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extra_ Atribuições

Reescrevendo
a História da Arte
A partir da recente notícia sobre a 26 de junho, o museu do prado convocou uma conferên-
cia de imprensa com o objectivo de explicar a sua posição sobre
a eventual nova paternidade a autoria de O Colosso, pintura atribuída tradicionalmente a
Francisco de Goya e que, segundo os especialistas do Museu, é
de O Colosso, adjudicado quase com certeza obra de Ascensió Juliá, discípulo e colaborador

a Goya até ao momento, do mestre aragonês. Esta opinião, proferida por Manuela Mena,
especialista em Goya e chefe de conservação de pintura do século
analisam-se os potenciais efeitos XVIII, desencadeou uma inflamada discussão entre os princi-
pais estudiosos da obra do pintor. Ao fim e ao cabo, muito está
deste tipo de reviravoltas em jogo, sobretudo prestígio museológico, cifras milionárias e or-
gulho académico. O início do enredo remonta a 1991 quando, no
no mundo da arte. âmbito da preparação da exposição “Goya, el capricho y la inven-

A identificação do autor ción”, organizada pelo Museu do Prado, o quadro – após rigoro-
sas provas técnicas – foi excluído da selecção de obras e começa-
de uma obra de arte é ram a ser realizadas investigações com vista a dissipar as dúvidas
apontadas pelas comissárias, Juliet Wilson-Bareau e a própria
uma informação essencial Manuela Mena. Durante os anos subsequentes, os investigadores
do Museu trabalharam para encontrar evidências que demons-
na compreensão da mesma trassem ou contrariassem as suas suspeitas, recorrendo mormen-

e na determinação do seu status te à análise dos rasgos estilísticos de toda a produção de Goya.
Resultado final: O Colosso não era um Goya, mas uma obra de
no contexto da História da Arte. autor desconhecido. Pelos vistos, esta afirmação não era novidade
para alguns entendidos, sabedores da plêiade de falsos e mal atri-
O que acontece quando o factor buídos goyas, vários dos quais pendurados nas paredes dos mais
eminentes museus. A controvérsia não radicava na necessidade de
“atribuição” é posto em causa “limpar” o catálogo do artista, mas em decidir, de modo consen-

em obras emblemáticas sual, que obras iriam ser classificadas taxativamente como sendo
do pincel de Goya e que grupo de especialistas ou grande museu
do imaginário colectivo? deveria liderar tão magna tarefa. Em 1996, Juliet Wilson-Bareau
já asseverava que mais de 150 atribuições precisavam de ser alvo
de investigação, relembrando o caso das Majas en el balcón, do
Metropolitan Museum. A obra da instituição nova-iorquina, em
1995, integrou a mostra “Goya in The Metropolitan Museum
of Art”, sendo apresentada com a anotação “atribuído a Goya”,
texto Fernando Montesinos o que, conforme as normas de estilo do museu, não significava

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Juan Bautista
Martínez
del Mazo
Retrato da Infanta
Margarita de Áustria,
c. 1665, óleo sobre
tela, 212 x 147 cm.
Museu do Prado,
Madrid
© Museu do Prado

Leonardo
da Vinci (?)
Perfil de jovem dama,
c. 1480-90, lápis
e têmpera sobre
pergaminho,
33,27 x 23,87 cm.
Colecção particular
© Private Collection
& Lumiere
Technology

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Francisco
de Goya (?)
O Colosso, primeiro
quartel século XIX,
óleo sobre tela,
116 × 105 cm, Museu
do Prado, Madrid.
© Museu do Prado

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Novas Nos leilões de pintura antiga, devido
ao ritmo vertiginoso de vendas e a
se encontra exposta no Kimbell Art
Museum, de Fort Worth, no Texas.
tinha aplicado as suas técnicas de
scanner multiespectro de alta definição
descobertas, investigações deficientes, também
acontecem erros sonantes e
O retrato anónimo – Perfil de jovem dama
– que há dez anos um coleccionador
em A Gioconda e em A dama com
arminho, revelando interessantes
novas leituras extraordinárias notícias, sobretudo para
os compradores. Em 2006, Sir Denis
suíço adquiriu num leilão em Nova
Iorque, por 20 mil dólares e catalogado
detalhes que não podiam ser apreciados
em condições normais pelo olho
Mahon pagou 50 mil libras por uma na altura como pintura alemã do século humano. Obviamente, ainda falta a
Atribuições e desatribuições são cópia de Caravaggio, cujo valor subiu de XIX, parece ser obra de Leonardo da confirmação oficial dos especialistas.
comuns e relevantes na História da forma astronómica pouco tempo depois, Vinci ou de um pupilo ou seguidor Figuras como Nicholas Turner, Carlo
Arte, parte integrante do próprio evoluir após ter ficado demonstrado que a obra experiente. Assim conclui um estudo Pedretti, Mina Gregori, Cristina Geddo
da disciplina. As surpresas surgem era efectivamente do artista italiano. elaborado com as mais avançadas e Alessandro Vezzosi, director do
naquelas criações que perdem ou Trata-se da primeira versão de Os técnicas laser da Lumiere Technology, Museu Ideale, em Vinci, concordam por
alcançam o estatuto de obra-mestra e jogadores de cartas, sendo que a segunda empresa francesa que anteriormente enquanto com a atribuição.
que afectam a nossa maneira de ver e
interpretar determinados artistas. Nem
sequer os grandes do Renascimento e
do Barroco se livram, sendo alvo das
mais acesas controvérsias.
Mestres pouco prolíficos como
Velázquez foram objecto de
profundas revisões científicas com
vista a discriminar as obras que
merecem verdadeiro crédito. O papel
desempenhado pelo historiador
Matías Díaz Padrón foi fundamental,
discordando abertamente da
paternidade de algumas obras aceites
universalmente como herança pictórica
do sevilhano. Entre elas, encontra-se o
retrato da Infanta Margarita do Museu
do Prado, protagonista também de As
Meninas e considerado pela crítica,
durante anos, como uma das suas
pinturas mais significativas e ponto
de viragem em termos estilísticos.
Actualmente, o quadro está atribuído
ao seu discípulo e genro Juan Bautista
Martínez del Mazo.

O impacto do trabalho do Rembrandt


Research Project também abalou a
percepção pública e museológica
do pintor holandês, sobretudo na
sequência da descatalogação de obras
supostamente representativas como
o Homem do Capacete Dourado, da
Gemäldegalerie de Berlim.

O Salvador adolescente do Museu


Lázaro Galdiano, de Madrid, foi
atribuído durante bastante tempo a
Leonardo da Vinci, contudo acabou
por ser demonstrado que o seu autor
pertencia ao círculo lombardo mais
próximo do artista.

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O veredicto “desatribuição” encerrada a polémica, sintoma da necessidade de


constituir uma equipa de trabalho independen-
numa obra tão mediática e imagem te, desligada do mercado da arte, responsável por
uma nova revisão crítica da catalogação da obra
de marca do corpus do grande do aragonês – trabalho que passa necessaria-

mestre espanhol pode desencadear mente por um melhor conhecimento dos artistas
coetâneos e imediatamente posteriores, pois o
um clima de desconfiança entre problema com os goyas e a esteira dos pintores
goyescos começa praticamente ainda em vida do
os historiadores e o público e, próprio Goya.
Contudo, o veredicto “desatribuição” numa
especialmente, entre o público obra tão mediática e imagem de marca do corpus

e o mercado da arte do grande mestre espanhol pode desencadear


um clima de desconfiança entre os historiadores
e o público e, especialmente, entre o público e o
mercado da arte. Tendo em conta que dois dos
parâmetros utilizados pelo comércio da arte
para avaliar uma obra são o nome do autor e
a originalidade, então com base neste axioma
o valor económico de O Colosso, em princípio,
ver-se-á diminuído. Nas palavras de Manuela
Mena, o quadro é o que em pintura se denomina
pastiche, combinação e imitação de diferentes
que a considerassem do pintor, mas que existiam dúvidas acerca elementos da obra de um determinado artista.
da sua autoria. Tecnicismos e regulamentos à parte, relevante E o seu valor histórico/artístico será igualmente
aqui foi o facto de o Metropolitan se servir de uma mostra como alterado? A resposta é simples: não, pois a sua
plataforma de estudo comparativo e debate sobre a autenticidade ligação a Goya é inquestionável, a sua existência
dos óleos adquiridos ao longo de 125 anos. Arranque simbólico seria impossível sem ele. Um bom exemplo para
da limpeza museológica do inventário artístico de Goya, sobre o quebrar o hábito de acreditar que os valores eco-
qual o Prado não se pronunciou. nómico e artístico são sempre condizentes, ideia
O tempo foi passando. O avanço no conhecimento da obra fortemente instaurada num sistema de pensa-
de Goya também: mais de 70 peças foram descatalogadas e as mento que apenas distingue entre mercado e
opiniões opostas dos peritos continuaram a preencher páginas de cultura. De facto, o mercado da arte, qual agente
jornais e revistas não científicas. Em 2001, Juliet Wilson-Bareau mutagénico, consegue adaptar-se e tirar partido
manifestava no El Periódico del Arte o seu cepticismo quanto à publicitário e económico de estranhas e ines-
autenticidade não apenas de O Colosso mas também de A Leiteira peradas situações. Por um lado, face à redução
de Bordéus, declaração que não foi corroborada pelo então direc- do número de obras autenticadas e disponíveis
tor do Museu do Prado, Fernando Checa. Ilustres hispanistas, em leilão, o achado de três desenhos perdidos
como Nigel Glendinning e Jonathan Brown, recusaram algumas de Goya resultou num novo recorde mundial na
desatribuições, visto não existirem provas determinantes, e a lista sede londrina da Christie’s, onde foram vendidos
de museus afectados continuou a crescer: a National Gallery de por cerca de 5 milhões de euros. Por outro lado,
Washington, o Museu Nacional de Estocolmo, o Museu Provin- se O Colosso é de Juliá e é considerado uma obra-
cial de Zaragoza, a National Gallery de Londres, o Prado... Em chave da arte espanhola, então Juliá é um grande
Abril deste ano, o museu madrileno, por motivo do bicentenário pintor e não um artista de segunda fila como se
do início da Guerra da Independência espanhola, inaugurava a pensava até agora? A mudança na sua fortuna
exposição “Goya en tiempos de guerra”, separando de novo O crítica pode supor a redescoberta de um novo
Colosso da triagem expositiva. O indício mais recente que pre- autor, do qual apenas se conhecem uma dezena
suntivamente descarta a autoria de Goya é a descoberta de uns de quadros, mas pode também ter repercussões
pequenos caracteres – de início, pensou-se que representavam os financeiras e museísticas mais abrangentes por
números da catalogação do inventário do artista – que poderiam efeito dominó, pois, apesar de serem bem conhe-
corresponder às siglas A. J., iniciais que coincidem com as de As- cidas pelos profissionais atribuições realizadas
censió Juliá; embora também neste ponto existam discrepâncias. sem rigor científico nas leiloeiras e nos museus Francisco
de Goya (?)
De qualquer modo, o actual director do Prado, Miguel Zugaza, de todo o mundo, ninguém se pronuncia aberta- A Leiteira de Bordéus,
rejeita, por enquanto, libertar Goya da autoria do quadro, instan- mente sobre um tema tão delicado. Talvez por- c. 1826, óleo sobre
do a esperar que se finalizem as investigações, cujas conclusões que embora a “arte de atribuir” não seja a tarefa tela, 74 x 68 cm,
Museu do Prado,
apenas serão conhecidas pela comunidade científica no final fundamental do historiador da arte, é aquela Madrid.
deste ano, através do Boletim do Museu. Será então, à partida, mais susceptível de especulação e negócio + © Museu do Prado

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