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Universidade Católica Portuguesa

João Domingos Bomtempo


Breve abordagem à vida e obra
Contextualização da sua época

Porto 2010
Universidade Católica Portuguesa
Escola das Artes

João Domingos Bomtempo


Breve Abordagem da vida e obra
Contextualização da sua época

Trabalho final da cadeira de Cultura Portuguesa

Orientador:
Prof. Dr. Vítor Teixeira

José António Machado


Porto 2010
Introdução

Em 1816 é publicado na Alemanha o seguinte depoimento sobre o


que se passava então na vida musical em Portugal:

“Exceptuando aqueles [portugueses], muito poucos, que são


verdadeiramente instruídos na arte dos sons, o resto acharia, por exemplo,
as sinfonias, aberturas e quartetos de Mozart, Beethoven (…) ou mesmo
Haydn, insípidos, maçadores e até mesmo antagónicos. Pelo contrário, o
Klingklang oco de triviais aberturas italianas e outras composições do
mesmo estilo é acolhido com prazer e retribuído com ruidosos aplausos”1

É neste contexto de ignorância e hostilidade à actividade musical


praticada há décadas no coração da Europa, que a figura de João Domingos
Bomtempo (1775 – 1842) emerge.

1
Allgemeine Musikalische Zeitungde, Leipzig 1816, Cit. In Manuel Carlos de Brito e David
Cranmer, Crónicas da Vida Musical Portuguesa na Primeira Metade do Século XIX, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.
Vida

João Domingos Bomtempo nasceu em Lisboa a 28 de Dezembro de


1775 e faleceu na mesma cidade a 18 de Agosto de 1842. Era filho de
Francesco Saverio Bomtempo, oboísta na Corte de Lisboa, e que veio a ser
o seu primeiro professor de Música. Desde cedo iniciou os estudos de
música oboé e contraponto, com seu pai que viera para Portugal no tempo
de D. José. Estudou no Seminário Patriarcal e aos 14 anos foi admitido na
Irmandade de Santa Cecília como cantor da Capela Real da Bemposta e aos
vinte anos tomou o lugar de seu pai, entretanto falecido, na Real Câmara.

Em 1801 o músico decide ir para França contrariando o costume dos


músicos portugueses da época e pôs de lado uma eventual continuação dos
seus estudos em Itália. Assim, nesta data, no rescaldo da assinatura do
Tratado de Badajoz e com o agravamento das condições políticas e
militares, vai para Paris, onde encontra o melhor ambiente para
desenvolver a sua vocação musical onde conviveu com o grupo de exilados
adeptos das novas correntes filosóficas e políticas, que se reuniam à volta
do egrégio poeta Filinto Elisio. Com esta atitude comprometeu a sua
carreira no campo operático. Acolhido por este grupo de emigrantes que
partilham as suas ideias liberais inicia uma carreira de pianista virtuoso
inspirado por Clementi, Cramer, Dussek (músico muito apreciado por
Chopin) e outros, ao mesmo tempo que estreia ele mesmo algumas das suas
primeiras composições. É dessa época, a “Grande Sonata para Piano,
dedicada a Sua Alteza Real, a Princesa de Portugal” (Op. 1), o “Primeiro
Concerto em Mi bemol para Piano e Orquestra” (Op. 2) o “Segundo
Concerto para Piano” (Op. 3), as “Variações sobre o Minueto
Afandangado” (Op. 4 e) ainda, “Elogio aos Faustíssimos Dias de S. S. D.
Carlota Joaquina” (Op. 5).

As primeiras obras de Bomtempo são muito apreciados pelos parisienses e


prontamente publicadas pelas casas Leduc e Pleyel em Paris. Estas obras
têm forte inspiração em Clementi. Quando em 1804 atinge uma fama
realmente importante, aparece, entre outros lugares, na Salle Olympique
como pianista e compositor. Em Maio de 1809, por exemplo, o jornal “Le
Publiciste” dava de um dos seus concertos a seguinte notícia:
“A maneira de tocar piano [de Bomtempo] conquistou todos
os votos, pela agilidade e energia da execução, pela nobreza e alto estilo,
que só raramente se vêem reunidos no mesmo grau. Nunca dedos tão
ligeiros nem tão firmes percorreram o teclado; nunca foi dada tanta
expressão ao adágio num instrumento que parece ser o menos indicado
para tal. O senhor Bomtempo mereceu também elogios como compósito”.

Entretanto, em Portugal, as tropas de Napoleão sofriam pesadas


derrotas infligidas pelo exército luso-inglês e a sua situação em França
começou a tornar-se delicada, pelo que vai para Londres em 1810, ano em
que a sua 1ª Sinfonia é alvo dos maiores elogios por parte da crítica
parisiense. Na capital britânica é uma vez mais bem recebido pela
comunidade portuguesa. Também algumas famílias da aristocracia inglesa
lhes dão as boas vindas especialmente como professor de piano. É então
que se começa a relacionar com alguns dos mais importantes músicos do
seu tempo como Clementi e John Field e é professor da filha de Lady
Hamilton.

O contacto com Clementi, a quem o ligavam laços de amizade desde


Paris, torna-se mais frequente e é na editora do músico italiano que
Bomtempo publicará a maior parte das suas obras. Publica “Variações
sobre um tema de Paesiello - Nel cor piú non mi sento” (Op. 6), o
“Terceiro Concerto para Piano” (Op. 7), o “Capricho e Variações sobre o
God Save The King”( Op. 8) e “Três grandes sonatas para Piano” (Op. 9)
e muitas outras obras. Dado o perfil das pessoas com que se relaciona é
provável que date desta época a sua iniciação na Maçonaria.

Em 13 de Maio de 1813, D. Domingos António de Sousa Coutinho,


Conde do Funchal, diplomata, ao tempo embaixador de Portugal em
Londres, realiza um grande festival com dois propósitos: o de celebrar o
aniversário daquele que viria a ser o rei D. João VI e a expulsão do exército
francês do território português em consequência da derrota de Massena.
Influenciado pela euforia que se instalara após a vitória luso-britânica, João
Domingos Bomtempo compõe uma cantata intitulada Hino Lusitano. Op.
10, sobre versos do poeta liberal Dr. Vicente Pedro Nolasco da Cunha.
Neste festival apresentou-se perante uma audiência de personalidades que
incluía a quase totalidade do Conselho de Ministros britânico. As obras
compostas nesse período incluem a “Primeira Grande Sinfonia” (Op. 11),
executada pela primeira vez em Londres em 1810, o “Quarto Concerto
para Piano” (Op. 12), executado pelo autor em Hannover Square, “Uma
Sonata Fácil para Piano” (Op. 13), “Grande Fantasia para Piano” (Op.
14), que dedica a um ilustre emigrado, liberal e seu particular amigo,
Ferreira Pinto, “Duas Sonatas e Uma Ária Popular com Variações para
Piano” (Op. 15) e um “Quinteto para Piano” (Op. 16).

Em 1815, após o congresso de Viena, regressou a Portugal no


contexto de uma Europa pacificada. Nesta sequência compõe uma cantata
“A Paz da Europa” (Op. 17), que teria uma edição em Portugal, em versão
reduzida com o título “O Anúncio da Paz”. Preocupado com o
desconhecimento da música instrumental portuguesa do período clássico,
uma das ideias que trazia em mente era fundar em Portugal uma sociedade
de concertos ao estilo da Philharmonic Society londrina, esta fundada em
Londres em 1812. Pretendia deste modo preencher uma grave lacuna na
cultura musical portuguesa.

Mas o ambiente que se vivia em Portugal, tornara-se ainda mais


difícil do que aquele que deixara em 1801 devido à ingerência inglesa na
política portuguesa, à ausência da Corte portuguesa no Brasil e o
agravamento da repressão contra a Maçonaria Portuguesa e contra todos os
que ousavam defender os princípios liberais do constitucionalismo. Deste
modo decide regressar a Londres onde publica “Três Sonatas para Piano e
Violino” (Op. 18) e “Elementos de Música e Método para Tocar Piano
Forte” (Op. 19), a sua principal obra pedagógica que dedicou à “nação
portuguesa”. Além disso compôs ainda, “Grande Sonata para Piano” (Op.
20), “Fantasia e Variações para Piano sobre a Ária de Mozart Soyez
Sensibles” (Op. 21), Uma Ária da Ópera “Alessandro in Efeso” composta e
arranjada para Piano (Op. 22), uma Valsa e uma Marcha.

Em 1816, passa por Paris e regressa a Lisboa aquando da morte de


D. Maria I no Brasil. Em 1817 o General Gomes Freire de Andrade é
enforcado no Forte de S. Julião da Barra e este ambiente de repressão leva-
o a Paris, de novo em 1818, mas também aí, a crispação política não
propicia às artes. De regresso a Portugal, dedica-se à composição da que é
considerada a sua obra-prima, o “Requiem à memória de Camões” (Op.23),
integrada no mesmo espírito de revivalismo que tinha originado a
publicação em França da famosa edição de “Os Lusiadas” pelo morgado de
Mateus (1817). Este Requiem é talvez o mais importante composto entre o
Requiem de Mozart (1791) e o de Berlioz (1837).

João Domingos Bomtempo volta a sair do país para, em 9 de Março


de 1821, apenas alguns meses depois da Revolução de 1820, oferecer ao
Soberano Congresso, uma nova missa de homenagem à regeneração
política portuguesa. Esta missa foi cantada na Igreja de S. Domingos no dia
28 de Março, seguida de um “Te Deum” mas, realizada a homenagem à
nação, Bomtempo pode então assumir o que não podia antes e, compõe
uma nova Missa de Requiem, desta vez, à memória de Gomes Freire de
Andrade e aos supliciados de 1817. Agora, já o nome do prestigiado
General e grão-mestre da Maçonaria Portuguesa podia ser evocado, sem os
riscos que essa atitude comportaria, alguns anos antes.

João Domingos Bomtempo alcançou a estima de D. João VI e dirigiu


as exéquias fúnebres de D. Maria I quando os seus restos mortais chegaram
a Lisboa. Conseguiu obter as condições que lhe permitiram fundar a
ambicionada Sociedade Filarmónica, que iniciou a sua actividade em
Agosto de 1822 com a realização de concertos periódicos. No entanto, a
política interpõe-se uma vez mais no seu caminho, quando a reacção
miguelista lhe proíbe a realização dos concertos então levados a palco na
Rua Nova do Carmo e mesmo após a sua reabertura - no insuspeito palácio
velho do duque de Cadaval, onde é hoje a estação do Rossio – pela
influência de alguns fidalgos admiradores de Bomtempo, viu as suas portas
serem definitivamente fechadas após os acontecimentos de 1828
(proclamação de D. Miguel), altura em que o Absolutismo volta ao poder.
Este foi um período difícil na vida do compositor português, onde até a sua
integridade física esteve seriamente ameaçada. Acabou por ter de se
refugiar no Consulado da Rússia em Portugal, mantendo-se aí durante
cinco anos, até à chegada a Lisboa das forças liberais de D. Pedro.

Com o constitucionalismo, João Domingos Bomtempo pôde retomar


a sua actividade artística e é nomeado por D. Pedro IV, professor da rainha
D. Maria II. Em 1835, compõe para celebrar o primeiro aniversário da
morte de D. Pedro IV, uma Segunda Sinfonia e um Libera Me. Em 1836, é
criado sob inspiração de Almeida Garrett, o Conservatório Geral de Arte
Dramática, sendo entregue a Bomtempo a Direcção da sua Escola de
Música, mantendo-se como chefe da Orquestra da Corte e onde acumulou
também as funções de professor de piano. Aí pretendeu implantar um novo
modelo de pedagogia musical contando para isso com o recurso aos
métodos do seu amigo Clementi, sem dúvida um dos mais notáveis mestres
do piano do seu tempo, na altura já falecido. Embora se dedique mais ao
ensino continua a compor até 1842, data em que compõe e dirige uma
missa festiva que seria executada na Igreja dos Caetanos por professores e
alunos do Conservatório. Viria a morrer alguns dias depois, a 18 de Agosto
de 1842, vítima de uma "apoplexia".

Alguns esforços têm sido feitos para divulgar a música de João


Domingos Bomtempo, nomeadamente algumas gravações, mas a grande
parte mantém-se desconhecida e inédita. As suas composições
compreendem concertos, sonatas, fantasias e variações, compostas para
piano-forte, desde sempre o seu instrumento preferido e do qual foi exímio
intérprete. Conhecem-se também duas sinfonias, embora se admita a
existência de mais cinco, que transmitem de um modo mais flagrante a sua
personalidade musical e as suas influências invulgares para compositor
ibérico da época, nomeadamente influências germânicas clássicas. São
ainda de destacar alguns trabalhos corais-sinfónicos como o “Requiem à
memória de Camões” e outros e ainda alguns fragmentos da ópera
“Alessandro in Efeso”.

A música de Bomtempo, apesar de revestida de inegável qualidade e


de ter alargado o panorama musical português da época, não é vanguardista
sendo mesmo menos moderna que a de Haydn e Mozart e muito menos do
que a de Beethoven (seu contemporâneo e compositor de transição
clássico-romântico). Por último é importante referir que João Domingos
Bomtempo foi sempre defensor dos valores portugueses e na sua obra
assumem posição de relevo os valores da liberdade individual e da
soberania da nação portuguesa.
Compositor

Bomtempo é autor de um vasto conjunto de sonatas, fantasias,


variações e concertos para o piano, que ilustra toda a gama de recursos do
instrumento. A influência de Mozart ou Clementi é nítida, mas há peças
que podem comparar-se com o próprio Beethoven. Se ouvirmos as
variações sobre a área de Paisiello “Nel Cor Più Non Mi Sento” dos dois
autores podemos concluir que as do Bomtempo evidenciam igualmente
enorme saber composicional e expressivo.

Para Paulo Ferreira de Castro, “a sua personalidade de compositor


revela-se talvez mais plenamente nas duas sinfonias que dele de conhecem
(As Primeiras – entendida a denominação no sentido moderno – compostas
por um autor português). Em algumas obras de música de câmara, e no
referido Requiem, evidenciando em geral uma assimilação, rara nos
músicos ibéricos da época, de certos elementos de estilo de Haydn e
Mozart”2.

2
Rui Nery e Paulo Ferreira de Castro, História da Música (Sínteses da Cultura Portuguesa),
Lisboa, I.N.C.M, p.133
Professor

Em 1816 publica em Londres a sua principal obra didáctica, Os


Elementos de Música e Método de Tocar Piano Forte, dedicada «à Nação
Portuguesa». Gerhard Doderer refere a importância desta obra por ser “o
primeiro método de piano em Portugal baseado numa concepção metódica
e didáctica. Além disso, o OP. 19 comprova claramente que se cultivava,
no Portugal de então, um estilo pianístico orientado tanto pela evoluída
técnica de construção de pianos daquela época como pela maneira de
tocar usada pelos mais avançados pianistas e professores de piano da
Europa Central”3.

3
Prefácio à edição em fac-simile, Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1979
Divulgador Musical

O regresso definitivo a Portugal ocorre em 1820, após o triunfo


(provisório) da causa liberal. Cria a Sociedade Filarmónica, inspirada na
Philarmonic Society de Londres, cuja actividade se mantém de modo
intermitente até 1828, devido às constantes oscilações de poder. Esta
sociedade é apoiada por membros da nobreza e da burguesia, tanto liberais
como absolutistas, muna lista de 271 subscritores encabeçada peço Duque
de Cadaval. O repretório incluía obras de Bomtempo, Boccherini, Hummel
ou Pleyel, e sinfonias de Hayden, Mozart e Beethoven. A estreia em
Portugal da 5.ª Sinfonia de Beethoven ocorreu neste contexto, cerca de 20
anos após a sua criação em 1808 – o que é notável para a época.
Conservatório

Em documento datado de 1834, Bomtempo fundamentava a sua


proposta de criação de uma escola de música:

“Quando pois se considera que pela fundação deste estabelecimento


tão pouco dispendioso, como fica demonstrado, cessa a enorme despesa,
que dantes de fazia com engajamento de músicos estrangeiros e por outro
lado se abre caminho ao desenvolvimento de génios nacionais no
aperfeiçoamento de uma arte tão estimada e cultivada nos melhores países
da Europa, é fácil reconhecer-se o proveito deste estabelecimento, tanto
mais vantajoso quanto menos gravoso se apresenta”.4

A proposta incluía, além do Director, Professores para as seguintes


disciplinas: piano-forte, Canto, Violino, Violeta, «Rabecão Pequeno»,
«Rabecão Grande» [Violoncelo e Contrabaixo], Oboé, Clarinete, Flauta,
Fagote, Trompa, Rudimentos, Solfejo e Acompanhamento de Órgão e
piano-forte, Língua Italiana e Língua Latina.

Após a vitória liberal de 1834, e por decreto de 5 de Maio de 1835, é


criado o conservatório de música, anexo à Casa Pia, e Bomtempo nomeado
director, cargo que exerceu durante 7 anos, até ao fim da vida. Esta escola
foi integrada em 1836 no Conservatório Geral de Arte Dramática, iniciado
por iniciativa de Almeida Garrett, que abrangia também as Escolas de
Declamação e Dança.

Refira-se a propósito que Garrett (Inspector Geral dos Teatros)


admirava muito Bomtempo (Presidente da Direcção do Conservatório e
Director da Escola de Música), o que não evitou atritos, como mostra uma
carta de Garrett em 1841: “Pela simpatia que tenho e consideração com a
nobre profissão dos artistas, e pessoalmente com o talento de V. S., lhe
escrevo estas linhas, para lhe fazer crer que está num erro incrível, e que
não posso nem devo condescender com a sua exigência que é inteiramente

4
Cit. In Maria José de La Fuente, “Bomtempo e o Conservatório de Lisboa” in João Domingos
Bomtempo – Catálogo da exposição dos 150 anos da sua mosrte, Lisboa, 1993, p.16
sem fundamento”. Tratava-se da adopção de um livro de registos de ordens,
que Bomtempo recusava mas que acabou por aceitar.

Do mesmo modo, surgem nesta altura problemas com os professores,


nomeadamente relacionados com as faltas, concursos e atrasos nos
pagamentos. Exemplifique-se com o seguinte depoimento sobre faltas,
redigido em 1841 por Joaquim Larcher, que substitui Garret:

“Falando das Escolas não devo deixar de louvar a assiduidade e


zelo da maior parte dos professores, assim como não devo deixar em
silêncio que, não havendo multas estabelecidas para as faltas dos
professores, não tenho meio algum para corrigir e coibir um ou outro mais
relaxado no cumprimento dos seus deveres”.5

5
Cit. In Maria José de La Fuente, op. Cit., p.18
Breve nota sobre o “Requiem à memória de Camões”

Em 1819 o requiem é estreado publicamente em Londres, com


grande impacto, logo após uma primeira apresentação privada em Paris. Na
cidade-luz estavam exilados os ilustres partidários da causa liberal, como o
Morgado de Mateus, que aí promoveu a figura de Camões com uma edição
luxuosa de “Os Lusíadas”, em 1817. Neste contexto se enquadra a
consagração do requiem à memoria de Camões, como afirma o frontispício
da partitura, publicada em Paris pelo editor Auguste Leduc:

“Messe de Requiem à Quatre Voix, Choeurs et Grand Orchestre,


avec Acconpagnement de Piano à Défaut d’Orchestre. Oeuvre consacré à
la Mémoire de L. de Camões, par J. D. Bomtempo. Oeuvre 23”.

Esta obra usa os textos essências da missa “Pro Defunctis”:


Introitus-Kyrie, DiesIrae (sequencia), Offertorium, Sanctus, Benedictus e
Agnus Dei. O Agnus Dei inclui o Communio e evoca no final o Requiem
Aeternam inicial, seguindo o princípio cíclico que será tão caro aos
compositores do romantismo. A tonalidade de base é a de Dó Menor, como
acontece no Requiem de Cherubini, que lhe é contemporâneo.

Aquando da sua primeira edição discográfica, em 1980, Fernando


Lopes Graça escreveu um expressivo depoimento:

“Diremos para já que o Requiem de Bomtempo é sem dúvida uma


bela e nobre peça de música religiosa situada entre dois marcos históricos
do género que são o Requiem de Mozart (1791) e o Requiem de Berlioz
(1837). (…) Seja como for a nós afigura-se-nos, porém, que o Requiem de
Bomtempo, mais “ingénuo”, se quisermos que o de Cherubini, leva
vantagem ao do seu ilustre contemporâneo numa meia dúzia de pontos,
que especificaremos: Maior variedade das situações texturais – oposição
de solos e coro que não existe em Cherubini; mais impressiva tradução do
tecto litúrgico; maior fluência, maior transparência do tecido sinfónico -
vocal; quase ausência de formularismo, ainda que não discreto;
conhecimento dos segredos da escrita imitativa; enfim, nenhuns vestígios
de estilo teatral, pecadilho em que, com frequência caía a musica religiosa
da segunda metade do sec. XVIII e princípios do sec. XIX, e de que não se
acha completamente isento Cherubini, ou não fora ele um notável
compositor operático.6

6
Lopes Graça, Notas incluídas na 1ª gravação moderna do Requiem, efectuada pela Orquestra
Sinfónica e Coro de Berlim – Disco LP, Secretaria de Estado da Cultura, 1980.
Romantismo e Reivindicação Nacionalista

A recepção ao romantismo musical europeu faz-se em Portugal


essencialmente através do melodramma italiano do ultiomo Rossini, de
Donizetti, Bellini e Verdi (divulgado a partir de 1843, com Nabucco), do
Faust de Gounod (estreado no São Carlos em 1865) e da grand opéra de
Meyerbeed (Le prophète e Les Huguenots em 1850 e 1854
respectivamente; L’Africaine, que põe em cena Vasco da Gama em 1869).
Pelo contrario, a cultura da musica germânica permanece em estado
embrionário, e com muito poucos reflexos na consciência musical
colectiva, até ao final do século: em 1883, o historiador do São Carlos,
Francisco de Fonseca Benevides, podia ainda escrever:

“O gosto pela boa musica tem-se desenvolvido[…]a despeito e não


obstante a indiferença dos poderes públicos pelo culto das artes belas, e a
oposição inepta e poucos conhecimentos de musica clássica da parte de
grande professores portugueses. O fogo sagrado do culto das composições
sublimes de Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert, Mendelsshon -
Bartholdy, etc. tem sido entretido em Portugal por um pequeno núcleo de
amadores, distintos tocadores, que com amor e inteligência têm dado vida
neste cantinho da Europa às inspiradas lucubrações dos grandes mestres
da Alemanha”.

A elaboração de uma metafísica da música instrumental, à maneira


de Hoffmann, Tieck ou Wackenroder, por exemplo, permanece um valor
quase totalmente estranho à litaratura portuguesa até à época de renovação
de referências culturais e de mentalidades iniciada, simbolicamente, com a
chamada Questão Coimbrã (1865 – 66) e as Conferencias do Casino
(1871). Serão, pois, autores como Antero de Quental e Eça de Queirós, na
sua primeira fase (em cujas obras se efectua a transição dos últimos
prolongamentos do romantismo para o ideário positivista e naturalista), os
primeiros a tentarem, de forma alias nada sistemática, uma aproximação
teórica à questão “música absoluta”:

“A música, só essa fada poderia achar linguagem de puros espíritos.


Os seus dois caracteres mais salientes são feitos para reproduzirem
inteiramente aquelas duas grandes expressões, a incerteza audaciosa e a
mórbida melancolia. Esses dois caracteres são de um lado, o vago, a
ilimitada liberdade que não imitando forma nenhuma determinada da
natureza, mas só uma relação ideal, pode por isso interpretar-se num sem
número de sentidos, subir, descer, oscilar entre mil sentimentos, e a todos
satisfazer. Nenhuma expressão diria melhor o estado flutuante, incerto dos
pensamentos, das crenças modernas, a cheia de ideias, de desejos
desordenados, mas vagos, que transborda desses corações ambiciosos –
por outro lado a elevação extraordinária de seus gritos, o contraste de
melodia e do choro, uma harmonia feita de suspiros, a medida que volta e
se repete, como vão e tornam a vir as lembranças num coração saudoso,
tudo isto acorda e desenvolve com uma força imensa o mal secreto das
almas, a tristeza, os longos cismas, a melancolia enfim”.7

No entanto, tal ideologia estética (dada alias a ausência de uma forte


tradição especulativa nesta matéria) não parece ter tido uma incidência
marcante nem gosto maioritário do público, nem a pratica dos músicos
portugueses. Das diversas componentes do imaginário romântico, os nossos
compositores parecem ter privilegiado claramente o sentimentalismo e o
heroísmo (associado em geral à exaltação patriótica) em detrimento do
fantástico e do lendário (seguindo assim, também sob este aspecto, o
exemplo da cultura operática italiana).

A problemática da constituição de uma música assumidamente


“nacional”, comum a todos os romantismos e que informa uma parte da
produção dos compositores portugueses do sec. XIX, integra-se pois neste
contexto, embora, como veremos, não tenha suscitado de imediato obras de
indiscutível projecção estética. A questão da recuperação de velhas
tradições nacionais, ainda conservadas na música do povo, surge no entanto
implícita ou explicitamente em vários autores do nosso romantismo
literário como Garrett e dá origem às primeiras recolhas impressas de
música popular.

Não faltaram ao longo do sec. XIX as operas de compositores


portugueses (e estrangeiros) sobre temas nacionais, ou, mais
especificamente, baseadas em obras da literatura romântica portuguesa,
mas, dada a ausência de estruturas teatrais adequadas, a maioria dessas
obras será composta sobre libretos em língua italiana, e executada pelas

7
Antero de Quental 1886
companhias líricas do São Carlos e do São João. Entre os casos notáveis
dessa corrente, contam-se, alem de várias Inês de Castro, Beatrice di
Portogallo e L’arco di Sant’Anna de Francisco Sá de Noronha (1820 –
1881), estreadas respectivamente em 1863 e 1867 (e baseadas em obras de
Garrett) e Eurico ou O presbítero de Carteia de Miguel Ângelo Pereira
(1843 – 1901), baseada em Alexandre Herculano. Ambos os compositores
eram oriundos do norte do país, e ambos emigraram muito cedo para o
Brasil, onde devem ter recebido a influência do movimento nacionalista
musical daquele país, consagrado pela criação de uma Imperial Academia
de Música e Ópera Nacional em 1857; é igualmente significativo o facto
de, uma vez regressados a Portugal, ambos terem encontrado no público do
Porto, possivelmente mais receptivo à reivindicação nacionalista que o do
São Carlos, a sua consagração como compositores (as referidas óperas de
Sá de Noronha foram criadas com ruidoso sucesso no São João, e o Eurico,
recebido com frieza em Lisboa, triunfou igualmente no teatro portuense em
1874). Referindo-se, quando da respectiva estreia lisboeta, à segunda ópera
de Sé de Noronha, comenta um observador:

“Esqueçamos por um momento que Noronha é português, e vejamos


bem claro, bem patente no admirável melodista um grande talento musical.
É triste dizer estas coisas, mas, desgraçadamente, aqui, sobretudo em
Lisboa, ainda se torna indispensável falar assim. O rótulo de nacional, nas
obras de arte e da indústria, continuará a ser, por algum tempo, uma
perigosa recomendação”.8

Musicalmente o estilo de Noronha não se distingue, na verdade, da


produção média italiana da época, com obvia influência do modelo
verdiano, o que não impedia que o mesmo critico considerasse:

“O seu engenho de compositor […] ligeiramente tocado daquela


doce e sonhadora melancolia que imprime o cunho tão peculiar no género
da poesia peninsular”9

Por fim, outros compositores da época em questão foram: Joaquim


Casimiro Júnior (1808 – 1862), figura que dominou a ópera cómica em
Portugal, Manuel Inocêncio Liberato dos Santos (1805 – 1887), mestre da
Capela Real e professor dos Príncipes, o portuense José Ernesto de

8
Andrade Ferreira
9
Andrade Ferreira
Almeida (1807 – 1869), Francisco Xavier Migoni (1811 – 1861) que foi
sucessor de Bomtempo como director do conservatório e mestre do teatro
São Carlos, João Guilherme Daddi (1813 – 1887) que teve a distinção de
tocar com Liszt num concerto publico em 1845, Eugénio Monteiro de
Almeida (1826 – 1898) e Carlos Bramão (1835 – 1874) que foi
considerado o continuador de Casimiro no domínio do teatro musical.
Bibliografia

Alvarenga (1993), João Pedro (Coordenação):


João Domingos Bomtempo, Lisboa: Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro.

Brito (1989), Manuel Carlos de:


Estudos de História da Música em Portugal, Lisboa:
Editorial Estampa

Brito (1989), Manuel Carlos de, Cranmer, David:


Crónicas da vida musical portuguesa na primeira
metade do século XIX, Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
Moeda

Brito (1992), Manuel Carlos de; Cymbron, Luísa:


História da Música portuguesa, Lisboa: Universidade
Aberta

Castro (1991), Paulo Ferreira de, Nery, Rui Vieira:


História da Música, Lisboa: Imprensa Nacional -
Casa da Moeda

Sarraute (1970), Jean-Paul:


Catálogo das Obras de João Domingos Bomtempo,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian

www.wikipedia.org

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