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Missão de Deus
Reconstruindo missão
na América Latina
M iguel A lvarez
(editor)
Tradução
Luís M arcos Sander
G eraldo K om dörfer
Ed ito ra
SlNODAL
3 t> I yam uel iüscobax
41 Dados extraídos de PATE, Larry. From Every People: A Handbook o f Two-Thirds World
Missions with Directory/Histories/Analysis. Monrovia, CA: MARC, 1989.
42 LIMPIC, Ted. Catálogo de organizaciones misioneras ibero-americanas. Miami, FL: 1 RIVERA, Luis N. A Violent Evangelism: The Political and Religious Conquest o f the
COMIBAM-Unilit, 1997. p. 171. Americas. Louisville, KY: Westminster/John Knox, 1992. p. 21-22.
os pobres, leve a sério o contexto de sofrimento deles e parta de suas culturas Componentes
marginalizadas. A conscientização e uma nova inculturação do evangelho são
necessárias porque No contexto de ditaduras militares na América Latina, manifestações
pelos direitos civis nos Estados Unidos e declarações de independência de
[...] a evangelização que ocorreu aqui implicava a transposição das institui potências coloniais na África e na Ásia, o Espírito soprou de uma maneira
ções, símbolos, conceitos e hábitos morais da cultura cristã europeia para nova sobre a igreja no mundo modemo. Um dos frutos do Concílio Vatica
um novo continente. De modo geral, não houve um encontro entre a fé e a no II (1962-1965) foi a 2a Conferência do Episcopado Latino-Americano u n
realidade nativa, entre o evangelho e as culturas autóctones, que teria per Medellín, Colômbia (1968). O avanço ocorrido em Medellín foi reforçado
mitido o surgimento de uma expressão cristã tipicamente nossa2. em Puebla, México (1979). Como resultado da “opção preferencial pelos po
bres”, teólogos como, por exemplo, Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Ri-
O estabelecimento do protestantismo em um continente colonizado por chard Shaull, Rubem Alves e George Pixley começaram a orientar os pobres
países católicos romanos não foi fácil. Foi só em meados do século XIX que em uma nova caminhada bíblica “a partir de baixo”.
missionários dos Estados Unidos e da Europa começaram a distribuir Bíblias Consequentemente, o primeiro componente da missiologia latino-ame
e a implantar igrejas, escolas e hospitais. O puritanismo, o pietismo, o Grande ricana é “libertação” com “os pés no chão” imersos no “contexto” histórico-
Despertar, o Destino Manifesto e a Era do Império influenciaram os esforços -cultural. A teologia da libertação nasceu na América Latina como uma teolo
missionários. Como no caso das missões católicas, a imposição, a dominação, gia contextuai da missão que partia de uma análise do contexto socioeconômi-
a dependência, o imperialismo e paternalismo obstruíram o respeito pelas po co de pobreza e injustiça e insistia que a evangelização não poderia ocorrer em
pulações indígenas originais, descendentes de escravos africanos e ibero-ame um vácuo separado da consciência e justiça social. A missão precisa descobrir
ricanos católicos bem como as contribuições deles. A missão foi uma mescla e enfrentar as causas básicas da pobreza. Esses teólogos usavam linguagem
de elementos positivos e negativos. Apesar das atitudes e práticas colonialis política para expressar duas dimensões complementares da missão: transfor
tas, muito bem foi feito e sementes do evangelho e igrejas foram implantadas. mação pessoal e transformação social. Pessoas católicas e protestantes4 da
Um momento divisor de águas veio com o Congresso Evangélico Hispa América Latina empregaram essa nova chave hermenêutica. Eles e elas ob
no-Americano do Norte realizado em 1929 em Havana, Cuba. Em aguda contra servam as realidades dolorosas do contexto e então escutam o texto bíblico e
posição ao congresso ocorrido no Panamá em 1916, que só tinha 21 participantes refletem crítica e pastoralmente sobre ele.
latino-americanos nativos, o Congresso de Havana foi planejado e conduzido Na área da educação, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire também
por latino-americanos que se encontraram com parceiros norte-americanos para enfatizou a importância de começar com o contexto histórico-cultural e acres
buscar uma missão cooperativa. Samuel Silva Gotay descreveu o evento como centou um segundo componente: diálogo - um novo ponto de partida pedagó
uma irrupção histórica significativa “dos latino-americanos no mundo missioná gico e missiológico. Em um relacionamento dialógico horizontal, educadores
rio evangélico como agentes que se apropriaram do espaço teológico, político e e educandos são, todos eles e todas elas, sujeitos com participação democrá
cultural que lhes correspondia”. Para Gotay, esse foi “o grito de nascimento da tica criativa e reflexiva no processo. As pessoas que estão sendo “educadas”
nova geração do protestantismo evangélico na América Latina”3. e as que estão sendo “evangelizadas” são sujeitos ativos, agentes, e nunca
A geração seguinte foi além da desconstrução e passou à (re)constru- simplesmente objetos a serem “preenchidos”, manipulados ou dominados. Os
ção de uma missiologia latino-americana contextuai. Este capítulo apresenta educandos devem ser “investigadores críticos, em diálogo com o educador,
componentes importantes e as contribuições de quatro latino-americanos para investigador crítico também”. Para Freire, a educação dialógica é uma práxis
esse processo.
mutuamente libertadora de “reflexão e ação dos seres humanos sobre o mundo
para transformá-lo”5.
mim, é um erítome da missão integral10 é o equatoriano C. René Padilla, que propósito aqui e agora, ‘entre os tempos’”13. A igreja é “a comunidade do Rei
reside na Argentina, na Comunidade Kairós. no [...] Ela não deve ser equiparada ao Reino, mas tampouco deve ser separada
No Congresso Internacional de Lausanne sobre Evangelização Mundial dele”. Ele continua dizendo: “A igreja é [...] a manifestação concreta do reino
em 1974, Padilla e o peruano Samuel Escobar, ambos batistas, defenderam de de Deus [...] e ela deve ser vista no contexto do propósito universal de Deus
modo convincente a missão integral nas palestras que fizeram ao plenário. Pa em Cristo”. E conclui afirmando que “a evangelização e a responsabilida
dilla era vice-secretário para a América Latina da Comunidade Internacional de de social são inseparáveis”, mas distintas, como as duas asas de um pássaro.
Estudantes Evangélicos [IFES, na sigla em inglês] e Escobar era secretário da Contanto que ambas “sejam consideradas essenciais para a missão, não preci
InterVarsity Christian Fellowship do Canadá. Ambos criticavam abertamente o samos de uma regra prática que nos diga qual delas vem primeiro e quando”14.
cristianismo associado com o modo de vida americano, o movimento missioná A comunidade ecumênica Kairós de discipulado e missão integral a ser
rio norte-americano paternalista, a separação nítida entre evangelismo e preo viço do reinado de Deus, fundada por Padilla em Buenos Aires em 1976 com
cupação social e a prioridade dada ao evangelismo, levando a fortes discordân- lideranças estudantis e professores de teologia, publicou a Série do Caminho
cias entre americanos do sul e do norte.11 Eles foram acusados de ser marxistas, em 2006. O primeiro volume é O que é missão integral, de Padilla15. Em seu
talvez por causa de seu diálogo com a teologia da libertação. Entretanto, sua prefácio, ele afirma que 18 dos breves ensaios estão sendo publicados de novo
insistência resultou na inclusão da preocupação social no Pacto de Lausanne por causa de sua enorme acolhida em toda a América Latina e do interesse
como parte integrante da missão, inextricavelmente ligada à evangelização. recentemente renovado na missão integral, especialmente no Sul global. O
Dez anos depois de Lausanne I, Padilla publicou Mission between the ensaio final sobre a necessidade de unidade e mutualidade entre grupos evan
Times: Essays on the Kingdom [Missão entre os tempos: ensaios sobre o Rei gélicos e ecumênicos é animador.
no], No prefácio, ele explica que os ensaios foram “escritos na última década Em 2010, Padilla esteve presente em Lausanne III na Cidade do Cabo,
e refletem meu envolvimento em muitas conferências” e no “diálogo teológico África do Sul. Depois, ele apontou “falhas graves” como, por exemplo, a di
internacional que vem ocorrendo em círculos evangélicos desde o Congresso de cotomia contínua entre “evangelismo e responsabilidade social” e a dominân
Lausanne de 1974”. Padilla insiste que a plenitude da missão inclui evangelismo cia de estratégias “made in USA”. Conclui melancolicamente dizendo que “o
e discipulado, parceria e unidade, desenvolvimento e justiça. Ela está “centrada maior obstáculo para a implementação da verdadeira parceria é a afluência do
em um estilo de vida profético” e aponta para “Jesus Cristo como Senhor sobre Norte e do Ocidente”16.
a totalidade da vida, para a universalidade da igreja e para a interdependência Samuel Escobar colaborou com Padilla no movimento estudantil no con
dos seres humanos no mundo”12. A missiologia integrada busca a dialética, a in tinente, na Fraternidade Teológica Latino-Americana e no Movimento de Lau
teração, a convergência, a integralidade e a plenitude da missão de Deus. sanne. Samuel e sua esposa Lilly trabalharam com a Comunidade Internacional
O ensaio final mostra a perspectiva do reino na missão integral. Padilla de Estudantes Evangélicos [IFES] no Peru, na Argentina, no Brasil e no Canadá
começa afirmando: “Falar do reino de Deus é falar do propósito redentor de (1959-1985). René Padilla também atuou para a IFES (1959-1982). Eles foram
Deus para a criação toda e da vocação histórica da igreja em relação a esse parceiros no ministério em toda a América Latina por mais de duas décadas.
A articulação do discurso evangélico durante a turbulência social e o
fermento estudantil na década de 1950 e 1960 foi um desafio. Samuel e Lilly
se mudaram para São Paulo, Brasil, em 1962, para apoiar o movimento estu
10 Em inglês, prefiro usar o termo “integral” [integral] a “holistic” [holístico]. Charles Rigma dantil crescente, mas voltaram à Argentina um mês depois que os militares
explica sua preferência por “integral” em RIGMA, Charles. Holistic Ministry and Mission: tomaram o poder lá em 1964, um ano depois de ele ter publicado Diálogo
A Call for Reconceptualization. Missiology: An International Review, v. 32, n. 4, p. 432-
444, out. 2004. Ele mostra que “o todo sempre vai nos escapar”. Enquanto que o holismo
filosófico opera “do todo na direção da parte”, o termo integral “vai exatamente na direção
oposta - da parte na direção da completude. Integrar é juntar as coisas ao contribuir para um PADILLA, C. The Mission o f the Church in Light o f the Kingdom o f God. In: PADILLA,
todo maior”. 1985, p. 186.
11 Cf. ALISTER, Chapman. Evangelical International Relations in the Post-Colonial World: “ PADILLA, 1985, p. 189-198.
The Lausanne Movement and the Challenge o f Diversity. Missiology: An International Cf. PADILLA, C. René. ^Qué es la misiôn integral? Buenos Aires: Kairos, 2006. (Series
Review, v. 37, n. 3, p. 355-368, jul. 2009. i6 ^ (“arnino- No. 1. Red del Camino).
12 PADILLA, C. René. The Fullness o f Mission. In: Mission Between the Times: Essays on the Cf. PADILLA, C. René. The Future o f the Lausanne Movement. International Bulletin o f
Kingdom. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1985. p. 141. Missionary Research, v. 35, n. 2, p. 86-87, abr. 2011.
A c o nstruç ã o da m issio lo g ia la tino-a m e nca na | ■ao
entre Cristo e Marx como ferramenta evangelística a ser usada com estudantes contextuais” inclui reflexão sistemática e crítica “sobre o ato missionário à luz
em busca de justiça social. Junto com Padilla, ele formulou um “conceito de da palavra de Deus”20.
responsabilidade social estruturado em tomo de um núcleo cristológico”17. No capítulo com o panorama histórico, intitulado “Da missão para a li
Em 1972, a InterVarsity Christian Fellowship do Canadá convidou Es- bertação”, ele comenta, fazendo referência à renovação que se seguiu ao Concí
cobar para ser seu secretário. Ele estava a caminho de Lausanne 1974: lio Vaticano II e à Conferência de Medellín em 1968: “A redescoberta católica
da Bíblia abriu para os protestantes um conjunto de questões-chave em relação
Convencido por experiência de que, se os evangélicos se congregassem e à hermenêutica, contextualização, estratégia missionária e ecumenismo”21.
cooperassem, poderiam alcançar muito nos esforços conjuntos na missão, Depois de escrever sobre “Missão na América Latina”, ele apresenta a
aceitei um convite para fazer parte do comitê que estava preparando o Con
passagem significativa para a “Missão a partir da América Latina” e afirma:
gresso Internacional de Lausanne sobre Evangelização Mundial18.
“A América Latina é agora a base de um crescente movimento missionário
para outras partes do mundo”22.
Lá ele fez uma palestra controvertida, “A evangelização e a busca hu
Em suas observações de missiólogos evangélicos latino-americanos
mana de liberdade, justiça e realização”. No processo de reflexão após o con
pós-Lausanne, ele menciona uma abordagem em duas vertentes:
gresso, resumiu sua posição e escreveu, junto com John Driver, Christian Mis-
sion and Social Justice [Missão cristã e justiça social]. Nesse livro, Escobar
Por um lado, uma tarefa crítica, que inclui um debate contínuo com as
insiste na necessidade de consciência histórica na missão e de uma nova cons teologias da libertação [...] Por outro lado, teólogos evangélicos têm se
ciência da pobreza no mundo. Recorrendo às ferramentas da contextualização dedicado à tarefa construtiva de desenvolver uma teologia da missão que
e do diálogo, ele afirma que uma “leitura interclasses da Bíblia é possível” 19. expresse a realidade dinâmica e o impulso missionário de suas igrejas na
De volta ao Peru, sua terra natal, em 1978, Escobar trabalhou com a América Latina23.
equipe da IFES, lecionou missiologia e escreveu um breve livro sobre teologia
da libertação a partir de uma perspectiva evangélica. Em 1985, o Seminário Voltamo-nos agora para um teólogo da libertação que desenvolveu o
Teológico Batista do Leste o convidou para ser o sucessor de Orlando Costas conceito de integralidade na missão contextuai tanto em termos cósmicos
na cátedra de missiologia. Lá ele usou o processo educacional dialógico parti como éticos.
cipativo de Paulo Freire, tema de seu doutorado.
Embora Escobar não use o termo “missão integral” com frequência, Libertação para a comunhão trinitária e o cuidado do planeta
como o faz Padilla, seu foco na responsabilidade e justiça social em círculos
evangélicos mostra seu papel no sentido de ajudá-los a incluir essa dimen Durante a década de 1960, um presbiteriano brasileiro, Rubem Alves,
são. Sua missiologia representa o novo paradigma ecumênico proposto por começou a articular temas referentes à libertação e a conclamar teólogos do
David Bosch com forte ênfase no modelo contextuai da América Latina. Seu Atlântico Norte a dar ouvidos à nova hermenêutica que estava vindo do he
livro Changing Tides: Latin America & World Mission Today [A maré está misfério Sul. Baseando-se na teologia da graça onipresente e do amor ine
mudando: a América Latina e a missão mundial na atualidade] resume seu xaurível de Deus, no espírito de abertura para “outras religiões” e em uma
desenvolvimento missiológico. Lá ele postula o seguinte: “Na América Lati teologia renovada da missão e da igreja nos documentos do Vaticano II e de
na, o método e contexto de reflexão sobre a missão cristã colocaram a ênfase Medellín, o sacerdote franciscano Leonardo Boff viu nas comunidades ecle-
em compreendê-la por meio das ferramentas de observação, análise e inter siais de base que se multiplicavam na América Latina uma nova maneira de
pretação fornecidas pelas ciências sociais, especialmente pela antropologia ser igreja. Alves e Bofif optaram pela desconstrução das estruturas, hierarquia,
e sociologia” . Além disso, a “missiologia holística” que “acentua questões doutrinas/dogmas, ética, missão e evangelização da igreja, que eram opres-
17 ESCOBAR, Samuel. My Pilgrimage in Mission. International Bulletin o f M issionary 20 ESCOBAR, Samuel. Changing Tides: Latin America and World Mission Today. Maryknoll,
Research, v. 34, n. 4, p. 207, out. 2012. NY: Orbis, 2002. p. 19-20.
18 ESCOBAR, 2012, p. 210. 21 ESCOBAR, 2002, p. 70-71.
19 ESCOBAR, Samuel; DRIVER, John. Christian Mission and Social Justice. Scottsdale, AZ: 22 ESCOBAR, 2002, p. 153.
Herald, 1978. p. 53.
23 ESCOBAR, 2002, p. 114.
A C O U B I / 1 'U ÿ O U c i» iiiie » e » ic » ic » g i» i a i u w « M « o i lu c u i« [
soras, repressivas, excludentes, injustas e humilhantes. Por uma libertação abertura para escutar e engajar-se em um diálogo inter-religioso e intercultural
política e religiosa de tudo que colocava “fardos pesados” sobre as pessoas e autêntico é uma linha de frente essencial em qualquer missiologia. Juntos é
uma abertura para o reinado de Deus e a promessa de Cristo: “O meu jugo é melhor”30 fazer missão, em parcerias ecumênicas e inter-religiosas que pro
suave, e o meu fardo é leve” (Mateus 11.30). Em um apelo que lembra o de movam a plenitude de vida que Deus quer para todas as pessoas da família
Martim Lutero, Boff questionou as estruturas institucionais de poder da igreja humana e para toda a criação - praticando o novo pacto com a natureza que o
e propôs uma evangelização libertadora alternativa baseada nos carismas ou teólogo franciscano propõe.
dons de toda pessoa cristã batizada.24 A missão trinitária tem dimensões cósmicas. Em Nova era: a civili
As propostas proféticas deles ameaçaram as igrejas institucionais, mas zação planetária, Boff afirma que o complexo processo de globalização nos
isso não refreou seu desenvolvimento teológico criativo. Boff abriu caminho deu uma nova consciência coletiva. Fazemos parte de uma nova sociedade
para uma passagem paradigmática da missio Dei, com uma ênfase na partici global que exige interdependência, corresponsabilidade, reconexões, holismo
pação da igreja, para uma missão trinitária com uma ênfase na obra do Espíri e integração. Só um cristianismo e uma missiologia da libertação e do diálogo
to na igreja e além dela e na criação. podem promover essa nova consciência planetária coletiva. Precisamos ser li
Para Boff, a essência do cristianismo, o modelo para a igreja e a socie bertados e libertadas de culturas de dominação e de tudo que obstrui o reinado
dade, bem como a base para a libertação integral, não são dogmas ou rituais, de Deus, onde as pessoas vivem juntas em mutualidade solidariedade.
mas “comunhão” com “o Mistério, que é a Trindade das Divinas Pessoas”, que No contexto global do individualismo que mina a solidariedade, de um
“sempre agem em comunhão” e “em relação com todos os demais seres”25. A mercado global competitivo que exclui muitas pessoas e da destruição contínua
missão compassiva e a “perspectiva do reino” de Boff se fundam na pessoa de da natureza, Boff evoca as reações emocionais viscerais de empatia, ternura,
Deus. O reino de Deus era o “grande sonho” que consumia Jesus.26 “Deus é compaixão, cuidado e uma ética de virtudes. Como fazemos missão e coexisti
Mistério para nós e para Si mesmo.” Por conseguinte, “seu autoconhecimento mos pacificamente em nosso mundo violento? Que virtudes garantem uma face
nunca tem fim [...] O conhecimento de sua natureza de Mistério é cada vez humana para a globalização? Em contraposição a todos os modelos de evan
inteiro e pleno e, ao mesmo tempo, sempre aberto para nova plenitude [...]”27. gelização que representam o “evangelho de poder” e uma visão imperialista
Essa linha de “novidade” e “abertura” continua até o “fim” com “o novo céu e da missão, Boff apela urgentemente à hospitalidade, acolhida mútua, abertura
a nova terra [...] como culminância de todas as coisas no Reino da Trindade”28. generosa, respeito, tolerância, comensalidade inclusiva e uma cultura da paz.31
Boff me ajudou a entender que a comunidade trinitária e a missão inte
gral implicam muitos e muitas participantes e conexões. A igreja é um corpo Missão compassiva - um paradigma intercultural
de relações e conexões interpessoais, assim como o ser humano é “um nó de
relações, voltado para todas as direções. [...] um ser aberto [...] a dar e rece- O missiólogo luterano brasileiro Roberto E. Zwetsch, professor em uma
ber, à participação, à solidariedade e à comunhão [...] os caminhos humanos faculdade de teologia luterana no sul do Brasil, representa a próxima geração
são de duas mãos. Quanto mais o ser humano se comunica, sai de si, se doa e de missiologia contextuai. Em seu livro Missão como com-paixão, Zwetsch
recebe o dom do outro, mais pessoa ele é”29. Essa abertura para relações cor se parece com um “Bosch” latino-americano. Ele entende a missão como par
retas na missão derruba barreiras de isolamento, preconceito, incompreensão ticipação na missão de Deus —missio Dei. A missão aponta para o “horizonte
e discriminação incongruentes com o testemunho da una santa igreja católica. do reino de Deus”. A igreja é uma coparticipante e parceira da obra de Deus
Em nosso mundo multicultural, multirreligioso e multiétnico, uma postura de no mundo. Para Zwetsch, a tarefa da igreja é “ver, ouvir, chamar, orientar,
apontar, ajudar e tomar-se solidária como parte do testemunho daquela ação
24 Cf. BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1981;______ . E a igreja
se fe z povo: eclesiogênese. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. 30 GEORGE, Sherron Kay. Juntos é melhor: convite ao diálogo missionário. São Leopoldo:
Sinodal; Quito: CLAI, 2013. 176 p. (Parceria na missão de Deus). Baseio meu trabalho
25 BOFF, Leonardo. Cristianismo: o mínimo do mínimo. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 39-41. Cf.
em Efésios para apresentar as dimensões local e global da missão integral, com muitas
também A Trindade e a sociedade. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 56-61.
dimensões inter-relacionadas e muitos participantes conectados.
26 BOFF, 2011, p. 89.
31 Cf. BOFF, Leonardo; MÜLLER, Wemer. Principio de compaixão e cuidado. Petrópolis:
27 BOFF, 2011, p. 14.
Vozes, 2001 ; BOFF, Leonardo. Virtudes pa ra um outro mundo possível. Petrópolis: Vozes,
28 BOFF, 2011, p.192-193. 2005. B o ff também escreveu um segundo volume sobre “Convivência, respeito e tolerância”
29 BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária. São Paulo: Ática, 1994. p. 71. em 2006.
*±o I ö n e rro n jv. u e o rg e A c o nstruç ã o aa m issio lo g ia la tino -a m e ric a na |
[missionária] de Deus”32. Missão é a encarnação da profunda e tema miseri oprimidas e silenciadas. Os direitos indígenas incluem a diversidade cultural
córdia, justiça e com-paixão de Deus pela humanidade na história humana. e religiosa. Em contraposição à monocultura dos colonizadores, a diversida
A missio Dei no contexto latino-americano implica um compromisso de é um valor cultural que leva a relacionamentos simétricos, libertadores e
com o sofrimento - passio - de Deus e de todas as pessoas que sofrem na mutuamente enriquecedores. A interculturalidade não é multiculturalismo ou
América Latina. Essa compreensão de missão é diferente daquela do hemisfé coexistência tolerante. Ela capacita as pessoas a aprender mutuamente e a
rio Norte. Ela não é meramente racional, intelectual ou acadêmica. É visceral. conviver com respeito, reciprocidade e abertura para os valores e a beleza do
A missão emerge das entranhas de Deus e afeta nossas; do ser interior de um “outro diferente”.
Deus que sente, ama, sofre, chora. Nós fazemos missão porque experimenta A inculturação e os encontros interculturais levam à construção de um
mos a paixão de Deus pelo mundo e compartilhamos essa paixão. Sentimos a paradigma intercultural e a uma teologia intercultural critica e alternativa.35As
dor, as necessidades e as injustiças da humanidade e respondemos em amor. A características principais desse paradigma intercultural latino-americano são
missão compassiva, libertadora, ecumênica nos ajuda a viver juntos e juntas contextualidade, pluralidade e ecumenicidade face ao pluralismo religioso.36
em relacionamentos de confiança e solidariedade e a promover a sustentabili- Os métodos essenciais são diálogo, solidariedade e comunhão. A convivência
dade da criação. Zwetsch constrói uma missiologia com os pés no chão, mas ecumênica em comunidade com encontros e diálogos inter-religiosos restaura
também com coração, sentimentos, temura e compaixão. Juntamente com a dignidade humana e liberta. Os relacionamentos interculturais facilitam a
Boff, para Zwetsch a missão se origina no amor e cuidado compassivo da construção de uma sociedade baseada na solidariedade, interdependência e
comunidade trinitária pelos seres humanos e pela criação. O amor e diálogo comunhão - o sonho da oikumene humana ou reinado de Deus.
de nosso Deus comunicativo e misericordioso transbordam e nos envolvem. Zwetsch vê a teologia cristã migrando para o Sul global, onde a teologia
A missão libertadora, inculturação da fé e reafirmação da diversidade contextuai intercultural entra em diálogo profético com a tradicional teologia
cultural que surgiram na América Latina após o Vaticano II, Medellín e Puebla monocultural ocidental dos ex-colonizadores e todas as pretensões de uma
exigiam uma visão ampliada do conceito de interculturalidade. Comentando perspectiva universal imposta a outros, bem como a homogeneização cultural
sobre a Conferência do Conselho Mundial de Igrejas - CMI sobre Missão e da globalização e a supressão da pluralidade cultural. As desafiadoras percep
Evangelização realizada em Salvador, Brasil, em 1996, Zwetsch define o de ções da diversidade global inclusiva de Zwetsch são uma dádiva!
safio do século XXI como “evangelho, missão e culturas”33. Padilla e Escobar mostram as dimensões evangelística e social da mis
Zwetsch desenvolveu um paradigma de teologia intercultural na Amé são integral. Boff mostra as conexões de muitos participantes na missão tri
rica Latina em diálogo com estudantes no Brasil e na África do Sul. Com base nitária cósmica. Zwetsch revela outra faceta da missão integral de Deus. Ela
em sua experiência de missão com indígenas brasileiros, ele propõe um diálo envolve nossas emoções, nossos mais profundos sentimentos - nossa mais
go intercultural entre as visões de mundo dos povos indígenas das Américas íntima pessoa - , incluindo nossa diversidade cultural multifacetada.
e a teologia cristã.34 Um paradigma intercultural começa com a desconstrução Concluindo: a missiologia latino-americana é contextuai, mas reage a
da imposição cultural e destruição social sofrida durante a colonização pelos novas realidades cristãs globais e oferece novas conceitualizações para repen
povos da “América Latina” (nome dado pelos colonizadores! Zwetsch prefere sar os relacionamentos com a Terra e outras religiões. Com seus traços distin
a nomenclatura indígena “Abya Yala”). A interculturalidade requer o reconhe tivos de libertação, missão integral, diálogo, compaixão e interculturalidade,
cimento da pluralidade cultural do continente e assume uma postura e teolo a contribuição da missiologia latino-americana nesta nova era de missão pós-
gia de solidariedade com essas culturas, especialmente em defesa das pessoas -colonial multilatéral vem da integração de reflexão e ação, abrindo o caminho
para a verdadeira interdependência e parcerias autênticas na igreja global.
32 ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-paixão. São Leopoldo: Sinodal, 2008. p. 86-87.
33 ZWETSCH, Roberto E. Evangelho, missão e culturas - O desafio do século XXI. In:
SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (ed.). Teologia prática no contexto da América 35 Cf. a relação desse paradigma com a teologia da libertação em ZWETSCH, Roberto
Latina. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 221-244. E. Teologias da libertação e interculturalidade: aproximações e avaliação crítica.
34 ZWETSCH, Roberto E. Teologia intercultural e o desafio dos povos indígenas na América Protestantismo em Revista, v. 30, n. 1, p. 32-49, 2013.
Latina. In: BUTTELLI, Felipe Gustavo Koch; LE BRUYNS, Clint; SINNER, Rudolf 36 Cf. TRINDADE, Célio Juliano; ZWETSCH, Roberto E. Contextualidade, pluralidade,
Eduard von. Teologia pública no Brasil e na África do Sul: cidadania, interculturalidade e ecumenicidade: esboço de uma teologia intercultural. In: INTERCULTURALIDADE NA
HIV/AIDS. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2014. p. 203-226. (Teologia pública, 4). AMÉRICA LATINA, São Leopoldo, 2015.