Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
THOMPSON
Introdução
1. O New Journalism
O emprego em uma redação era, para muitos, uma cena passageira, que os
levaria um dia a escrever um grande sucesso literário. Para Wolfe, essa
vontade era coletiva, “um enxame de fantasias fervendo, proliferando no
húmus do ego da América…” (Wolfe, 2004, p.17).
Esse último grande feito apreciado por todos era ao mesmo tempo de difícil
acesso. Todos os jornalistas aspiravam um status literário, porém a idéia de
abandonar a imprensa popular, viver em uma cabana isolada a espera da
grande sacada teria, no mínimo, um custo. E como custear essa vida sem
trabalho?
Ao dizer “lido como um romance”, Wolfe acentua que não era intenção
roubar o status dos romancistas, mas sim uma sincera forma de
homenageá-los, homenagear O Romance. O que ele e seus companheiros
não imaginavam é que nos próximos dez anos jornalistas se veriam tão
famosos quanto os romancistas e que suas grandes reportagens formariam
uma nova maneira de se fazer jornalismo. A essa maneira se convencionou
chamar de New Journalism, ou Novo Jornalismo.
“Duvido que a maioria dos craques que vou exaltar nesse texto tenham
entrado para o jornalismo com a mais remota idéia de criar um “novo”
jornalismo, um jornalismo “superior”, ou mesmo uma variedade
ligeiramente melhorada. Sei que eles nunca sonharam que nada que fossem
escrever para jornais e revistas provocasse tamanho toverlinho no mundo
literário… causasse pânico, tirando do romance o trono de gênero literário
número um, inaugurando a primeira novidade da literatura americana em
meio século… No entanto, foi isso que aconteceu.” (Wolfe, 2004, p.9)
(2003)
Observe como o narrador desliza sua história parte por parte, desde sua
acomodação no terraço, até os movimentos da anfitriã, a música, os
camaleões, como se o leitor pudesse se envolver e sentir o momento da
mesma maneira que o autor sentiu. Para Tom Wolfe, essa era a
oportunidade que o jornalista tinha para desenvolver o que ele chama de
“extraordinário” em reportagens: poder testemunhar de fato as cenas das
vidas das outras pessoas no exato momento em que ocorriam e conseguir,
através de toda essa descrição, inserir o leitor em seu contexto.
• O Diálogo
Um dos mais famosos jornalistas a utilizar esse recurso era Truman Capote.
Sem precisar de gravador e com uma memória de dar inveja em seus
companheiros, Capote era capaz de “decorar” horas de diálogo, sem
esquecer nenhuma passagem, e errando pouquíssimas vezes. Certa vez
pediu a um amigo que fizesse um teste: gravou uma longa conversa, e sem
ouvi-la novamente, transcreveu-a num papel. Ao voltar a fita e combinar o
resultado, perceberam que havia 90% de exatidão no texto. Esse recurso,
mesmo sem toda a habilidade de Capote, era vastamente utilizado pelos
novos jornalistas. Neste tópico usaremos um exemplo de diálogo retirado da
obra jornalística do próprio Tom Wolfe. No capítulo “O último herói
americano” do livro The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby [O
aerodinâmico bebê floco de tangerina cor de caramelo, em tradução livre],
ele descreve uma conversa causal entre o personagem Junior, um piloto de
corridas stock-car, e um jornalista esportivo que está no local:
Um jornalista esportivo está ali perto e diz: ‘Como é que vocês atiram no
guaxinim?’
‘Derruba da árvore?’
‘É. Este menino aqui consegue derrubar melhor que qualquer um. A gente
sai de noite com os cachorros, e, assim que sentem o cheiro, eles começam
a latir. Eles vão correndo na frente da gente, e, quando espantam o
guaxinim para a árvore, a gente sabe, pelo jeito do latido. Começam a latir
grosso para o guaxinim – como é, eu não sei, mas a gente escuta uma vez e
não esquece. Aí, a gente manda um good old boy subir para derrubar, o
bicho pula, e os cachorros pegam’
‘Ah, ele sobre lá até o galho onde está o bicho e sacode até o guaxinim
pular.’
(…)
“Sinatra estava trabalhando em um filme que ele mesmo não gostava, ele
mal podia esperar que acabasse. Ele estava cansado de toda publicidade
em torno de seu namoro com Mia Farrow, de 20 anos, que não estava à
vista esta noite, ele estava bravo que um documentário sobre a sua vida da
CBS, a ser exibido em duas semanas, estava entrando demais em sua
privacidade, até mesmo especulando sobre sua suposta amizade com os
líderes da máfia; ele estava preocupado com sua apresentação de uma hora
na NBC, com o show intitulado Sinatra – A Man and his Music, no qual iria
cantar dezoito musicas com uma voz que, nesse momento, apenas a
algumas noites da estréia, estava fraca e incerta. Sinatra estava doente.
(…) Frank Sinatra está resfriado”.[2] (1993, p. 173)
Esse recurso faz com que o leitor consiga observar a cena, mesmo sem tê-la
pessoalmente presenciado. Wolfe diz que era como “criar a ilusão de olhar a
ação pelos olhos de alguém que estava de fato na cena e envolvido nela,
em vez de um narrador bege”. (2004, p. 33)
“Um sino toca, um sino de mesa de jantar, pelo som, do tipo com que se
chama a criada da cozinha, e a festa de transfere do salão para a sala de
estar. Felicia abre o caminho, Felicia e um homenzinho cinzento, de cabelo
cinzento, rosto cinzento, terno cinzento e um par de costeletas modernas
mas cinzentas. (…)
‘Lenny!’ disse ela. ‘Diga para o pessoal entrar!’ Lenny ainda estava nos
fundos da sala de estar, perto do salão. ‘Pessoal!’, disse Lenny, ‘Para cá!’
O novo estilo que surgia nas redações inspirou diversos jornalistas a compor
novas reportagens que, posteriormente, viriam a se tornar obras-primas,
clássicos do jornalismo. Truman Capote, Gay Talese, Norman Mailer e Tom
Wolfe incentivaram gerações com uma nova maneira de se passar
informação, que dava aos leitores uma maior identificação com a notícia e
com seus personagens.
“’Olá, querida’- Joe Louis disse a sua mulher, ao vê-la esperando por ele no
aeroporto de Los Angeles.
Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se ponto na ponta dos pés para beijá-
lo quando, de repente, parou.
‘Ah, benzinho’, ele disse, dando de ombros. ‘Fiquei acordado a noite inteira
em Nova York e não tive tempo de…’
‘A noite inteira!’, ela cortou. ‘Quando está aqui, você só quer saber de
dormir, dormir e dormir.’
‘Benzinho’, disse Joe Louis, com um sorriso cansado, ‘eu estou velho.’
‘É’, concordou ela, ‘mas quando vai para Nova York, você tenta ficar moço
de novo.’. (1976, p. 317).
“Para mim, agora ele [o texto dessa primeira parte] representa minha visão
juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura de admiração e espanto,
e me lembra também de quão destrutiva uma cidade pode se tornar,
quanto ela promete muito mais do que pode cumprir, e de como estava
certo E.B. White quando escreveu, muitos anos atrás: ‘Ninguém deve vir
morar em Nova York, a menos que esteja disposto a ter muita sorte’”.
(1992, p. oito)
“Está no lendário das colunas sociais: Truman Capote, Gore Vidal e Norman
Mailer, em sarau literário, discutiam livros. Cada qual, evidentemente,
falando de seus próprios livros. Capote, o mais baixinho e fisicamente frágil
dos três, assim como de longe o mais venenoso, virou-se e disse (Capote
era uma das poucas pessoas no mundo capazes de ‘virar-se’ e dizer alguma
coisa): ‘Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas
a verdade é que eu escrevi uma obra prima, e vocês não’”. (2006, p. 7)
Norman Mailer, presente no sarau descrito acima, também era um dos
representantes desse estilo. Nascido em 1923, em Nova Jersey, cresceu no
Brooklyn, famoso bairro novaiorquino. Duas vezes ganhador do Prêmio
Pulitzer (em 1968 e 1979), fez o relato jornalístico “A Luta”, um de seus
textos mais fortes e conhecidos.
Essas reportagens e muitas outras fizeram com que o estilo ganhasse força
e notoriedade até os dias atuais. Com recursos como a transcrição de
diálogos, descrição cena a cena, ponto de vista da terceira pessoa e
descrição de status de vida, os novos jornalistas revolucionaram a imprensa
americana na época, movimentando ainda mais a as décadas de 60 e 70.
Nos capítulos que seguem fazemos uma análise de outro estilo também
surgido nessa época, intitulado Gonzo Journalism, ou Jornalismo Gonzo. As
relações entre os dois estilos, suas características, diferenças e
semelhanças serão abordadas com mais profundidade ao longo do trabalho.
Dezoito meses de convivência depois, foi lançado Hell’s Angels: The Strange
and Terrible Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs (1966), – reeditado mais
de 35 vezes – no Brasil simplificado para Hell’s Angels: Medo e Delírio sobre
duas rodas. A marca “medo e delírio” iria acompanhá-lo por quase toda sua
biografia. Fugindo das notícias sensacionalistas que eram lançadas sobre a
gangue, Thompson deu seu relato sem querer desmoralizar seus membros,
mas mostrando como era a vida de pessoas tão à margem da sociedade. Foi
nesse período junto aos Angels que Thompson inseriu em sua vida, de modo
mais agressivo, o uso de entorpecentes, característica que seria
transpassada e refletida em seus textos ao longo de sua trajetória.
“Hells Angels”, o livro, é tido como o embrião do que mais tarde viria a se
tornar o estilo Gonzo de se fazer jornalismo. Seria o único de sua bibliografia
a ser citado, inclusive por Tom Wolfe, como uma obra representante do New
Journalism. Sobre isso, Wolfe diz:
“Em 1966 começavam a surgir feitos de reportagem extraordinários,
espetaculares. Ali estava uma raça de jornalistas que, de alguma forma,
tinha capacidade de penetrar em qualquer ambiente, até nas sociedades
mais fechadas, e lutar pela vida. (…) Mas, nesse ano, a Medalha de Honra
de melhor de todos os escritores freelances foi para um jornalista chamado
Hunter Thompson, que rodou com os Hells Angels durante dezoito meses –
como repórter e não como membro, o que teria sido mais seguro – a fim de
escrever Hells Angels: Medo e delírio sobre duas rodas”. (Wolfe, 2004, p.
46).
“Esse livro trouxe a Thompson toda a atenção da mídia popular e ele foi
rápido ao abraçar essa oportunidade. Mas de algum modo ele achou seu
lugar na mídia alternativa, como Ramparts, Scanlan’s Monthly e a revista
Rolling Stone. Mas foi no jornal Scanlan’s que em 1970 ele publicou “The
Kentucky Derby is Decadent and Depraved”[1] e o jornalismo gonzo
nasceu.”[2]
Durante todo o percurso de sua vida, ele continuou com um estilo crítico e
ácido, escrevendo para veículos como Playboy, Rolling Stone, San Francisco
Chronicle, Esquire, Vanity Fair, entre outros. Terminou sua vida escrevendo,
para o site do canal esportivo ESPN, uma coluna intitulada “Rey Rube!”. Em
fevereiro de 2005, suicidou-se em sua propriedade em Colorado, com um
tiro na cabeça, deixando esposa e um filho, Juan.
[2] Site da revista The New Yorker, 7 de Março de 2005. Tradução Livre.
São elas:
• Temática repetida
Não raramente, Thompson abria seus textos citando frases que introduziam
ao leitor o clima de toda a narrativa. Podiam ser frases famosas, de outros
autores, ou mesmo suas, usadas com pseudônimos.
Já em Medo e Delírio em Las Vegas, ele começa com “Aquele que faz uma
besta de si, livra-se da dor de ser um homem”, atribuída simplesmente a Dr.
Johnson. Essa frase também se torna muito apropriada ao texto, já que a
narrativa que se segue mostra a experiência do autor com o uso de diversos
entorpecentes, tornando-se o próprio uma besta. De certa forma, suas
citações davam o clima do que estaria por vir em seus textos, e talvez até
interagindo mais com o leitor. Othitis completa:
“Ele usava citações de todo mundo. Desde Bonnie Parker, F.Scott Fitzgerald,
Horatio Alger, até filmes, músicas, apenas para nomear algumas fontes. Ele
também usava suas próprias frases, sob os pseudônimos Raul Duke, F.X.
Leach e Sebastian Owl. De alguma forma até irônica, sua marca registrada
‘medo e delírio’ acabou virando citação no Bartlett’s Book of Modern
Quotations” (1994) [1].
Em A Grande Caçada aos Tubarões, o autor inicia com a seguinte frase de
Joseph Conrad: “A arte é longa, a vida é curta, e o sucesso fica longe
demais” (p. 9). No texto, que é o prefácio da edição, o autor fala de como
selecionou os artigos para esse livro, que reúne alguns de seus melhores
artigos, publicados em diversos veículos. É antevéspera de Natal, e ele está
em um escritório na Quinta Avenida de Nova York, sozinho com sua
máquina de escrever. A frase se encaixa em suas palavras quando ele dá a
entender não merecer um livro de Obras Reunidas, como o que preparava
então. Como se ainda achasse, realmente, que “o sucesso fica longe
demais”. Ele diz:
E mais adiante:
“Eu provavelmente não vou fazer isso (…), e provavelmente vou terminar
esse sumário, ir para casa comemorar o Natal e ter que conviver por mais
cem anos com toda essa baboseira que estou reunindo”. (Thompson, 1977,
p. 10)
De fato, Thompson sabia de seu sucesso, mas nunca lidou bem com isso,
haja vista o pensamento suicida 28 anos antes de sua morte. Ele próprio
parecia não acreditar que seu sucesso chegaria, ou que ele estaria vivo para
presenciá-lo.
Medo e Delírio e Las Vegas deveria ser uma narrativa sobre a corrida de
motos Mint 400, no deserto de Nevada, para a revista Sports Illustrated. Em
vez disso, Thompson leva um amigo para Las Vegas e descreve uma série
de fatos ocorridos enquanto experimentava entorpecentes, fazia amizade
com turistas, garçons, repórteres. O artigo acabou sendo recusado pela
revista em questão, porém deu mais visibilidade a seu autor ao ser
publicado em livro.
“Planos?”
Esperávamos o elevador.
“Lucy” Eu disse.
Ele me encarou.
“Ela é perfeita para este serviço”,Eu disse. “Estes policias pagariam 50 paus
por cabeça para cobri-la de porradas e depois fazer uma suruba. Nós
podemos colocá-la em um daqueles motéis de segunda, pendurar imagens
de Jesus por todo o quarto e depois soltar estes porcos em cima dela… ela é
toda forte, e sabe se cuidar” (1971, p.114-115)[2]
Esse recurso é descrito por Othitis como um aspecto único de sua escrita,
mas é feito de maneira natural. Thompson usa sentenças longas e
complexas, com vocabulário mais agressivo que o normal. Por exemplo,
ainda em Medo e Delírio em Las Vegas, Thompson descreve uma
experiência de alucinações sob efeito de substancias tóxicas:
“The room service waiter had a vaguely reptilian cast to his features, but I
was no longer seeing huge pterodactyls lumbering around the corridors in
pools of fresh blood. The only problem now was a gigantic neon sign outside
the window, blocking our view of the mountains (…)…”(1971, p. 27).[3]
“Calçadas cheias de gente, todas com o mesmo destino, indo para Churchill
Downs. Molecada arrastando caixas térmicas e cobertores, garotas com
shorts rosas e apertados, muitos negros… Caras ngros usando chapéus de
feltro branco com faixas de oncinha, guardas sinalizando para o trânsito
prosseguir.
A multidão era densa por muitos quarteirões ao redor da pista. Muito lento
andar pela multidão, muito quente. No caminho para o elevador do
camarote de imprensa, assim que se entrar no prédio da sede, demos com
uma fileira de soldados carregando cassetetes brancos e compridos,
daqueles usados para conter tumultos. Mais ou menos dois pelotões, com
capacetes. Um homem perto de nós disse que eles estavam esperando pelo
governador e seu séqüito. Steadman olhou para eles nervoso. ‘Por que eles
têm esses porretes?’. ‘Panteras Negras’, eu disse.” (1970, p.30)
• Captação Participativa
• Consumo de drogas
Essa aproximação entre os dois estilos pode ser facilmente confundida, uma
vez que ambos surgiram numa época em que o jornalismo estava em
profundas transformações, logo tudo que surgisse de inovador, no sentido
de transformar a regra vigente, podia ser chamado de Novo. Percebemos
que ambos os estilos usam o diálogo como forma de aproximar o leitor da
cena, tornando mais fácil a imersão na leitura e o conhecimento de
personagens. Além disso, os dois estilos também usam a descrição para
mostrar ao leitor o clima do ambiente, ou mesmo acolher o personagem
junto ao leitor. Ambos os estilos utilizavam também a técnica de imersão
na realidade, para através da convivência com os personagens da matéria,
passar veracidade aos seus leitores. Porém a imersão Gonzo era diferente
da imersão dos novos jornalistas.
O que vamos perceber ainda é que o Jornalismo Gonzo possui, sim, essas
semelhanças, mas que também suas características próprias mostram com
clareza como esse estilo não pode ser chamado de New Journalism, e ainda
mais, que seu título de Jornalismo, muitas vezes, é colocado em xeque.
Tendo sido agora identificadas as principais características do estilo Gonzo,
na maioria das vezes bem diferentes das do new journalism, passaremos a
uma nova etapa desse trabalho. No capítulo seguinte discutiremos como o
estilo de Thompson se assemelha a outras formas de arte como o gênero
literário da crônica e como o gênero de arte visual da caricatura. Essa
aproximação é que nos guiará na discussão dos próximos capítulos.
Essa pode ser a característica que mais tenha marcado o estilo Gonzo, e
tenha ajudado a deixar sua marca no hall das artes e da contracultura.
Sempre que ia a campo, Hunter Thompson não costumava, como todos os
repórteres costumam, ser acompanhado de um fotógrafo. Em vez disso, seu
acompanhante era, sempre que possível, Ralph Steadman, um exímio
cartunista e ilustrador.
Mais ainda, Thompson faz de seu próprio texto uma caricatura da sociedade
americana. No texto que tomamos como exemplo aqui, Thompson descreve
uma tradicional corrida de cavalos americana, porém sem se apegar aos
acontecimentos esportivos, mas sim, tentando retratar a sociedade
presente no local. Esse retrato é feito de maneira exagerada, sempre
apontando os pontos negativos daqueles presentes. A imagem do público
passada ao leitor é sempre de uma sociedade que abusa do uso de bebidas
alcoólicas, sem pudores e preconceituosa. Thompson fala de sua verdadeira
intenção ao chegar no local da corrida acompanhado de Steadman:
‘Claro’, respondi. ‘Só vamos ter que tomar cuidado para não pisar na barriga
de alguém e começar uma briga’. Fiz pouco caso. (…) Milhares de bêbados
cambaleantes e raivosos, ficando mais e mais furiosos à medida que
perdem mais e mais dinheiro. Lá pelo meio da tarde, vão estar virando mint
juleps[1] com as duas mãos e vomitando um no outro entre as corridas.’”
(1970, p. 25-26)
Ao falar sobre os desenhos de Steadman para o texto, ele dizia procurar por
um rosto especial, que seria usado para a ilustração da abertura da matéria.
Nessa busca, ele descreve a faceta do público presente, segundo sua
observação:
A morte e sua foice chegam mais cedo para essa gente… fantasmas
barulhentos no gramado à noite, berrando lá fora perto daquele crioulinho
de ferro com roupa de jóquei. Talvez seja ele que esteja gritando. Delirium
tremens severos e muitos rosnados no clube de bridge. Afundando com a
bolsa de valores. Oh, Jesus, o garoto acaba de destruir o carro novo, se
arrebentou no grande pilar de pedra no fundo da rua. Perna quebrada? Olho
torto? Manda ele pra Yale, por lá conseguem curar de tudo.
Yale? Você viu o jornal de hoje? New Haven está sitiada. Yale está apinhada
de Panteras Negras… Vou te falar coronel, o mundo ficou louco, louco de
pedra. Ora, me contaram que uma jóqui mulher talvez cavalgue no Derby
hoje”. (1970, p. 31)
Nesse pequeno trecho, Hunter faz um diálogo mental, como se estivesse ele
próprio observando essa conversa. Percebemos como ele julga a sociedade
como sendo infeliz, praticamente sem planos de vida, apenas à espera da
morte. Ele mostra também seu ponto de vista sobre como estariam
preocupados com a resolução de problemas, como se mostram aos vizinhos,
como aparentam ser felizes, como se realizaram no Sonho Americano.
Quando ele diz, “manda para Yale”, uma tradicional e reconhecida
universidade americana, é como se todos os problemas de personalidade de
uma juventude fossem resolvidos, uma vez que agora estão sob uma
educação de confiança. Além disso, ele observa também o medo da
sociedade com a ameaça estranha, no caso os Panteras Negras. Essa
característica sempre esteve presente na sociedade americana, desde a
época do extermínio indígena, até hoje, com atentados terroristas. Por fim,
ele comenta o preconceito, ao imaginar o absurdo que seria, em plena
década de 70, uma mulher competir com homens em uma corrida
reconhecidamente masculina. Enfim, todas essas observações são feitas de
maneira exagerada, uma vez que fazem parte de um diálogo mental que
nunca existiu. Mas mais ainda, reafirmam o caráter caricatural com que
Thompson vê a sociedade americana.
A obra de Thompson é ligada à caricatura não só pelo texto, mas ainda por
sua proximidade com a arte de Ralph Steadman, mais tarde denominada
Gonzo Art. Essa parceria ainda renderia notoriedade e atenção às duas
personalidades O primeiro trabalho dos dois juntos foi justamente na
inauguração do estilo Gonzo. No artigo “O Kentucky Derby…”, Thompson
conta como conheceu Steadman e como foi essa primeira “aventura” em
conjunto. Observemos a ilustração a seguir:
Figura 1
A persona, segundo Carl Gustav Jung[3], é a forma pela qual uma pessoa se
apresenta ao mundo. Muitas vezes é o caráter que uma pessoa decide
escolher e através dele enfrenta seus relacionamentos com os outros a sua
volta. A persona inclui todos nossos papéis, sociais, que tipo de roupa
usamos, nosso estilo de expressão pessoal. O termo é derivado de uma
palavra em latim, que significa máscara, que por sua vez, se refere às
mascaras utilizadas pelo teatro Grego. Ao capturar a imagem de Thompson
em suas caricaturas, Steadman o fez mais próximo à realidade, justamente
por ele ser naturalmente uma figura caricata. Observemos as figuras a
seguir:
Figura 2 Figura 3
[1] A bebida tradicional do Kentucky Derby, feita com água, açúcar, menta e
Bourbon.
[3] www.psiqweb.med.br
Esse histórico nos serviu de base para elaborarmos a parte final do trabalho,
aproximando o estilo Gonzo de outros tipos de arte, como a caricatura e a
crônica. Com a caricatura, vimos que o estilo gonzo se assemelha devido a
uma visão distorcida e exagerada da sociedade, tanto por meio dos textos
de Hunter Thompson como através das ilustrações de Ralph Steadman.
Percebemos ainda como essa aproximação criou um estilo de arte
contemporânea chamada de Gonzo Art. Percebemos ainda como o próprio
ilustrador fez parte do imaginário Gonzo virando um dos personagens dos
textos de Thompson e, conseqüentemente, como Thompson virou o melhor
e maior personagem das ilustrações de Steadman (ver anexos).
Seu estilo não convencional pode não ter entrado para a história do
jornalismo e da imprensa em geral, nem ser estudado em academias, mas
sua importância como agente da contracultura é essencial para
entendermos uma época de mudanças, em que o mundo passou a tomar
outro rumo, seja no comportamento social, na política ou na imprensa.