- tuto de sujeito. Buscou em suas ativida-
ça retoma seus estereótipos ou somatiza. des instaurar o lugar da dúvida, lugar este
Tem-se, então, na preocupação com o que que permitisse o questionamento sobre os
acontece com o paciente, a presença da di- modos de funcionamento das instituições
mensão analítica. (Mannoni, 1977). que recebiam as crianças e os “loucos” de
Mannoni tenta introduzir, no espaço toda ordem. Nesse sentido, Maud Manno-
de Bonneuil, um lugar em que haja uma ni operou mais uma ruptura ao combater

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práticas degradantes e redutoras do sujei-


to, desde a atuação médico-psiquiátrica à
atividade do psicanalista – muitas vezes,
como vimos, alienada à lógica institucio-
nal, portanto distanciada de uma ética da
psicanálise.

REFERENCIAS
COSTA, Teresinha. Psicanálise com crian-
ças. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
FENDRIK, Silvia. Psicoanalistas de ninõs:
la verdadeira historia. 4. Françoise Dol-
to y Maud Mannoni. Buenos Aires: Letra
Viva, 2007.
MANNONI, Maud. O psiquiatra, seu “louco”
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Editores, 1971.
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______. A criança, sua “doença” e os outros:
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