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ABSTRACT: This paper proposes to address the stages of aging and death in the process of
individuation starting from the symbolic amplification of images of these life stages in the
light of Analytical Psychology. In order to relate these images to the stages of human
development, especially to the phases of late maturity and life cycle termination, we carried
Magalhães, G.P., Gonçalves, G.R., Sawaguchi, G., Taba, S. & Faria, D.L.de. (2012, agosto). Redes da vida: uma leitura
junguiana sobre o envelhecimento e a morte. Revista Temática Kairós Gerontologia, 15(4), “Finitude/Morte & Velhice”,
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out an imagistic and bibliographic study of aging and death based on the theoretical
framework of Analytical Psychology and post-Jungian authors. Therefore, we performed a
symbolic amplification of images coming from visual arts, literature, religion and mythology.
The results of this study indicate that the images connected with death are related to the
process of individuation, signaling the need for this issue - which is a taboo in contemporary
society – to be experienced in a creative and meaningful way.
Keywords: Process of Individuation; Aging; Death; Analytical Psychology; Symbolic
Amplification.
Introdução
Magalhães, G.P., Gonçalves, G.R., Sawaguchi, G., Taba, S. & Faria, D.L.de. (2012, agosto). Redes da vida: uma leitura
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em imagens por Ingmar Bergman, no filme O Sétimo Selo, no qual Antonius Block, um
cavaleiro medieval assombrado pela peste negra, trava com a morte uma partida de xadrez, na
expectativa de salvar-se. Mas nenhum herói pode vencê-la: esta é, segundo Kovács (1992), a
diferença que marca a consciência da vida adulta, em relação às fantasias de grandeza e
imortalidade da adolescência.
Diante do exposto, este trabalho pretende investigar a associação entre o processo de
individuação e as etapas do desenvolvimento do envelhecimento e morte, a partir da análise
de perspectivas históricas, antropológicas e psicológicas, com ênfase na teoria junguiana, bem
como por meio da amplificação simbólica de conteúdos imagéticos presentes nas artes
plásticas, na literatura e mitologia.
A vida é um curto espaço de tempo entre dois grandes mistérios: o nascimento e a morte.
(Carl Gustav Jung)
A morte é um tema bastante complexo e difícil de ser abordado pelas diversas áreas do
conhecimento e pelas religiões. Observamos, igualmente, a dificuldade de enfrentamento
desta etapa do ciclo de vida nas diferentes sociedades.
Existem muitos questionamentos filosóficos e religiosos sobre a origem e o destino do
homem e não é raro que cada um de nós, influenciados que somos por nossa tradição familiar,
cultural ou por opinião particular, venhamos a ter a nossa própria definição de finitude.
Jung (vol. 8, § 796) afirma que a morte está entrelaçada às fases do desenvolvimento,
embora observemos que a cultura ocidental prefira virar as costas para esta etapa da vida,
empreendendo intensos esforços psíquicos e científicos para adiá-la ou mesmo negá-la;
esforços estes que se revelam inúteis.
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nascimento, infância, puberdade, iniciação sexual, vida adulta, envelhecimento e morte, bem
como apresentam formas distintas de louvar suas divindades.
Contudo, a Psicologia Analítica compreende que, apesar de possuírem distintas visões
de mundo, as diferentes culturas possuem uma base arquetípica comum, que permanece
estável independentemente de época, embora seja sempre vivenciada de acordo com
circunstâncias históricas em que se expressa.
Desde os ritos mais arcaicos, que remontam ao princípio das manifestações culturais
humanas, verificamos procedimentos que nos permitem tentar compreender como se deu, ao
longo da história, a relação dos homens com a morte. Tais ritos, práticas e crenças sinalizam
que esta relação transformou-se gradualmente, até ganhar os contornos que hoje conhecemos
na cultura ocidental contemporânea.
No Paleolítico Superior, ou seja, entre 63000 e 48000 anos atrás, tomamos
conhecimento da existência do sepultamento com características ritualísticas. Os mistérios da
morte e do nascimento parecem ser os mais impactantes na mentalidade desses povos, e
naturalmente se mesclavam. A maneira de sepultar demonstrava que havia uma preparação do
morto para viver num outro mundo, após a morte (Guandalini, 2010). A morte implicava,
portanto, continuidade ou renascimento.
Entre os povos da Antiguidade, perpetrava-se a certeza de continuidade da existência
em dimensões do além-túmulo. No Antigo Egito, podemos observar alguns dos rituais
funerários mais escrupulosos de que se têm notícia, com detalhadas preparações do corpo e
dos bens do morto, para que fossem usufruídos na vida futura. A vida, para os antigos
egípcios, era uma espécie de antessala para a morte, a qual poderia significar salvação ou
suplício eterno. Cânticos, rituais, orações e juramentos ajudavam o morto a adentrar o novo
mundo.
O tema da morte fazia parte da vida diária também dos povos da Antiguidade
ocidental: na filosofia grega, o “nada” era uma ideia inconcebível; as conjecturas sobre a
morte, portanto, especulavam sobre o que aguardaria o homem após o fim do corpo. Na
mitologia grega, era o Hades, mundo subterrâneo, o último destino dos homens. Entre os
romanos, os espetáculos em que centenas de milhares de gladiadores combatiam entre si até a
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morte e cristãos eram supliciados colocaram o tema também na pauta do dia. Conforme Elias
(2001), assistir a tigres e leões famintos devorando pessoas vivas pedaço a pedaço, ou a
gladiadores mutuamente se ferindo e se matando, dificilmente se constituiria hoje em
diversão, mas assim era para os senadores ou para o povo romano. Os gladiadores saudavam
o imperador, ao entrar nas arenas, com uma frase emblemática: morituri te salutant, “os que
vão morrer te saúdam”. Ainda de acordo com Elias, a possibilidade de dizer isso aos
dominadores requer uma consciência da morte mais ampla do que a que temos hoje, e uma
maior aceitação do fato de que a espécie humana é uma comunidade de mortais.
Na Idade Média, assistir a assassínios públicos continuou a ser um hábito: era uma
espécie de “entretenimento dominical”, nas palavras de Elias (2001) comparecer a
enforcamentos, esquartejamentos e suplícios na roda. Em sua importante obra História da
Morte no Ocidente, Ariès (1977) nos transmite a ideia de que essa espécie de “intimidade com
a morte” vivida pelos medievais fazia com que o fim da vida fosse experimentado com calma
e serenidade. Para o autor, apenas no presente as coisas seriam diferentes. Elias (2001) tece
importantes críticas à visão – que considera “romântica” – de Ariès.
Ariès (1977) sustenta que as pessoas morreram calmamente durante séculos ou
milênios: a atitude diante da morte era familiar, próxima e amenizada – o que contrasta com
nossa maneira de nos relacionarmos com o tema nos dias de hoje. Elias (2001) se contrapõe a
essas ideias. Segundo este autor, se comparada à vida nos Estados-nação altamente
industrializados, a vida nos Estados feudais medievais era apaixonada, violenta e, portanto,
“incerta, breve e selvagem”. Morrer poderia, sim, significar tormento e dor e antigamente as
pessoas tinham muito menos possibilidades de aliviar tal sofrimento, pois a medicina ainda
engatinhava e não era acessível à maioria.
De fato, é difícil imaginar que as pessoas morressem com complacência diante de um
cenário aterrorizante como o da Europa medieval, no contexto assombroso da peste negra. O
imaginário popular, desde meados do ano 1000, já evidenciava grande terror diante de
doenças desconhecidas, tais como o “mal dos ardentes” ou “fogo de Santo Antônio” – hoje se
sabe que era causada pelo consumo do esporão do centeio presente na farinha. O terror
provocado pela doença era grande: os cronistas a descreviam como um fogo que consome os
membros e os separa do corpo (Duby, 1998). Mas nada se compara à grande peste que
assolara as populações europeias no século XIV.
Segundo Duby (1998), a peste negra era uma doença exótica, vinda da Ásia nos navios
que faziam rotas comerciais e era transmitida por parasitas, principalmente pulgas e ratos.
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antes os cadáveres humanos foram enviados de maneira tão inodora e com tal perfeição
técnica do leito de morte à sepultura.
Com o advento do capitalismo, emergem os mecanismos de controle social utilizados
para normatizar o cotidiano dos indivíduos. Tais mecanismos são o nervo-motor de inúmeras
instituições – entre elas, a medicina. Estas instituições, operando silenciosas, remodelaram a
família e perpetuaram valores e comportamentos sociais. Donzelot (1986) sugere que
diferentes estratégias foram oferecidas pelo Estado e pela medicina no intuito de se intervir
nas classes sociais, num nível biopolítico. Essa espécie de “polícia das famílias”, conforme
nomeia o autor, dá nome ao conjunto de tecnologias políticas que vinham sendo propagadas
desde meados do século XVIII e que irão investir sobre o corpo, a saúde, as formas de se
alimentar e morar e as condições de vida das pessoas. Entre as práticas de higienização e
normatização, foram criados locais específicos para o envelhecimento, adoecimento e morte.
Os velhos foram confinados a instituições; os doentes, a hospitais, e a morte deixou de ser um
acontecimento familiar.
Nas palavras de Kovács (1992b), o século XX esconde a morte, a morte vergonhosa,
transformada em tabu, tal como fora o sexo na era vitoriana. A sociedade expulsou a morte
para proteger a vida. Conforme Elias (2001), nosso atual “estágio de civilização” nos confina
a uma total falta de espontaneidade na expressão dos sentimentos em situações críticas, como
as que envolvem a morte. Cumpre que aprendamos a sofrer e a nos manifestar com
autocontrole. Como enfatiza Freitas (1992), velórios e enterros perderam suas características
de ritos de passagem, esvaziando-se de seu significado psicológico básico, que é o da
elaboração do luto por aqueles que vão e a transformação daqueles que ficam. O período de
luto foi reduzido e os vivos logo reassumem suas atividades cotidianas da maneira habitual.
Segundo Elias (2001), uma marca de nossa época é a incapacidade de darmos aos
moribundos a ajuda e afeição de que mais precisam quando se despedem dos outros homens,
exatamente porque a morte do outro é uma lembrança de nossa própria morte. A visão de um
moribundo abala nossas fantasias de imortalidade.
Em nossos dias, a morte perdeu sua conotação de acontecimento natural, própria do
ciclo vital, para adquirir a conotação de fracasso, impotência ou imperícia – devendo,
portanto, ser ocultada. O triunfo da medicalização está, justamente, em manter a doença e a
morte na ignorância e no silêncio. A maioria das pessoas não vê seus parentes morrerem: o
hospital torna-se o lugar apropriado, pois esconde a repugnância e os aspectos sórdidos
ligados à doença. A família também fica afastada para não incomodar o silêncio dos hospitais.
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Dessa forma, não atrapalha o trabalho dos médicos e não torna visível a presença da morte,
através de lamentações, choros ou questionamentos (Kovács, 1992b).
De acordo com Kovács (1992b), em nossos tempos, o período de separação do corpo e
da alma se modifica, sendo prolongado indefinidamente: a morte foi dividida em cerebral,
biológica e celular. São vários os aparelhos destinados a medir e a prolongar a vida. O
momento da morte, muitas vezes, deixa de ser um acontecimento natural para se tornar um
acordo entre a família e o médico.
A velhice, cuja imagem alude à proximidade com a morte, é igualmente eufemizada
para que não nos lembre de nosso inexorável fim. Conforme assevera Stevens (1993), no
momento atual, quando um número muito maior de pessoas chega aos oitenta anos de idade,
existe a tendência dos estatísticos sociais de protelarem a época da vida em que se diz ter
início a velhice. A palavra “velho” tornou-se um adjetivo pejorativo. Segundo o autor, nesta
fase da vida, o que antes eram simples prenúncios de mortalidade tornam-se sinais visíveis de
realidade. A doença e a morte acontecem em número cada vez maior e, quando começam a
desaparecer sucessivamente as pessoas mais próximas, aumenta a consciência de que, a partir
de então, a vida deve ser vivida na perspectiva da iminência da morte.
De forma geral, a velhice é concebida apenas em seus aspectos exteriores, ou seja, são
salientados o isolamento, a enfermidade física – inúmeras vezes, acompanhados pelo
desamparo e pelo desespero (típicos numa sociedade que abandona seus velhos) – as perdas
corporais e a perda da produtividade. Conforme Kovács (1992), uma das imagens mais fortes
da morte é a velhice, representada por uma velha encarquilhada, magra, ossuda e sem dentes.
É uma visão que causa repulsa e terror.
Nesse sentido, é oportuno que observemos, como contraponto cultural, a forma como
o idoso é considerado em algumas aldeias indígenas, como a Wayampi, presente no interior
do estado do Amapá, na Amazônia brasileira. Nesta comunidade, atribui-se aos anciãos o
papel de mantenedores e propagadores dos costumes, tradições e sabedoria da tribo. Como
ilustração, mencionamos o ritual de preparo do caxixi, bebida típica preparada artesanalmente
pelas idosas da aldeia que, após mascarem a mandioca, cospem o líquido em um recipiente e,
transcorrido o tempo exigido para a fermentação, servem-na aos membros da comunidade e
aos visitantes. Embora o preparo do caxixi provoque asco aos estrangeiros, verificamos no
ritual a importância da mulher idosa como guardiã da sabedoria da aldeia, pois os wayampis
acreditam que, bebendo este líquido, internalizarão suas qualidades.
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A cultura ocidental, entretanto, parece ter perdido o contato com o sentido mais
profundo da velhice, bem como ter abdicado dos significados vívidos e transformadores da
morte, relegando-a a mero acontecimento biológico. O encerramento do ciclo vital deixa de
ser concebido como finalidade e telos da vida humana, ou seja, o último ato de um processo
de desenvolvimento e realização da existência, para ser compreendido apenas em seu aspecto
exterior – o qual, evidentemente, será muito mais enfatizado em se tratando de uma cultura
materialista. Nesta cultura, a morte jamais pode ser associada a nada transcendente ou de
significado maior, sendo definida apenas no nível físico como a interrupção completa e
definitiva das funções vitais de um organismo, com o desaparecimento da coerência funcional
e destruição progressiva das unidades tissulares e celulares (Kovács, 1992). Conforme relata
Hillman,
À nossa ênfase na morte física corresponde nossa ênfase no corpo físico, não
no corpo sutil; na vida física, não na vida psíquica, no literal, e não no
metafórico... Facilmente perdemos o contato com as formas sutis da morte.
Para nós, poluição, decomposição e câncer, tornaram-se apenas físicos
(1979, p. 64).
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Na experiência de vida do próprio Jung, a velhice foi um dos períodos mais fecundos e
prolíficos. Ele adoeceu seriamente aos 68 anos de idade, e a recuperação posterior descortinou
uma fase de grande desenvolvimento psíquico, que consistiu na época mais intelectualmente
produtiva de sua vida. Destacamos que, sempre atento às imagens oníricas, Jung interpretou
um sonho que teve anos antes de sua morte: ele recebia o comunicado de que “sua casa do
outro lado do lago” já estava pronta. Esta imagem fora analisada como um prenúncio da
finitude (Gambini, 2011). Nesse período, Jung se debruçou sobre os temas que deram à sua
psicologia seu caráter mais distinto: a alquimia e a religião. Seus sonhos passaram a confirmar
não apenas sua crença na primazia do Self, como também sua convicção de que a melhor vida
possível é aquela que se vive sub specie aeternitatis (na dimensão da eternidade). Jung
propunha que somente quando nos relacionarmos com algo “infinito”, maior que a existência
egoica, é que poderemos evitar fixar nosso interesse em futilidades e metas que não possuem
real importância. Para nosso autor, nós valemos alguma coisa apenas à medida que
encarnamos algo “essencial”, caso contrário, nossa vida se torna inútil (Stevens, 1993).
A velhice ideal consistiria, portanto, num tempo de reflexão, de assimilação do
passado, de busca de significado e de um avanço rumo à totalidade. Como propõe Stevens
(1993), se quisermos ser bem sucedidos nos derradeiros anos de nossa existência, precisamos
aprender a enfrentar o processo de envelhecimento com equanimidade, chegar a um acordo
com a ideia de morte e experimentar a coexistência com toda a criação. A religiosidade, a
nosso ver, pode contribuir muito nesse sentido, à medida que conecta o indivíduo com algo
maior e transcendente. No caso do cristianismo e do budismo, por exemplo, o significado da
vida se consuma na morte. Conforme nos lembra Freitas (1992), não raro, Jung criticava o
fato de que as religiões, desde o Iluminismo, transformaram-se em sistemas filosóficos, ou
seja, algo produzido “pela cabeça”. Ele sugere que se pense, ao invés, com o coração, na
medida em que os símbolos religiosos têm caráter revelatório e de criação espontânea,
ligando-se a uma sabedoria mais completa, que não pode ser atingida apenas pelo intelecto.
Aceitar a finitude consiste em compreender a morte como um imperativo teleológico.
No caso de Jung, notamos que o envelhecimento não era concebido como o simples encurtar
da existência, mas consistia numa espécie de “polimento” e aperfeiçoamento, através do qual
ele aguçava sua percepção do essencial. Na sombra da morte, o assombro e o milagre da vida
tornam-se mais perceptíveis e o reconhecimento de nossa brevidade é que dá a dimensão do
infinito.
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esta imagem é expressa no Livro dos Mortos egípcio onde, no tribunal presidido por Osíris, o
coração do morto (símbolo da consciência) era contraposto à pena de avestruz da deusa Maat
(símbolo da justiça). Se o coração estivesse carregado de más ações, ele pesaria mais que a
pena, o que condenaria o morto à danação (Franz, como citado em Magalhães & Serbena,
2011).
O encontro do ego com o inconsciente – ou seja, com a experiência do todo – é sempre
vivido pelo ego como uma derrota dolorosa, o que a alquimia expressa através de símbolos de
morte, mutilação ou envenenamento. A nigredo alquímica pertence à operação denominada
mortificatio, ou putrefactio, que se relaciona à escuridão, derrota, mutilação, morte e
apodrecimento. Entretanto, seguindo a lei dos opostos, na medida em que o ego admite a
morte, constela-se a vida nas profundezas (Freitas, 1992). Um sacrifício das perspectivas
pessoais é necessário a cada avanço, e este é vivido como uma morte.
O próprio processo de análise pode ser experienciado como uma forma de morte. Na
psicoterapia junguiana, o encontro do indivíduo com os aspectos inconscientes da sombra, e a
integração desses conteúdos obscuros, favorecem a constelação da função transcendente. Com
base em Jung, Magalhães (2009) afirma que este conceito não implica algo metafísico ou
misterioso, mas que foi simplesmente derivado de uma operação matemática: uma equação
entre números reais e imaginários possibilita uma nova unidade, como ocorre na conjugação
entre aspectos conscientes e inconscientes da personalidade que favorecem uma mudança de
atitude.
Aqui, podemos nos reportar ao mito de Eros e Psique, segundo narra Brandão (2002).
Para conquistar o amado, Psique aceita tarefas de imensa complexidade impostas por
Afrodite, mãe de Eros. Em sua jornada de provações, Psique precisava descer ao Hades para
buscar a caixa de Perséfone. Para executar este trabalho, contou com a ajuda da Torre que,
entre outras diretrizes, orientou a jovem a levar em sua boca duas moedas de ouro para serem
entregues ao barqueiro Caronte, como pagamento pela travessia de ida e volta ao mundo dos
mortos. Boechat (1995) associa o personagem mítico Caronte à figura do analista, que
favorece o encontro do sujeito com os demônios da sombra e o auxilia em seu retorno, sendo
pago para tal função. Diante do exposto, observamos no processo de análise, a morte e
renascimento para uma nova atitude do sujeito diante da vida:
produz-se por si só em toda terapia mais ou menos profunda (Jung, vol. 12, §
36-37).
A partir da vivência de análise, pode-se erigir uma persona funcional, coerente com a
personalidade como um todo, bem como construir um novo centro da personalidade, entre
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ego e Self. O inconsciente pode então ser visto não mais como um dragão ameaçador, mas
como um amigo em potencial. O sacrifício do ego abre caminho para uma transformação
fecunda, que costuma ser simbolizada como uma morte e posterior renascimento,
possibilitando o Processo de Individuação.
Lembremo-nos do centauro Quíron que, atingido por uma flecha envenenada de
Hércules, acometido por terríveis dores, ao invés de procurar a cura de Apolo, faz um acordo
com Zeus e troca sua imortalidade com Prometeu, tornando-o imortal. Livre de suas dores,
Quíron pôde morrer tranquilamente, transformando-se na constelação de Sagitário, ou seja,
adquirindo brilho inextinguível. Por que Quíron não buscou curar-se?
Segundo Alvarenga (2011), o sofrimento é insuportável enquanto se mantiver alheio à
própria identidade, como um corpo estranho. A dor torna-se suportável quando pode ser
elaborada, transformando-se em símbolo estruturante, passando a compor a identidade como
realidade integrada à totalidade do indivíduo. Quando esse fenômeno acontece, morremos
para a condição de termos dores e renascemos para a condição de sermos com dores. A morte
do Quíron ferido proporcionou o renascimento do Quíron celeste, um outro ser, renovado. O
fenômeno da morte e do morrer acompanha simbólica e literalmente, portanto, todos os
momentos de grande transformação psíquica.
Na psique, a morte, com suas diversas representações, pode aparecer como extinção,
aniquilamento, negação e finalização (aspectos negativos bastante ressaltados na sociedade
ocidental) e também como profunda e significativa transformação, revelação, renascimento,
rito de passagem e mysterium coniunctionis. (Hillman, Welman & Faber, como citados em
Magalhães & Serbena, 2011). Tais autores concebem a individuação como o arquétipo
regente da vida humana, sendo vida e morte a dualidade complementar que o representa.
Aqueles que são incapazes de encarar e aceitar a própria mortalidade são igualmente
incapazes de progredir rumo ao desenvolvimento de si mesmos ou rumo à individuação.
De acordo com Edinger e Jung (como citados em Magalhães & Serbena, 2011), a
interação dinâmica dessas duas facetas, opostas, compensatórias e complementares, mediante
o mecanismo simbólico, possibilita a atuação da função transcendente que restitui a totalidade
pela integração dos contrários no intuito de conduzir à realização da personalidade originária,
potencial. Essa realização seria, para Magalhães e Serbena (2011), decorrência da ativação do
arquétipo da individuação no qual a pessoa é impulsionada a realizar plenamente suas
potencialidades inatas em direção a seu centro íntimo (Self) e tornar-se si mesma, inteira,
Magalhães, G.P., Gonçalves, G.R., Sawaguchi, G., Taba, S. & Faria, D.L.de. (2012, agosto). Redes da vida: uma leitura
junguiana sobre o envelhecimento e a morte. Revista Temática Kairós Gerontologia, 15(4), “Finitude/Morte & Velhice”,
pp.133-160. Online ISSN 2176-901X. Print ISSN 1516-2567. São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
Redes da vida: uma leitura junguiana sobre o envelhecimento e a morte 151
completa, indivisível e distinta das outras pessoas. A busca é por sintonia com a própria
essência do indivíduo, por meio de ações dirigidas para o desenvolvimento da personalidade.
Constatamos, portanto, que a imagem simbólica na morte, na psique, não deve ser
entendida apenas por meio de conotações negativas. A transformação é o elemento que a
acompanha em inúmeras mitologias, juntamente com a possibilidade de um renascimento
positivo. Encontramos em alguns dos arcanos do tarô alguns exemplos ilustrativos.
No tarô, o arcano XIII (A Morte) está relacionado às grandes transmutações e novos
espaços para a realização, encerramento de algum ciclo, abandono de velhos hábitos,
penetração intelectual, pensar metafísico, discernimento severo, sabedoria drástica, resignação
e disposição para situações difíceis. No campo mental, a carta sugere uma renovação de
ideias. Segundo Godo (2001), a carta sinaliza que é chegada a hora de uma transformação de
fato, no sentido de uma regeneração espiritual, após o reconhecimento da futilidade realidade.
A carta XVI (A Torre, ou A Casa de Deus) sugere, segundo Godo (2011), um
paradoxo, pois embora a morada divina seja classificada como espaço de repouso e
tranquilidade, a imagem que aparece na carta é a de uma alta construção fulminada por um
raio. A alegoria sugere a hybris ou o pecado do orgulho dos homens que, tentando se elevar
ao patamar mais alto do mundo físico e material, tornam-se vítimas de sua própria vaidade e
se expõem ainda mais à ruína representada pelos raios divinos que metaforizam a força
avassaladora da sombra. Apesar de seu caráter doloroso, associado à fatalidade, esta carta
simboliza também a tomada de consciência, o esclarecimento, a libertação – ou seja, uma
possibilidade de transformação do sujeito.
A ideia de transformação – ou seja, a destruição que engendra o nascimento de algo
novo – também pode ser encontrada nos fragmentos de Heráclito de Éfeso, filósofo pré-
socrático conhecido como “o Obscuro”, que desenvolveu um pensamento rico e profundo,
mas de difícil apreensão (Iglesias,1989). Um dos aspectos mais destacados de sua filosofia é a
mutabilidade das coisas, ou seja, a ideia de mundo como um fluxo incessante, em constante
transformação. Sua epígrafe dizia: “os imortais são mortais, os mortais imortais, estes vivem a
morte dos outros, que morrem a vida daqueles” (Heráclito, como citado em Brun, 1965). Esta
frase do Obscuro filósofo permite-nos a associação com o processo de desenvolvimento
humano contemplado pela psicologia analítica, pois se uma coisa é vida, o movimento da vida
a leva para morte e, se há morte, há a possibilidade do surgimento de alguma forma de vida.
Não se pode banhar duas vezes no mesmo rio, nem é possível tocar duas
vezes em uma substância perecível no mesmo estado, pois ela se decompõe e
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são decapitados em seu templo e as cabeças ali permanecem como troféus. Entretanto, este
ritual mortífero é realizado com a finalidade última de manutenção da existência: a deusa
exige o sangue do sacrifício para dar vida num processo incessante de geração de novas
formas, em sua manifestação clemente (sundara-mûrti), como a Mãe do Mundo (jagad-
ambâ); para que, na qualidade de ama de leite do mundo, possa amamentar as criaturas em
seus seios e oferecer-lhes anna-pûrna, “o bem que é repleto de nutrição” (Neumann, 1997).
Também em Kali evidencia-se o caráter transformador da morte, uma vez que o
sangue sacrificial é convertido em alimento que sai de seus seios e nutre as criaturas. O
sacrifício é recompensado com vida e renovação, numa alusão ao sacrifico do ego, igualmente
necessário para a renovação da consciência. A deusa é uma das personificações do arquétipo
materno, uma imagem de que esta energia numinosa se reveste no contato com a consciência.
Os “mistérios da morte” pertencem, segundo Neumann (1997), ao domínio do
Feminino. O autor designa por “mistérios” não apenas as celebrações concretas e
historicamente determinadas de uma cerimônia mística (como os mistérios dos Elêusis), mas
também, em senso mais geral, uma esfera psíquica comum a toda a humanidade, centrada em
torno de um arquétipo, que abrange toda uma rede de símbolos inconscientes relacionados
entre si e que se exteriorizam em ritos, crenças, costumes, e assim por diante.
De acordo com Neumann (1997), os mistérios da morte abrangem todos os costumes
fúnebres e símbolos relacionados ao sepultamento e ao cuidado com os mortos, bem como
todos os sacrifícios que levam à morte, como por exemplo, o fecundamento da terra pelo
sangue, tal como ocorre nos rituais consagrados a Kali. Os mistérios da morte são
considerados mistérios da Mãe Terrível, porquanto se apoiam em sua função devoradora-
aprisionadora que, ao mesmo tempo em que concede, também retoma para si a vida do
indivíduo. O útero, nesse caso, torna-se a mandíbula devoradora e os símbolos relacionados
ao esquartejamento, à aniquilação, ao apodrecimento e à decomposição têm aqui o seu lugar.
O túmulo remete, simbolicamente, ao útero devorador. Se levarmos em conta que vivemos
numa cultura majoritariamente patriarcal e identificada com os valores masculinos, na qual o
feminino foi obliterado e privado de legitimidade, é possível entender por que a morte se
tornou, para nós, tão assustadora e por que foi necessário bani-la para os porões do
inconsciente.
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Considerações finais
A proposta deste trabalho, não foi, em absoluto, buscar eufemismos para atenuar o
impacto doloroso e sombrio do envelhecimento e da morte, mas abordar estes temas a partir
de uma nova perspectiva, ou seja, como etapas que, se vivenciadas em sua plenitude, podem
favorecer o processo de individuação.
Consideramos que, como toda a etapa do desenvolvimento humano, o envelhecer e a
morte também abrangem desafios, prejuízos e vitórias, e que, por este motivo, possibilitam-
nos uma forma diferente de contemplar o mundo, principalmente, ao experimentarmos a
finitude em sua dimensão simbólica.
Diante do exposto e dessa tessitura de ideias e reflexões sobre “as redes da vida”, em
seus ciclos e em sua circularidade, reportamo-nos novamente ao comentário de Jung descrito
no quarto capítulo sobre a necessidade de compreendermos o mundo não apenas com o
intelecto, mas com o “coração”.
Michaelis (1998) define coração como: 1. Órgão oco e musculoso, centro motor da
circulação do sangue; 2. Parte anterior do peito onde se sente pulsar este órgão; 3. Peito; 4.
Sede suposta da sensibilidade moral, das paixões e sentimentos; 5. Conjunto das faculdades
afetivas; 6. Amor ou afeição completa; 7. Generosidade.
Destacamos alguns termos derivados da palavra coração, como “saber de cor” e
“coragem”. A análise etimológica de “saber de cor”, indica um conhecimento alcançado pelo
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“coração”, pelos “sentimentos”, enquanto “coragem”, significa “uma força ou energia moral
ante o perigo”, advinda também dos afetos (Michaellis, 1998).
Portanto, para que pensemos sobre as fases de envelhecimento e morte, torna-se
fundamental que não ocorra a negação de nenhuma das etapas, mas que Tanatos e Eros, morte
e vida, finitude e amor, sejam considerados como dimensões complementares.
Diante de tais considerações, caberá às mãos de Carlos Drummond de Andrade e
Manuel Bandeira finalizarem a tecelagem deste artigo:
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Recebido em 02/08/2012
Aceito em 22/08/2012
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