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Bases
constitucionais para a solução de conflitos relacionados
à pandemia (Covid-19, Coronavírus). Breves
considerações
1. Entes federados
A federação, como regra, se caracteriza pela existência, no mesmo território, das ordens
de autoridade federal e estadual (havendo que se lembrar, entre nós, do Distrito
Federal, cf. art. 32 da Constituição Federal). Excepcionalmente – como ocorre no Brasil
–, há mais uma ordem de autoridade: a municipal. De certo modo, pode-se dizer que
essa peculiaridade acentua o propósito constitucional de se descentralizar o poder (cf.
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infra).
3. Federalismo cooperativo
A repartição da competência não segue critério único, variando de acordo com razões
histórico-culturais. Em algumas federações, a competência dos Estados-membros é
maior, como ocorre nos Estados Unidos da América do Norte. Em outras, como ocorre no
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Brasil, a competência dos Estados-membros é menor, ainda que se possa afirmar que,
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Saúde e contornos do federalismo brasileiro. Bases
constitucionais para a solução de conflitos relacionados
à pandemia (Covid-19, Coronavírus). Breves
considerações
Diante do dispõem os §§ 1.º e 4.º do art. 24, a competência dos Estados e do Distrito
Federal para legislar sobre normas gerais é suplementar à da União, sendo que, “no
âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer
normas gerais” (cf. art. 24, § 1.º). Isso significa que à União incumbe traçar regras
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gerais que estabelecem um plano, mas “sem estabelecer pormenores”.
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A competência concorrente pode ser cumulativa ou não cumulativa. A competência não
cumulativa (art. 24, § 2º da CF) dá-se no caso em que há lei federal com normas gerais,
hipótese em que lei estadual ou distrital poderá minudenciar as situações que carecem
de melhor regulação (porque a lei federal é geral), ajustando a lei geral (federal) a
peculiaridades locais (art. 24, § 1º da CF). No caso da competência cumulativa, ausente
lei federal que contenha normas gerais, a competência do ente local é plena “para
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atender a suas peculiaridades” (art. 24, § 3º da CF).
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teleológica da Constituição Federal”. Nesse julgamento, os votos da maioria dos
ministros consideraram importantes as circunstâncias locais que justificariam a
existência da lei estadual, sobretudo a quantidade de roubos e furtos a residências no
Estado do Rio de Janeiro, e em especial na capital desse Estado.
O que se disso nos itens precedentes conduziu, pouco a pouco, àquele que nos parece o
melhor entendimento acerca de eventuais conflitos relacionados à competência material
(art. 23 da CF) e legislativa (art. 24 da CF) para tratar de questões atinentes à saúde.
Note-se que, nesses casos, a competência do ente central é mais geral, enquanto à dos
demais entes ligam-se a temas locais. Assim, o art. 30 da Constituição, que dispõe sobre
competência material e legislativa dos municípios, estabelece que a este compete
“legislar sobre assuntos de interesse local” (inc. I), “suplementar a legislação federal e a
estadual no que couber” (inc. II) e “prestar, com a cooperação técnica e financeira da
União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população” (inc. VII).
A Lei 13.979/2020 (com a redação da Medida Provisória 926/2020), dispõe, em seu art.
3.º, caput, que “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de
suas competências, dentre outras, as [...] medidas” indicadas em seus incisos
(destacamos).
Vê-se, pois, que, no ponto, a referida lei não afasta o que antes se disse, no que
respeita à competência dos entes federativos: a todos eles incumbe cuidar, proteger e
defender a saúde. Um ente invadirá a competência do outro, p.ex., se a União dispuser
sobre pormenor local, ou se um município estabelecer uma restrição geral de alcance
nacional. Não contraria a Constituição, no entanto, o decreto que dispõe sobre minúcias
locais quanto à proteção à saúde. A propósito, manifestou-se o Min. Marco Aurélio, em
decisão monocrática proferida na MC na ADI 6341/DF, sobre as alterações realizadas na
Lei 13.979/2020 pela Medida Provisória 926/2020, que “o artigo 3º, cabeça [da referida
Lei], remete às atribuições, das autoridades, quanto às medidas a serem
implementadas” e “as providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o
Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo
23, inciso II, da Lei Maior.” Assim se concluiu a fundamentação da decisão que
concedeu, em parte, a liminar pleiteada: “[...] Surge acolhível o que pretendido, sob o
ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser
reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº
926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não
afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios. 3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita,
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no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente.” Aqui há
de se observar, também, o que se disse nos itens precedentes, quanto ao modo como os
parágrafos do art. 24 da Constituição devem ser compreendidos no contexto do
federalismo cooperativo.
O § 1.º do art. 3.º da Lei 13.979/2020 dispõe que “as medidas previstas neste artigo
somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises
sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no
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O § 9.º do art. 3.º da Lei aqui mencionada (também inserido pela Medida Provisória
926/2020), ao dispor que “o Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre
os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º”, não afasta o que
se disse, ao longo do presente estudo. Ao Presidente da República incumbe a expedição
de decretos para regulamentar a execução de leis federais (cf. art. 84, caput, IV da
Constituição, de que trataremos a seguir), e também aqui sua competência não poderá
afastar a de Governadores e Prefeitos que haverão de dispor sobre circunstâncias
particulares de estados e municípios, conforme o caso – e desde que não extrapolem e
atinjam interesses mais amplos e gerais (v.g., disposição municipal não pode impor
restrição que tenha alcance nacional).
O que aqui se disse vale para o problema relacionado à eventual coexistência de ato do
Presidente da República e ato de governo local (estadual/distrital ou municipal) e vale,
também, mutatis mutandis, para solucionar eventuais dilemas relacionados aos campos
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de incidência de decretos estaduais e municipais.
É certo, no entanto, que poderão surgir situações limítrofes, em que os lindes entre os
interesses geral e local podem não se manifestar claramente, sobretudo quando
divergirem entes federal e estadual/distrital, ou estadual e municipal, em que
determinado tema pode transitar de uma órbita para outra, a depender das
circunstâncias do caso.
Esse ponto, segundo pensamos, deverá servir como parâmetro também para conferir a
higidez de decreto presidencial que, nos termos do § 9.º do art. 3.º da Lei 13.979/2020,
dispuser sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 8.º do art.
3.º da mesma Lei.
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O Presidente da República tem poder administrativo de expedir regulamentos para a
execução de leis (art. 84, IV, da Constituição), que deve observar limites constitucional e
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legal. Quanto a este aspecto, não se admite que o Presidente da República extrapole
os limites da lei que deve ser regulamentada, sob pena de violação ao princípio da
legalidade – no caso, pois, não se viola a Constituição (senão indiretamente), mas a lei
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regulamentada. Mas, além disso, o próprio decreto regulamentador deverá observar a
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Constituição Federal.
No caso dos §§ 8.º e 9.º do art. 3.º da Lei 13.979/2020, eventual decreto presidencial
que deixe de ser realizado com “base em evidências científicas e em análises sobre as
informações estratégicas em saúde” (§ 1.º do art. 3.º da Lei 13.979/2020), p.ex.,
violará o poder de regulamentar, pois atentará contra a lei a ser regulamentada, e, a um
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Sumário:
2 Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de direito constitucional, Saraiva, 2002, p.
48.
4 Após apresentar relato histórico, afirma José Roberto Anselmo: “A história política
nacional mostrou que em diversos momentos nosso federalismo apresentou traços de
enfraquecimento ou de completa inexistência material. O modelo de federalismo dualista
adotado em 1891, foi resultado de uma força centrífuga, ou seja, a transformação de um
Estado Unitário (onde competências do poder central passaram para os
Estados-membros) em Estado Federal. Neste sentido, o máximo de descentralização é
sempre um ideal a ser perseguido, contudo, nem sempre é alcançado. A exemplo do que
ocorreu durante a vigência das Constituições de 1937 e 1967, qualquer movimento
político centralizador encontra terreno fértil para se desenvolver, pois o processo de
descentralização é mais frágil do que aquele que ocorre nos Estados de formação federal
centrípeta (onde determinadas competências dos Estados-membros são cedidas à
União)” (A centralização do Estado brasileiro, Revista do IASP 22/115).
8 STF, ADI 2.030, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 09.08.2017, Informativo 872.
12 STF, ADI 5745/RJ, Pleno, rel. p/ ac. Min. Edson Fachin, j. 07.02.2019, Informativo
STF 929. O STF, no julgamento da ADI 4060, assim decidiu: “O princípio federativo
brasileiro reclama, na sua ótica contemporânea, o abandono de qualquer leitura
excessivamente inflacionada das competências normativas da União (sejam privativas,
sejam concorrentes), bem como a descoberta de novas searas normativas que possam
ser trilhadas pelos Estados, Municípios e pelo Distrito Federal, tudo isso em
conformidade com o pluralismo político, um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil (CRFB, art. 1º, V) [...]” (STF, ADI 4060, rel. Min. Luiz Fux, Pleno, j. 25.02.2015).
Cf., também, voto proferido pelo Min. Edson Fachin no julgamento da ADI 5356, Pleno,
rel. p/ ac. Min. Marco Aurélio, j. 03.08.2016.
14 Cf., quanto ao ponto, decisão monocrática proferida pelo Des. Orlando de Almeida
Perri, do TJMT (MS 1007834-59.2020.811.0000, j. 29.03.2020).
16 E não legislativo, embora tenha função normativa subordinada, cf. José Afonso da
Silva, Curso... cit., p. 425.
17 Sobre o poder regulamentar e seus limites, cf. José Miguel Garcia Medina,
Constituição Federal Comentada, 5.ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2020, comentário ao
art. 84 da Constituição.
19 Cf., nesse sentido, decisão monocrática proferida pelo Min. Luis Roberto Barroso na
ADPF 622 MC / DF, j. 19.12.2019.
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