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Flavio M.

Heinz
Marluza Marques Harres
(Orgs.)

A História e seus territórios


Conferências do XXIV Simpósio
Nacional de História da ANPUH

A
...OIKOS....
f til."
anpuhrs anpHh
........ ____ ........

2008
© ANPUH - Assoc iação Naciona l de História
Av. Prof. Lineu 338
T érrco do prédio de e Geografia
Caixa Postal 8105
05508-900 São Paulo/SP
Fone/Fa.x: (l I) 309 1-3047 SUMÁRIO
anpuh @usp.br

o estado do nosso problema: uma Associação, seu congresso e


Capa: Fl ávio \Xlild a lguns desafios
Flavio M. Heinz e Marlu::a Marques Harres ....... .. ............ ....... .. .................... 7
Imagem da capa: Estrada de ferro de Paranagu,í a C uritiba, Viaduto do Conselheiro Sinimbu
(Paraná!Brasil) 18 79. Autor: Marc Ferrez. Im agem reürada de www.dllm iniopublíco.gov.br

Revisão dos artigos: Luís Marcos Sander CONFERÊNClAS:

Revisão da Apresentação: Flavio M. Heinz e Marl uza M Harres A História, novos domínios e/ou deslocamentos?
Eni de Mesquira Samara 17
Editoração: Oikos

Anc-fina lização: Jair ,Ie O li ve ira Carlos História e ll1ultid isc ipli naridade: territórios e deslocamentos
Sílvia Regina Ferraz Petersen ..... .. . ..... 25
Impressão: Evangraf
o o lhar do historiador: territórios c des locamcnws na hi stória
Editora Oikos LtJa. socia l da escravidão no Brasil
Rua Paraná, 240- B. Scharlau Hebe Matros ......... .. 49
Caixa Postal 108 1
93 121 -970 São Lcopoldo/RS
Cruzando fronLciras: os eswdos de imigração
Te!.: (51 ) 3568.2848/ Fax: 3568.7965
comaw@ oikoseditora.com.br Lúcia Lippi O liveira .. .... .................. " ...... 63
\Vww.oikoseditora.com.br
Etnicidade, identidade nacional e luta armada
je({rey Lesser .. " .. ..... 75
H673 A História c rerrilórios: ConferênciJs do XX IV Simplíslll Nacional de
Histcíria da ANPU H. O rgal1lzadmcs Fb\'io M. Heinz; Ma rl u:a Marl.jllcs A invenção da etnicidade nos Estados-nações americanos nos
Harres. - São Leopoldo: Oikos, 2008. séculos XlX e XX
217 p. ; 16 x 23cm. Federico Navarrete ..".... .. .... ............ 89
ISBN 978-85 -7843-054-2
1. História - Mu ltidi 'ciplinaridade - Conferência. 2. histórica. o Tempo, o Vento, o Even to: história, espaços e deslocamentos
3. História - Cultura - SOCleJade. 4. Perfil do l listoriaJor. 5. Il istoriograha . nas narrativas de formação do território brasile iro
6. Patrimônio Histórico - HIstoriador. !. Associação Nac ional de História . 11. 115
FlaVIO M Heim. 111. M;1r!uza Marques Harres.
Dun'a/ Muniz de Albuquerque .. ...... ...... .......... .. .... .. ....... .

CDU 930(042.3)
Catalogação na publicaçJo: Biblimecária Elil'te Mari Donc<!w J3msíl - CRn J O/ I J 84
M ultiJiscip linaridade, interdisciplinaridaJe, lran sdiscip linarid ade:
um desafio para o historiador?
Maria Stella Bresciani .. ... .. ...... .... ............ .. ...................... .. ................ ... ..... .. 137

DISCUSSÕES POLÍTICAS
oESTADO DO NOSSO PROBLEMA: UMA ASSOCIAÇÃO,
SEU CONGRESSO EALGUNS DESAFIOS
Museu s enquamo de at uação para o profissional de HISlória
Eni de Mesquita Samara e Denise Cristina Carminatti Peixoto .. ... .......... 153 Flavio M. H einz*
Marl uza Marques Harres**
Nem crematório d e fontes nem museu de curiosidades: por que
preservar os documentos da Ju stiça do Trabalho
Fernando Teixeira da Sil\-a .. ... .. ... ..... .. . 161
É com gra nde sa tisfação que apresentamos à comunidade dos historia-
Produção acadêmica e e nsino de História dores brasileiros o livro de con ferênc ias do XXIV Simpnsio Nacional de H is-
He len ice Ciampi .. ...... 187 tória, eventn ma ior d a Assoc iação Nacional de Histó ria , a AN PUH, realiza-
do e lTl julho de 2007 , n8 Uni versid ade d o Va le do Rio dos S in os, e m São
DeSlruição legal e ilegal do patrimônio histórico: problemas , Leopoldo, n o Rio Gra nde do Sul. A qui estão reu n idas oito conferê ncias - e
limires e o pape l do h istoriador quauo das intervenções realizada s nas mesas de Di scussões Po líticas - apre -
Zita R osane Possamai 205 se ntadas ao público presente ao evento .
Infelizmente. algu mas co nuib uições Je c onfere nc istas e d ebatedores
ao XX IV Simpósio Nac ional de H istóri a n ão p ude ra m ser in cluídas nes te
olu mc . Por razões diversas, se us a u tores n ão enviaram os textos pa ra p ublica-
ção. Assim, as con ferencias de Hilda Sabato. historiado ra política argentina
_ Hiscória. política, política: lu fomwcióll de las ll 8ciones em Ibema -
mérica _ , do e mbaixador A lberto ela Costa e Sil va - A História da África de
uma perspecliv:l brasileira: problemas e desafios - e de Eliana Du t ra - Des-
locamcnfos incerdisciplina res: Da Litera tura à Filoso fia, da Mem ória à His -
tórw _ . não compôc m este volume . embo ra ten ham d as também con stit uído
momentos- ch ave do eve nto e, part icularmente, tenh am contrib uído para o
adensamento da discussão em torno do te ma d as trocas e convergê nc ias dis-
ciplinares . D a mesma form a. e pelas mesmas razões, algumas d as interve nções
das três mesas de disc ussão política da programação, intituladas "Novos espa-
ços de awaçéÍo profissional do historiador", "Ensino de História e formação
do professor " e 'I-\. destruição lega l e ilega l c/o patrimônio histórico " - não
r a rtic ipa m desta ediçflo .

., Vicç'f'rc';lllentc J'I ANrU J-I n" ,"c,rã,) 200 1-2007; pn)fCN)rJe\ PL'CRS.
.. Ex-,lircr<lTa \! (,)mdhciw da A)\;PUJ-I.R5; preSIdem.: ela ABJ-IO na ge,râll 2006- 2008; professora Ja
L'MSll"US
AINVENÇÃO DA ETNICIDADE NOS
ESTADOS-NAÇÕES AMERICANOS
NOS SÉCULOS XIX EXX*
Federico N avarrete **

A pluwlid atl c é tn ica c cu1cura l é uma realld ade reconhec ida em tod as
as n açéles americanas. Não há um ún ico país em qu e n50 e xistam grupos q ue
se d iferen cie m por sua co r de pe le , sua cu lt urJ, SU :1 língua , sua orige m , sua
re ligião ou sua iden tidade é tn ica. Da mesma man eira, desde o n ascimento
das naç ões de nosso continente , as forma s de co nvivência, assim como a d is-
crim inação e os confl ims, entre os dit'ere nLes grupos, tê m temas cenwlis
da vida social e polític a . Por ISSO , como veremos nesta conferênc ia , a relação
entre os di stintos grupos étnicos tem sido um eleme ntO ce ntral para a de fin i-
ç50 dos regimes polít icos que se construíraln e sucederam e m cada um dos
países am ericanos . Hoje, a discriminaçáo e a desigu3.ldade entre os grupos
di ferentes são uma característi ca imporram e de q uase todas as socieJ ades de
nosso continente . Por esras razües, presta r atençüo às relações in terétnicas per-
mite compreende r, de uma perspec tiva dife rente, a h isló ria política e soci<ll de
nossos pa íses.

Dive rsidade primordial e diversidades emergentes

Para pode r empree nde r este tipo de a náli se, é nec essá rio , pr ime iro ,
fa ze r algum as re fl exões co nce it uais. A primei ra se relaci o na com a rrópria
n arure::a da plurzd idade nas s\lC ieda des a mericanas.
A pluralidaJ e de grupos h umanos qu e ex iste em nossos pa íses tem sido
e xplicada geralme nte como resultado da hi stó ria d l) po\'oa men LO da A méric<l
por sucessivas o ndas de imigran tes, começa ndo pelos ame ríndios q ue chega -

* Tr<1JlIção ao J e EJU<lrd" N :\la lino dos


'" * [n,Ü t ul.O Je In"csflg.lçõc, H is tóric3S, l OI1l \'crs iJade NactOnal Autônoma do México

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A invenção da elnicidade nos estados-nações americanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrete XXIV Simpósio Nacional de História da ANP UH - A Hislória e seus territórios

ram há mais de 10 mil anos e culminando com os imigran tes africanos, asiá ti- continuidades identitárias e culturais entre os gru pos ameríndios , afro -ame-
cos e europeus q ue chegaram nos úl timos 500 anos , e continuam a chegar. ricanos, de origem européia e outros imigrantes; e, menos ainda, ignorar a
Desta perspec tiva, a pluralidade rem sido concebida como uma espé- importância das formas de resistênc ia que os gru pos suba lternos têm empre -
cie de "pecado original" das sociedades americanas. A conquista dos povos gado. nem subestimar as for mas de dominaç ão exercidas pelos gr upos hege -
amerínd ios e a colonização européia do continente têm sido condenadas com mônicos.
uma arroz des truição desta pluralidade primord ial ou vista como uma empre- O q ue desejo quest ionar é a idéia de qu e a dive rsidade dos países
sa ocide nra lizante e homoge neizadora ainda n ão term inada . Para além de americanos é unicame nte lima co ndição originária, o ponto de partida, o
sua oposição, ambas as perspectivas assumem que o mundo ameríndio existe cenário prévio e imóvel em qu e se dão os processos históricos de colonização
de maneira mais ou menos contínua desde antes de 1492 até hoje e o definem e de constr ução naci ona l; e q ue estes, por sua vez, demonstram a tendência
como al he io e resistente, inclusive refratário, até certo ponto, ao mundo oci- de fazê- la desaparecer. Também quero questionar a idéia Lie que as diversida-
dental. des ex istentes hoje são o prod uto e a cont inuação desta diversidade primor-
Uma pe rspec tiva semelhante se aplica aos grupos de africanos que che - dial, ou seja, que aquilo que torna diferentes os ameríndios, os afro -america -
garam à A mérica por meio do tráfico de escravos. As atrocidades deste co - nos , os ocidentais e os gru pos prove nientes da Á frica, Ásia ou Oriente Médio
mérc io h umano são vis tas como um elemento definidor da participação dos é o que eles conse rvaram de suas or igens pan ic ulares , enquanto que sua
afro -am ericanos nas sociedades america nas até o dia de hoje. Como res ulra- experiência colonial e nacional não teria demo nstrado mais que a tendência
do, rambém se defi nem estes grupos a partir de sua alteridade primordial em de homogene i:á-los.
relação ao resto das comunidades nacionais c de sua continuidade com seu Fren te a esta concepção de diversidade primo rdial, pro ponho a ex is-
passado africano e escravo, seja sob a forma de uma resistência conrínua ou tência de diversidaJes eme rge ntes, quer dizer, de for mas novas e sempre cam-
de uma herança terrível que não pode ser superada. biantes de diferenciação e pl uralidade entre os grupos qu e fo rmam as socie -
A mesma visão esse ncialista que re mete o ameríndio ao pré-colombia- dades americ anas.
no e o afro- americano à Á frica e ao escravismo re úne os di ferentes grupos Denomino eme rgentes a estas diferenças porque elas surgiram e sur-
europeus que chegaram à América em função de sua orige m geográfica sob a gem, hoje mesmo, dos processos históricos de colonização e de construção dos
etique ta simplista de ocidentais, o que os associa a uma posição socia l de domi- Estados- nações; algumas vezes de maneira de liberada e o utras vezes como
nação e a uma identidade modema. Isso impede o reconhecimento da plurali- uma conseqüência inesperada. Portanto, não devem ser concebidas como uma
dade cultural, social e étnica do povoamentO europe u da América, além das simples continuação, ou um remanescente, das diferenças primo rdiais, e sim
diferenças de classe e relaç ões de poder existentes entre estes grupos. como fenô menos novos, que podem retomar elemenros das diferenças previa-
No qu e diz respeito aos imigrantes asiáticos, do Orie nte Médio, africa - mente existentes, mas qu e lhes dão sentidos e funções d iferentes e novas.
nos e da Oceania que têm chegado nos últimos 150 anos , este essencialismo Por exemplo, em todas as nações americanas , a dis tinção legal e política
os define também a partir de suas origens extra-americanas e ava lia sua par- entre cidadãos e não- cidadãos se transformo u, ao longo dos úl timos 200 anos,
ticipação n as sociedades americanas contemporâneas em função de uma di- em uma geradora constante e cambiante de diferenças emergentes. No Peru,
cotomia simplista: a continuidade com sua herança es trangeira ou sua assi- G uate ma la e México, as comunidades campo nesas, muitas delas de tradição
milação às cu lturas nacionais. As mesmas concepções se aplicam agora ao ameríndia, têm definido formas próprias de participação política e de exercício
crescente n úmero de emigrantes entre os países americanos: latino -america - da cidadania, as mesmas que fo ram rejeitadas e comba tidas pelas elites libe -
nos nos EUA, nicaragüenses na Costa Rica, colombianos na Ve nezuela, boli- rais, apegadas a uma definição ocidentalizal1le de tais concepções. I O enfren-
vianos e pa raguaios na Argentin a.
Devo esclarecer que não pretendo n egar a importância dos processos
hislóricos de colonização, escravismo e migração, que têm constituído as na- I MALLOt-:. Fl nrênCIn . Campesino r nación: la COl\slrucc ión Jc México y Perú poscolon ia les . México:
ções amer icanas sociodemograficamente . Tampouco q uero menosprezar as CIESAS.2oo3.

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XXIV SimpósIo Nacional de História da ANPUH - A História e seus le
A invenção da etnicidade nos estados·nações americanos nos séculos XIX e XX - Fedenco Navarrete

religião, os n o mes de ba tismo e os costumes a li mentares se tornaram _o


tamento entre estas tlif"eren tes formas de ci dadania tem sido definido pelas
certos casos, sinais de penença o u de estrange irismo em relação à comur
elites como o conflito entre uma nação nova e moderna e a alreridadc pri m or-
de nacional. Também os países de origem, com suas cambiantes cond:.
d ia l dos "índios" atrasados e tradicional istas; mas é muito mais escl arecedor
econômicas e sociais c suas não menos mutáve is definiçóes de quem ter
concebê -l o como resu ltado de d iferenciações emergentes que refleriam, e
não di reito à nacionalid ade, têm tido ingerência nestes processos de di k
refletem, as co ntradições do projeto liberal e mod ernizador de const rução
ciação, como aresta o caso dos nikci no Brasil e dos italianos e espanhól
naciona l.
toda a América .
As formas de d iscriminação e segregação implantadas de m aneira ex-
O utrO l ira de fro n teira que tem sido cruc ial na geração d e d ifere'
plícita ou praticadas de ma n eira implícita nos Escados -nações americanos
emerge ntes é a expansão do capitalismo , tamo sob a forma de mercados
também provocaram O surgimento de novas diferenças entre os grupos que
nais quanto em suas dimensões mais globais. Como propõe David Ham
formam nossas sociedades. A negação do direito ao voto e o ut ras formas de
contínuo e sempre renovado processo de acumulação de capita l por mei
discriminação exercidas contra os afro -americanos nas sociedades anterior-
despojo das fo n nas d e riq ueza, de traba lho e de produção dos
m ente escravistas ge raram diferenças emerge n tes, que se
construíam sobre as
pos sociais tem gerado (ormas de diferenciação e exp loração sempre camb
q ue haviam sido criadas pelo regime escravista, m as que cumpriam fun ções
tes.! Esta fro n teira de despojo afe rou a Força de tra balho de ame ríndios, -
m ui to distintas. Isso porque seu objetivo princ ipal já não era a superexplora -
americanos , im igranres e pessoas d e origem européia por meio de sistem
ção da fo rça de trabalho escrava, m as sim o estabelecimen to de n ovas formas
escravidão, trabalh o forçado , servidão por dívid as, traba lho ilega l e [rar
de subord inação política e de exploração econômica. Igualmente, a implan-
assa lar iado. Também se estende u às terras cu ltiváveis, às fontes de águ
tação de políticas sani táriaS no fi m do sécu lo XIX e princíp ios do XX fez
fl orestas e às montanhas . U ltimamente, abarcou o aproveitamento do'_
surgir novas formas de diferenciar os grupos c uj as práticas eram consideradas
nhec imentos trad ici onais dos grupos camponeses sobre seu s ecossistclT.
contrárias aos princípios da higiene e saúde modernas, levando à proibição
inclusive a investigação e exp loração de seu genoma. Todos esses proe,",
de beb idas tradicionais, como a chícha n a Colômbia, à persegu ição dos médi -
implicaram a constr ução d e novas formas legais de diferenciação, CO!T,
cos popu lares e à mod ificação de práticas residenciais e de estrutu ras familiares
leis de tra balho forçado dos in dígenas implan tadas na G uatemala em 18í'
em d iversas partes do contine n te.
leis q ue: no Méx ico e em outros pafses invalidaram as formas de
O concei to d e fronte ira, com suas múltiplas acepções, pode nos ajudar
te rritori al comun it:1rias, as leis que estabeleciam a minoria legal dos
a refletir me lhor sobre os mecanismos de criação de diferenças emerge ntes.
nas no BHlsi[, Ca nadá e Estados Unidos o u as leis modernas de propril_
No senrido territorial, a expansão das Fronteiras efetivas do con trole
intelect ua l que excl uem as {armas coletivas e tradicionais de conhecimc:
estatal em todas as nações americanas gerou novas for m as de subm issão e
Implicaram também o surgimento de n ovas práticas de segregação e disc 1
diferenciação. Nos Esmdos Unidos, Canadá, Argentina, México, Peru e Bra-
nação , que têm permitido a superexploração do trabalho destes grupos '.
sil, os povos ameríndios, que eram originalmente concebidos como estrangei-
violação de seus direitos de propriedade, livre circulação e li vre contrat .·
rOs ou hostis, foram incorporados ao território naciona l e submetidos de 1113 -
Cl1mo veremos depois, estes processos de despoio e ac um ulação, "
neira vio len ta ao contro le estata l. Isso produziu , em vários casos, um genocí-
que ocon idos nos âmbitos nacionais, têm sido parte e resultado das dir'-
dio aberto e, em outros, a implantação de práticas discriminatórias e diferen-
cas m utáveis do sistema capita lista mu nd ial e das formas de incorporaç81
ciadoras, como a negação de sua cidadania, a subm issão a formas 3d hoc de
Estados- nações americanos ao mesmo.
controle esta ta l sobre seu território, sua economia, sua organização política e
sua cu ltura, por meio de agências especia li zad as, como O BUfeMI af lndian
Aff<lirs nos EUA oU a FUNAI no Bras il.
As !1lurantes fronteÍras legais, polici cas c cult urais que separam os na-
. H '\ RVLY , Duv,J. Nmô 'r')WardS;1 Thenry " f Uneven Devt:!orlnenl. In: ::J'pacesof
c ionais dos es trangeiros em cada país também têm servido para construir di-
Clp,raiJ'm: Ao Themy (lfUnevt'11 Geographica l De\"c loprnent. LonJon: Verso, 2006. p. 7\ -11 6,
ferenças em relação aos grupos de imigra nres . A cor d a pe le, a lín gua, a

!J
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A invenção da etnicidade nos estados-nações ame ricanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrete XXIV SimpÓSIO Nacional de História da ANPU H - A História e seus territórios

Ouua fromeira de grande importâ ncia para a geração de d iferenças expansão capitalisLa, o conceito de etnogênese permite descobrir e compre-
emergemes tem sido a que separa O que consideramos natural do que consi- ender as complexas estraLégias que desenvolveram para reagir, resistir e ne -
deramos cu lturaL A distinção ideal entre estes doi!> âmbitos, como demons- gociar com esses processos - e também para, na medida do possíve l, participar
trou Bruno Lataur, é um traço definidor da modernidade ocidenta l, mas na e se beneficiar deles.
prática n unca existiu uma separação real entre ambos. J As próprias defini- Para dar um exemplo: d urante o século XIX, as comunidades campo-
ções das diferenças entre os grupos humanos comb inam sempre, e de maneira nesas ameríndias e "mestiças" do Peru, México, Guatemala e Equador tive -
complcxa, elementos biológicos e culturais. Do mesmo modo , os processos de ram que redefinir suas ident idades étnicas, de modo que ser "campesino"
dominação e segregação para com as populações amcríndias e afro -america- mexicano ou peruano no final deste século era algo muito diferente do que
nas têm uma fone dimensão ambiental, pois, além de controlar seus territórios, havia sido ser índ io no sistema colonial, cem anos antes. Neste processo de
buscam modi ficar seus ecossistemas. A pecuária tem sido, nos últimos 500 reinvenção de sua identidade, atualizaram elementos de origem pré-colom-
anos, um elememo -chave da co lonização e das relações imerétnicas por todo biana, como as formas de agricu ltura tradicionais que continuaram pratican-
o contineme.4 Assim também, nos últimos 150 anos , a ·defesa da natureza, do sempre que possível, refuncion alizaram elementos de origem colonial, como
definida como um âmbito intocado pe la mão do homem, tomou-se uma das os cultos aos santos patronos e os sistemas de confrarias com uma forte econo-
bandeiras que justificam a marginalização e o despojo dos povos ameríndios mia cerimonial, e incorporaram elementos liberais e modernos, como a idéia
para o estabelecimento de e reservas ecológicas. Em sentido in verso, de cidadania, a estrutura legal dos municípios, a construção de alianças po -
a idea lização das atitu des supostamente ecológicas dos indígenas se tomou, líticas e a utilizaç ão da violência como ferramenta de negociação com o Esta-
nos últimos 40 anos, uma nova for ma de difere nciação. No presente, a biopi- do e com os outros grupos sociais. 6
rataria, as sementes transgên icas e a gené tica constroem novas difercn ças Os mov imenros de revitalizaç ão, como a Dança dos Espíritos, q ue tan-
naturais e culturais entre os grupos. to êxito teve entre os ind ígenas norte -amer icanos cm fins do sécu lo XIX,
Outra fronteira a explorar é a que divide os gêneros, pois esta distinção serviram igualmente para q ue estes grupos pudessem reinventar suas identi-
tem tido uma grande in fluênc ia na construção das diferenças entre grupos dades cole tivas frente ao impacto brutal da imposição do domíniO direto dos
sociais, fe minizando os gru pos menos poderosos e atribuindo aos setores domi- governos estad unidense e canadense e da destru ição de seus meios ambien-
nantes os atributos positivos da masc uli nidade . A partir destas concepções, tes e fonnas de vida tradicionais. 7
as ideologias nacionalistas produziram h istórias familiares patriarcais de mis- O mesmo se pode d izer dos movimentos políticos e cultura is que surgi-
cigenação, traduzindo as relações de dominação e poder em relações de pa- ram entre os gr upos afro -ame ricanos, desde as rel igiões afro-americanas até o
rentesco.5 movimento rastafári e a negritudc, que lhes têm permitid o inventar novas
Ou tro conceito -chave para entender as di ferenças emergentes em identidades e enfrentar, assim, as diferentes formas de exclusão e discrimina-
nossas sociedades é o de etnogênese, que se re fere à inesgotável capacidade ção a que têm sido submetidos depois da abolição da escravidão, bem como
que os grupos sociais tiveram, e têm, para redefinir suas identidades e suas defi nir formas sempre cambiantes de participação política e cultural. No mes-
diferenças em meio à complexa interação com outros grupos e com os Estados-
nações. Se os ameríndios, afro-americanos e imigranccs apareciam nas descri-
ções anteriores como objetos passivos dos processos de constr ução nacional e
TIIUI\NER, Mark . From Two Republics [(J One DivideJ. Ab bama: Du ke University, 1997; GRANDlt-:,
Greg. The BlooJ o( Guatemala: A Hiswr)' of Race and Na [ion. Du rham: Ouke University Prcss, 2000;
T H01>1S0N, Guy P. C. nmiori.'m. Polttics anJ Popular Liberalism in NIIlc reench Cenrury Mexico: Juan
) L"TOL'R, Bruno. \Ve Have NCI'cr &en M(,Jern . C,mbriJge: HarvarJ Univ('rsity Pres>, 1993. Francisco Lucas and the Pucbln Sicrra. Wilm ington : Scholarl y Resou rces, 1998.
I KEHOE, Alice Bcck. The Ghnsl Dance: Elhnnhisrory ;mJ Rel'italizatinn: Case Srudies in Cultura l
, MElVILl E, Elinor G. K. A Plague olSheep: Environmenral of lhe Cl1nYllc,( of M é XICO.
C3mbridge: Uni vcrsiry Prcss, 1994. Anthropolob'Y- New York: Hol(, Rinehare anJ WitlSton , 1989; NAVARRETELl NARES, Fcderico. La Tierra
I BAUBt\R, Éticnne. Thc Nntion Form: Hisrnry anJ Ideology. In: WAIIERSTEIN, Immanue l; BALlMR,
sin Mal, una utopía anti-es tara l amer icana . In: OLlVIER, C uilhem (coord.). Símbolos de poder en
Érienne (eds.). Race. Narion . C/ass: Ambiguous IJenritic,. LonJon : Verso, 1999. p. 86·106. Mesnaméric;J. México: UNAM -llH-lI A, 2008 .

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XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH - A História e seus territórios
A da etnlcldade nos estados·nações americanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrete

biolúgicas e cu lturais das popu lações pré -colombianas - uma continu idade
mo sentido, as conversões religiosas por todo o continente catalisaram pro -
cessos de redefin ição de identidade de grupos muito \'ariados. h similar :-.e dá por estabelecida no caso da" populações afro-americanas e dos
Os grupos de imigrantes, por sua ve:, rev ita lizaram e refuncionalizaram ill1igranres europeus e asiáticos . Para lelamente, supõe-se que a inreração e
miSLUra emre estes grupos tenham criado novos grupos "mestiços" ou "híbri-
aspec tos da cultura de seus lugares de origem e também assim ilaram traços-
chave das culturas locais e nacionais com as quais inreragiram, reinventando dos" que, como resu ltado inev itável dessa mistura, deviam ser difere ntes de
suas identidades para enfrentar complexas dialéticas de in co rporação e ex- se us predecessores.
c1usüo. 9 Por lr<lS destas visões de cont inuidade e d as concepçôes trad icionais
Em suma, a construção de di ferenças não é apenas uma ferramenta Je mestiçagem, se encomra a defi nição de Cu/curA , com maiúscu la, do ro -
mantismo a lemão, recomada pela antropologia cultura lista. De acordo com
para o exercício do poder estatal e econômico, mas também para a resistência
ela, cada grupo h umano, chamado povo ou Vo /k, lem suas próprias caracte-
a e negociação com esse poder. As diferenças não são apenas um instrumento
rís (Ícas racia is, seu próprio cará te r mora l, sua própria lín gua e sua própria
usado pelos gru pos dominantes, mas também pelos subalternos . Por isso, as
cultura, as quais formam uma unidade orgânica e espiriLUa l específica e in-
diferenças emergentes têm sido um elemento centra l .das relações soc iais,
dissolúve l. Por isso, supomos q ue um indivíduo, ou grupo, com traços feno cí-
econômicas, políticas e cultu rais entre os diferentes setores sociais das na -
ções america nas nos últ imos dois sécul os. A plura lidade étnica e cu ltu ral de picos afro -america nos deva pertencer a uma cu ltura afro-americana, assim
co mo uma pessoa com traços h íbridos deva pe rt encer ao grupo mes tiço; o
nosso cont inente, longe de ser uma simples continuação do passado, o u um
mesmo vale para um fala nte de uma língua ame ríndia, visto necessariame nte
pesado fardo qu e deve ser su perado, é uma realidade vira l e se mpre em trans-
fo rmação, uma característica dinâmica de n ossas sociedades . como um segu idor da tradição cultural de seu povo.
O con ceito Je C ultura com maiúsc ula amalgama, de maneira comple -
xa, e muitas vezes contrad itória, elementos bIOlógicos - como o fenótipo e a
As "constelações" étnicas "rnça" -, c ul turais - como a língua e os costumes -, políticos - como a de fesa
explícila de uma identid ade e de uma forma de vida - e soc ioeconômicos -
A té agora fa lei de maneira deliberadamente vaga das diferenças entre
como as formas de prod ução e as prá ticas de expk)raçáo a que pode ser sub ·
os dis ti ntos gru pos q ue coexistem em nossas sociedades, sem caracte rizá -I as
metido um grupo. Igua lmente, comb ina elementos que tê m uma longa dura -
como racia is, cu lturais ou étnicas. Isso se deve ao fato de que a própria n atu -
ção no tempo, como as formas de interação co m o meio ambiente de um
reza dos grupos que constituem as sociedades americanas é um tema sobre o
[,TfU pO h umano, com elementos muico mais mutáveis, como as definições sociais
q ua l é necessário refleti r detidamente.
e legais dos grupos étnicos em um contexto político particu lar ou as formas de
A concepçi'i o de diversidade primordial assume que estes grupos dife -
exploração associadas a um sistema produtivo específi co.
rentes existiam como tais desde antes do iníc io dos processos históricos de
Ao ass um ir que todos esses fatores díspares formam um con junLo coe-
colonização e construção nac ional, e que tais grupos foram afetados por esses
rente c unificado, esta concepção transforma os grupos étnicos em categori as
processos, mas conservaram uma continuidade fundamental. Por isso, consi·
essen ciais e inquestionáveis. Da mesma fo rma, assume q ue, além das vicissi-
dera-se que as popu lações a me ríndias dos sécu los XX e XXI são herdeiras
tudes históricas, existem traços autênticos e constantes, q ue fazem com q ue
os ameríndios sejam índios, que os afro-americanos sejam africanos e que os
eu rope us sejam ocidentais. Tudo isso Jes-historiciza os grupos, pois concebe
8 LE BOT , Yvon. La gucrra Cll rierras mal'as: comunidad, violencia y modcrniJad rn Guatemal a (1970. ns processos hi stóricos, que na rea lidade oS cons tit uíram, co mo 8genres exó-
1992) . Méx iCO: fonJo de C ul tura 1995; WRlGIIT, Robm M. (org.) . Tmlls/t )fI)l,lIlJo os
genos que paJem trazer a erosão à sua autenticidade o u prüvocar sua disso lu-
JCIISCS: pentecostais c ncopc ntecosw is entre os mdígenJs no BrasiI. Campina"
EJitora LN ICAMP, 2004. ção, po is, de rodas as formas, seriam exte rnos à sua essê nc ia.
• LESSI:R, Jcffrcy. Ncgouarmg Nanoll<llldenCJrY: lmm ígrams, /..!morities anJ the Struggle fo r Edmiciry in Uma mane ira a lternativa de refletir sobre os diferentes grupos émicos
Bra:il. Durham: Duke Univcrsitv PreS!> o 1999; BoNFIL BATAIl.A. GUlllcnno (comp.) . 51111"i0515 Je culrur;JY:
lo s inmigrantes \' su cultura e n México. Mé xico: CONACULTA/fonJn Je Culruf<1 ECIlnómlca, 1993 .
e suas comp lexas dinâmicas h istóricas deve começar dando mais atenção à

97
96
A Invenção da etnicidade nos estados·nações americanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrele XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH - A História e seus territórios

constelação de diferentes elementos biológicos, culturais, po líticos, soc iais e Na análise realizada até aqui, enfat izei a maneira como as (ormas de
econômicos que consti tuem estas cole tividades. Estas conste lações de ele - domin ação política, social e econômica criaram categorias émicas que defi-
mentos e traços são produtos das circuns tâncias e processos históricos e se nem e diferenciam seus obj eros de domínio, ou seja, os grupos humanos q ue
modificam com eles. Por isso, n unca devemos de ixar de ter em mente a "es- existem nas sociedades americanas. Estas categorias étnicas, que são defini-
tranheza" histórica destas conste lações, ou seja, a conringência e a hismrici- das exteriormente aos grupos aos quais se aplicam, devem distinguir-se, na
dade da conjunção de características agrupadas, que têm sentido apenas em teoria e na prática, das identidades étnicas que são definidas internamente
um contexto espaço-temporal e social particular e que, portanto, se modifi- por estes grupos, ainda que também em interação com estes mesmos sistemas
cam com ele. 10 de dominação.
Isso é partic ularmente importante de uma perspectiva comparativa, Para entender a construção das identidades étnicas é útil vo ltar ao
como a que estou propondo. Com efeito, não podemos supor que ser "índio" conceito de etnogênese: em sua participação, negociação, res istência e rebe -
fosse o mesmo no contexto do Méx ico e do Peru do século XIX, muito menos lião diante dos processos de co lonização e de formação naciona l, os grupos
no Brasil ou nos Estados U nidos; tampouco podemos a:-sumir que co ntin ua ameríndios, afro -americanos, europeus e o utros imigrantes construíram e in-
se ndo o mesmo em princípios do século XXI em cada um destes países. Do ve ntaram identidades étnicas próprias, mod ificando as que haviam herdado
mesmo modo, é bem conhecido que ser "negro", e incl usive escravo, não era historicamente e adaptando -as às novas circunstâncias e processos hisróri -
o mesmo no Bras il, no Peru ou nos Estados Unidos - e contin ua sendo dife -

rente hoje. Tampouco devemos ass umir que o "criolio" guatemalteco é igual Este concei ro de identidade étnica deve dissociar-se da concepção de
ao "branco " de Q uébec. O mesmo vale para os alemães da Guatemala e do Cultura com maiúscula e ser concebido também como uma conste lação de
Brasil, para os chineses do Peru e do Canadá. caracte rísticas heterogêneas, mui tas delas de origem alheia ao grupo que as
Em cada caso e em cada região ou país, uma histl)[ia partic ular de utiliza e que são mobil iz adas por este grupo como uma "bandeira" para a ação
dominação política, de exploração econômica, de intercâmbio c ultural, de cultural c política. Em suma, as identidades étnicas também são construções
resistência e de etnogênese criou form as diferences de construir a constela- históricls únicas , produtos dos contextos e das lu tas particul ares. 1J
ção de traços que definia, e define, cada um destes grupos . Estes processos criativos de construção e in venção idcnti tária têm rido
Por isso, proponho utilizar o concei to de "categori.a étnica" para reco- uma margem de a u tonomia variáve l frente às relações de dominação nas
n hecer a parncularidade histórica destas constelações, ev itando ass im fa lsas sociedades americanas. Para refl etir sobre esra margem , o antropólogo mexi-
analogias e buscando compreender melhor as partic ularidades de caJa re- cano Gu illermo Bonfil propôs o conceito de "comro lc cu ltural". A capacida-
gião e país. Ao mesmo rempo, esse conceito nos permite levar em conta que de de cada grupo definir sua própria identidade e os termos de sua relação
os sis temas mais amp los de dominação política, econômica e soc ial e de rela - cu ltural e social com os grupos e sistemas com que Íllleracua dependem das
ções interétnicas são precisamente os que dão sentido histórico e função so· circ unstâncias hislóricas partic ulares. H Em gera l, pode-se di:er que os gru -
cial às ca tegorias étnicas q ue existiram e existe m em nossos países. Neste pos étn icos n unca (oram completamente autônomos, ou seja, que nenhum
sen tido, é importante enfatizar que as re lações de exploração econômica e de pôde defin ir sua identidade liv remente de qualqu e r determinação exte rn a,
classe têm sido e co n Lín uam sendo uma pa rte fundamema l das estran has mas que, inversamente, n unca foram completamenre subord in ados, isto é,
conste lações históricas que definem as categorias étnicas. 11

I; HII.l, D. Itllflleluctinn: Erhnng..:nesis in the Amcnc;l', 1492-1592. In; kl. (eel.) . HNClT) ;
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98 99
A invenção da etmcldade nos estados·nações amencanos nos séculos XIX e XX - Federico Na varrete
XXtV Simpósio Nacional de HistÓria da ANPUH - A História e seus terrltónos

que as dete rminaçües ex ternas nunca fo ram taO absolut as a ponro de rrivar
completamente os gr llpOS Jo conrrnle cu ltural - salvo quando tenham provo- supoSl,lmente super<'lva as idenriJades particu lares previamente existentcs _
cado sua extinção definit i\':1. ainda que na prática apen3s universal i:asse as características étnicas próprias
Historicamente, as categorias étn icas, d efi mJas extcriormente, e as destas e lites, bem como se us preconceitos contra os outros grupos. Retoman -
idenridadcs étnicas, definidas pelos rróprins grupos, tiveram uma convivên- do as idéias de Slavoj ZlZek, as e lites americanas têm identificado ideologi-
cia com pl exa, reple ta de con trad içôes e conl1ilOs, mas também de coinciclen- camente suas particu laridades com o universa l, o que lhes têm perm itido.
cias e negoc iações. As d i(erenres cl1l1stc laçõcs que consüwem os mapas érn i- ass im , diss imulá-Ias e legiLim<Í. -Ias. l \
cos de tojos os países americztnos são proJutos Jesras inter:Jçües complexas. Segundo a perspect iva das traJições hisrorillgráficas nac ionalistas, as
Espero que es tas considerações tenham tornado cbro o que queria forças d inâmicas da moJe rni:ação, en carnadas nas elites modernizadoras com
dizer quando mencionei a "invenção Ja etnicidade" no título deste texto . A- aspiraçôes univcrsalis tas, tiveram que enfrentar as resis tências, passivas e re-
d iferentes conste laçôes h istóricas que constituem as categorias e as identida - ativas, dos diferentes grupos énücos, mas a tendênCia inevitável era a d esa-
des étnicas são in \'e nções no sencido de serem cünSlr uç()es históricas. Enm:- parição destes o u sua preservação como adornos fo lclóricos de uma ide ntida-
ta nto, isto não quer d izer que não sejam reais, e tão concretas como as mar- de nacional consolidada e plenameme moderna. A maioria cios aurores acei-
cas e as fe rr agens que constrangiam os corpos dos escravos, as formas de tou que a homogeneizaçáo rac ial e cu ltural de suas nações era um requis ito
vestir impostas aos indíge n as para ver ificar sua ident idade e conrrolar seus ind ispensóve l rara o progresso e moJern ização. Mais recentemente, outros as
o u seus rit uais e formas de comer. Da mesma maneira, as prát icas condcn<lram como um etnocíd io injustiCicáve l. No enwmo, tod os Je
disci plin ares e as campanhas médicas, os este reótipos e os preconceitos, as acordo acerca da eqU ivalência entre modernid ade e homogene idad e.
rebe lic)es e as práticas de resistência cotidiana têm Jado às diferenças érn i- Do mesmo modo, e:>tabelece u-se uma re lação de comradição entre as
as ullla concrctude e uma visibi lidade que todos nós, americanos. sabemos d iferenças é tnicas e a igualdade, sustenta ndo que esta última somente ro de -
ler e reconhece r em nossa convivência socia l cotid iana. ri a ser <llcançada se as pri meiras desaparecessem. També m neste terreno, o
ul1lversa lismo dns v<l lores serv iu para disfarça r ideologicame nte a im-
pos içiio das particu landades culturais d as elites.
As conformações nacionais
Se examinarmos os processos de construção naciona l indo a lém d as
propósito d estas retlcxôes teóricas é compreender d e lima maneira n arrati\'as ideo lóg icas Jas h istoriografias nacio nal is ras, não é m ui to difíc il
d iferente os processos de construção nac ional dos últimos 200 anos no interior descobrir a maneira pela q U<l1 reprod uziram e constit uíram consta n teme nte
dos Estados-nações americanos. as di ferenças étn icas que pre tendiam eliminar. Podemos dizer q ue este é o
Tradic ionalmente, eles têm sid o vistos como processos de moderniza - "lado obscuro" d a construção nacional, porque não é visível norma lmente e
ção de soc ie d ades trad ic io n ais heterogêneas que le \' aram à superação de se oc u lm sob ti "i:Jdn luminoso" da re tó rica u n ifi cadora. Apesar disto, o u
suas diferenças primordiais por meio da unificação cu lt ura l e étnica. A iden- melhor, gr<lças a isto, cumpr iu funções-chave na sustentação do poder das
tificação entre mod ern ização e homogenei:ação é tnica e c ultural levo u à elites moclerni:adoras sobre o resto dn população.
consrruçüo de narra tivas h istóricas lineares, nas quais o projero moderniza- Para começa r, e lites dominantes dos es tados a mericanos , c hamem-
dor se impun ha a llm a sociedade d ividida pelo "pecado origin,l l" de sua di- se brancas, mestiças ou simplesmeme modernas, legitimaram seu poder a par-
versid ade primnrd ial e pelos estragos do levando assim fi forma - eir de se u acesso privilegiado às idé ias, práticas e valores d a modernid ade,
ção de um a comu nid ade nacional, moderna e homogênea. definidos Je acordn com o sabor da temporada (liberal, n ac ionalista, marxis-
Os gr upos que e ncabeçaram este processo se apresentavam como re -
presentantes dos va lores universais da moJern idade, acima de sitas identida·
des ét nicas partic ulares , e como Ílwenrores de uma iJentidade nacional que Sth'O) . (l la culrural J e l capir;ll ismn mu ltmaciona l. In: J-\MESON,
FteJric; Sbvoj. E"WJIIl, cu/cumles: rdlcxiol1cs whrc cl mlllricll lruralislllO. Buenos Aires:
P3IJóS, 1998. p. 137· 188.

1 00
101
À
A invenção da etOlcldade nos estados·nações americanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrete XXIV Simpósio NaCional de História da ANPUH - A História e seus territórios

ta ou globalizadora). Sua relação privilegiada com o moderno as distinguiria transformaram pe los processos de comtrução nacional, assim como sua com-
do resto da população de seus países e as colocaria no papel de sujeiws prin- posição e definição identitária.
cipais da construção nacional. Por isso, caberia a es ras elites impor ao resto Em alguns casos, como a G uatemala e os Estados Unidos, estas elites
da popul ação as políticas de embranq uecimento, integração, despojo, higie - mantiveram uma definição fundamentalmente racial de sua identidade e de
nização, educação, modern ização, libertação , desenvolv imento ou abe rtura sua dom inação, ainda q ue tenham sabido incorporar setores ascendenles dos
cllI11ercial corresponde ntes a cada época . grupos e "negros" . Em outrOS casos, optaram por definições identi-
Contudo, a missão modernizadma e homoge neizaJora das elites teve tár ias q ue enfat izavam mais as var iáve is culturais. Assim, por exemplo, no
sempre um limite: a disso lução de seus privilégios. Se as políticas impostas por México e no Brasil, a incorporação à elite de indivíduos de origem ameríndia
elas ao resto da população tivessem êxito pleno e lograssem sua modernização ou ;-lfra-americana foi permitida, desde que adorassem a língua, a cu ltura e
irreversível e sua unificação culrural e étnica, então desapareceriam as dife - os va lores ocidentais e modernos. Em suma, uma rela tiva to lerânc ia racial
renças entre a elite moderna e a população atrasada, fazendo com que a fundamentou -se na imposição inegociável da ocidentalização como requ isito
prime ira perdesse sua legitimidade e a fonte de seu poder. de entrada nas elites . '6 A nd ré Rebouças e BenitO ] uárez são exemplos para-
Diante deste dilema, duas soluçôes práticas e vinculadas entre si têm digmáticos deste princípio.
sido adotadas. A prime ira: a dissolução das diferenças primordiais provocada Por outro lado, não podemos esq uecer que as idéias hegemôni cas que
pelas políticas modernizadoras tem sido sempre acompanhada pela criação de sustentam e legiti mam o poder das eli tes têm sido apropriadas e refuncional i-
diferenças emergentes, que reprod uzem e incl usive aprofundam as dist inções zadas pelos gru pos subalternos em suas negociações e confl itos com tai s eli -
en tre a elite e o restO da população . A segunda: a modernização sempre se tes. Se as elites modernizadoras basearam seu poder na hegemonia das con-
concebe a si mesma como um processo inconcluso e intermináve l, pois sem- cepções oc identais de política, cidada nia e cul tura, os grupos subalte rn os
pre haverá um elemento nas sociedades nacionais que seja oposto ao progres- participara m na vida política nacional, aceitando, questionando e redefinin -
so e à integração nacional, sempre haverá um reduto de trad ic ionalismo e do estas concepções hegemônicas. C rer q ue a modernid ade foi monopó lio
diferença que se nega a disso lver- se . E, se não existisse tal reduto, os moder- das elites se ri a aceitar acriricame n te as co nstruções id eológicas com que es-
nizadores se encarrega riam de inventá-lo por meio da criação, oculta e fe- tas legitimaram seu poder.
cu nda, de diferenças emergentes. Por isso, também é insuficiente explicar as rebeliões ameríndias do sé -
Foi assim que a imposição dos critérios universa listas de igualdade tem cu lo XIX no Méx ico e do séc ul o XX no Peru e na Guatema la ou os movime n-
significado, em muitOs casos, a excl usão e a perseguição dos q ue não corres- tos polílicos dos afro-amer icanos da abolição do escravismo em diante a par-
pondem "adequadamenLe " a ap rofundando as des igualdades que exis- tir da projeção das diferenças primordiais dos grupos envo lvi.dos, atribuindo-
ri am nas sociedades americanas. lhes uma vontade de continu idade tradicionalista, q ue seria refratária , ou in-
Esta complexa dialética marcou também os processos de reprodução e clusive contrapos ta, às prelensões modernizadoras das e lites. Por outro lado,
recrutamento das próprias elites modernizadoras. Pode -se afirmar, de manei- devemos partir da premissa de que os grupos subalternos, ameríndios, afro-
ra geral, que os gr upos governantes da maior ia dos Estados-nações america- americanos, de origem europé ia ou outras, se modernizaram e reinventaram
nos têm sido compostos pelos descendentes e sucessores Jos imigrantes euro - suas identidades, gera ndo diferenças emergentes frente às eli tes dominantes. 17
peus que gozava m de uma posição privilegiada dentro dos regimes coloniais e Em suma, a construção das nações americanas está longe de ser um
que, por i.sso, procuraram manter e consolidar estes privilégios no interior das enfrentame nro simples e li nea r entre a modernidade homogenei.zante e a
nações independentes. Entreta ll to, as exceções do Hai ti e dos Estados-na-
ções do Caribe sallam à vista.
16 MATI"OSO, Káti:\. Sl'r c;cr,II'Olln Br.1sil. São Pnul,,: Brasi licnsc, 1982.
Ademais, tentar I.!xplicar as elites nacionais moderni:adoras unicamente ,7 DI 'RE, Saur3bh. Inrrrxlllcción : CucHlone, acerca Je I11l'dernidadcs cnlonialcs . In: OUBE, Saurabh;
a parti r de sua origem colonial seria cair na mesma visão reducionista das Mlm,OLo, O.: Dl'IlE. bhil:l B.1nt'rjee (cnords.). Afr"lernid.1Jcs m/oniales. México: EI Colcgio
dc MéxlCt), 2004 p. 1.3 -48 .
diferenç as primordiais aue cri ti c;-lll1l1s. As elites mnJern izadnras também se

103
10
A invenção da etnicidade nos estados-nações americanos nos seculos XIX e XX - Feder/co Navarrele XXIV SimpÓSIO NaCional de História da ANPUH - A História e seus terntórios

diversid ad e primordial, tradicional c passiva. Tem sido uma sucessão de co n- 1) O período das nações estamentnis
fl itos e negociações po líticas e ideológicas ao redor da definição das iJeologias
Depois da independência , quase todas as na ções americanas que ti-
hegemônic as e da modernidade e, tam bém, em tomo da d efinição d a própria
n ham importantes populações ameríndias o u afro-americanas mant iver<lm as-
nação . Destes processos têm participado os di fe renres gr upos que integram as
pectos-chave das re lações interétn icas qu e hav iam imperado durante sua
sociedades amer icanas, ranco dominantes como subalternos, os qua is se re -
etapa colo n iód, partic ularmente as formas de c lassificação e Jiscriminaç:io
d efinem constantemente a partir deles .
ljuc permitia m 8 supcrexploração dos indígenas e escravos.
No primeiro caso, os pa íses andinos (Peru, Bolívia e Equador) e tam-
Uma nova periodização bé m J G uatema la man tivermTl um regime de tri buwção especia l para a popu -
lação ind ígena. É bem conhec ido q ue Simón Bolívar tentou eli minar o rribu-
A partir destas idéias, apresenrarei a segu ir uma proposta de pe ri odiza-
ro in dígena no Peru, mas (kscobriu m uito rapidamente que era :1 principal
ção geral das re lações entre Estados -nações e grupos étnicos, que se pod e
fonte de ingressos fisca is do Escado e se viu obrigado a restaurá-lo. A man u-
aplica r às nações americanas que se rornaram jndependeiltes nos séculos XVIII
tenção destes tributos implicou a contin uid ade das dis rinções entre as anti -
e XIX. O s períodos que proponho n ão são etapas necessárias qu e foram segu i-
gas c astas co loniais e, portanto, uma contra d ição fl agrante com qua lquer
d as por todos os Estados-nações, nem ITlarCam uma in tegração progressiva dos
concepção u niversa l e igua li tária de c idadan iJ . 'B
grupos étn icos nas comunidades n acionais ; assinalam, na verdade , muJ anças
Em segu ida, es [e regime de disc riminação e exploração enfrenCLlu a
na maneira como foram uefinídos tamo a nação como os grupos étnicos bem
resistênc ia das populações ind ígenas e também de setores 1110dernizadores
co mo as descon tinu idades nas re lações inrerémicas. Este exercício de perio -
das elites, que o consideravam um obstác ulo ao progresso nacional , não ape -
dização é uma h ipótese de trabalho e como tal está aberta a ajustes e corre -
nas por razões ele princípios, mas porque se baseava na manu renção da unida-
ções. A iuéia é que sirva para comparar os processos h istóricos de cada país,
de entre os ind ígenas e suas terras e imped ia, assim, a apropriação direta
ressaltando suas semelhanças e d iferenças. Por OU trO lado, n ão pretende, d e
desra pe las estâncias e a exploração di reta dos indígenas como mão-de-obra.
n en h uma maneira, abarcar e exp licar to d os os aspectos das h istó rias d as
No segundo caso, Estados U n idos, Brasil e Cuba (que ainda não era
nações ame ricanas, mas unicamente os que se vin cu lam com as re lações
independente) mantive ram a escravidão dos africanos e afro -americanos como
interétn icas, ainda q ue també m espere mostr;lr q uão centrais estas (êm sido
lI m3 instituição-chave para o func io namenro de suas economias. Este esc ra-
para a evolução po lítica e social de nossos países.
vismo d o sécu lo XIX não foí uma sobrevivência anacrônica do período ante -
Proponho a existência de quatTO grandes per íodos para as relações in -
rior, mas uma expansão em rodos os aspecros: o n úmero de escravos au mento u
teré tnicas dentro dos Estados-nações americanos independentes, q uatro pe -
em C uba e nos EUA; o tráfico para Cuba e Brasil foi incrementado; a área
ríodos que eSlão d ivididos por épocas de crises, freqüentemente violentas.
geográfica e os tipos de atividades q ue empregavam;) mão-de -obra escrélva
Esses per ío dos são:
nos três países expandím m- sc .19
1) O das nações estamentais (da independência à segunda metade do
Em todos os casos. a cOOlinu ação e expansão do escravismo significa-
sécu lo XIX);
ram um crescente contli to po lítico, canto com a pop ulação escrava e os gru -
2) O d as repú blicas liberais discriminatórias (d o sécu lo XIX à primeira
metade do XX);
J) O das repúblicas integradoras (da pri meira metade ao final d o sécu-
IS B ONILLiI. Heraclio. Estrllctura y :miclIlación rolírica de las cumunidades indígenas de los Andes
lo XX) ; Cemralcs con SllS e,;t .l dos nacionales. I n: REJi'l A. Leticia (c:J.) . Lu rt'Ír/,lianl=acúín Je América: Siglo
4) O dos regimes multiculturais (do fi na l do sécu lo XX aos dias Je XIX. Méxlcu: Sigln XX I EJirnre,. 1997. pro93- 108.
1° Dr'CtER . Corl N. Neirher Black nor lX'hirc: SI,1\'cry onJ Racc Relatium in Rrazi l and t he UnilcJ
hoje) .
Starcs. Madlson: Unl\·crsit\' nf Wisconsin Press. 1986; BI VA R M ARQlII-;3E. Rafae l Je . l-êicort"s do corpo,
missionários Jilm<'/lCe: t' o cunrrole dos escravos na, Américas, 1660· 1860.55<>
Paulo. Companhio das Letras, ZOOo{ .

104 105
A invenção da etnicldade nos estados·nações americanos nos séculos XIX e XX - Fedenco Navarrele XXIV Simpósio NaCional de História da ANPU H - A História e seus territÓriOS

pos de afro-americanos libertos como emre as elites govemames, pois alguns O caso do México merece ser mencionado em primeiro lugar porque
setores o criticavam como uma instituição que impedia o verdadeiro progres- foi o único país com uma pop ul ação ameríndia e afro-americana significativa
so de seus países. O movimento abolicionista foi ganhando força e se tornou que não passou pela etapa eSlameotal, mas procl amou, desde sua inde pen-
um adversário sign ificativo da ordem estabelecida."o dência, a igualdade universa l, ainda que os princípios liberais tenham demo-
O fina l das nações estamenrais, na segunda metade Jo século XIX, rado mais de 50 anos para impor- se. Desde meados do século XIX, implanta-
esteve marcado por insurreições na Guatema la, Cuba e Eq uador, por uma ram-se políticas e reformas legais que tendiam a destr uir a propriedade indi-
sangrenta guerra civil nos Estados Unidos e por uma mudança de regime ge na com unitária e provoca ram um longo e violento ciclo de insurreições
político no Brasi l. camponesas, que terminaria apenas no século XX .lI Igualmente, empreende -
ram-se campanhas vio lentas para submeter os índios "bravos" do norte do
o período das repúblicas liberais discriminatórias país e os rebe ldes da pen ínsula de Iu catã . Mas as políticas de embranqueci-
menta por meio da imigração européia fracassara m, e o país não conseguiu
Estes regimes se caracterizavam pela adoção do princípio liberal da
seu desejado "c1areamento" popu lac iona l.
igua ldade universal dos cidadãos, mas ao mesmo tempo pela implantação de
A partir de 1870, o triunfan te regime libera l na Guatemala implantou
formas de exclusão e discriminação que privavam amp los setOres de sua po -
políticas similares, mas ainda mais radicais. Para começar, despojou as comu-
pulação da cidadan ia ou impediam seu exercício pleno.
nidades indígenas de suas melhores terras c depois insta urou o trabalho fo r-
Ao mesmo tem po, os mandatários desses regimes realizaram campa-
çado dos indígenas nas fozendas exportadoras que se institu íram nessas mes-
nh as militares para su bmeter e despojar de suas terras as sociedades amerín-
mas terras, muitas de las propriedade de imigrantes europeus recém-chega-
dias independe n tes, q ue viviam além das frome iras de controle efetivo dos
dosY Ainda que estas polít icas pareçam contradizer os princípios liberais de
governos dos Estados-nações. Igua lme nte, implantaram reformas legais para
igualdade universa l, são , na rea lidade , uma manifes tação part icularmen te
dissolver as for mas de propriedade comunitária dos indígenas e dos ex-escra-
explícita das dim ensões discriminatórias e excludentes do liberalismo ameri-
vos e buscaram formas de explorar diretamente a mão -de -obra desses grupos
cano e de sua ca pacidade de gerar d ife renças e segregar os setores subalter-
nos nascentes sewres da agricu ltura, mineração e indúsuia de exportação .
nos. Por isso, sua diferença com os oUlros regimes liberais é de grau e não de
Também adotaram o "embranquecimento" de suas nélções como objeti-
q ualidade .
vo central de suas políticas de modernização, fomentando a imigração euro -
Nas repúblicas andinas, os regimes li berais man tive ram práticas políti-
péia com a esperanç.a de consegui r a dissolução ou o deslocamen to dos gru -
cas q ue excluíam efetivamente da cidadania as maiorias indígenas por meio
pos não -brancos.
de mecanismos sen horiais de contro le po lítico, como o "gamonalismo" perua-
Estes regimes ge raram novas for mas de integração de se us países ao
no. 13 Isto impediu que neste país se liberasse a mão -de -ob ra indígena para o
mercado mund ial em expansão, principalmente como exportadores de prod u-
desenvo lvimento da economia de exportação, o que fac ili to u a importação
tos agrícolas e minerais, no caso dos países latino- americanos, e també m como
de traba lhadores da C hina e do Ja pão em fins do século XIX.
produwres industriais, no caso dos Es tados Un idos e, incipiente mente, de
alguns outros países.
Em cada um destes terrenos, os regimes liber3is acompanhawm a im -
pos ição dos princípios explícitos de igua ldade li bera l, com urna série de práti- K,... Tl , Friedrich . Las rebelioncs rurale, en el México precoHesiano \' colo ni,lL In: id o(cd.l. Rel'uelm,
cas, formais e informais, que geraram diferenças emerge ntes e afetaram seri - rcbeliôn )' rt'\'olllt:ión: la luçha nlr,,1 en el México dei XV I RI slglo XX . México: Editorial Era, 1990.
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XXIV SimpÓSIO NaCional de HistÓria da ANPUH - A História e seus terntórios
A Invenção da etnicidade nos estados-nações americanos nos séculos XIX e XX - Fedenco Navarrete

regime de relações il1lerémicas, fazendo com que o vazio de poder resultan te


A Primeira República bras ile ira compartilha mu itos rraços com estes prOV(lCaSSe guerras civis brlHais. Na Guatem3la, o governo nacionalista de
regimes liberais, tamo pelo fomemo, com muito mais êxito, da imigração eu- Arbenz aboliu as lets de trabalho fo rçado dos indígenas em 1945, mas foi
ropéia quanto pelas de exclusã.o que implantou na relação com os ex- derrotado por uma cOnLra,revolução mililar que abortou n processo de forma -
escravos e os indíge nas e pelas campanhas de expamão de suas fromeiras a ção de um regime integrador, o q ue conduziu a uma guerra civil que duraria
expensas das populações indígenas independentes. mais de 30 anos"ó. A lgo parecido acomece u em EI Salvador, a partir da rebe-
O mesmo se pode dizer dos Estados Unidos da Reconstrução, que subs- lião Je 193 1 e sua brutal repressão. Ig ualmente, no Peru, na década de 1960,
riruíram O escravismo por novas fo rmas de segregação dos afro-americanos e cobpsaram o regime liberal e suas práticas de segregação e dOrTÚnio senhorial
consumaram a "Conquista do Oeste" para povoar seus vaslOs territórios com da popu lação indígena; no entanto, os governos militares pop ulistas da época
li ma grande massa de imigranres e uropeus, ch ineses e mexicanos . não conseguirnm consolidar um regime integrador, e o vazio político resultan -
Na segunda mecadc do sécu lo XIX, o auge do darwinismo social e da te levaria ao surgimento do Sendero l uminoso ZOe anos depois."?
ciência racial de u um novo \"iés às iueologias e práticas Jisc riminarórias nos Nos Est<tdos Unidos, por sua vez, o movimenlO de direitos civis dos
btados-nações americanos. A hete rogeneidade da popu lação foi concebida anos 50 e 60 provocou o fim do regime liberal d iscriminatório e conduziu
como um problema biológico-rac ial 4ue Jevia ser resolvido comas novas téc- direlameI1lc ao surgimento de um regime multicu ltura l.
nicas do biopode r, Lal como o defin iu Foucaul t: cOlllrole da população, enge-
nharia racial, higie nismo, insLi ruições disciplin ares e educação da s massas.14 3) O período das repúblicas integradoras
Em alguns países, como os Estados Unidos e a G uate mala, exa llou -se a busca
da pureza e se aprofu ndou a segregação como cami n ho para superar estes Os regimes integradores do sécu lo XX construíram definiÇlcs novas de
problemas. identidade naciona l, que permitiram a invenção e formação dc novas maio -
Em outros, como o Brasil e o México, propôs-se q ue a mist ura racia l era ri,lS n:.lc ionais . Estas ident id ades se baseavam em ideologias raciais in legra-
a solução e que as raças híbridas resu ltantes reuniriam lodas as virt udes da doras q ue glorificava m ;1 mestiçage m, ou a incegração naciona l, e também
raça branca, da negra e da indígena, respectivamente . Nestas ideologias da incorporava m elementos estrmégicos das identidades étnicas dos grupos su -
mest içagem, porém, o papel dominante correspond ia sempre à raça branca, ba lternos (com o () passado pré -h ispân ico e o folc lore indígena no México, o
considerada co mo a mais evoluída.'5 samba e as religiôes afro -ame rica nas no Brasil e o ga uchismo na Argentina) .
Assim, permitiram que estes setores e grupos anteri(lrmen le discrimi nados
Em vários pa íses da América, os regimes liberais d iscriminatórios ter-
pudesse m ser incorporados às novas ma iorias naciona is e se considerassem
minaram em viole ntas crises. No México, a grande Revoluçao de 1910 fe-
pa rtes delas. 28
chou o ciclo de rebe liões camponesas e ind ígenas q ue hav iam enfre ntado por
Deve-se assinalar que enq uanto no Méxicn, Brasil e Argentina estas
sete décadas as políticas liberais de despojo de te rras.
identidades integradoras se defin iram a partir do ESlado, no Peru co ube à
No Brasil , o Estado Novo dos anos 1930 Lermin ou com a pr imeira repú-
esq uerda revnlucion,lria construí-Ias ao redo r da idealização do passado in -
bl ica libera l e esrabt: lece u um regime de tipo integrador. O peronisl11o argen-
caico e da utopia da revolução indígen<l e campnnesa .19
tino pode ser interpretado nesta mesma di reção.
Em outros países da América, os regimes libera is entraram em colapso
na segunda merade do século XX, mas não foram substit uídos por um novo
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1 08
A Inve nção da etnicidade nos estados·nações americanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrele XXIV Simpósio Nacional de História da AN PUH - A História e seus territórtos

Ao mesmo tempo, o crescente poder po lítico, econômico e administra - Os regimes integradores entraram em crise nas últimas décadas do
tivo destes Estados lhes permitiu implantar políticas muito mais eficazes para século XX por razões múltiplas. Uma delas foi o surgime n to dos novos movi -
impor sua nova definição de ide ncidade nacional e pa ra dirigir e acelerar a menros sociais feministas , estudam is, de minorias sexuais e de esquerda radi-
mudança clJ ltural dos grupos diferentes. O indigenismo mexicano e sua po lí- ca l. Também os afro -americanos, os amerlndios e alguns grupos de imigrantes
tica científica de mudança cultura l dirigida por ancropólogos c insri tucio- cen u aram sua lu ta na reivindicação de suas identidades étn icas e culturais.
nalizada no Instituto Nacional Indigenista são o exemplo m,lis claro. lO Da mes- Estes novos ato res políticos se inspiraram, em pa rre, !lOS mov imentos
ma maneira, o desenvolvimento dos sistemas educativos nac ionais c dos meios anticolonialistas da Ásia e África e no movimenro de diretos civis dos Estados
de comunicação de massa permitiram que a cultura das mJioriJs fosse influen- nidos. O s regi mes integradores n ão foram capazes de incorporar estas rei-
Ciada de maneira muito ma is profunda pelo Estado . vindicações às definições raciais e organicistas da nação e, por isso, não pu-
Estas novas políticas de incegração foram acompanhadas por políticas deram enfre ntá-los com suas ferrame ntas políticas e técnicas tradicionais.
econômicas desenvolvimentistas , q ue conseguiram manter altas taxas de cres- Ao mesmo tempo, os Es tados fo rtes que haviam "brilhado" como cen-
cimeDro econômico durame períodos prolongados e o nlve\ Je vida de tro dos reg imes integradores começaram a desmorona r. Por um lado, não pu-
amplos setores da população, ainda que também tenham aprofundado a mar- deram processa r as divergências políticas e caíram nu m autoritar ismo auto -
ginalização dos setores q ue ficara m, ou se mantiveram delibe radamen te, fo ra destr utivo. Po r ou tro, perderam a capacidade para di rigir e impulsio nar o
do pwcesso de integração. desenvolvime nto autônomo de seus países, e as pro(undas crises econômicas
Os regimes in tegradores defi niam a ide nt id ade nacional em termos do fim do século termin aram por destr uir sua legitimidade.
raciais e buscavam a homogeneidade por meio de po líticas e práticas que
confund iam a integração cu ltural co m a mistura racial. De aco rdo com as 4) O período dos regimes mult ic ult urais
ideologias da epoca, concebiam a nação como um ente biológico cuja saúde Na atu alidade, a maioria dos ra lses americanos tem transitado ou está
era impresc indíve l manter; por isso, os grupos e as práticas culturais que não transitando em direção à constituição de regimes mu ltic ulturais. Este novo
se juntaram a seu projeto integrador-desenvolvimentista fora m definidos como arad igma pa ra as relações incerétnicas p:1 n e da premissa de que as diferen-
organismos patogênicos e externos ao corpo nacional. Os diferenLes - sejam ças culturais e étnicas entre os grupos que const ituem 3S nações são realida-
indígenas recalci trances, afro -americanos atrasados, imigra lHes refratários -
Jes essenc iais e inquestionáveis e que os siste mas políticos devem refle ti-las
foram conslder:.1dos degenerados, ano- hIgiên icos e impuros. e preservá- Ias .
Por outro lado, esses Estados criaram um marco de institu ições polít i- As comunidades políticas formalmenre iguali tárias dos regimes liberais
cas, de viés corporativo, para processar os conflitos sociais entre atores políti- e as nações orgânicas dos regimes integradores fo ram substituídas por conglo -
cos definidos em termos de classe: operários, camponeses, militares e empre- merados de grupos diferen tes, artic ul ados geralmente sob a forma de uma
sários. Esse marco excluía, por definição, as qucstôes maioria dominante frente a uma ali mais min orias subalternas . O papel do
Desta mane ira, as diferenças c ulturais foram bio logizadas e defi nidas
Es tado nestes regimes é garant ir os d ireitos das minorias, sem, com isso, colo-
como um problema técnico, e não po lítico, q ue devia ser resolvido pel o Esta- car em perig0 a hegemon ia da maioria.
do por meio de ferrame ntas ciemíficas e clínicas. Tais concepções não est50 Paralelamente , o Estado deve se enc arrega r de ob ter a integração ma is
mu ito distanLes do que Mark Ma:ower de fini u como "Es tado de be m-estar
eficiente poss ível da economi a nac ional à economia globa l, garantindo o li-
racia l", que imperou na Europa do En tregue rras e fo i co mpanilhado pelos vre flu xo de capital e de mercadorias, a docilidade ua força de trabal ho e as
regimes fascistas, com unistas e liberais J a época. ll melhores condições possíveis para o investimento do capi tal em seu território.
Por isso, como propõe Slavoj Zizek, o limite inegociável que se impõe às
JJ SARlEHO RODRiGUU, j lIol11 Luis, EI uldigeni.ml\' c"n la hlJ':illUnlJr.l: idemiLlad. C0l11urudad. rd,lCi. lnes mterémk:h minorias num regime multicu ltural é não colocar em risco a lógica da acumu-
y cn la Sleml de Chihuahu:l. México: lnsriruto N:1ciona l lnJlgenism·Il'A I-!. 2002 . lação do capi tal. Os grupos difere ntes pode m expressar suas di ferenças no
li MAZO\VER. Mark. DJrk Contlllcllt: Emore's 1\wnticth Ccnrur)'. Nc\\' Ynrk: Vinwge Books. 2000.

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A invenção da etmcldade nos estados-nações amencanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrete XXIV Simpósio Nacional de História da ANP UH - A História e seus territórios

terreno c ul(Ural, e inclusive político, mas [OdO$ devem sub me ter-se às leis do Nos C1 lü mos 20 anos, este parad igma se eSlendeu a outros países da
mercado e às condições impostas pelo capita l globa l. 1" América. No caso da Nicarágua, Equador, Colômbia e México, também foi
Dentro desta lógica, os Estados-naçóes renunciaram às atribu ições q ue uma resposta do Estado e das eli tes ao surgim ento dos movimentos políticos
eles próprios haviam cons tru ído em etapas an te riores c não concebem mais as ameríndios e afro -americanos, buscando sempre enquadrar as demandas por
di ferenças como um problema po lítico ou técnico a ser sol ucionado. Por isso, mudanças no terre no elas reivind icações minoritárias.
co n trib uíram para que as redes mundiais de comércio e de migr<Jção incorpo- Porém, como acon teceu com os regimes de re lações in teré tnicas ante-
rem os diversos grupos de suas popu lações, abrindo as últimas frontei ras co- riores, os grupos subalternos ou as minorias, segundo a linguagem mu lticu lru -
merciais, territoriais, biológicas e genôm icas ao despojo em benefício da acu- ra l, têm enfrentado e resistido ativamente à imposição deste novo sistema,
m ulação do capital. O resultado fo i uma situação q ue Héc[Or Díaz-Polanco particu larmente no ponto-chave da expansão da fronte ir a do despojo e a
define como ecnofagia, na qua l a divers idade cu llLlra l é deixada à mercê do subordinação subseqüente das "novas" regiões e grupos ao sistema capitalista
mercado e do sistema capitalista globa l, para que estas forças minem suas mundi al. Os movimentos ameríndios têm defendido concepções de autono-
bases e a refuncional izem em seu próprio benefício.H . mia cultu ral e territorial que implicariam colocar travas efetivas ao capi.ta l,
Por isso, nos regimes multiculturais, as diferenças élllicas se tornam criando espaços onde a lógica de sua acu mulação poueria estar su bordinada
uma oportun idade mercantil: os diferen tes grupos são redefinidos como ni- a va lores e práticas cu lt urais difere ntes. No entanto, os governos n50 têm
chos de mercado e seus costumes e va lores são rcíuncionalizados como práti- reconhecido estas pre tensões ele a utonomia e propõe m outras formas, mu ito
cas diferentes de consumo. Ao mesmo tempo, as característ icas culturais mais mais limitadas, as q uais, longe de ass inalar limites para a lógica de acumu la-
chamativas dos ameríndios, afro-amer icanos e imigrantes de codas as or ige ns ção capitalista, permitem legit imá -l a e estendê -I a. Entre as mani festações
são transformadas em mercauorias q ue satisfa zem o apeüte globa l pelo exotis- deste enfrenta mcnlO se encontram as uisp utas sobre as definições de territo -
mo ou as nostalgias da nelV age. Estas diferenças emergentes são func ionais rialidade e o controle dos recursos naturais, sobre o reconhecimento da pro-
para o sistema enqua nto legitima m e confirmam a supre macia do mercado e priedade intelectual tradiciona l e a biopi rara ria e sobre o estabelecimemo de
SU<1S leis. rese rvas ecológicas n as zonas de assentamento de grupos ameríndios e afro -
Este novo regime começou a se formar nos Es lados U n idos na década americanos .
de 1960, quando o Estauo incorporou legalmeme as principais demandas do
movimento de direitos civ is elos afro -americanos e, por sua vez, evitou que
As possibilidades da invenção
este chegasse a subve ner a ordem social. O resultado fo i o eSlabeleci me nto
de um sistema que mantinha a segregnção lrad icional entre os grupos étnicos Espero que estas reflexões tenham permitido ver a maneira comp lexa e
(ddi ni dos sempre em termos mciais, como branco, negro, indígena e hispa- mutáve l pe la qu al as diferenças étn ic as têm sido construídas e mod ificadas
no), mas criava mecanismos para repartir melhor entre eles as opon unidaJes ao longo da história nos pa íses americanos. Estes processos são, se m dúvida,
econômicas e educativas, os contratos govername ntais e os se rv iços es tatais mui w mais complexos q ue o esboço apresentado neste texto. Interessava- me
de bem -esta r. Nos anos 1970, o Canadá adorou um regime parec ido para apenas mostrar o q ue co nsidero suas li nhas principais para refl etir sobre a
acomodar o eme rgente naciona lismo dos franco-falames de Q uebe c e os natu reza das catego rias e das identidades étnicas.
movimentos ameríndios, batizando -o c,)mo mu lticu llura l. 14 En(aLizar o fato de qu e as etnicidades são inventauas sigmfica reco -
nhecer os modos pelos quais fora m criadas e mod ificadas e também a maneira
como as reproduzi mos em nosso prese nte. Significa também mostrar os meca -
j) p. 137-188. nismos de do minação, despojo e exploração que as constr uíram e uti lizaram,
J) OrAl POI.ANCO, Ht.'ctor. EI"gl<' de I.) </"w.,,JaJ: gloha li:;]ci,\n. multiculruraliJ3J)" I'tno(Jgi;l. México:
Sigl0 XXI Editores , 2006.
mas, també m, a ma neira pela qua l as identidades étnicas servira m para sus-
j, K)'!vIUCf.:.", \ViiI. CiuJuJ:lIlí.1/J1ulriclJ/rura/, ulla te<1rí3 Iil'<:rJI de 10S dercch", de bs llllnorias. Fbrccl nnJ: tentar as lutas c as negociações dos gru pos suba lternos . Significa, fin almente,
P,lIJós, 1996. (P:liuús, E,wd", y SocieJ:lcl) .

1 12 113
A inyenção da etnicidade nos estados-nações americanos nos séculos XIX e XX - Federico Navarrete

recordar que as reinventamos uma e outra vez e que as podemos reinventar


c riativamente para construir novas formas de conviver.
Nossas sociedades tê m fa lado, durante os ú ltimos 200 anos, duas lin-
guagens políticas que se concebem como contraditórias e incompatíveis: a da
oTEMPO, OVENTO, OEVENTO: HISTÓRIA,
igualdade e a da diferença. Talvez, no séc ulo XXI, seja o momento de buscar ESPAÇOS EDESLOCAMENTOS NAS NARRATIVAS
a manei ra de traduzi-las entre si, de modo q ue a riqueza cu ltura l e humana
contida na pluralidade cultura l não seja a base da discriminação e margina- DE FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
lização e q ue o reconhecimento da diversidade não se torne um pre texto para
deixat de buscar a eqüidade e a justiça. Ourval Muniz de Albuquerque ]únior*

Anres de começar o "3mbicioso '/ projeto, eu precisava venccr muicas resistêllcias


inrcriores, a maior delas originada nos meus tempos de escola primána e ginásio.
Paril o menino e para o adolescente - ambos de certo modo sempre prescnces no
inconsciente do adulto -, o poético, o pitoteSCo c o novelesco erflm aeribufOs que
raramente ou nunca se ("ncon( ravam em pessoas, paisagens c coisas do âmbito naci-
onal e muico mC"llos regional e ainda menD.S municipal. Nossos livros escolares - feios,
mill impressos em papel amarelo e áspero - nunca nos fizeram amar ou admirar o &0
Grande e sua gt:l1te. Rel!tgidos em estilo pobre e incolor de relatório muniCipal, eles
apn:senr;wam a história de nosso esmdo como uma si/cessã() de baralhas entre tropas
brasileJras e Glstclhanas. (Gallhávamos todas.) . Nussos pró-homens pouco mais eram
que nomes expreSSIVOS, l/ehaixo de clichês ,1pagados, em geral de retículas
sisudos generais, quase sempre de longas costeletas, mcridos cm uniform es cheios lle
abmares c condecorações; ('sradistas de cara severa especados em colarinhos altos e
(,1l!Jomados . Parece incríl'el, mas só depois de adu/m é que vim iI descobrir que
Rafael Pinto Rmdeira - que emllOSSOS !iI'roS escolares aparecia, num reemw linear
a bico-de-pena, como um sujeito gordo, de ar suíno, bif!odes de mandarim , tendo /la
caheça U/JJ ridículo chapéu hicorne com um penacho - era na realidade um miIífico
avt'nwreiro, cujas fáçanhas guerreiras l' amorosas nada a dCI' Cf em hriJllO,
audácia e colorido ;}s do:, mais fammos l'spadachins da tlcÇclO universal. Concluí
então que a vt:'fdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais \'iwl e bela quc' ;1
sUlllllimlogia. E, quallfo mais eXéll1lÍllllva a J/{hsa história, mais cOIlI'encido ficm-a da
necessidade de desmiti/Í"d-Ia.'
Ass im Érico Vcríssimo explic a em sua autobiografia a decisão de escre -
ver O Tempo e o Vento, de escrever na forma de roma nce, através da n arra-

*l ·niver>tJ.lde Federal do RIO Gr:lI1Je do Norre.


, V ERb, IMO, Érico. Solo de c1Jrllll'(iI: nlcmôrias. 20. "J. São C'mp;onh,a das Lerras, 2005 . v. I, p.
264-265.

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