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Movimento e Significado:

a dança na perspectiva da Antropologia SocialNT

John Blacking

mbora a "dança" seja um fato social, eu admito que ela seja derivada

E das capa~id_a~es específicas da nossa espécie sendo , portanto , parte


da const1tu1çao humana e uma força básica da vida social, e não
mera consequência da invenção humana, em algum tempo e espaço parti-
cular (BLACKING , 1976). Sua importância evolutiva como um modo de
comunicação é corroborada pelo fato de não ter sido substituída pela lin-
guagem verbal , embora, manifestamente , a linguagem verbal seja, em geral,
mais eficaz para a adaptação cultural. A universalidade e a sobrevivência da
"dança " sugerem que ela não pode ser abandonada sem perigo pelas espé-
cies humanas ; que deve ser praticada por todos; e que seu valor evolutivo
reside em sua eficácia como um modo de comunicação não verbal.
Coloquei "dança" entre aspas , no parágrafo de abertura, a fim de enfati-
zar que embora os analistas de dança possam ter um conceito mais amplo de
dança do que os dançarinos , este permanece essencialmente etnocêntrico ou
específico da cultu ra, e é baseado nos conceitos de dança do senso-comum ,
que prevalecem nas culturas euroamericanas. Nós realmente não sabemos o
que é "dança ", enquanto fenômeno humano geral. Se, como comportamento
rituali zado é um "sistema de modelagem" específico da espécie , poderia ser
expresso em outras formas sociais que não aquelas geralmente reconhecidas
como dança. Ou poderia ser uma interlinguagem, com a qual as pessoas
codificam intenções estratégicas , especificamente , em movimentos que di-
ferem de seus movimentos em contextos de não dança (Cf . GELL , 1979, p.
29). De agora em diante , as aspas serão omitidas .
Qual é então o valor do ensino-aprendizagem e da crítica de dança , de
palavras sobre dança ? Parece que eles surgiram em resposta à necessidade

Nota da Tradutora: Texto publicado originalmente no periódico Dance Researcb


I. Ver BLACKING , John . Movement and meaning: dance insocial anthropological
persp ective . ln : Dance Research 1, 1, Spring , 1983, p. 89-99 .

A ntropologia da Dança 1 75
de restabelecer o antigo papel da dança na educação e na vida social , e que
quando essa meta tiver sido alcançada e a natureza da dança for propria.
mente compreendida, a pesquisa em dança perderá o vigor e será substituída
por uma prática de dança mais consciente e difundida. Haverá um lugar
para a crítica, a história e a sociologia da dança, para registrar os padrões de
mudança e as funções da dança na sociedade; mas a atual divisão, na dan-
ça, entre trabalho manual e trabalho intelectual será dissolvida , assim como
dançarinos e acadêmicos compartilharão atividades entre si por uma causa
comum .
Como a dança se desenvolveu como uma forma de arte, nas sociedades
industriais - juntamente com a divisão do trabalho -, tomou-se cada vez
mais impedida de "falar" por si mesma . O palavreado em tomo da dança
restringe as atividades daqueles que pertencem ao mundo da dança profis-
sional, tomando-os responsáveis, em palavras, pelos pensamentos e ações
que são essencialmente não verbais . Ele também sufoca o conhecimento
senso-comum e as sensibilidades dos espectadores, porque inibe sua capa-
cidade natural para dançar e apreciar a dança, com metal inguagens especí-
ficas da cultura do outro, que usa palavras e conceitos derivados de outras
esferas de ação que não a dança . Assim, as possibilidades de aprender a usar
completamente um modo importante de comunicação são cerceadas porque
suas características não verbais são desvalorizadas. David Best muito bem
assinalou que a dança não pode educar as pessoas a pensar verbalmente, mas
isso não exclui a possibilidade de pensar não verbalmente.
A proposta deste paper é demonstrar como e porque a abordagem da
Antropologia Social pode resolver algumas das contradições inerentes à pre-
sente fase da história da dança, para a qual o conhecimento e a crítica em
dança pertencem sobremaneira às criações dos coreógrafos. Idealmente, ª
interpretação deveria ser possível sem palavras; mas se as palavras têm sido
usadas para criar e reforçar atitudes que aproximam as mentes das pessoa~,
possibilitando o desenvolvimento de habilidades e experiências na comunt·
cação não verbal, as palavras podem ser mais efetivas em ajudar na reaber-
tura daquelas mentes contestando os argumentos verbais e as interpretações
falsas da experiência que as aproximou. Certamente ninguém ficará impres-
sionado com a atitude de um dançarino que diz "Eu não posso falar para
você. Eu posso apenas mostrar a você. Eu devo dançá-lo" . E ainda, coJJlO
Peter Brinson pontuou, "o mundo interno do dançarino" deve ser levado eJll

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consideração para o entendimento e a prática da dança; e o dançarino está
certo em insistir que o que é mais importante sobre dança, como um tipo
especial de atividade especial, é que ela comunica sem palavras.
'' O problema em relacionar movimento e significado encorajou alguns es-
tudiosos da dança a olhar para modelos de análise da fala nos quais distin-
ções úteis têm sido feitas entre código e mensagem, significante e significa-
/
do, língua e linguagem [parole], e assim por diante. Como "um sistema de
signos que expressa ideias", o código de uma linguagem verbal pode operar
independentemente de seu significado: mas nem todos os linguistas aceitam
a independência entre o código e a mensagem, e muitos pesquisadores têm
se esforçado para relacionar mais proximamente a sintática com as estrutu-
ras semânticas, nos campos em que as intenções dos falantes para dizer [sig-
nificar] alguma coisa encontram-se nas estruturas profundas das suas falas.
O trabalho dos sociolinguistas e o discurso dos analistas tendem a re-
forçar os primeiros argumentos de Malinowski e dos antropólogos que de-
monstraram que os significados das linguagens só podem ser completamen-
te compreendidos em seu contexto de uso. Pequenas variações de ênfase ,
entonação, ordem de palavras e até mesmo a dlireção da fala, bem como a
paralinguagem (por exemplo, pistas não verbais), não estão dissociadas da
gramática da palavra, mas podem transmitir mudanças de significado que
não são menos significantes do que as mudanças ocorridas pela mudança de
sintaxe. Essa mudança não entra em conflito com a visão de que a linguagem
verbal é biologicamente transmitida e específica da espécie (Cf . LENNE-
BERG, 1967), mas não requer o refinamento de posição extrema dos gra-
máticos formativos que seguiram o brilhante trabalho de Noam Chomsky.
Isto é, nós podemos aceitar que as pessoas herdem algumas das capacidades
cognitivas necessárias à fala, mas a fala não é necessariamente controla-
da pelo modelo das "estruturas profundas "; nem é um assistemático ou um
mero epifenômeno de situações sociais . A crítica da gramática transforma-
cional parece estar alegando que há uma relação mais próxima entre código
e mensagem do que originalmente se pensava , e que quando nós levamos em
consideração todos os signos que são sistematicamente usados na fala , a es-
trutura da ideia expressa não fica muito longe da estrutura de sua expressão.
O que sustentava a noção de que o código e a mensagem eram independen-
tes era muito mais a ênfase na análise dos produtos do que dos processos por
meio dos quais eles foram construídos.

Ant ropologia da Dança 1 77


Os sucessos e O alcance da pesquisa linguística fornecem , indubitavel-
mente, uma fonte de inspiração e uma variedade de modelos (ver KAEP-
PLER , 1978, especialmente p. 43-45), e o mais recente trabalho promete lan-
çar mais luz nas relações entre as estruturas de linguagem e a expressão das
ideias. Mas como as metodologias da linguística , biologia, fisica e química
têm crescido , apenas , fora dos seus objetos de estudo, então parece ser uma
política de derrota para não prosseguir com as implicações metodológicas
que são inerentes à natureza da dança .
A decisão de desenvolver uma disciplina que esteja separada e que seja
diferente da Linguística não significa que as palavras do discurso cotidiano
não possam ser usadas , ou que uma metalinguagem especial deva ser desen-
volvida para a dança . Ao contrário , a dança como fenômeno humano não
pode ser propriamente entendida fora dos contextos de uso e dos mundos
conceituais de seus praticantes. Isso requer que a dança seja estudada trans-
culturalmente, através das "linguagens " cotidianas de diferentes culturas. As
teorias "ocidentais " da dança, tais como as de Rudolf Laban ou de Alan Lo-
max, podem ser tomadas como guias para os tipos de problemas que podem
ser encontrados e para as perguntas que deveriam ser feitas . Mas elas são
apenas etnoteorias que devem ser consideradas, igualmente, em conjunto
com as etnoteorias de outros povos .
O problema metodológico não é para testar, por exemplo, as teorias de
dança e movimento de Laban em relação à prática da dança , os tratados de
dança Indiana ou Chinesa e as etnoteorias que podem ser descobertas pela
pesquisa empírica em diferentes sociedades . Serve, antes, para tomar as te-
orias de Laban , do Bharata Natya Sastra e muitas outras teorias e quadros
de referências contrastant es e tentar desenvolver uma teoria geral da dança
que leve em consideração a variedade de interpretações dos conceitos e dos
estilos de dança , bem como a experiência .
O problema , então, é dispersar o nevoeiro das palavras que escondem as
realidade s da danç a sem negar o valor das palavras que revelam a verdadeira
natureza da dança ; desmistificar atitudes de dança sem destruir o mistério da
dança ; e desenvolver um estudo científico da dança que não esteja separado
do objeto de investigação nem se tome um fim em si mesmo .
' Nós não deveríamos fazer a pergunta "o que é dança ?" , mas sim "quem
dança?" " · d
· ' quem aprecia dança , e como , e por quê?" Quando pressiona os
1ª falar sobre dança e sobre a experi ência da dança , tentando explicar O seu

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Antropologia da Dança 1
significado, as pessoas que estão acostumadas a dançar, apenas, podem se
mostrar muito articuladas em relação aos seus sentimentos . A linguagem e as
metáforas que elas usam, e as analogias que elas fazem, podem , em última
análise, ser mais científicos que qualquer análise "objetiva" de seus movi-
mentos. Filmes, videotapes e várias notações como as de Laban ou Benesh /
são ferramentas úteis para referirem-se ao objeto de estudo, e poderiam setor-
nar mais importantes na criação das danças; mas elas não podem descre ver ou
explicar o que está acontecendo enquanto forma de experiência humana (ver
GELL, 1979, p. 26-27) . Não há dúvida sobre a importância e o valor da nota-
ção como técnica de registro de movimento e como fonte de estudo, mas há
perigos reais nas análises das partituras escritas, tanto quanto na música (ver
BLACKING , 1981), que podem conduzir a todo tipo de extravagâncias semi-
óticas se não estiverem relacionadas às intenções e experiências dos coreó-
grafos, perfo rmers e espectadores, em seus respe·ctivos contextos culturais .
A dança, como tópico de estudo científico, diz respeito, em última análise ,
à ação e às inte~ ões humanas conscientes. O processo de mover-se e de dar
significado ao movimento é a fonte da experiência em dança , da qual a dança
como produto é o signo visível. Podem , evidentemente, representar ações
não intencionais , e as pessoas podem ter dificuldade em verbali zar suas in-
tenções . Mas isso não dá aos estudiosos de dança o direito de considerarem
as explanações das sequências de movimentos e motivações da dança em
termos de "inconscientes " ou "subconscientes ". Quando as pessoas falam
sobre "serem dançadas " ou proclamam que seus movimentos são dirigidos
por "forças" internas ou externas, elas obviamente não descrevem os estados
inconscientes. Elas estão tentando descrever um modo não verbal de discur-
so, cuja lógica e formas podem ser precisamente expressas e compreendidas ,
mas não sempre articuladas em palavras.
Ao invés de invocar o subconsciente para explicar as experiências de dan-
ça e a performan ce dos padrões de movimento cuja lógica parece desafiar a
descrição verbal, mesmo dos participantes, nós deveríamos reconhecer que
há linguagens coerentes, estruturadas de dança, e que a transferência do dis-
curso verbal para o não verbal constitui o coração da experiência da dança.
Isso não significa que as pessoas abandonam a razão pela emoção quando
dançam , mas que elas frequentemente introduzem outro tipo de discurso ,
cuja gramática e conteúdo são mais efetivamente , mas não exclusivamente ,
expressosem uma linguagemnão verbal.

Antropo logia da Dança 1 79


forma e Sentimento

A maioria das discussões sobre dança, bem como sobre outras linguagens
não verbais, tais como música, parece girar em torno de duas questões:
1. A dança é essencialmente um sistema de signos aos quais se atribuem
significados em contextos sociais? Ou
--
2. A dança é, principalmente, uma linguagem das emoções, uma expres-
,
são formalizada de sentin1entos,
organizados de forma a ter efeitos mais am-
plos e maiores sobre a ação humana?
Poucos negariam que ambos os elementos são necessários, que a fonna
sem sentimento é estéril e que o sentimento sem forma seria improvável de
ser socialmente eficaz; mas as discussões estéticas e filosóficas geralmente
atribuem maior valor a um ou outro elemento, e isso deve ser muito confuso
para os dançarinos profissionais. Os estudiosos da dança podem ajudar os
dançarinos a resolver essas contradições , não aderindo às batalhas, apoiando
um ou outro ponto de vista , mas perguntando por que esses argumentos sur-
giram, como eles continuam sendo utilizados em qualquer coisa que seja útil
para a dança, como distintivos dos modos de dançar dos diferentes indivíduos
e grupos sociais. Por exemplo, o tratamento da dança como, principalmente,
um sistema de signos foi justificado com o argumento de que a gama de sen-
timentos humanos tem sido a mesma através da história e ao redor do mundo,
mas a variedade de formas de dança constitui uma grande conquista humana,
distinguindo a dança de outras atividades, tomando-a, por si só, digna de con-
sideração.
As interpretações das formas de dança variam entre os extremos do ab-
solutismo e do relativismo, e de ver a dança como uma ação autônoma para
tratá-la como um epifenômeno da vida social. O que raramente é explicado,
senão em termos subjetivos ou vagos é por que, do ponto de vista absolutista,
algumas formas de dança são julgadas mais complexas ou melhores do que
outras ou, a partir de um ponto de vista relativista, como exatamente as formas
de dança refletem ou transmitem significados sobre a vida social, a menos que
sejam especificamente miméticas - mas até mesmo seu significado mimético
depende de convenções sociais e das intenções dos dançarinos.
As inconsistências das análises e avaliações formais são reveladas quan-
do escritores e críticos têm que incluir sentimento e conteúdo extrínsecos
em suas discussões , quando eles se queixam de que uma brilhante exibição

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técnica não tem conteúdo emocional , ou de que um sentimento bonito foi
expresso ingenuamente em movimento. Os dançarinos não podem ignorar
tais julgamentos contraditórios, porque as palavras influenciam na recepção
do público e, consequentemente, na venda dos bilhetes . Além disso, as exi-
gências dos espectadores , que esperam ficar excitados com a virtuosidade e
tocados pela intensidade da expressão, têm influenciado tanto o desenvolvi-
mento das formas de dança quanto a criatividade dos coreógrafos.
Vi~osismo técnico e profundidade de expressão não são incompatíveis
ou contraditórios se forem concebidos como processos complementares.
Além disso , eles podem produzir movimentos visivelmente "simples " ou
"complexos" . Se a dança é um sistema de signos que expressa sentimentos,
a resolução de abordagens e interpretações contraditórias pode ser alcançada
ao encontrar formas mais eficientes de se relacionar movimento e signifi-
cado. Precisamos encontrar maneiras de descrever os signos da dança , de
modo a também relacioná-los ao seu impacto emocional.
Sugiro que o primeiro passo seja esclarecer o conceito de sentimento. A
dança é uma instituição social e não importa como o indivíduo, no mundo
interior de um dançarino pode ser, os sentimentos são culturalmente codifi-
cados, tão logo postos em ação como dança. Alguns antropólogos vão longe
ao ponto de dizer que "sem os padrões orientadores da cultura humana [...]
o homem não saberia , literalmente, como se sentir" (GEERTZ, 1964, p. 47).
Geertz se refere , penso eu, ao que Suzanne Langer chamou de "uma vida de
sentimento" (LANGER , 1953, p . 372), e mais tarde ele escreveu : "Antes
de fazê-las em nossas mentes , temos que aprender a sentir as coisas; e para
sabermos como nós nos sentimos em relação às coisas , necessitamos de ima-
gens [espelhos] públicas de sentimento que somente o ritual, o mito e a arte
podem proporcionar ." (GEERTZ, 1975, p. 82)
É importante tratarmos sentimento, assim como pensamento, como uma
função racional (Cf . WITKIM, 1976); reconhecermos que "a emoção é es-
sencialmente um estado criativo" que, [teleologicamente] , "cria, transforma,
e simboliza" (HILMAN, 1970) ; evitarmos fazer distinções entre emocional
e cognitivo, e, acima de tudo , lembrarmos que os sentimentos que as pessoas
expressam ou recebem por meio da dança são extraídos de um repertório co-
letivo · ... · pessoa 1, e que as pessoas
· de sentimentos , tanto quanto da expenenc1a
aprendem diferentes maneiras de falar sobre os sentimentos, bem como des-
cobrem forma s distintas de expressá-los.

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Ant ropologia da Dança 1
...

Isso não exclui a possibilidade de que existam sentimentos que sejarn


inerentes à dança e que sejam, portanto, consequência das ações fisicasde
dançar, ou que exista o que Manfred Clynes ( 1977) denominou de "fonnas
essênticas", que transcendem as fronteiras culturais. E também não negaa
importânciada escolha individual e da imaginação. A cultura não é um mo-
delo que controla os pensamentos e os padrões de ações das pessoas; é, antes,
0 conhecimentodisponível que é invocado e constantemente reinventadono
curso da interação social. O valor da abordagem antropológica social para
as relações entre forma e sentimento é que esta permite análises coerente s
de danças em relação aos seus significados, mostrando que tanto as fonnas
de dança quanto a expressão dos sentimentos são fatos sociais, e que eles
oferecemdiferentes conjuntos de significados em diferentes contextoscultu-
rais e sociais. As estruturas de danças e os diferentes propósitos com quesão
realizadas devem, entretanto, ser analisadas no contexto, juntamente comas
noçõesdos dançarinose dos espectadores a respeito do que eles estão fazendo ,
do que eles experimentame de como eles o compreendem.
A ausência, em muitas sociedades, de um conceito de dança, obrigaos
pesquisadoresde dança a serem cuidadosos ao aplicarem suas própriasnoções
de dança e técnicas analíticas em relação ao que eles pensam ser dança quando
se referem à dança de outras pessoas.
Ao descrever os movimentos e texturas que observamos, estamos rela-
tando comportamentos, do mesmo modo que etnólogos e psicólogos sociais
descrevem os movimentos de animais ou de pessoas que passam nas traves-
sias de pedestres. Nós não estamos descrevendo a ação, a não ser que também
perguntemoso que as pessoas querem dizer com seus movimeQtos.Mesmo
que aprendamos a perfonnar danças para a satisfação dos membros de uma
sociedadealienígena, não podemos ter certeza de que nós as compreendemos
da mesma forma, porque nossos corpos foram educados em ambientesdife-
rent~s, com diferentes gestos e posturas, de modo que sentiremos os mesmos
mov1mentos d.ti 1 erentemente e, provavelmente usaremos músculos ligeira- ·
mente distintos para ªt·mgirmos
· o que parecem' ser os mesmos resultados.
As análises morfológicas das danças se assemelham aos estudos de com·
portamento com sig01·fi d . , nh das
, . ' ca os atn bu1dos, mesmo quando acompa ª
por analises do context0 . l . . ntos
.
dos dançarmos socia e das ongens sociais e dos relac1oname
· Detalhªdos dados sociológicos podem ajudar a exphcar · os
usos das danças mas sem 10 . fi bre
' as ormações adicionais dos participantes so
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A nt ropo logia da Dança 1
como, quando e por que eles decidiram realizar ou responder a determi-
nados movimentos , as análises revelam-se insuficientes para um entendi-
mento da dança como ação social. Minha própria análise das danças Venda
(BLACKING, 1977) - que foram filmadas e eventualment e gravadas por
um notador treinado - é deficiente nesse sentido , porque eu analisei o que
significava cada dança em sua totalidade. Eu não perguntei às pessoas como
elas construíram diferentes sequências de movimento ou quais foram suas
intenções ao fazê-las .
A explicação do significado dos movimentos é tão importante para a sua
descrição como para analisar os usos da dança na sociedade , pois é o signi-
ficado dos movimentos no contexto que deve guiar nossa identificação das
unidades significativas . Os pesquisadores de dança não podem simplesmen-
te aplicar parâme tros e unidades de análise que foram consideradas úteis em
uma determinada tradição étnica , em suas análises de outras tradições , com
o argumento de que esse tipo de estudo comparativo aproximará o conheci-
mento científico da dança como um possível fenômeno humano universal.
Tais procedimentos podem ajudá-los a entender mais claramente a dança,
em suas próprias sociedades , como de fato a teoria e o trabalho de campo
da Antropologia Social podem ajudar na autoanálise , do mesmo modo que
servem para a análise dos outros , mas o primeiro passo a ser dado em di-
reção ao desenvolvimento de uma ciência da dança deve ser o de aceitar a
equivalência metodológica de todos as etnoteorias da dança disponí veis, não
importa quão inadequadas alguma s possam parecer .
Nossa principal preocupação deve ser com o processo da dança e não
tanto com o çonteúdo e, em 6ltima instância os efeitos da dan a como dança
dependem da sensibilidade das pessoas em relação à mesma como um modo
Jde comunicação não verbal. Uma ciência da dança deve ser uma ciência das
condições do conteúdo , uma ciência do processo por meio do qual o conte-
údo é formulado {cf . BARTHES e CULLER apud HAWKES, 1977). Nesse
processo , os espectadores e os críticos não são menos p erformers do que os
dançarinos , assim como os leitores participam dos trabalhos que leem e cada
leitura contribui para o trabalho.
Na análise dos processos de dança, as palavras são necessárias quando o
conhecimento e a compreensão da dança estiverem além dos dogmas e das
afirmações . Devido aos múltiplos significados atribuídos ao ato de dançar
em p erformance, e às múltiplas concepções de dança em diferentes socie-

Ant ropologia da Dança 1 83


dades muito do que é dito tem mais a ver com moral, política, religi·ã
, , o, ou
saúde fisica e mental, do que com dança. O pr~blema e descobrir quais são
as características da dança que atraem a atençao das pessoas em sua b
. . . d usca
por sentido e que são, portanto , mats es~ec1a1s para ançar e como, em cada
caso, a dança é formulada e compreendida.
A situação atual da dança não se difere muito da situação das religiões
do mundo. Alguns praticantes acreditam possuir a chave de todo o conheci-
mento , enquanto outros afirmam que eles têm, apenas, uma das várias solu-
ções. Porque a dança é um fenômeno humano, será impossível alcançar um
conhecimento abrangente no contexto de uma tradição cultural e acadêmica
'
como parecia ser possível na pesquisa em ciências naturais . Assim, para que
o conhecimento e a crítica da dança europeia [e americana] avancem e se
tornem científicos, sua primeira tarefa é tornarem-se menos etnocêntricos
em sua perspectiva.
O que é de especial interesse para os antropólogos sociais é a possibili-
dade de que a dança seja um tipo especial de atividade social que não pode
ser reduzida a nenhuma outra categoria, e que a invocação de seus símbolos
pode comunicar e gerar certos tipos de experiências que não podem ser vi-
venciadas de nenhuma outra forma. A dança pode estar a serviço de institui-
ções conservadoras e opressivas, mas a experiência corporal da performance
pode também estimular a imaginação e ajudar a trazer uma nova coerênciaà
vida sensual, que por sua vez poderia afetar a motivação, o compromisso e
a tomada de decisão em outras esferas da vida social.
Se a dança desempenhou um papel fundamental na evolução humana e
é um gênero específico , pode sempre ser usada para regenerar a vida social
e para permitir que as pessoas recuperem [ou recobrem] os sentidos. Seª
pesquisa em dança pode revelar relações entre movimento e significado,
ajudando a eliminar as barreira s artificiais que foram criadas entre mente e
corpo, dança e dança étnica, "artista" e "leigo", técnica e expressão, pode ser
capaz de mostrar como mudanças de movimento podem produ zir mudanças
de sentimento, e assim educar as emoções de forma mais adequada para os
problema s da vida no século XXI.
Mas tal visão do futuro só será possível em uma sociedade industrial
avançada se as pessoas compreenderem que a divisão do trabalho, neces-
, · . M rgaret
sana para a tecnologia moderna, não se replica nas artes. Como ª
H' Doubler escreveu, em 1940:

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[Se a dança] serve para ajudar no desenvolvimento de uma
apreciação mais geral dos valores artísticos humanos deve
- . '
e~tao ~er considerada educacionalmente [como de fato era, e
amda e, em muitas sociedades africanas]. O futuro da dança
como atividade artística democrática repousa em nosso siste-
ma educacional [ ... ]. Somente quando a dança for concebida
comunitariamente é que poderá exercer uma influência cultural
plena. [H'DOUBLER, 1957, p. x-xi]

Tradução: Giselle Guilhon Antunes Camargo

Referências Bibliográficas

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1
H' DOUBLER, Margaret. Dance: a creative art experience. (2 edição) Madison:
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85
Antropologia da Dança 1

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