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Universidade de São Paulo

Instituto de Psicologia

História, memória, sofrimento


Curso Ministrado por
Vladimir Pinheiro Safatle

10 aulas
Primeiro semestre de 2015
História, memória, sofrimento
Aula 1

Eis, por exemplo, uma mulher que foi a um primeiro encontro. Ela sabe bem das
intenções, a seu respeito, do homem que lhe fala. Ela também sabe que cedo ou
tarde ela deverá tomar uma decisão. Mas ela não quer sentir a urgência: ela se
liga apenas àquilo que a atitude de seu parceiro oferece de respeitoso e discreto.
Ela não apreende essa conduta como uma tentativa para realizar o que se chama
“as primeiras aproximações”, ou seja, ela não quer ver as possibilidades de
desenvolvimento temporal que tal conduta apresenta. Ela limita seu
comportamento ao que há no presente, ela não quer ler nas frases que ele lhe
endereça outra coisa que seu sentido explícito. Se ele lhe diz: “Eu te admiro
tanto”, ela desarma esta frase de seu pano-de-fundo sexual. Ela liga aos
discursos e à conduta de seu interlocutor significações imediatas que ela
compreende como qualidades objetivas. O homem que lhe fala parece-lhe
sincero e respeitoso como a mesa é redonda ou quadrada, como a pintura da
parede é azul ou cinza. (...) É que ela não está a par do que deseja : ela é
profundamente sensível ao desejo que ele a inspira, mas o desejo nu e cru a
humilharia a lhe horrorizaria. (...) Mas eis que ele pega sua mão. Este ato de seu
interlocutor pode mudar a situação apelando a uma decisão imediata. Abandonar
esta mão é consentir ao flerte, é engajar-se. Retirá-la é romper esta harmonia
problemática e instável que faz o charme da hora. Trata-se de atrasar o instante
da decisão o máximo possível. Sabemos o que então se produz: a garota
abandona sua mão, mas não se percebe abandonando-a. Ela não se percebe
porque, por acaso, ela é neste momento toda espírito. Ela leva seu interlocutor
até as regiões mais elevadas da especulação sentimental, ela fala da vida, de sua
vida, ela se mostra sob seu aspecto essencial: uma pessoa, uma consciência. E
durante este tempo, o divórcio do corpo e da alma se realiza. A mão repousa
inerte entre as mãos quentes de seu parceiro – nem consentindo nem resistente –
uma coisa1.

Esta garota que esquece suas mãos é uma criação de Jean-Paul Sartre, em O ser
e o nada. Mesmo sendo uma criação literária, ela é uma bela ilustração do vínculo
profundo entre memória e consciência que constitui uma das bases da noção moderna
de sujeito. Para preservar a única situação na qual sabe como agir, a garota de Sartre
precisa restringir sua existência à literalidade do presente. Ela vive assim em um mundo
de coisas estáticas, não em um mundo de ações que engajam mudanças no tempo e que,
por isto, devem ser apreendidas como signos a serem interpretados, traços que carregam
uma história passada e futura. Seu mundo, para poder sobreviver em sua estaticidade,
deve ser um mundo sem memória. Sua consciência deve, a todo momento, esquecer:
esquecer as mãos que são tocadas, esquecer a rede de desejos na qual ela está presa,
esquecer as promessas que cada gesto do outro porta. Por usar o esquecimento como
modo de defender um mundo fixo e estático, a garota de Sartre adoece. Como adoecem
todos os que não poderão falar de si, contar a história de como estavam no parque e,
sentindo o desejo do homem que caminhava a seu lado, deixaram sua mão ser tocada.

1
SARTRE, L’être et le néant, p. 90
Deixaram-se tocar como quem interpreta um signo e abre sua existência para além da
literalidade do instante. Eles adoecem por não serem capazes de falar de si.
É certo que, em um certo sentido, a garota de Sartre poderá falar sobre si mesma,
ela lembrará de coisas que lhe ocorreram e de coisas que ela deseja. No entanto, esta
será ainda uma fala vazia. Pois lhe faltará um certo trabalho da memória que nós
aprendemos a definir como fundamento da auto-identidade individual. Pois nossa ideia
de identidade é, antes de tudo, a crença na possibilidade de uma identidade temporal,
consciência de uma certa continuidade no interior do tempo.
A ideia de que a quebra da capacidade de construir uma fala de si que seja a
narração do trabalho da memória é matriz de sofrimento psíquico estará presente não
apenas no exemplo de Sartre. A partir do final do século XIX: “a memória, que já era
considerada como o critério da identidade pessoal, transformou-se então na chave de
compreensão do espírito para as ciências”2. Ao menos três tipos de ciências da memória
se destacarão: 1) os estudos neurológicos sobre a localização dos diferentes tipos de
memória; 2) os estudos experimentais sobre os fenômenos ligados à lembrança; 3) um
gênero de reflexão sobre a psicodinâmica da memória e seu lugar na constituição de
modalidades de sofrimento psíquico. Destes três tipos, foi a reflexão sobre a
psicodinâmica da memória que influenciou de maneira decisiva a cultura ocidental e sua
noção de auto-identidade. Desde então, impedimentos do trabalho de memória e
sofrimento psíquico tecerão entre si relações profundas.
Notemos inicialmente como a constituição de “ciências da memória” era um fato
recente. Até então, conhecíamos artes da memória, ou seja, reflexões, normalmente
ligadas à retórica, que procuravam pensar técnicas capazes de ampliar nossa capacidade
de lembrança. A memória era uma questão de estocástica. Em um importante livro
sobre o assunto3, Frances Yates insiste no fato de o artifício fundamental das técnicas
antigas de recordação estar vinculado à capacidade de associar mentalmente imagens de
coisas a lugares organizados em sistemas arquitetônicos rigorosos, como uma casa ou
uma praça pública. Assim, o bom orador antigo seria aquele capaz de mover-se em
imaginação, durante seu discurso, através de uma edificação construída mentalmente,
extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de objetos, argumentos e
personagens. Tal artifício demonstra como a memória aparece então como um processo
de espacialização, como constituição de um verdadeiro espaço mental no qual
arquivamos imagens. Algo muito distinto do desvelamento da temporalidade própria
aos usos atuais da memória e da rememoração.
Tal modificação, no entanto, foi fruto do aparecimento de outro discurso com
aspirações científicas, a saber, a história. Desde os gregos, conhecemos uma modalidade
de discurso definida como história, termo que em grego significa “investigação”,
“conhecimento resultante de investigação”. Historia vem de histor, que significa
“testemunho” no sentido de ter visto algo. De Heródoto e Tucídides aos Iluministas, a
história significou, em larga medida, a “investigação através da interrogação de
testemunhas”4. Investigação cujo objetivo maior será permitir aos sujeitos servirem-se
do passado como quem se serve de uma coleção de exemplos5. Daí uma expressão
paradigmática de Cícero: Historia magistra vitae (história como mestre da vida).
2
Hacking, Ian; L’ ame réécrite : étude sur la personnalité multiple et les sciences de la mémoire, p. 313
3
YATES, Frances ;A arte da memória, Campinas: Edunicamp, 2008
4
ENGELS, Odilo; GÜNTHER, Horst, MEIER, Christian e KOSELLECK, Reinhart; O conceito de história, Belo
Horizonte: Autêntica, 2013, p. 41
5
Como dirá Koselleck: “Assim, ao longo de cerca de 2000 anos, a história teve o papel de uma escola, na
qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grande erro” (KOSELLECK, Reinherdt;
Futuro Passado, p. 42)
Narrar-se a histórica como quem procura feitos notáveis que nos indique como proceder
diante de situações análogas no presente. Mas essa concepção de história com sua força
pedagógica exigia a crença em um tempo continuo, no qual passado e presente se
desdobrariam no interior de uma mesma duração. Condição necessária para que
interesse pelo passado reduza-se, basicamente, à procura de relatos exemplares a serem
repetidos no presente. Como disse o historiador Reinhart Koselleck: “Seu uso remete a
uma possibilidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidade humanas em
um continuum histórico de validade geral”6.
Mas a partir do Iluminismo e, principalmente, da Revolução Francesa, uma
compreensão renovada da história se fará sentir. A experiência de um tempo
radicalmente novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem político
poder ser profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na ordem
política não implica mais agir a partir do reconhecimento de exemplos vindos do
passado, mas implica o conhecimento de causas que determinam o presente como
depositário da latência do que ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha
que empurra o tempo para frente em direção a uma realização sem referência com o que
até agora foi feito. Haveria um projeto que parece indicar a possibilidade de encarnar na
ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da noção de
“progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão e é dela que, a partir de
agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será mais o espaço de uma
reprodução do passado no presente, mas de uma construção que pode inicialmente
parecer começar no passado em direção ao presente. No entanto, como veremos neste
curso, ela das pressões do presente à reinscrição contínua do passado, à descoberta da
plasticidade do passado.
Notemos simplesmente que será a partir deste momento que poderemos falar de
“a história” como autônoma e autoativa, e não apenas “história de ...”. Esta autonomia
expõe que a história não será mais apenas a narrativa de ações de sujeitos (como a
história de César) ou de objetos determinados (como a história do Brasil). Ela será um
“metaconceito”7 que descreve o processo de temporalização da experiência, com causas
e consequências próprias ao desdobramento temporal, com uma velocidade própria. A
história como discurso com aspirações científicas pode se constituir, assim pode
aparecer um “tempo especificamente histórico”8.
Tal transformação do conceito de história não deixou de rapidamente ter
consequências para a maneira com que, a partir de então, compreenderemos a
consciência. Esta mudança no regime do tempo terá, como uma de suas consequências
maiores, a mudança na estrutura do sujeito, pois tempo e sujeito são conceitos
profundamente articulados. Neste sentido, devemos tirar as consequências da história, a
partir do começo do século XIX, aparecer para pensadores do porte de Hegel e Marx
como a destinação necessária da consciência, não apenas por ela ser o campo no qual se
dá a compreensão do sentido das ações dos indivíduos, mas sobretudo por ela impedir o
isolamento da consciência na figura do indivíduo atomizado, isto ao mostrar como a
essência da consciência encontra-se na reconciliação de seu ser com um tempo social
rememorado. Através da história, ser e tempo se reconciliariam no interior da uma
memória que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em suas ações.
Memória que seria a essência orgânica do corpo político, condição para que ele existisse
nas ações de cada indivíduo, como se tal corpo fosse sobretudo um modo de

6
Idem, p. 43
7
ENGELS e alli, idem, p. 122
8
KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado: contribuição á semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006, p. 54
apropriação do tempo, de construção de relações de remissão no interior de um campo
temporal contínuo capaz de colocar momentos dispersos em sincronia a partir das
pressões do presente.
Deste momento em diante, a consciência não podia mais ser, como ela era para
Descartes, simplesmente o nome do ato de reflexão através do qual posso apreender as
operações de meu próprio pensamento. Ato através do qual poderia encontrar as
operações de meu pensar quando me volto para mim mesmo no interior de um tempo
sem história, tempo instantâneo e pontilhista que dura o momento de uma enunciação,
como vemos na segunda meditação cartesiana9. A partir de então, a consciência será
fundamentalmente o nome de um modo de apropriação do tempo, ou seja, “consciência
histórica”, modo de presentificação de um complexo de relações que parecem se
articular a partir de uma unidade em progresso. Daí se segue a razão pela qual, a partir
do século XIX, a memória será elevada à condição de função intencional definidora da
consciência. Com a consolidação da história como discurso, com a conseqüente
determinação da consciência histórica como uma espécie de verdadeira natureza
humana, a memória deixou de ser compreendida como um processo de estocagem para
ser descrita como algo próximo daquilo que poderíamos chamar de “atividade contínua
de reinscrição”.
Este é um ponto importante, pois a temporalização da memória aparece como a
possibilidade de construção contínua de si no interior de uma narratividade contínua.
Construção que só será possível a partir do momento que for possível afirmar: “As
lembranças não são imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em
perpétuo remanejamento que nos dão um sentimento de continuidade, a sensação de
existir no passado, no presente e no futuro” 10. Isto pressupõe uma certa plasticidade do
passado, ou seja, plasticidade da maneira com que o passado se inscreve em nós que
pode, muitas vezes, ser perdida e transformar-se em matriz profunda de formas de
sofrimento psíquico. Isto nos explica porque várias práticas clínicas compreenderão a
importância de vincular a cura a processos de elaboração do passado. Não uma
elaboração que signifique alguma forma de redescoberta das determinações causais
vindas do passado, mas de reaquisição de sua plasticidade. O psicanalista Jacques Lacan
havia compreendido claramente este ponto ao afirmar, de forma clara:

A história não é o passado – A história é o passado enquanto ele é historicizado


no presente – historicizado no presente porque ele foi vivido no passado (...) o
fato do sujeito reviver, rememorar, no sentido intuitivo da palavra, os
acontecimentos formadores de sua existência, não é em si mesmo algo realmente
importante. O que conta é que ele reconstruiu (...) Eu diria que, no final das
contas, o que realmente se trata é menos de se lembrar do que de reescrever a
história11.

Podemos ver em uma afirmação como esta, que demonstra como a história é dissolução
contínua das ilusões do determinismo, o ponto de chegada de uma profunda
reconstrução do sujeito moderno através do impacto do desenvolvimento do tempo
histórico como essência da subjetividade. É esta articulação entre memória, história e
subjetividade que será o principal objeto de nosso curso. Ela nos permitirá compreender
melhor a natureza da experiência temporal que está pressuposta em certas estratégias

9
Ver, a este propósito, WAHL, Jean; Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris:
Alcan, 1920.
10
ROSENFIELD, Israel; L’invention de la mémoire, Paris: Flammarion, 1994, p´. 87.
11
LACAN, Séminaire I, Paris: Seuil, pp. 19-20
clínicas, em especial na psicanálise. Pois como vemos, não se trata de uma espécie de
arqueologia da temporalidade esquecida que, de maneira inconsciente, causaria em
silêncio nossas ações. Trata-se de compreender como as estruturas causais temporais
estão em contínua processualidade, modificando-se constantemente a partir do presente.
De certa forma, o passado nunca passa por completo porque seu sentido está
continuamente sendo recomposto.

Objetivos do curso

Neste sentido, este curso tem ainda dois objetivos complementares. Primeiro, um
objetivo epistemológico que consiste em mostrar como a psicologia constitui-se como
campo autônomo de saberes e práticas através de uma série de apoios e empréstimos em
relação a outros campos de saberes e práticas. Tais apoios não expressam apenas
apropriações conceituais diretas, como ocorre atualmente nas relações entre psicologia e
neurologia onde propõe-se um reducionismo eliminativo nos modos de descrição
psicológicos em prol dos modelos de descrição neuronais. Eles expressam sistemas de
transposições que permite o desenvolvimento de conceitos por analogias. Foi assim, por
exemplo, com a noção de energia, utilizada pela física e transposta para a psicologia
através da construção de uma noção análoga, a saber, a “energia psíquica”. Veremos,
neste sentido, quão importante foi o sistema de transposições entre psicologia e história.
Conceitos como: desenvolvimento, maturação, regressão, degenerescência são
impossíveis de serem compreendidos sem levar em conta o impacto da noção de tempo
histórico, de progresso, tal como desenvolvido no interior da reflexão histórica.
Categorias clínicas como fetichismo, por exemplo, são transposições diretas de
categorias históricas desenvolvidas no interior de teorias do progresso. Tal elaboração
epistemológica nos mostrará, com mais clareza, como conceitos e processos
responsáveis pelo horizonte de racionalidade de práticas clínicas e que influenciarão
nossas noções de cura e de saúde mental dependem de valores que se desenvolvem de
forma exterior à clínica e que se expressam em conceitografias de saberes como a
história. Esta é ainda uma forma de demonstrar a ancoragem profunda da psicologia no
interior do campo de saberes que convencionamos chamar de “ciências humanas”.
Já o segundo objetivo do nosso curso é eminentemente clínico. Trata-se de
mostrar como a racionalidade de alguns processos centrais de intervenção clínica e de
construção de categorias nosográficas funda-se na elevação da rememoração
(Erinnerung) à condição de operação fundamental da vida psíquica. A rememoração
pressupõe capacidade de elaboração temporal, de construção de sínteses temporais que
expressariam a capacidade reflexiva da consciência. Neste sentido, a impossibilidade de
rememorar aparecerá como uma das fontes mais decisivas do sofrimento psíquico.
Sigmund Freud é certamente um dos melhores exemplos desta forma de vincular
memória e sofrimento. Todos vocês conhecem sua afirmação: “a histérica sofre de
reminiscências”. Esta era uma forma de desdobrar a defesa da centralidade do trauma na
definição da etiologia das neuroses. Pois uma das características fundamentais do
acontecimento traumático é sua impossibilidade em ser elaborado e integrado através da
memória. Neste sentido, é toda a teoria freudiana das neuroses que aparece como uma
longa reflexão acerca do sofrimento provocado pelo bloqueio da memória. A neurose é,
em sua dimensão mais profunda, um problema ligado ao tempo.
Isto nos explica porque um dos dispositivos centrais dos processos de cura na
clínica freudiana é a noção de rememoração (Erinnerung). No entanto, como pode a
memória e o ato de rememorar serem elementos fundamentais no processo de cura das
ditas doenças mentais? Em que condições podemos dizer que problemas como os rituais
compulsivos do obsessivo, sua maneira de defender-se destruindo seu desejo, os
sintomas histéricos de conversão, entre outros, deixam evidente a incapacidade de
certos sujeitos em rememorar processos constitutivos da subjetividade? Estas perguntas
nos levam a compreender melhor aspectos centrais não apenas da clínica freudiana, mas
nos mostram como é necessário colocar uma pergunta simples apenas em aparência, a
saber: o que Freud entende exatamente por “rememorar”?
No entanto, notemos que além do trauma e do esquecimento como fenômenos
ligados à produção do sofrimento psíquico, o final do século XIX e começo do século
XX insistirá em uma terceira modalidade de fenômeno clínico ligado ao bloqueio da
memória: a dissociação. Ela será fundamental para a constituição do quadro dos
transtornos dissociativos e da esquizofrenia.
Trauma, esquecimento e dissociação, como gostaria de mostrar neste curso, são
três figuras centrais para a compreensão da especificidade daquilo que chamamos de
sofrimento psíquico. Se é inegável que a análise de tais fenômenos foi sempre
acompanhada pelo desenvolvimento do saber a respeito dos estados cerebrais que os
acompanham, é certo que uma questão epistemológica maior consiste em vê-los em
relação com ideias que vem de outros campos da cultura. Neste sentido, é inegável que
a mutação na compreensão da história, assim como a mutação na arte de falar de si
mesmo, terá impacto fundamental em nossos protocolos de orientação clínica.

Estrutura do curso

O curso será dividido em três módulos. O primeiro será dedicado ao conceito de


memória. Veremos como as primeiras concepções moderna de sujeito não elevavam a
memória a atributo fundamental da consciência. Elas ainda eram dependentes de uma
noção estocástica de memória. Este será o assunto da nossa próxima aula, na qual
pedirei a vocês a leitura das duas primeiras Meditações, de Descartes. Nosso objeto será
principalmente a segunda meditação e sua noção instantaneista de tempo como tempo
próprio à reflexividade da consciência. Tempo como uma sucessão de “agoras” que só
tecem relações entre si através da imaginação. Nas aulas seguintes, veremos a
constituição do conceito de rememoração e, com ele, a compreensão de que o tempo da
consciência não é um tempo instantaneista, mas um tempo propriamente histórico,
tempo de uma narrativa no interior da qual posso falar de mim como quem fala de um
processo. Por fim, veremos como a discussão sobre a memória chegou até nós através
das pesquisas em neurologia, em especial através da compreensão das relações entre
memória, aprendizado e plasticidade cerebral. A sua maneira, tais pesquisas parecem
confirmar a capacidade transformadora do conceito de rememoração. Os textos a serem
trabalhados neste módulo são: as duas primeiras Meditações, de Descartes; “Repetir,
rememorar, perlaborar” e “Notas sobre o cubo mágico”, de Freud; além de “The
molecular biology of memory storage”, de Ernst Kandel.
O segundo módulo tem como tema principal a história enquanto ciência e suas
relações com a psicologia. Não se trata aqui de tentar compreender como a psicologia
poderia colaborar na compreensão de fatos históricos ou como ela é permeada por
representações sociais historicamente constituídas. Nosso debate será epistemológico,
ou seja, trata-se de definir como a história fornece um importante quadro
epistemológico para o desenvolvimento de conceitos no campo da psicologia.
Para tanto, procuraremos compreender como a temporalidade histórica será
absorvida no interior das discussões psicológicas sobre desenvolvimento e maturação.
Muitas vezes acreditamos que a referência central para o conceito psicológico de
desenvolvimento encontra-se na noção biológica de evolução, principalmente devido à
importância da chamada “lei biogenética fundamental”, de Ernst Haeckel, com suas
postulações de paralelismos entre a ontogênese e a filogênese. Gostaria de insistir que
tal paralelismo nasce da crença, presente por exemplo já em Augusto Comte, de que a
história individual repete a história do progresso social. Podemos compreender isto de
maneira muito clara se focarmos nossa atenção em um caso aparentemente local da
relação entre história e psicologia, a saber, a importação conceitual do conceito de
“fetichismo”. Nascido no interior de uma teoria do progresso e dos estágios de
desenvolvimento social, o uso da noção de “fetichismo” para descrever não apenas uma
modalidade de perversão sexual, mas a lógica geral das perversões (como bem viu
Michel Foucault), denuncia uma noção de doença mental como degenerescência
extensivamente utilizada para a descrição do sofrimento psíquico. No entanto, para além
deste modelo de relação, gostaria de apresentar também uma certa arqueologia dos
conceitos de desenvolvimento e maturação em psicologia a partir do sistema de
apropriações entre psicologia e história. Isto nos levará a trabalharmos um texto de Jean
Piaget chamado: “Problemas de psicologia genética”.
Por fim, nosso terceiro módulo será dedicado às relações entre memória e
sofrimento. Não se trata aqui de discutir apenas categorias clínicas claramente
relacionadas à incapacidade da memória operar suas sínteses temporal e unificações
reflexivas da identidade, como os transtornos dissociativos (com seus transtornos de
dissociação de identidade, de amnesia dissociativa, de despersonalização/desrealização)
e transtornos traumáticos ou relacionados a estresses (com seus transtornos de apego
reativo, de engajamento social desinibido, de stress pós-traumático, de stress agudo, de
ajustamento). Gostaria de discutir as relações entre memória e sofrimento também e
principalmente em duas categorias clínicas profundamente ligadas a uma
impossibilidade de operar temporalizações, a saber, as neuroses (veremos de maneira
mais específica a relação entre culpa e tempo na neurose obsessiva e para tanto gostaria
de trabalhar o caso freudiano do “homem dos lobos”) e os transtornos depressivos.
A este respeito das depressões, lembremos como, segundo a Organização
Mundial da Saúde, 7% da população mundial sofria de depressão em 2010, sendo a
principal causa conhecida de sofrimento psíquico. Em países como o Reino Unido, 1 em
cada 5 adultos sofre atualmente de depressão. Os casos de depressão crescem, em
média, 20% ao ano em países como os EUA, onde 9,1% da população sofre da doença,
e representam, atualmente, a modalidade de sofrimento psíquico com maior impacto
econômico12. Tal natureza “epidêmica” do diagnóstico de depressão talvez sirva, ao
menos, para percebermos a maneira com que a experiência temporalidade nos faz
sofrer. Pois uma das características estruturais das depressões é a atomização do tempo
em um conjunto desconexo de instantes desprovidos de tensão e relação. Assim, em
uma fórmula feliz de Maria Rita Kehl, a respeito da qual entenderemos o sentido no
decorrer do curso: “o tempo morto do depressivo funciona como refúgio contra a
urgência das demandas de gozo do Outro” 13. A negatividade contra um desempenho em
fluxo contínuo elevado à condição de motivo de gozo vai, preferencialmente, em
direção ao “refúgio” de um tempo morto. Tempo desconexo no qual: “dois anos passam
rápido, difícil é passar dois minutos”14.

12
.Ver http://www.nimh.nih.gov/health/statistics/prevalence/major-depression-among-adults.shtml.
13
KEHL, Maria Rita; O tempo e o cão: a atualidade das depressões, Sào Paulo: Boitempo, 2009, p. 21
14
Idem, p. 67
História, memória e sofrimento
Aula 2

“Enquanto outros publicam ou trabalham, passei três anos de viagem a esquecer,


ao contrário, tudo o que aprendera com a cabeça. Essa desinstrução foi lenta e
difícil; foi-me mais útil do que todas as instruções impostas pelo homem e,
realmente, o começo de uma educação”15.

Este trecho de Os frutos da terra, de André Gide, pode nos servir de guia para a leitura
da Primeira meditação, de Descartes. Nele, encontramos um importante tema recorrente
em Descartes: “a desinstrução que é o verdadeiro começo do saber”. Trata-se de
identificar um processo de formação subjetiva que passa necessariamente por um
primeiro movimento de anulação de todo saber, ou seja, um processo de formação que
começa por uma certa forma de esquecimento. Maneira de salientar como a noção
moderna de consciência nascerá através da impossibilidade de elevar a memória a
fundamento da identidade subjetiva. Contrariamente à forma com que atualmente
comprendemos a consciência, forma para a qual: “a memória não é uma propriedade
entre outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo” 16, a consciência será
pensada por Descartes como tempo sem duração, tempo no qual os instantes não se
interpenetram em um fluxo em processo produzido pela memória. Neste sentido,
começar por Descartes é uma maneira adequada de medir o tamanho do caminho
percorrido no interior da experiência moderna para que a memória se transformasse na
própria essência do psiquismo. Partamos da primeira frase das Meditações:

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera


muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei
em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto;
de modo de que me era necessário tentar seriamente, uma vez na vida, desfazer-
me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente
desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas
ciências (...) Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados,
assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em
destruir em geral todas as minhas opiniões17.

Se há um ato que pode sintetizar o modo de emergência do sujeito moderno, ele


está descrito neste nestas primeiras frases das Meditações. Descartes fala de decepção e
de desejo de destruição. Ele fala da descoberta da falsidade das opiniões e da ausência
de fundamento seguro das certezas. No entanto, não se trata de simplesmente rever
pontualmente opiniões, repensar certas certezas. Trata-se de destruí-las todas, de
fundamentar o saber sobre bases completamente novas.
Notemos inicialmente como Descartes não descreve aqui apenas sua situação
subjetiva, ele retrata uma experiência de época. O exercício espiritual de “destruir em
geral todas as minhas opiniões” não era apenas fruto de uma decisão individual. Ele era
a tentativa de integrar, no interior de uma experiência subjetiva, a desenraizamento pelo
qual a Europa passou no final do século XVI e começo do século XVII.
15
GIDE, Os frutos da terra, p. 17
16
DERRIDA, Jacques ; L’écriture et la différence, Paris: Seuil, p. 299
17
DESCARTES, Meditações, p. 93
Este era o resultado direto da queda da visão medieval do mundo, fundada
principalmente a partir da física aristotélica (que apresentava um mundo hierarquizado
ao afirmar que: “por natureza, todo e qualquer sensível existe em algum lugar e existe
um lugar determinado para cada um”18), a cosmologia ptolomaica (que apresentava uma
idéia de cosmos finito) e a teologia católica. Em 1542, Copérnico formulava a
astronomia heliocêntrica, que mostrava não apenas como a Terra deixara de ser vista
como o centro do universo, mas também, a partir de Kepler, como o movimento dos
planetas não obedecia à fórmula perfeita do círculo (sua forma era mais próxima de uma
elipse). A partir desta revolução copernicana, as descobertas de Kepler e Galileu não se
contentarão, como nos bem lembra Koyrè : “em expulsar o homem e a Terra do centro
do cosmos; este cosmos, eles o destroem, o aniquilam, abrindo em seu lugar a
imensidão sem limites do espaço ilimitado” 19. Esta destruição de um cosmos que
funcionava como horizonte de legitimação das expectativas de verdade do
conhecimento, eis o que Descartes tem em mente ao falar sobre: “aquilo que depois eu
fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto”.
Mas esta consciência da impossibilidade de olhar aos saberes do passado para
fundamentar as certezas do presente, esta consciência da descontinuidade radical do
tempo se expressará também como desqualificação da memória. Sigamos, a este
respeito, os primeiros passos das Meditações.

A dúvida metódica e a crítica ao sensível

Comecemos por nos perguntar sobre quais princípios minhas opiniões estavam
apoiadas, estas opiniões que, como diz Descartes, “recebi” de algo externo a mim
mesmo. A este respeito, dirá Descartes:

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro,


aprendi-o dos sentidos (sensibus), ou pelos sentidos (sensus): ora, experimentei
algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar
inteiramente em quem já nos enganou um vez20.

Acreditei que naturalmente os sentidos poderiam fornecer conhecimentos seguros, que


poderia me fiar no que via, no que sentia e ouvia. Mas não apenas o que via não me
mostrava tudo o que é, levando-me ao erro, como erra quem vê parte de um remo
embaixo da água e, devido à difração, crê que ele está quebrado. Muitas vezes esqueci o
que vira e sentira, perdendo a evidência por remeter-me a coisas que ocorreram no
passado, criando assim relações equivocadas.
Neste ponto, encontramos um tema constante no pensamento de Descartes, a
saber, a memória como fonte de erro. Lembremos, a este respeito, de um importante
afirmação que encontramos nas Regras para a direção do espírito:

De fato, a memória, da qual dissemos que depende a certeza de conclusões


muito complexas para que a intuição possa apreendê-las de um só golpe, a
memória, frágil e fugidia por natureza, necessita ser renovada e fortalecida pelo
movimento contínuo e repetido do pensamento. Assim, quando após várias
operações, venho a conhecer qual a relação entre uma primeira e uma segunda
grandeza, entre uma segunda e uma terceira, entre uma terceira e uma quarta e
18
ARISTÖTELES, Física, 205 a10
19
KOYRÉ, Entretien sur Descartes, p. 172
20
DESCARTES, Meditações, p. 94
enfim entre uma quarta e uma quinta, não vejo por isto a relação entre a primeira
e a quinta, e não posso deduzir relações já conhecidas sem lembrar de todas as
outras. Faz-se então necessário que meu pensamento percorra-as novamente, até
que enfim eu possa passar da primeira à última de forma suficientemente rápida
para parecer, quase sem recurso à memória, apreender a totalidade em uma só e
mesma intuição21.

O trecho procura demonstrar a fragilidade de todo conhecimento apoiado na memória.


Como quem percorre uma série de elementos separados no tempo, o conhecimento das
relações exige a atualização constante de relações passadas, dispostas em um espaço
que preciso percorrer para poder me assegurar da correção do raciocínio. Nota-se com
isto como o tempo é pensado como radicalmente descontínuo. Estabelecer relações
entre a primeira e a segunda grandeza não implica desvelar ressonâncias que fazem a
primeira grandeza ainda continuar a existir juntamente com a segundo. Estabelecer
relações singifica simplesmente passar da primeira a segunda como quem passa de um
terreno a outro. Por isto, a única maneira de assegurar-se da retidão lógica do
pensamento é passar pelos elementos em relação de forma cada vez mais rápida, como
se fosse possível contrair uma série temporalmente distendida em uma totalidade
imediatamente apreendida pela intuição.
Não é difícil perceber aqui a natureza espacial das metáforas usadas para falar de
relações temporais. As temporalidades distintas se organizam como se estivessem
espacialmente distantes, o que explica porque a intuição da totalidade de relações só
pode significar contração das distâncias em um espaço apreensível por um golpe
imediato de visão. O que a intuição faz é condensar o que se desdobra no tempo. Esta
descontinuidade do tempo é o que, por sua vez, faz da memória fonte privilegiada de
erro e de fraqueza.
Mas voltemos às Meditações e a sua sequência de argumentos. É certo que os
sentidos me enganam, mas nem tudo o que vem dos sentidos tem o mesmo grau de
evidência. A princípio esta desqualificação geral encontra uma resistência vinda da
experiência imediata e de algumas certezas firmemente estabelecidas pelo senso
comum. Pois, de fato, no que diz respeito ao conhecimento de coisas “pouco sensíveis”
(sensu minuta) e “muito distantes” (remotiora), podemos esperar opiniões obscuras e
sempre sujeita a retificações. Mas, e o que dizer, por exemplo do fato de eu estar: “aqui,
sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras
coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus”.
Ou seja, o que dizer daquilo que aparece como conhecimento imediato de minha auto-
identidade e da minha identidade com meu corpo? Poderia eu me tomar por outro do
que realmente sou? Afinal, minha auto-identidade parece tão vinculada a não-
problematização de certos dados imediatos vindos da experiência atual do meu corpo (e,
aqui, a atualidade da experiência é seu traço fundamental) que somente os loucos
poderiam colocar este ponto em dúvida. Posso duvidar do que me obriga a recorrer à
memória ou à percepção de objetos exteriores, mas não posso duvidar do que se
apresenta a mim de forma atual e ligado à minha própria existência. “Todavia”:

“Quantas vezes ocorreu-me sonhar , durante a noite, que estava neste lugar, que
estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente dentro
do meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo
este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente (...), o que ocorre no
sono não parece ser tão claro e distinto quanto tudo isto. Mas, pensando
21
DESCARTES, Regras para a direção do espírito, regra XI
cuidadosamente nisso, lembro-me (recorder) de ter sido muitas vezes enganado,
quando dormia, por semelhantes ilusões (delusum). E detendo-me neste
pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios
concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente
a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado; e meu pasmo (stupor) é
tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo”.

Em si, tal argumento não representa nenhuma contribuição original de Descartes


e, à sua maneira, ele retoma um lugar comum do ceticismo. Mas o ponto central aquí é o
lugar inusitado que ele ocupa na ordem metafísica das razões. O argumento do sonho
aparece para universalizar (agora sobre um base fornecida pela experiência subjetiva) a
desqualificação do sensível como fundamento do saber e para abrir à apreensão de uma
fundamentação matemática do saber. Mas, principalmente, ele será de suma importância
na distinção entre imaginário e entendimento em Descartes.
Ao colocar em circulação o argumento, Descartes logo insiste que as
representações oníricas : “são como quadros e pinturas, que não podem ser formados
senão à semelhança de algo (res) real e verdadeiro”. Ou seja, o sonho é composição de
séries de “imagens das coisas” que ficaram depositadas na memória. Voltemos
novamente às Regras para a direção do espírito. Na Regra XII, Descartes lembra que a
imaginação é, conjuntamente com o entendimento, a sensação e a memória, uma das
quatro faculdades do conhecimento. Notemos que Descartes usa indistintamente
imaginatio (latim) e phantasia (fantasia) que, em Aristóteles, significa: “a imagem
mental em virtude da qual dizemos ter uma espécie de aparição diante de nós” 22.
Seguindo esta trilha clássica, Descartes afirma que : “imaginar não é outra coisa que
contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal”. Esta imagem pode estar
presente enquanto a coisa está ausente, ela pode estar “gravada” como um sinete grava
uma imagem na cera. Neste caso, a memória (corporal) registra as afecções do corpo,
funcionando como um caso da imaginação. Estando a coisa ausente, a imaginação pode
compor imagens, como um pintor compõe novas formas a partir de operações de
associação, reforçando cores, sensações etc. É isto o que ocorreria nos sonhos.
Mas se a imaginação pode nos enganar com suas séries de associações
submetidas às impressões das coisas ou ao desejo do sujeito, ao menos enquanto
faculdade afetada pelo exterior, ela nos fornece a certeza de que há alguma coisa, uma
res, uma coisa indeterminada, um X real e verdadeiro. Através do princípio de
decomposição do complexo, Descartes.pode então afirmar:

“ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeças, mãos e outras
semelhantes, possam ser imaginárias, é preciso todavia confessar que há coisas
ainda mais simples e mais universais, que são verdadeiras e existentes; de cuja
mistura, nem mais nem menos do que da mistura de algumas cores verdadeiras,
são formadas todas essas imagens das coisas que reside em nosso pensamento”.

Desse gênero de coisa é o tempo, o espaço, a figura e a quantidade. Ou seja, dos objetos,
resta apenas a extensão ordenada em um espaço determinado e em um tempo definido.
O mundo que resiste à dúvida é assim um mundo feito de objetos a-qualitativos,
desprovidos de atributos sensíveis. Mundo pós-galiláico, como sublinha Koyrè,
composto apenas de matéria quantificável e movimento determinável. Mundo no qual
os objetos são apenas configurações quantificáveis de matéria dispostas em um espaço

22
ARISTOTELES, De anima, 428a
homogêneo. Nossa questão será saber o que acontece ao sujeito quando um
entendimento que vê apenas objetos de geometria reificada inspecionar a certeza de si.

Matemática e Deus

A partir daí podemos entender porque o resultado do argumento do sonho deve


ser necessariamente o reconhecimento da posição privilegiada da Aritmética e da
Geometria como paradigmas para o saber científico :

“A Aritmética, a Geometria e outras ciências desta natureza, que não tratam


senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas
existem ou não na natureza, contém alguma coisa de certo e indubitável. Pois,
quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre
cinco”.

Mas como sei que o que me aparece como claro e distinto é objetivamente claro
e distinto? “Pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em
que faço a adição de dois mais três, ou que enumero os lados de um quadrado”. Ou seja,
aqui, é o próprio valor das noções apresentadas pelo entendimento finito como
necessárias e certas que é colocado em dúvida. De onde se vê que Deus aparece como o
Outro que garante a adequação estrutura matemática do meu entendimento à verdade
material das coisas. É Deus quem garante a verdade do grande livro do mundo como
mathesis universalis. E se Deus não é fiável, então não há possibilidade alguma de
conhecimento da verdade das coisas do mundo. O mundo advém turvo e obscuro. O que
nos deixa com uma questão fundamental: como abrir espaço para o advento da verdade
quando o pensamento não tem mais garantia alguma de sua adequação? É neste ponto
que começa a Meditação segunda.

O Eu indeterminado

“A meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que


doravante não está mais em meu alcance esquecê-las”. Assim começa a Meditação
Segunda. Seu início exige uma verdadeira mobilização teatral que visa reforçar o
reconhecimento de uma situação de absoluta incerteza: “não posso nem firmar meus pés
no fundo, nem nadar para me manter à tona”.
Depois de passar em revista a todo o trajeto feito na Primeira meditação em
direção à universalização da dúvida, Descartes detém no argumento do Gênio Maligno.
Toda possibilidade de adequação entre representações mental e objetos do mundo foi
colocada em questão. Mas, mesmo em um regime no qual o pensamento não tem
garantia alguma de sua adequação, ao menos uma certeza pode ser extraída, e ela será a
primeira certeza na cadeia analítica das razões : “Não há, pois, dúvida alguma de que
sou, se ele me engana (Haud dubie igitur ego etiam sum, si me fallit); e por mais que me
engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma
coisa”. Ou seja, a própria existência da dúvida garante minha existência, já que a dúvida
é um ato mental que pressupõe necessariamente um sujeito que duvida. Em um regime
de dúvida generalizada, o próprio exercício do pensamento garante a existência de algo
que, neste momento, recebe o nome de “eu”. “Há pensamento”, esta é a primeira
certeza, e tais pensamento parecem ser articulados em uma espécie de espaço
representacional que poderíamos chamar de “eu”. Isto é tudo, por enquanto. Mas nossa
questão principal aqui é: o que é este “eu” que nasce no ponto extremo da dúvida?
Notemos a maneira como Descartes o enuncia: “De sorte que, após ter pensado bastante
nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter
por constante que esta proposição, eu sou, eu existo (Ego sum, ego existo) é
necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito”. Ou seja, esta certeza é pontual e evanescente, ela dura um instante. Isto indica
como o “eu” que aparece primeiramente com o cogito não é uma substância da qual
detenho o saber de seus atributos. Ao contrário, devemos dar todo seu peso à afirmação
de Descartes: “Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou
certo de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com todo cuidado, para
não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim”.
Este ponto é fundamental. Nunca entendermos o que é o cogito cartesiano e , por
consequência, o que é o sujeito moderno, se não levarmos em conta que o “eu” que
nasce com o cogito é, a princípio, absolutamente indeterminado. Mesmo sabendo que eu
sou, não conheço ainda o que sou, já que o eu é resultado do esvaziamento do toda
representação mental e todo atributo físico ou psicológico.
Mas há ainda outro ponto. Notemos quão peculiar é o tempo do cogito. Sei que
sou apenas no instante que enuncio, como se a memória não pudesse me fornecer a
certeza de que sou e do que sou. “Se o homem pode adquirir uma certeza, ela residirá na
instantaneidade da intuição, na simultaneidade necessária de nosso pensamento e de
nossa existência (pois é um propriedade da alma perceber mais de uma coisa em um
instante), na presença da ideia diante da alma atentiva” 23. Neste sentido, a estrutura da
certeza de si expõe a natureza radicalmente instantaneista do tempo em Descartes, um
tempo que não conhece a divisão entre potência e ato porque tudo deve estar em ato.
Por isto, este tempo é desprovido de latência, ele é uma sucessão de instantes sem
relação entre si. “O tempo não deve ser considerado como um desenvolvimento, nem
como a medida de algo que é a passagem da potência ao ato e, consequentemente, como
desenvolvimento, nem como uma potência heterogênea à sequência de instantes e mais
profunda que ela. Ele é esta sequência mesma completada passo a passo em cada
instante”24. Daí porque a certeza de si deve ser repetida a todo instante, como se devesse
ser continuamente recriada. O que nos explica a necessidade de uma noção como a
criação contínua do mundo por Deus.
Notemos como estamos aqui diante de uma consciência sem história e sem
tempo, por isto uma consciência sem memória, para a qual a memória é, em larga
medida, fonte de erro e fragilidade pois ainda muito próxima da imaginação, muito
próxima de um conhecimento por imagens, muito distante do verdadeiro conhecimento.
A respeito deste conhecimento verdadeiro, terminemos com o famoso exemplo do
pedaço de cera:

“Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do
odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são
patentes: é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som (...)
Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor
exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza
aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele
batamos, nenhum som produzirá”.

23
WAHL, Jean; De l’idée d’instant dans Descartes, p. 10
24
Idem, p. 11
Se todas as determinações qualitativas de objetos podem mudar sem que, com isto,
dizemos que se trata de um outro objeto, então o que conhecia de determinação
essencial do objeto? A resposta de Descartes passa pela constatação de que, para além
das modificações de objeto: “nada permanece senão algo de extenso, flexível e
mutável”. Quer dizer, voltamos às naturezas simples (figura, quantidade, tempo e
espaço) apresentadas na Primeira meditação. Mas, por exemplo, a pura quantidade não
pode ser conhecida pela imaginação, já que há uma infinitude de configurações formais
que a cera pode adquirir e não preciso atualizar todas elas para conhecer o pedaço de
cera. Daí porque Descartes pode afirmar não conhecer a cera através da visão, do tatear
ou da imaginação, mas que a conheço através da “inspeção do espírito”. Mas note-se
que o espírito conhece no pedaço de cera exatamente aquilo que transforma tal pedaço
particular em um caso geral de objetos, ou seja, ele conhece apenas a cera como caso de
res extensa. Cera sem tempo nem história.
Aqui, podemos responder à questão: o que acontece ao sujeito quando ele é
objeto de inspeção de um entendimento que só é capaz de apreender objetos a-
qualitativos? O eu que pode ser conhecido através de tal entendimento é um “eu”
também, digamos, a-qualitativo, sem estofo psicológico, desprovido de toda a qualquer
co-naturalidade ou atributo corporal. Um eu que só se reconhece como força de
transcendência em relação ao sensível.
História, memória e sofrimento
Aula 3

Na aula de hoje, daremos sequência à nossa discussão a respeito das relações


entre memória e consciência através do comentário de certos textos de Freud. O
primeiro deles é Rememorar, repetir, perlaborar¸ de 1914. Este deslocamento em
direção a Freud, isto após uma aula sobre as relações entre consciência e memória em
Descartes visa mostrar o tamanho do caminho trilhado entre um momento e outro da
experiência moderna. Se vimos como consciência e memória são dissociadas em
Descartes devido, entre outras coisas, ao impacto de uma noção instantaneista de tempo,
em Freud veremos as consequências da definição da memória como a própria essência
do psiquismo. Em Freud, a consciência está em luta constante para unificar sua
experiência no tempo através da capacidade de síntese da memória. Daí porque a
operação fundamental do processo analítico será, para Freud, a rememoração. Pois
rememorar, como veremos, não será apenas lembrar, coligir imagens de eventos
passados como quem abre um arquivo. Rememorar será reinscrever continuamente um
passado que nunca passa por completo, que interfere no presente e no futuro. Que tal
operação torne-se o eixo fundamental da vida psíquica só pode ser compreendido se
lembrarmos que:

Para a psicanálise, a memória não é apenas uma faculdade ou função do intelecto


através da qual a mente registra, retém e deve lembrar-se de experiências,
eventos e objetos. Para ela, a memória tem algo a ver com separação, perda, luto
e restituição, trazendo geralmente consigo um sentido de nostalgia,
especialmente quando envelhecemos25.

Ou seja, a memória tem a ver com a elaboração de experiências de forte característica


dissociativa, como a perda, a separação e as formas de luto. Experiências que não
podem ser simplesmente esquecidas por estarem marcadas com forte carga de
investimento afetivo em objetos não mais presentes. No entanto, há de se perguntar
sobre o tipo de unidade temporal que a memória é capaz de compor, o que ela produz
em nossa experiência do tempo para que separações e perdas possam ser integradas sem
serem completamente esquecidas. O que significa, neste contexto, exatamente
“elaborar”?

Rememorar

Tentemos compreender este ponto através da leitura do nosso texto. Freud inicia
o texto lembrando o desenvolvimento do método psicanalítico: da catarse e da hipnose à
associação livre. Com a catarse, a rememoração e a abreação eram os dois processos
fundamentais de cura. Já através da associação de idéias, tratava-se de vencer as
resistências à rememoração através do trabalho de interpretação analítica e sua
comunicação ao paciente. O desdobramento da técnica de associação de idéias levará
Freud a não centrar a interpretação no desvelamento de “momentos ou problemas
determinados” ligados à situações traumáticas, mas em analisar a atual “superfície
psíquica” do paciente centrando a ação do analista na análise das resistências.

25
LOEWALD, Hans; “Pespectives on memory”, In: Colected Papers and monographs, Hagerstown:
University Publishing Group, 2000, p. 148
Trabalhadas as resistências, o próprio analisando traria os incidentes e associações
esquecidas.
Se o trabalho de preencher as lacunas da memória permanece o mesmo, algo
muda na concepção de rememoração. No interior do método catártico e da hipnose,
rememorar era colocar-se novamente em um passado que não se confundia com a
situação presente. Passado que podia ter sido realmente vivido ou que podia ser este
“passado sem vivência” da fantasia. Já na técnica baseada na interpretação e na
transferência, rememorar será outra coisa.
Para entendermos melhor este ponto, lembremos como Freud estabelece, no
texto, uma dicotomia fundamental entre repetir e rememorar. Dicotomia que se justifica
se levarmos em conta que, neste contexto, para Freud, repetir é basicamente uma forma
de esquecer (tal com os atos falhos, lapsos, lembranças encobridoras etc.). Esta forma
de esquecer própria à repetição estaria, à sua maneira, vinculada à transferência. Tudo
se passa como se estas imagens que colonizam a relação médico-paciente presentes na
relação transferencial acabassem por encobrir, marcar com o selo do esquecimento algo
de fundamental para a própria compreensão da doença. Pois, neste caso, ao invés de se
lembrar de certos complexos patogênicos e traços patológicos, o sujeitos os repetia sob
a forma de ação. “Ele não o reproduz como lembrança (Erinnerung), mas como ação,
ele repete isto, naturalmente sem saber que ele repete”26. Tudo se passa como se,
parafraseando Marx, o paciente não soubesse o que faz. Por exemplo, ele não diz que se
lembra ter sido insolente diante da autoridade paterna, mas ele age desta forma no
interior da transferência e diante de seu analista. Na verdade, ele se encontra diante de
uma “compulsão de repetição” que será trabalhada de maneira mais detalhada no texto
Para além do princípio do prazer, de 1921.
Isto permite a Freud afirmar que a transferência é, na verdade, um fragmento da
repetição e que a repetição não é outra coisa que a transferência de um passado
esquecido, seja transferência para a figura do analista, seja em qualquer outro domínio
da situação presente. Desta forma, a repetição aparece como um mecanismo psíquico de
fixação em uma situação passada que impede a verdadeira elaboração do passado. O
neurótico não é, assim, aquele preso nas armadilhas da memória. Na verdade, ele é
alguém incapaz de rememorar. Neste sentido, o manejo da transferência estará
intimamente ligado à análise das resistências do paciente a rememorar. Isto leva
psicanalistas como Otto Fenichel a afirmar que: “as resistências distorcem as conexões
verdadeiras. O paciente entende mal o presente em função do passado; e então, em vez
de recordar o passado, esforça-se sem reconhecer a natureza da forma por que atua, por
reviver o passado e vivê-lo mais satisfatoriamente do que viveu na infância”27.
Tudo se passa assim como se valesse para Freud a afirmação crítica de Deleuze:
"Repete-se mais seu passado na medida em que dele menos se lembra, que se tem
menos consciência de dele se lembrar – Lembrem, elaborem a lembrança para não
repetir”28. Esta é uma das razões pelas quais Freud exortava seus pacientes, por
exemplo, a não tomarem nenhuma decisão importante, ou seja, a não agirem enquanto
estivessem em análise. Pois em situação de análise, toda ação seria uma repetição
transferencial (seja dentro da análise ou fora dela). Freud sabe que a repetição
transferencial não é desprovida de riscos. Ela normalmente significa a agravação dos
sintomas no interior do tratamento. Mas esta agravação deve ser acompanhada de uma
modificação na relação à doença. Até então, ela fora vista como algo a ser esquecido ou
combatido sem demora. Agora, ela se transformou em um parte do próprio doente que
26
FREUD, GW XIII, p. 129-
27
FENICHEL, Otto; Teoria psicanalítica das neuroses, São Paulo : Atheneu, 2004, p. 25
28
DELEUZE, Difference et répétition, Paris: PUF, 1969,
deve ser ouvida por conter elementos fundamentais para o redirecionamento de sua vida
ulterior. Há uma dimensão de mensagem nas repetições. Na verdade, a psicanálise
reconheceria três formas de acesso ao passado: a repetição, os sonhos – com suas
deformações de materiais de vivências e a associação livre. Nos três casos o acesso se
confronta com resistências que devem ser vencidas pela interpretação.
Freud apela então à transformação da repetição em rememoração através da
liquidação da transferência. Isto exige outra transformação, esta que permite ao paciente
passar da neurose ordinária à neurose de transferência, ou seja, um estado intermediário
entre a saúde e a vida real que permite a constituição de uma espécie de “doença
artificial” mais acessível à intervenção médica. Esta doença artificial é o resultado da
atualização transferencial das situações passadas.
Assim, se a repetição transferencial é um processo importante, ela não deixa de
fazer apelo a uma elaboração reflexiva suplementar que apenas a noção de
rememoração parece poder garantir. Elaboração que realiza o desejo freudiano de: “ter
uma visão de conjunto (überblicken) conseqüente, compreensível e completa da história
da doença”. Pois: “se o objetivo prático do tratamento consiste em suprimir todos os
sintomas possíveis substituindo-os por pensamentos conscientes, há ainda um outro, o
objetivo teórico que é a tarefa de curar o doente de todos os males da memória
(Gedächtnisschäden)”29. Objetivo teórico que nos lembrar como: “a memória não é uma
propriedade entre outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo”30.
Por fim, Freud lembrará que a tomada de consciência das resistências não
implica, necessariamente, em mudança no padrão de comportamento. Por isto, ele
insiste em acrescentar um terceiro processo à repetição e à rememoração, a saber, a
perlaboração (durcharbeiten). Tal perlaboração implica a repetição reiterada do mesmo
processo de tomada de consciência, como se fosse questão de reconstruir
paulatinamente os processos e situações apresentados pela rememoração.
Em um texto de 1937, Construções em análise, Freud complementa sua teoria da
rememoração insistindo que o trabalho da memória é feito tanto pelo analisando quanto
pelo analista. Reconhecendo limites ao trabalho da memória operado pelo analisando,
Freud dirá que cabe ao analista operar como um arqueólogo, reconstruindo um passado
“pré-histórico” cuja memória do analisando não é capaz de alcançar. Estas construções
criadas pelo analista devem ser validadas através da convicção do analisando e da
possibilidade de induzir novas associações graças a novas lembranças, mesmo que se
tratem de lembranças encobridoras. Normalmente, tais construções estão vinculadas ao
esquema geral de experiências fornecido pela teoria psicanalítica com Complexo de
Édipo e da sexualidade infantil.

O que significa rememorar?

Mas até aqui não temos clareza da razão pela qual a constituição narrativa de
uma história poderia ter a força de desencadear processos de cura. Tentemos
compreender melhor este ponto. Sabemos como Freud afirma que, no interior do
processo analítico: “O desejado é uma imagem (Bild) fiel e completa em suas partes
essenciais dos anos esquecidos pelo paciente” 31. Esta imagem fiel seria importante não
exatamente por permitir a totalização da história subjetiva, mas por desvelar as
conexões causais que fizeram, de certos acontecimentos aparentemente banais,
acontecimentos traumáticos. Acontecimentos impossíveis de serem simbolizados,
29
FREUD, Fragmentos de um caso de histeria, p. 175
30
DERRIDA, Jacques ; L’écriture et la différence, Paris: Seuil, p. 299
31
FREUD, Construções em análise, p. 44
impossíveis de serem integrados à consciência. Pois a compreensão (no sentido de
integração à consciência, internalização presente no termo alemão Erinnerung) da rede
causal à qual o sintoma pertenceria seria a condição para a suspensão de seu efeito.
Sobre tais acontecimentos traumáticos, Freud utiliza constantemente uma
linguagem fisicalista a fim de falar a respeito de quantidades de excitação, de energia
libidinal que o sujeito não teria condição de dominar através da ligação em
representações. Conhecemos, por exemplo, o que Freud diz a respeito deste
acontecimento traumático em um de seus casos célebres: O homem dos lobos. Neste
caso de neurose obsessiva, Freud crê identificar uma cena primitiva (Urszene) vista pelo
paciente quando na idade de um ano e meio: a cena de seus pais transando três vezes
como lobos, ou seja, com sua mãe de quatro. Esta cena não pode ser simbolizada (por
ser incompreensível ao bebê). No entanto, devido àquilo que ela envolve (respiração
ofegante, gemidos, aparência de violência, etc.), ela mobiliza uma quantidade de
energia libidinal que não fica ligada a representação alguma e que só será integrada a
posteriori. O que fica são traços mnésicos fragmentados que, de uma certa forma, serão
posteriormente reinscritos.
De fato, sabemos que o sentido do caráter traumático da cena é, na verdade, uma
construção a posteriori. É através da associação da cena a acontecimentos posteriores (a
escuta de contos onde lobos devoram crianças, a ameaça de castração enunciada quando
o paciente se excita vendo uma empregada limpando o chão de quatro etc.) que o
sentido de seu caráter traumático é construído à ocasião de um sonho angustiante, feito
quando o paciente tinha quatro anos de idade. Sonho onde lobos observam o paciente na
cama. Freud faz questão de lembrar que, neste caso, a cena primitiva é ativada
(Aktivierung), e não rememorada32. Sua ativação estaria agora vinculada ao trabalho de
ligação entre a cena primitiva e a ameaça de castração. Neste sentido, a fantasia da cena
primitiva tem, agora e de maneira retroativa, o sentido de testemunho da introjeção do
erotismo adulto pela criança33.
Na verdade, a rememoração propriamente dita ocorre no momento em que o
paciente narra a cena do sonho em situação transferencial de análise. Há assim três
momentos distintos : o fato tal como se apresenta à idade de um ano de meio com sua
inscrição fragmentária, a ativação traumática através de um sonho feito com quatro anos
que fornece à percepção um contexto a posteriori de significação e a rememoração no
interior da análise, quando o paciente tem 29 anos. Esta temporalidade retroativa é
fundamental para mostrar como o trauma ocorre quando o acontecimento se repete uma
segunda vez. Ele é um acontecimento em dois tempos. No entanto, tal acontecimento se
repete na dimensão onírica, mostrando assim seu caráter eminentemente fantasmático.
Não escapa a Freud o paradoxo que consiste em dizer que o sentido do
acontecimento traumático só pode ser posto à ocasião da rememoração no interior da
análise. Pois tudo se passa como se fosse possível negligenciar a distância entre a
segunda e a terceira fase temporal. Esta negligência é, no entanto, o resultado de uma
idéia fundamental de Freud. Ela consiste em afirmar que a memória e o ato de
32
Vale aqui o que dizem Laplanche e Pontalis: “De um lado – primeiro tempo – a sexualidade
literalmente irrompe de fora, penetrando por difração em um ‘mundo de infância’ presumido inocente
no qual ela vem se enquistar como um acontecimento bruto sem provocar reação de defesa. O
acontecimento não é em si patogênico. Por outro lado, no segundo tempo, o impulso pubertário, tendo
desencadeado o despertar fisiológico da sexualidade, produz desprazer e a origem deste desprazer é
procurado na lembrança do acontecimento primeiro, acontecimento de fora transformado em
acontecimento de dentro, ‘corpo estranho’ que desta vez irrompe no seio mesmo do sujeito”
(LAPLANCHE, Jean et PONTALIS, J-B; Fantasme originaire, fantasmes dês origines, origines du fantasme,
Paris: Hachette, 1985, pp. 32-33).
33
Ver LAPLANCHE e PONTALIS, ibidem, p. 37
rememorar não são o desvelamento de situações originárias, primitivas, mas a
reinscrição de processos passados a partir das pressões do presente. Na verdade, a
rememoração já é uma forma de cura porque é maneira de reorganizar o presente a
partir da integração das opacidades do passado (e muito há ainda a ser dito a respeito do
que pode significar, neste contexto, “integração”).

Memória e fantasia

Sobre a natureza desta opacidade, insistamos em alguns pontos suplementares,


para além do problema ligado à quantidade de excitação. Podemos dizer que uma das
fontes da opacidade dos acontecimentos traumáticos vem do fato deles nunca terem sido
completamente presentes. Já a simples ativação fantasmática da cena primitiva implica
saída da dimensão dos fatos presentes a uma consciência individual. Pois, para Freud,
fantasias são processos ligados à filogênese da espécie. O fato das fantasias repetirem-se
com os mesmo conteúdos em uma multiplicidade de indivíduos, ou seja, o fato das
fantasias não serem a dimensão da singularidade insubstituível, mas da repetição
constante, do “esquema”, demonstra, para Freud, que elas são marcas de
acontecimentos transmitidos através de gerações. Por isto, podemos mesmo dizer que
não existem fantasias individuais ou, se quisermos, não existem indivíduos no interior
das fantasias. Há apenas “fantasias sociais”, processos trans-individuais e supra-
temporais que insistem no interior de indivíduos. Através das fantasias, o sujeito se
confronta a camadas temporais que não se esgotam na dimensão da simples experiência
individual. Podemos mesmo dizer que fantasias são uma dimensão fundamental da
experiência da historicidade, pois elas são os espaços de atualização das promessas de
felicidade que mobilizaram aqueles que me antecederam, que mobilizaram a história
dos desejos desejados. Por isto, fantasias são camadas temporais que sempre serão
relativamente opacas por nos colocar diante do problema relativo à significação do
desejo de outros que nos precederam, mas que nos constituíram 34. Como dirá Deleuze :
“e mesmo nosso amor de criança pela mãe repete outros amores de adultos diante de
outras mulheres, um pouco como o herói de Em busca do tempo perdido reencena, com
sua mãe, a paixao de Swann por Odette” 35. Que a rememoração seja, fundamentalmente,
rememoração de traços mnésicos reinscritos no interior de fantasias, eis algo que não
pode nos deixar indiferentes.
Mesmo assim, há uma “questão de método” que permanece: um fato empírico
(ou ainda uma “verdade histórica”) capaz de provocar forte quantidade de excitação
deve estar na base da composição fantasmática, deixando-se inscrever como traços
mnésicos. Da mesma maneira, Freud afirmava, sobre as fantasias de ameaça de
castração, que muito provavelmente fatos desta natureza ocorreram no passado e
deixaram traços na herança filogenética da espécie. Para Freud, delírios e fantasias são
construções a partir de verdades históricas. No entanto, ao menos no primeiro caso, o
fato empírico não fornece princípio positivo algum de significação, mas apenas uma
espécie de questão aberta produzida pelo desvelamento da contingência de certos
acontecimentos e que deverá posteriormente ser integrada às construções simbólicas do
sujeito. Como se “fatos traumáticos” não tivessem, no fundo, peso determinista algum.
Eles apenas abrem questões.
Isto fica muito claro se lembrarmos que esta redução do fato a traços que devem
ser recompostos no interior de fantasias onde o peso de dramas sociais se faz sentir abre
34
Não por acaso, Lacan aproxima o tempo da fantasia ao tempo mítico. A este respeito, ver LACAN, O
mito individual do neurótico,
35
DELEUZE, Gilles; Différence et repetition, Parsi: PUF, 1969, p. 28
as portas para Freud insistir em uma maneira peculiar, própria à análise, de reconquistar
o passado. Pois, através da temática da construção da memória pelo analista, Freud
mostra como a rememoração deve ser compreendida como processo produtivo de
composição.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter
fragmentário e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como
impressões de coisas. Seu caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos
de deslocamento e de condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência
de contexto que faz o sonho retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as
próprias lembranças foram armazenadas como fragmentos. Neste sentido, a atualização
de uma lembrança nunca poderá ser a mera apresentação de um conteúdo previamente
arquivado. Ela é a construção de um sentido a partir das exigências do presente.
Derrida, em um texto maior sobre o conceito freudiano de memória, alude a isto ao
afirmar:

O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...)
Não há verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro
lugar. Não há texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser
modificado, a um trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se
seguimos a literalidade freudiana, à consciência) que lhes seria exterior e
flutuaria em sua superfície36.

Sendo assim, se não há texto presente em outro lugar, é porque a memória não é
um arquivamento, mas uma contínua e incessante interpretação. Pois as lembranças não
são imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em contínuo
remanejamento. Não se trata de unidades discretas perpetuando-se através do tempo. O
que temos é um sistema dinâmico que, a partir do presente, integra traços mnésicos em
relações que se constituem a posteriori. Isto levou Ronselfield a afirmar, sobre Freud:
“Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser
compreendida como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas como
uma história global de esforços desdobrados para reaprender o passado, história situada
em um contexto dado, em um certo momento, que é este própria à repetição” 37. É com
isto em mente que podemos dizer que o passado nunca foi um “presente passado”. Ele
é, na verdade, a dimensão no interior da qual temos a experiência de sermos habitados
por questões abertas, questões que vem de um tempo virtual. Freud afirma que nunca
vivemos inteiramente no presente. A história do desejo de um sujeito mostra que essa
frase também vale para o passado (“O passado nunca foi completamente presente”).
No entanto, aqui se coloca a questão de saber em até que ponto a rememoração
não seria, no fundo, algo próximo de um processo de produção clínica de fantasias. Por
que não seria a construção, de uma certa forma, a fantasia do analista? Pois não seria
este caráter reconstrutivo da rememoração a prova mais clara do poder sugestivo da
cura analítica, tal como ela é pensada por Freud? Em seu texto sobre Construções na
análise, Freud lembra que, de uma certa forma, delírios e alucinações são construções a
partir de “verdades históricas” vividas pelo sujeito. E o que dizer das construções
analíticas?
De fato, o papel geral da construção na articulação da história do desejo nos
indica que a história individual já é um modo de participação em um universo
36
DERRIDA, ibidem, p. 313
37
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
simbólico-social produtor de experiências de sentido. Como se a história do indivíduo
repetisse, à sua maneira, a história geral do símbolo. Neste sentido, a especificidade
freudiana consistiria em lembrar como tal história geral do símbolo só é legível como
modulação do complexo de Édipo e das teorias da sexualidade infantil O que poderia
nos levar a compreender a clínica freudiana como um modo de reorganização
disciplinar, a partir do complexo de Édipo, dos modos de relação do sujeito ao seu
próprio corpo e ao seu desejo.
De sua parte, Freud afirma que as construções em análise não seriam simples
sugestões, elas teriam verdade objetiva por serem capazes de levar o sujeito a produzir
novos processos de rememoração que desenvolvem a construção. Esta estratégia
argumentativa ligada à eficácia do processo de desenvolvimento de associações de
idéias pode parecer frágil. Afinal, não é apenas uma construção analítica que se
demonstra profícua no desenvolvimento de associações de idéias. Por outro lado, sua
eficácia poderia estar ligada simplesmente ao reforço de esquemas de socialização do
desejo que constituem sujeitos.
A não ser que seja possível mostrar como, no interior da experiência intelectual
freudiana, podemos encontrar a idéia de que a rememoração, ao atualizar fantasias e
complexos, abre o espaço para reinscrições singulares do que se inscreveu como traço
mnésico. Reinscrições singulares porque confrontam o sujeito com o caráter
radicalmente instável das significações presentes em fantasias e complexos. Uma
instabilidade que não poderia dissolver fantasias e complexos, mas desestabilizar suas
significações e efeitos. Neste sentido, a rememoração não seria exatamente o
desvelamento de estruturas causais que atuam previamente. Ela estaria muito mais
próxima da possibilidade de dissolução de causalidades fechadas através de reinscrições
contínuas. Há uma performatividade própria a todo ato de rememorar.
História, memória e sofrimento
Aula 4

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade ao conceito de memória em Freud


através do comentário de outros textos. Na aula passada, vimos as articulações entre os
processos de rememoração e de construção. Vimos também como a perspectiva
freudiana tinha o mérito de problematizar as relações entre memória e fantasia. Agora,
gostaria de aproximar as discussões psicanalíticas e neurológicas sobre a memória. Para
tanto, começaremos discutindo um texto manuscrito freudiano dedicado à neurologia,
isto para ao final comentarmos a metáfora freudiana tardia do aparelho psíquico como
um bloco mágico. Ao final deste trajeto, gostaria de mostrar como:

Em psicanálise, mais do que em qualquer outra forma de tratamento e pesquisa


psicológica, o homem é tomado como ser histórico, um ser que, como raça e
como indivíduo, tem história, caminhou e continua a caminhar, através de um
processo de desenvolvimento, de algo simples e primitivo a algo complexo e
‘civilizado’38.

Comecemos com o Projeto para uma psicologia científica. Escrito em 1895 (ou
seja, antes do texto fundador da psicanálise, a saber, A interpretação dos sonhos, de
1900), este texto foi abandonado por Freud por considerar seu programa, em larga
medida, um fracasso. Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer uma psicologia como
ciência natural, ou seja, apresentar os processos psíquicos como estados
quantitativamente determinados de partes materiais determináveis e, com isto, livra-los
de contradição”39. Neste sentido, o Projeto é a versão mais bem acabada da tentativa
freudiana de adequar as elaborações por ele desenvolvidas na clínica das neuroses
(principalmente após os Estudos sobre a histeria, de 1895) à neurologia. O que
encontraremos aqui é, entre outras coisas, a tentativa de descrever o aparelho psíquico
através de partes materiais que são, na verdade, neurônios. De fato, Freud nunca deixará
de ver a psicanálise como um setor avançado das ciências naturais, mesmo que ele
acabe rapidamente por abandonar o modelo neuronal em prol de modelos do aparelho
psíquico autônomos em relação às estruturas do cérebro. No entanto, é inegável que
elaborações presentes no Projeto serão absorvidas pelos trabalhos posteriores de Freud.
No Projeto, Freud tem pois dois conceitos fundamentais: neurônios e
quantidade. Seguindo a tradição da psicologia experimental, a quantidade em questão
aqui é fundamentalmente quantidade de excitação (Erregung) que exige do aparelho
psíquico alguma forma específica de reação. Por isto, Freud pode falar que a quantidade
é o que diferencia a atividade do repouso 40. Esta excitação pode vir tanto do meio
ambiente externo quanto ser endógena (neste caso, Freud pensa naquilo que ele chama
de Not des Leben – a fome, a respiração e a sexualidade).
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio
fundamental de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com
que os neurônios tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação
a fim de conservar um estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o

38
LOEWALD, Hans; “The experience of time”In: Collected papers and monographies, p. 139
39
FREUD, Nachtragsband, p. 387
40
Em As psiconeuroses de defesa, Freud compara quantidade, soma de excitação e a carga elétrica
espalhada pela superfície de um corpo. Em Estudos sobre a histeria ela estabelece analogias entre quota
de afeto e excitação elétrica nas vias condutoras do encéfalo.
aparelho psíquico a abandonar sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar
de tais quantidade, os neurônios voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de
descarga (Abfuhr) aparece como a função primária do sistema nervoso. Se no caso das
excitações vindas do mundo externo, o aparelho psíquico pode se desembaraçar do
aumento da excitação através da motricidade, ou seja, fazendo o organismo afastar-se da
fonte de excitação, no caso das excitações endógenas, a descarga só pode significar
satisfazer as exigências ligadas à fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é
sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar
funções específicas. Funções estas que exigem a existência de algo como a memória
que, por sua vez, depende da capacidade de “armazenamento (Aufspeicherung) de
quantidades” de energia. Para que exista memória, faz-se necessário que as excitações
deixem marcas, traços duráveis. Joel Birman resume bem o conceito de memória no
Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas neurobiológicas, denominadas e
engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que se oporiam à
livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das
excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta
implicaria na morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia então à dita descarga
total. Com isso, a descarga seria apenas parcial, de forma somente que uma parcela das
excitações se manteria circulante no organismo”41.
Mas se a memória depende da capacidade de armazenamento, ela implica
também uma capacidade de conservar modificações que aparentemente entra em
contradição com a tendência à descarga. Neste sentido, a explicação da existência da
memória aparece como uma das funções fundamentais do manuscrito freudiano.
Freud lembra como toda teoria psicológica digna deste nome deve ser capaz de
explicar um fenômeno como a memória. Como dirá Derrida: “a memória não é uma
propriedade entre outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo” 42. No
entanto, explicar a memória não será algo simples para Freud. Pois ele não quer aceitar
versões de alguma teoria localizacionista da atividade cerebral, teoria que afirma ter o
cérebro neurônios qualitativamente distintos, dispostos em regiões cerebrais precisas e
responsáveis por funções específicas. Ou seja, ele não pode apelar à existência de um
conjunto de neurônios, qualitativamente distintos, responsáveis pela memória. Neste
sentido, sua perspectiva é profundamente distinta daquela presente nos estudos do
cérebro desde Franz Joseph Gall. Foi Gall que, no começo do século XIX, propôs
primeiramente que a funções específicas da atividade mental tem sua sede em
localizações específicas da estrutura cerebral (Gall chega a identificar 27 localizações
que responderiam por 27 faculdades mentais como : esperança, sublimidade, idealidade,
tempo, causalidade, auto-estima, entre outros).
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao
menos, duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível
de resistência produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar
tais pontos, Freud utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas
barreiras permitem a passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios
permeáveis”. Se, ao contrário, tais barreiras dificultam a passagem de quantidades,
então teremos “neurônios impermeáveis”, resistentes e retentores de quantidades. A
memória depende destes últimos, que Freud chamará de neurônios ψ. Os primeiros
seriam responsáveis pela percepção, recebendo o nome de neurônios φ. Que a
percepção seja caracterizada por neurônios permeáveis, isto se explica pelo fato da
41
(BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud)
42
DERRIDA, ibidem, p. 299
recepção a novas sensações e excitações ser condição maior para a sobrevivência do
organismo e para a plasticidade de sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a
passividade da percepção que recebe as impressões externas e a atividade da memória
será uma constante na teoria freudiana da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma
quantidade Q de excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis
pela memória. Se ela for muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá
caminhos entre as barreiras de contato. Senão, elas não modificarão o contato entre
neurônios. Este ato de abrir caminhos, que Freud associa à dor, é o que ele chama de
Bahnung (que, em português traduzimos ou por “facilitação” ou por “trilhamento”). A
memória é, de fato, representada por estes caminhos de condução de excitações que
encontramos nos neurônios ψ. Como vemos, trata-se aparentemente de um mero jogo de
forças entre pressão de quantidades de excitação e resistência. Como se a significação,
evento necessário aos fenômenos da memória, nascesse da força pressuposta pela
intensidade, pela repetição e pela resistência. Como se a “força produzisse o sentido”43.
De fato, encontramos inicialmente em Freud a idéia da memória como um
sistema de Bahnungen, de ligações neuronais oude traços que foram constituídos
levando em conta apenas diferenças entre jogos de forças. Neste sentido, lembremos
como Freud introduz a consciência apenas como uma terceira categoria de neurônios,
por ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à memória seria
feito sem apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a transformação de relações
de quantidade em diferenças de qualidade. Em especial, caberia à consciência operar as
distinções qualitativas próprias às sensações conscientes de prazer e desprazer, base
para a construção de julgamentos. Mesmo neste caso, a distinção qualitativa entre prazer
e desprazer será compreendida a partir da noção de assimilação do período de uma
excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Esta posição extemporânea da consciência fica ainda mais clara em uma carta de
Freud a Fliess (n.52). Aqui, Freud apresenta um esquema onde descreve mais
claramente o que seria o trajeto que vai da percepção de um estímulo à formação de
uma representação consciente a ele associado. No Projeto, entre a percepção e a
consciência, havia a memória. Na carta, Freud descreve a memória através de três
estratos distintos que se formam sucessivamente : os signos de percepção (I), o
inconsciente (II) e o pré-consciente (III). Esta estratificação é fundamental por indicar
as sucessivas modificações das inscrições geradas pelo estímulo até alcançar a
representação consciente. Pois, como dirá o próprio Freud: “o que há de essencialmente
novo em minha teoria é a idéia de que a memória está presente não apenas uma, mas
várias vezes e que se compõe de diversas formas de “signos””44.
O que há de essencialmente novo aqui é a idéia de que a memória produz
inscrições em um sistema estratificado onde a passagem de um estrato a outro nunca é
uma simples tradução, mas uma transcrição (Umschrift). Através destas reinscrições em
estratos, os traços mnésicos são periodicamente reordenados. Toda nova inscrição
modifica a inscrição precedente. Por outro lado, muitas vezes a passagem de certos
traços, de um estrato a outro, é bloqueado através de recalques. Assim, o que chega à
representação da consciência muito pouco tem a ver com o estímulo que apareceu no
nível da percepção.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter
fragmentário e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como
impressões de coisas. Sou caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos
43
Idem, p. 316
44
FREUD, Carta 52
de deslocamento e de condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência
de contexto que faz o sonho retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as
próprias lembranças foram armazenadas como fragmentos. Neste sentido, a atualização
de uma lembrança nunca poderá ser a mera apresentação de um conteúdo previamente
arquivado. Ela é a construção de um sentido a partir das exigências do presente. Derrida
alude a isto ao afirmar:

O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...)
Não há verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro
lugar. Não há texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser
modificado, a um trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se
seguimos a literalidade freudiana, à consciência) que lhes seria exterior e
flutuaria em sua superfície45.

Se não há texto presente em outro lugar, é porque a memória não é um


arquivamento, mas uma contínua e incessante interpretação. Pois as lembranças não são
imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em contínuo
remanejamento. Não se trata de unidades discretas perpetuando-se através do tempo. O
que temos é um sistema dinâmico que, a partir do presente, integra traços mnésicos em
relações que se constituem a posteriori (nachträglich). Isto levou Ronselfield a afirmar,
sobre Freud:

Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser
compreendida como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas
como uma história global de esforços desdobrados para reaprender o passado,
história situada em um contexto dado, em um certo momento, que é este própria
à repetição46.

O que demonstra como, fora do presente, a memória não existe. Ela faz da tríade
passado/presente/futuro não uma sucessão, mas uma conexão que, muitas vezes, se
justapõe. Como não é apenas uma retenção, mas atividade, a memória não conhece
passado estático, ou futuro não-realizado. A este respeito, lembremos, como dirá
Loewald, que esta reinscrição do passado a partir do presente não modifica “o que
objetivamente aconteceu no passado”, mas modifica o passado que o paciente carrega
consigo em sua história vivida. No entanto, vale a pena meditar sobre o fato de que:

Qualquer verdade histórica – independente do que Freud tenha pensado a


respeito do estatuto da realidade objetiva e da verdade da objetividade – é uma
reconstrução ou construção que reestrutura de uma maneira nova o que já no
tempo no qual isto realmente ocorreu foi uma construção mental, uma estrutura
mnésica inconscientemente construída pelos agentes temporais da mente47.

Ou seja, “o que objetivamente aconteceu no passado” já era, desde sempre uma


construção mental, pois já foi, desde sempre, uma interpretação que visava decidir a
natureza do sentido do fato. Não conhecemos nada como um “fato bruto” cujo sentido
esteja para além de conflitos de interpretação. No processo de interpretação social,
45
DERRIDA, ibidem, p. 313
46
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
47
LOEWALD, Hans, idem, p. 146
mobilizamos repetições, expectativas, medos que organizam os julgamentos
enunciados. O que temos desde o início é um conjunto de discursos que são
reatualizados a partir de acontecimentos que, por sua vez, pedem inscrições simbólicas.
Neste sentido, a modificação de como sujeitos vivem fatos passados já é, de alguma
forma, a modificação do que objetivamente aconteceu. Se a psicanálise foi sensível a
força de reinscrição, é porque:

A memória, na psicanálise, não é apenas uma faculdade ou função do intelecto


através da qual a mente registra, retém e procura lembra-se de experiências,
acontecimentos e objetos. Para ela, a memória tem a ver como separação, perda,
luto, restituição e geralmente traz consigo o sentido de nostalgia, especialmente
quando ficamos velhos48.

Esta é uma colocação importante que ultrapassa o quadro estrito das técnicas de
intervenção clínica. Da mesma forma como não há percepção bruta, ou seja, a
percepção não é apenas o registro da presença de objetos, mas toda percepção é juízo
carregado da memória das percepções passadas, há faculdades conceituais em operação
na mais simples percepção, o rememorado nunca é um mero fato, pois de nada nos
interessam fatos. Rememoramos experiências como separação, luto e perdas;
experiências que, por sua vez, são continuamente recompreendidas através de sua
articulação contínua com acontecimentos posteriores. Um pouco como estas cadeias
significantes em Lacan nas quais o acréscimo de um elemento tem a capacidade de
mudar retroativamente o sentido de todos os demais.
Lembremos, por exemplo, de como funciona o trabalho de luto. Freud tem um
descrição clara do processo:

A prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora
exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra
isso se levanta uma compreensível oposição: em geral se observa que o homem
não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um
substituto já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um
afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose
alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua
incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a
pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto
isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a
uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são
focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido49.

Freud descreve um processo de fixação da memória em um objeto perdido


reativo a deslocamentos. Uma leitura rápida do trecho pode nos dar a impressão de que
o luto se trata de alguma forma de resignação diante do caráter inelutável da realidade.
Resignação cujo preço psíquico será sempre alto. No entanto, não compreenderemos
com isto o tipo de trabalho que se desenvolve no período de luto que permite um
desligamento da libido. Para compreendê-lo lembremos como tal trabalho de luto não
opera por substituição do objeto perdido através do deslocamento da libido. Dar a tal
deslocamento o estatuto de uma substituição equivaleria a colocar os objetos em um
regime de intercambialidade estrutural, regime no interior do qual a falta produzida pelo
48
LOEWALD, idem, p. 148
49
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
objeto perdido poderia ser suplementada em sua integralidade pela construção de um
objeto substituto a ocupar seu lugar. Um mundo de balcão de trocas sem prazo de
vencimento. Se o homem não abandona antigas posições da libido mesmo quando um
substituto lhe acena é porque não se trata simplesmente de substituição. No entanto, o
tempo do luto não é o tempo da reversibilidade absoluta. Vincular o luto a uma
operação de esquecimento seria, por sua vez, elevar a lobotomia a ideal de vida.
Nem substituição, nem esquecimento, o luto não significa deixar de amar objetos
perdidos. O desligamento a respeito do qual fala Freud não é um esquecimento, mas
uma “operação de compromisso” a respeito da qual, infelizmente, o psicanalista não diz
muito, da mesma forma como não diz muito a propósito de um processo estruturalmente
semelhante ao luto, a saber, a sublimação. Talvez seja o caso de afirmar que tal
operação de compromisso própria ao trabalho de luto é indissociável da abertura a uma
outra forma de existência, da abertura de uma outra forma de realidade, entre a presença
e a ausência, entre a permanência e a duração. Uma existência espectral que, longe de
ser um flerte com o irreal, é existência objetiva do que habita em um espaço que força
as determinações presentes através de ressonâncias temporais 50. Existência descritível
apenas em uma linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma
espessura espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado
à desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma
metamorfose contínua. É assim que desaparece a desaparição e é assim que o luto se
afirma como processo de conversão absoluta da violência das perdas e separações em
ampliação do presente. Pois esse espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma
figura privilegiada da linguagem de temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por
isto, podemos dizer que o trabalho de luto não é construção de processos de substituição
próprias a uma lógica compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se
dispor em um presente absoluto

O bloco mágico

Todas estas conseqüências estão sintetizadas na metáfora freudiana do aparelho


psíquico como um bloco mágico. Trata-se de um pequeno brinquedo composto de um
bloco de resina e duas folhas, uma de celulóide transparente e outra de papel enerado
translúcido. Ao escrever no papel, a resina marca as duas folhas permitindo a
constituição de uma escrita. A segunda folha, aquela que realmente recebe as
impressões, serve como proteção para a primeira. Se esta estivesse diretamente em
contato com o bloco de resina, ela se rasgaria facilmente. Ao retirar o contato das folhas
com o bloco, ela volta a ficar vazia, enquanto todas as marcas passam para a resina.
Com o tempo, as marcas vão se acumulando, transformando-se em traços
incompreensíveis e interferindo na superfície de contato das folhas.
Freud encontra neste brinquedo uma metáfora para pensar a articulação entre
receptividade ilimitada da percepção e conservação de traços duráveis pela memória.
Articulação que lhe fez sustentar a existência de dois tipos de neurônios; um vinculado à
percepção e outro a memória. Ele ainda serve para figurar este processo de “suspensão
do contato” entre consciência e inconsciente através da separação periódica entre as
folhas e o bloco.
O fato de estarmos diante de uma máquina de escritura é algo de não deve ser
negligenciado. Que a mente tenha como metáfora privilegiada um sistema de escrita e
de conservação de traços é algo que diz muito a respeito de como entendemos a
50
Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em GAGNEBIN,
Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo: Editora 34, 2014
atividade da memória, para além da ideia clássica do arquivamento de imagens. Falta à
metáfora do bloco mágico, no entanto, a capacidade de não apenas receber impressões
de fora, mas também de escrever a partir de dentro, como se a escritura pudesse se
reproduzida do bloco em direção às folhas. Caso isto ocorresse, ou seja, caso a
percepção pudesse se deixar marcar pela memória, então teríamos uma representação
perfeita do aparelho psíquico.
História, memória, sofrimento
Aula 5
[falta]
História, memória, sofrimento
Aula 6

Na aula de hoje, iniciaremos o segundo módulo de nosso curso, este dedicado às


relações entre psicologia e história. Não se trata aqui de tentar compreender como a
psicologia poderia colaborar na compreensão de fatos históricos ou como ela é
permeada por representações sociais historicamente constituídas. Como dissera
anteriormente, nosso debate será epistemológico, ou seja, trata-se de definir como a
história fornece um importante quadro epistemológico para o desenvolvimento de
conceitos no campo da psicologia.
Já na primeira aula, eu insistira só ser possível compreender a constituição do
conceito psicológico de memória e, por consequência, de tempo psíquico se nos
confrontássemos com o impacto da história na determinação do campo da psicológico.
A memória é o campo de certa história individual cuja possibilidade de apreensão será o
fundamento da consciência. Mas não “história individual” apenas no sentido de uma
narrativa singular de fatos que expressariam um princípio único de desenvolvimento (a
saber, a personalidade). “História individual” no sentido de um tempo histórico que,
através de suas estruturas de articulação, fornece à vida psíquica sua estrutura de
síntese. Assim, será do tempo histórico que a psicologia trará, por exemplo, a noção de
que: “o transcurso da vida é constituído por partes, por vivências que se encontram em
uma conexão interna umas com as outras. Cada vivência particular está ligada a um si
mesmo, do qual ela é parte; por meio da estrutura, cada vivência particular está ligada
com outras partes e forma uma conexão. Em tudo aquilo que é espiritual, encontramos
uma conexão; assim a conexão é uma categoria que emerge da vida” 51. Ou seja, a ideia
de unidade da consciência psicológica através da vivência como sistema de conexões,
aquilo que lhe permite formalmente ser um sistema de sínteses temporais, virá do
impacto das elaborações da história.
Pelo conceito de consciência psicológica ter em seu horizonte de influência o
conceito de consciência história, da história a psicologia herdará ainda noções como: o
vínculo entre progresso e maturação, entre doença e regressão (ou degenerescência),
entre normalidade e capacidade de auto-reflexão através da constituição da unidade
temporal da experiência.

A noção de progresso

Mas tentemos compreender melhor como certas categorias históricas serão


engendradas. Havia lembrado anteriormente que, desde os gregos, conhecemos uma
modalidade de discurso definida como história, termo que em grego significa
“investigação”, “conhecimento resultante de investigação”. Historia vem de histor, que
significa “testemunho” no sentido de ter visto algo. De Heródoto e Tucídides aos
Iluministas, a história significou, em larga medida, a “investigação através da
interrogação de testemunhas”52. Investigação cujo objetivo maior será permitir aos
sujeitos servirem-se do passado como quem se serve de uma coleção de exemplos 53. Daí
uma expressão paradigmática de Cícero: Historia magistra vitae (história como mestre

51
DILTHEY, Wilheim; A construção do mundo histórico nas ciências humanas, São Paulo: Unesp, 2006, p.
173
52
ENGELS, Odilo; GÜNTHER, Horst, MEIER, Christian e KOSELLECK, Reinhart; O conceito de história, Belo
Horizonte: Autêntica, 2013, p. 41
da vida). Narrar-se a histórica como quem procura feitos notáveis que nos indique como
proceder diante de situações análogas no presente. Mas essa concepção de história com
sua força pedagógica exigia a crença em um tempo continuo, no qual passado e presente
se desdobrariam no interior de uma mesma duração. Condição necessária para que
interesse pelo passado reduza-se, basicamente, à procura de relatos exemplares a serem
repetidos no presente. Como disse o historiador Reinhart Koselleck: “Seu uso remete a
uma possibilidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidade humanas em
um continuum histórico de validade geral”54.
Mas a partir do Iluminismo e, principalmente, da Revolução Francesa, uma
compreensão renovada da história se fará sentir. A experiência de um tempo
radicalmente novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem político
poder ser profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na ordem
política não implica mais agir a partir do reconhecimento de exemplos vindos do
passado, mas implica o conhecimento de causas que determinam o presente como
depositário da latência do que ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha
que empurra o tempo para frente em direção a uma realização sem referência com o que
até agora foi feito. Haveria um projeto que parece indicar a possibilidade de encarnar na
ordem política o que a filosofia iluminista tinha tematizado através da noção de
“progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão e é dele que, a partir de
agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será mais o espaço de uma
reprodução do passado no presente, mas de uma construção que pode inicialmente
parecer começar no passado em direção ao presente.
Notemos inicialmente que “progresso” é um termo cuja significação
aparentemente evidente é feita para nos enganar. Gostaria de, na aula de hoje, desdobrar
as consequências de uma certa forma de compreender o que estaria em jogo na noção de
progresso. Na próxima aula, daremos continuidade a tal perspectiva através de um
debate a respeito da construção do conceito clínico de fetichismo. Depois, gostaria de
retomar o tema a fim de complexificar nossa visão das questões envolvidas no conceito
moderno de progresso, abrindo então uma via alternativa para compreendermos relações
entre psicologia, história e temporalidade.
Partamos pois de uma certa representação natural a respeito do progresso.
Imaginamos que sabemos imediatamente a que se refere o termo “progresso” ao lermos
suas incidências em textos filosóficos do século XVIII e XIX. Grosso modo,
acreditamos que ele se refere a um processo linear de desenvolvimento em direção à
perfectibilidade. Não sendo mais assombrada pela repetição constante de modelos
vindos do passado, a história caminharia em direção à realização das potencialidades
racionais ainda não institucionalizadas pela vida social. Quando Hegel afirma, por
exemplo, que “a razão domina o mundo”55, pode parecer que estamos vendo a
culminação da crença de que a história ocidental tem seu motor no progresso linear
irresistível em direção à realização de formas racionais de vida. Como se houvesse um
plano desde sempre definido e que deve ser realizado, como se uma providência
houvesse inscrito os homens no interior de um destino que nunca poderia ser perdido.
Daí, por exemplo, uma colocação como esta de Kant:

53
Como dirá Koselleck: “Assim, ao longo de cerca de 2000 anos, a história teve o papel de uma escola,
na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grande erro” (KOSELLECK, Reinherdt;
Futuro Passado, p. 42)
54
Idem, p. 43
55
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, p. 28
Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a
realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição
política perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente
perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente,
na humanidade, todas as suas disposições56.

Um plano oculto que seria o vetor do progresso histórico em direção à


perfectibilidade de um estado justo, este pareceria ser o sentido último da história. Da
mesma forma, tal progresso pareceria animar o campo da psicologia. Pois esta ideia do
tempo histórico como tempo em progressão, tempo que não é simplesmente a repetição
do passado, mas o desenvolvimento em direção a perfectibilidade pode nos mostrar
como as discussões sobre maturação e desenvolvimento individual são dependentes de
uma teoria subjacente do progresso histórico. Tal discussão sobre progresso acabou por
nos afastar da ideia de uma natureza humana substancialista, estática, originariamente
assegurada e em larga medida imutável. A condição humana será, de maneira cada vez
mais clara, dependente da experiência histórica. Ou seja, a ciência da natureza humana
será, cada vez mais, uma ciência da história. No entanto, isto não afastará a ideia de que,
de alguma forma, o processo de desenvolvimento deverá seguir uma normatividade
necessária. Tentemos entender melhor este ponto.
As modificações na estrutura do pensamento e da cognição presentes, ainda
hoje, em teorias do desenvolvimento psicológico traduzem, em larga medida, etapas que
organizam o ritmo do progresso histórico. Neste sentido, a chamada “lei biogenética
fundamental” que defendia o paralelismo entre filogênese e ontogênese é, na verdade, a
expressão de um princípio de articulação entre história e psicologia que nunca saiu do
horizonte de nossos saberes. Enunciada no final do século XIX por Ernst Haeckel, tal lei
era a forma final de uma idéia que havia atravessado a história das idéias desde o
iluminismo. Lembremos, por exemplo, do que diz Condorcet em um texto intitulado:
esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano:

Se o homem pode predizer, com uma segurança quase total, os fenômenos a


respeito dos quais ele conhece as leis, se mesmo quando elas lhe são
desconhecidas, ele pode, a partir da experiência do passado, prever com uma
grande probabilidade os acontecimentos do futuro, porque veríamos como um
empreendimento quimérico traçar com alguma verossimilhança o quadro dos
destinos futuros da espécie humana, a partir dos resultados da história? O único
fundamento de crença nas ciências naturais é esta ideia de que as leis gerais,
conhecidas ou ignoradas, que fornecem as regras dos fenômenos do universo,
são necessárias e constantes; e por qual razão este princípio seria menos
verdadeiro para o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais do
homem do que para outras operações da natureza?57

Uma idéia que estará enunciada de maneira ainda mais clara nos trabalhos de
Augusto Comte:

O desenvolvimento individual reproduz necessariamente sob os nossos olhos,


em uma sucessão mais rápida e familiar, cujo conjunto é então mais apreciável,
embora menos pronunciado, as principais fases do desenvolvimento social.
Tanto um quanto outro tem essencialmente como objetivo comum a
56
KANT, Imannuel; Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, p. 20
57
CONDORCET, p. 265
subordinação, na medida do possível, da satisfação normal dos instintos pessoais
ao exercício habitual dos instintos sociais, assim como o assujeitamento de
nossas paixões às regras impostas por uma inteligência cada vez mais
preponderante58.

No caso de Comte, tal articulação entre filogênese e ontogênese é, segundo


Canguilhem: “a peça indispensável de uma concepção biológica de história [já que as
leis do organismo social e do organismo biológico do indivíduo seriam as mesmas – ou
seja, como se a história do homem fosse uma “história natural”] elaborada exatamente
na época que a história começava a penetrar a biologia” 59. No entanto, tal paralelismo
não fornecerá apenas o horizonte regulador do desenvolvimento psicológico. Ou seja,
ele não fundará apenas os delineamentos da noção de normalidade. Ele será também
responsável por aquilo que poderíamos chamar de “forma geral” do conceito de doença
mental, a saber, a doença como regressão e degenerescência. Neste sentido, a doença
seria necessariamente um retorno e dissolução de funções complexas que teriam sido
sintetizadas em fases mais avançadas do desenvolvimento. Desta forma, a relação entre
história e psicologia habita o cerne da racionalidade do campo psicológico, isto através
da definição dos conceitos de normalidade e patologia.

Progresso e maturação

Mas para que direção caminha tal progressão? Já em Comte, vemos uma progressão que
descreve uma forma de desenvolvimento do raciocínio Sabemos como o positivismo de
Comte nos fornece uma teoria do progresso através da imagem de três estágios da
humanidade: o animista, o religioso e o científico. Para caracterizar o vínculo entre estes
três estágios, Comte não teme em falar de um “curso natural da evolução social” 60,
curso natural que animaria tanto a ordem política quanto a esfera do conhecimento.
Todo desenvolvimento social possível, assim como toda maturação individual possível,
deveria seguir um mesmo caminho que consistiria na passagem de um pensamento
fetichista, narcísico e afetivo a um pensamento conceitual e desencantado.
Assim, ao falar sobre os três estados gerais da humanidade, Comte lembrará: “A
inevitável necessidade de tal evolução intelectual tem por primeiro princípio elementar
a tendência primitiva do homem em transpor involuntariamente o sentimento íntimo de
sua própria natureza à condição de explicação radical de todos os fenômenos”.
Transposição que levaria o homem a se colocar como “tipo universal”, o que Comte a
dizer que:

podemos estabelecer que, inicialmente, o homem só conhece a si mesmo, assim,


toda sua filosofia primitiva deve consistir em transportar, de maneira mais ou
menos bem sucedida, esta unidade única espontaneamente a todos os outros
assuntos que possa sucessivamente chamar sua atenção nascente. A aplicação
posterior, que ele chega gradualmente a instituir, do mundo exterior à sua
própria natureza constitui finalmente o sintoma mais irrecusável de sua plena
maturidade filosófica61.

58
COMTE, Cours de philosophie positiva, leçon 51, p. 291
59
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie des sciences, p. 98
60
COMTE, Auguste ; Cours de philosophie positive, Paris: Flammarion, 2004, p. 38
61
COMTE, idem, p. 310
Não será difícil lembrar como tal compreensão linear do progresso em direção ao
abandono de crenças como a onipotência do pensamento, a projeção do sujeito no
mundo nos acompanhará no campo da psicologia. Esta onipotência do pensamento
estaria associada à crença na capacidade cognitiva vinculada às operações de analogia,
similitude de participação, de contágio e imitação. Por outro lado, a onipotência do
pensamento implica aqui em tomar por realidade as formações próprias a um
pensamento submetido à procura do prazer (pensamento que, por isto, opera a partir das
leis de associação do processo primário e que desconsidera os princípios lógicos
elementares). Daí porque alguém como Freud poderá dizer que, no estágio do
pensamento animista, não há condições para o estabelecimento objetivo do “verdadeiro
estado das coisas” (den wahren Sachverhalt), isto devido a uma superestimação dos
processos psíquicos que impede a distinção entre percepção e alucinação. Isto o leva a
compreender a magia como modo instrumental de dominação da natureza fundamental
no interior da visão de mundo animista. Um modo de dominação fundado no equívoco
de “tomar uma conexão de idéias por uma conexão real”, segundo a fórmula de Tylor,
como se “a relação que existe entre as representações fossem igualmente pressuposta
entre as coisas”.
Neste sentido, lembremos como no interior de psicologias do desenvolvimento,
como aquela de Jean Piaget encontramos pressupostos semelhantes. É de Piaget,
afirmações como:

O lactente tudo relaciona a seu corpo como se ele fosse o centro do mundo, mas
um centro que a si mesmo ignora. Em outras palavras, a ação primitiva exibe
simultaneamente uma indiferenciação completa entre o subjetivo e o objetivo e
uma centração fundamental, embora radicalmente inconsciente, em razão de
achar-se ligada a esta indiferenciação62.

Parte-se assim de uma unidade indiferenciada na qual o sujeito se toma como centro do
mundo fazendo com que , no início, o homem só conheça a si mesmo, como vimos na
teoria da história de Comte. Não por outra razão, a história do processo de maturação
será a descrição do abandono deste estado inicial narcísico e profundamente centrado no
próprio eu. Assim, entre os 18 e 24 meses de vida, teríamos, ao menos segundo Piaget,
o início da função semiótica e da inteligência representativa:

Neste intervalo de um a dois anos realiza-se, de fato, mas ainda apenas no plano
dos atos materiais, uma espécie de revolução coperniciana que consiste em
descentralizar as ações em relação ao corpo próprio, em considerar este como
objeto entre os demais num espaço que a todos contém e em associar as ações
dos objetos sob o efeito das coordenações de um sujeito que começa a se
conhecer como fonte o mesmo senhor de seus movimentos63.

Desta forma, produz-se paulatinamente a diferenciação entre sujeito e objeto,


fundamento para um conhecimento do mundo baseado na capacidade de representação e
de abstração, para a passagem das condutas sensório-motoras às ações conceitualizadas.
Notemos como o processo obedece uma gradualidade na qual abre-se paulatinamente
em direção ao mundo e ao outro. Há um progresso que consiste na possibilidade mesma
do acesso epistêmico ao mundo e à vida em comunidade, já que esta revolução
copernicana implica constituição da autonomia metafísica do objeto, mas também da
62
PIAGET, Jean; Epistemologia genética, p. 7
63
Idem, p. 8
autonomia do outro. Neste ponto, poderíamos lembrar de certos aspectos da teoria do
desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg.
Kohlberg apresenta uma teoria dos estádios do desenvolvimento moral que
contém seis etapas divididas em três níveis. Para o psicólogo, a passagem de cada
estádio ao outro é um aprendizado necessário devido à “reorganização criativa de um
inventário cognitivo pré-existente e que se viu sobrecarregado por problemas que
aparecem insistentemente”64. Trata-se de uma concepção construtivista de aprendizagem
como mudança de atitude.

Nível A: pré-convencional /lealdade

Estádio 1: Estádio da punição e obediência. Aqui, direito é literalmente


obediência a regras e autoridades capaz de evitar punição física. A razão para
fazer algo correto consiste em evitar punição física. Este estádio adota um ponto
de vista egocêntrico onde os interesses do outro não são considerados.
Estádio 2: Estágio do propósito instrumental individual e troca. Aqui, direito é
seguir regras quando isto é de seu imediato interesse. Com isto, aparece também
noções como: acordo e troca. A razão para fazer algo correto consiste em
satisfazer seus interesses em um mundo onde reconheço que outros também tem
seus interesses. Este estádio adota uma perspectiva individualista concreta onde
é possível separar os interesses próprios e os interesses dos outros.

Nível B : convencional /dever

Estádio 3: Estádio de relações, conformidades e expectativas interpessoais


mútuas. Direito é desempenhar um bom papel, concernir-se a respeito de outras
pessoas e seus sentimentos, mantendo lealdade e confiança em parceiros. A
razão para fazer algo correto consiste em bom diante dos olhos dos outros e de
seus próprios olhos. Temos aqui a capacidade de se colocar no lugar do outro.
Este estádio adota a perspectiva do indivíduo em relação com outros indivíduos.
O acento vai para a capacidade recém adquirida de se colocar no lugar do outro.
Estádio 4: Estádio de manutenção da consciência e do sistema social. Direito é
realizar seu dever na sociedade, mantendo o bem estar da sociedade ou do grupo.
A razão para fazer algo correto consiste em manter a instituição funcionando
como um todo. Este estádio diferencia o ponto de vista societário do acordo ou
motivos interpessoais.

Nível C: pós-convencional / autonomia

Estádio 5: Estádio dos direitos prévios e do contrato social ou utilidade. Direito é


manter as direitos básicos, valores e contratos legais criando uma sociedade
capaz de produzir justiça e benefícios práticos. A razão para fazer algo correto
consiste em obedecer a lei porque fez-se um contrato social capaz de proteger
seus direitos e os direitos do outro. Este estádio adota uma perspectiva prévia à
sociedade, ou seja, do indivíduo racional cônscio dos valores e direitos prévios
ao vínculo social.
Estádio 6: Estádio dos princípios éticos universais. Esse estádio presume a
orientação por princípios éticos universais. Leis ou acordos sociais são válidos

64
Idem, p. 155
porque se apoiam em tais princípios. A razão para fazer algo correto está ligada
ao reconhecimento da validade universal de princípios.

Esta passagem fundamental do nível convencional ao nível pós-convencional ocorreria,


normalmente, na adolescência e repetiria, de maneira ontogenética, a filogênese social
representada pela desvalorização do mundo tradicional e pelo esforço de reconstrução
de relações sociais em um plano superior de racionalidade. Como percebemos, este
processo é cumulativo e segue uma lógica de ampliação da capacidade de
universalização de julgamentos. Parte-se de uma situação onde validade e força não se
distinguem, situação na qual a motivação para a ação está vinculada à coerção física e
chega-se em uma situação onde a ação obedece à estrutura de uma vontade autônoma.
Notemos um dado importante neste processo de desenvolvimento. “Os estádios
do juízo moral formam uma seqüência de estruturas discretas que é invariante,
irreversível e consecutiva. Com esta suposição, fica excluído: que os diferentes sujeitos
testados alcancem o mesmo objetivo por diferentes vias de desenvolvimento; que os
mesmos sujeitos regridam de um estádio superior a um estádio inferior; que saltem um
estádio no curso de seu desenvolvimento” 65. Desta forma, a teoria da autonomia
individual acaba por se vincular a uma visão profundamente normativa e evolutiva de
desenvolvimento psicológico. Visão na qual estádios vão sendo abandonados em um
processo fortemente hierárquico onde os modelos de interação social mudam. Eles
deixam de ser modelos estratégicos, ou seja, baseado na defesa de interesses pessoais ou
de grupo e se transformam em modelos dirigidos ao entendimento mútuo a partir de
princípio universalmente válidos e aceitos. Assim caminharia o progresso na maturação
psicológica.

65
HABERMAS, Jurgen; Conhecimento e interesse, p. 157
História, memória e sofrimento
Aula 7

Gostaria de continuar nosso segundo módulo desenvolvendo o problema do impacto


epistemológico das relações possíveis entre história e psicologia. Na verdade, trata-se de
discutir como a formação da concepção moderna de história influenciará, por um lado, a
constituição do conceito de sujeito com o qual a psicologia moderna lidará. Por outro,
veremos como a concepção moderna de história trará, em seu bojo, um modelo de
comprenssão da natureza do sofrimento psíquico e das formas de alienação. Pois o
conceito clínico de alienação, tão importante para a formação do saber psiquiátrico do
século XIX, não pode ser compreendido sem reconstruirmos sua dependência para com
o conceito social de alienação e para com o modo com que a experiência filosófica e
política construiu a noção de “emancipação”.
Este último ponto é de suma importância por expressar a mudança entre a
história, tal como ela é compreendida pelos modernos, e a história como podemos
encontrar em períodos anteriores. Se , até então, a história sempre esteve ligada a uma
arte narrativa que visava ser, como dirá Foucault, fornecer a história da necessidade do
presente através da descrição de grandes feitos e grandes homens, a partir
principalmente do impacto da Revolução Francesa ela será a uma ciência que visa
transformar a compreensão que os homens tem de si mesmos, retirar-los de uma
situação de “alienação social”. Como se toda verdadeira história como ciência fosse
uma espécie de “contra-história”.

Fetichismo

A fim de compreendermos melhor tal articulação entre história e psicologia, talvez não
exista método melhor do que partir da análise do desenvolvimento de um conceito
psicológico. Sigamos, por exemplo, a formação do conceito de “fetichismo” enquanto
modelo de descrição de patologias clínicas ligadas à perversão.
Poucos são os termos tão ligados à constituição da consciência da modernidade
ocidental quanto “fetichismo”. Seu aparecimento é fruto direto da crença iluminista no
progresso histórico e na perfectibilidade humana. Enunciado pela primeira vez em 1756
pelo escritor francês Charles de Brosses, membro da Académie des Inscriptions et
Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia de Diderot e d’Alambert, o
fetichismo aparecia como peça maior de uma operação que visava estabelecer os limites
precisos entre nossas sociedades esclarecidas e sociedades primitivas pretensamente
vítimas de um sistema encantado de crenças supersticiosas. Já o título da obra de De
Brosses dedicada à apresentação sistemática do fetichismo era ilustrativo: Do culto dos
deuses fetiches ou Paralelo da antiga religião do Egito com a religião atual da Nigritia
(1760)66. Ou seja, tratava-se de criar um paralelo entre um limite à racionalidade
moderna ao mesmo tempo histórico (no passado) e geográfico (no presente), determinar
as coordenadas histórico-geográficas do pensamento primitivo, isto através da
identificação de uma forma de encantamento cuja ilustração perfeita seria o culto aos
ditos deuses fetiches.
À ocasião, o fetichismo aparecia definido, fundamentalmente, como culto de
objetos inanimados e, em outros casos, como divinização de animais e de fenômenos
66
Termo que vem do latim niger (negro) e que designava a região africana, povoada por negros, entre a
bacia do Nilo superior e o Oceano Atlântico.
irregulares da natureza. Baseando-se no relato de navegadores portugueses a respeito do
modo de culto de tribos africanas da Guiné e da África Ocidental, De Brosses criava um
termo derivado do português antigo fetisso (que dará no atual feitiço) a fim de colocar
em marcha uma generalização extensa que englobava estes espaços infinitos nos quais o
Ocidente não via sua própria imagem.
Tal caracterização do pretenso pensamento primitivo através do fetichismo
atravessará os séculos XVIII e XIX. Ela pode ser encontrada, entre outros, em escritos
de ideólogos como Destutt de Tracy, de filósofos como Kant, Hegel, Benjamin
Constant, mas será com Augusto Comte que o fetichismo, definido enquanto estágio
inicial da vida social e das formas do pensar, alcançará sua enunciação canônica. Assim,
quando o termo aparece pela primeira vez na psicologia e nos estudos das perversões,
através de dois artigos, publicados em 1887 pelo psicólogo francês Alfred Binet,
intitulados “O fetichismo no amor”, ele já tinha atrás de si uma longa história.
Constituído por derivação, o fetichismo enquanto nosografia da perversão visava dar
conta dos modos de investimento libidinal em objetos inanimados e partes do corpo,
investimentos estes que podiam chegar à condição de determinações exclusivas do
interesse sexual.
De fato, contrariamente a termos como “sadismo”, “masoquismo”,
“exibicionismo”, todos constituídos ou transformados em perversões sexuais nesta
época, “fetichismo” é a única categoria nosográfica que nasce da apropriação conceitual
de um termo então em franca utilização em outra área do saber. Tal peculiaridade não
deve ser negligenciada. Da mesma forma que o fetichismo aparecia no interior das
teorias sobre a vida social como dispositivo de crítica a formas de vida que teriam
permanecido em uma “infância perpétua” marcada pela ignorância e barbárie67, o
fetichismo relacionado à vida amorosa aparecia como modo de fixação do
comportamento a uma fase regressiva em relação à maturidade sexual ligada aos
imperativos de reprodução. Neste sentido, talvez nenhum outro termo expôs tão
claramente esta estratégia de legitimação de práticas clínicas baseada na aproximação
entre “pensamento primitivo”, comportamento infantil e patologia mental. Como se
estivéssemos diante de três figuras maiores da minoridade. Uma minoridade contra a
qual o esclarecimento, anunciado por este Iluminismo cujo impulso alimentou a
constituição do termo “fetichismo”, prometeu combater, seja na clínica, seja na crítica
social. Minoridade esta assentada sobre o mito da identidade entre o doente, o primitivo
e a criança. Um pouco como se o fetichismo fosse: “a África no sujeito” e os perversos,
“selvagens entre europeus”68.

Eles não sabem o que vêem

Estes fetiches divinos não são outra coisa que o primeiro objeto material que
cada nação ou cada particular tem o prazer de escolher e de consagrá-lo em
cerimônia por seus sacerdotes: é uma árvore, uma montanha, o mar, um pedaço
de madeira, um rabo de leão, um seixo, uma concha, sal, um peixe, uma planta,
uma flor, um animal de certa espécie; enfim, tudo o que se possa imaginar de
parecido69.

67
De Brosses chega a falar, a respeito dos povos fetichistas, que: “seus costumes, suas idéias, seus
raciocínios, suas práticas são as das crianças” (DE BROSSES, Charles; Du culte des dieux fétiches, Paris:
Fayard, 1988)
68
BÖHME, Hartmut; Fetischismus und Kultur: eine andere theorie der Moderne, Rowohlt : Hamburgo,
2006, p. 400
69
DE BROSSES, Charles, Du culte des dieux fétiches ..., op. cit., p. 15
Era desta forma que Charles De Brosses procurava caracterizar o que ele entendia por
“fetichismo”: o culto supersticioso de um objeto arbitrariamente escolhido devido a
alguma qualidade diferencial que agradaria o crente. Nesta definição, encontrava-se a
materialização da incompreensão dos colonizadores europeus diante da complexidade
dos sistemas simbólicos dos “povos primitivos”. Por ser “arbitrário” e “contingente”, o
objeto cultuado era apenas a expressão imediata da projeção antropomórfica de crenças
e vontades, ou seja, a forma mais elementar de superstição produzida por associações
indevidas de idéias. Eles sequer poderiam ser analisados como alegorias ou símbolos, já
que estaríamos em uma espécie de “grau zero da capacidade de representação”70.
Esta noção de “fetiche” já estava presente nas reflexões do século XVII e XVIII
a respeito das práticas religiosas dos africanos, a quem a ideologia colonial procurava
impor uma “mentalidade primitiva”. De fato, o termo nasce do impacto das Grandes
Navegações no imaginário europeu. Vendo a maneira com que objetos inanimados e
animais eram compreendidos como dotados de forças sobrenaturais por tribos africanas,
os navegantes portugueses descreveram tais objetos como fetissos. Ao se perguntar
sobre o que significaria exatamente o termo português fetisso, De Brosse falará de
“coisa encantada, divina” devido a sua pretensa derivação da raiz latina fatum (destino,
oráculo), fanum (lugar consagrado) e fari (falar, dizer), deixando de lado a raiz latina
derivada de factio (modo de fazer), facticius (artificial, falso), que era a correta. Erro
providencial pois retirou a reflexão sobre o fetiche das vias de uma indagação sobre o
artifício que se apresenta enquanto tal para colocá-la na direção de problemas ligados à
imanência da crença71. No entanto, é esta via mais próxima do sentido original da
palavra que Freud irá recuperar.
Se De Brosses não foi o responsável pela constituição do termo “fetiche”, ele foi
aquele que, através da criação do neologismo “fetichismo”, forneceu as condições
fundamentais para a transformação de uma reflexão sobre práticas de culto de tribos
africanas em dispositivo de descrição do pensamento primitivo em geral pois
independente de questões vinculadas a localização geográfica ou temporal. Estratégia
maior para a consolidação da maneira com que a consciência nascente da modernidade
poderá estabelecer suas fronteiras.
Em seu livro, De Brosses apresenta uma longa compilação de relatos de viagens
da Oceania, Américas, Brasil, África, a fim de mostrar a presença do mesmo sistema
fetichista de crenças. Seu intuito principal é deixar clara a inexistência de diferença
estrutural entre tais práticas e aquelas que encontraríamos na religião da Grécia antiga e
do Egito. O que não poderia ser diferente, já que se trata de apresentar uma teoria
evolucionista do progresso social e do pensamento capaz de justificar a partilha entre
sociedades modernas e pré-modernas presentes no mesmo momento histórico. As
sociedades fetichistas teriam permanecido em um estágio inicial de desenvolvimento,
em uma infância perpétua, em um “estado natural bruto e selvagem” 72 já que o
fetichismo seria, como dirá Diderot em carta a De Brosses, “a religião primeira, geral e
universal”73. Este esquema será levado ao seu maior desenvolvimento pelas mãos de
Augusto Comte e sua teoria dos três estados do espírito humano (o teológico, o

70
IACONO, Alfonso; Le fétichisme: histoire d’um concept, Paris : PUF, 1992, p. 51
71
A este respeito, ver AGAMBEN, Giorgio; Estâncias, Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007
72
DE BROSSES, idem, p. 95
73
Cf. DAVID, Michèle, Lettres inédites de Diderot et de Hume écrites de 1755 à 1763 au président de
Brosses, In : Revue Philosophique, n. 2, abril-junho 1966.
metafísico e o positivismo; sendo que o fetichismo seria a primeira fase do estado
teológico, seguido pelo politeísmo e pelo monoteísmo)74.
Duas características maiores definiriam esta infância própria ao fetichismo: um
modo de pensar projetivo animado pelo medo e pela ignorância, assim como a
incapacidade de operar com simbolizações e abstrações 75. A primeira característica
mostra o fetichismo como modo elementar de defesa contra um afeto: o medo diante do
caráter imprevisível dos fenômenos naturais. Projetar qualidades humanas em objetos
naturais aparece como móbile de um pensamento assombrado pelo medo, pensamento
que ainda não se tornou “senhor da natureza” através do desvelamento da estrutura
causal dos fenômenos.
Por outro lado, De Brosses compreende “o progresso natural das idéias
humanas” através de um movimento de abstração que consiste em: “passar dos objetos
sensíveis aos conhecimentos abstratos”76. As sociedades fetichistas seriam estranhas a
formas de pensamento que se abstraem das determinações sensíveis imediatas a fim de
construir conceitos e símbolos genéricos. Ou seja, elas desconheceriam o pensamento
conceitual, tomando por atributo imediato da coisa particular o que é próprio de sua
espécie, gênero, ou da estrutural causal da qual ela faz parte. Por isto, De Brosses deve
insistir a todo momento que o fetiche não é uma forma de representação, como é o caso
da imagem de um santo católico ou do ouro (que os índios cubanos teriam
compreendido como o “fetiche dos espanhóis” – adiantando em alguns séculos Marx),
já que o pensamento primitivo seria marcado pela “ausência de desdobramento entre o
representante e o representado”77. Ele é um pensamento imerso nas ilusões do imediato,
estranho a alegorias, sem qualquer capacidade de transcendência; um pouco como uma
criança que toma metáforas ao pé da letra por pretensamente desconhecer os usos
figurados da linguagem78.
Por sua vez, a potência da representação só seria própria a religiões derivadas do
judaísmo, como o cristianismo e o islamismo. Pois a crítica judaica às representações do
divino teria impulsionado a constituição de uma sensibilidade que não confunde o que
aparece com o que é, o fenômeno com a essência. Daí porque De Brosses pode afirmar
que: “Para os selvagens, os nomes Deus e Espírito não significam em absoluto o que
eles querem dizer entre nós”79. É devido a tal estrutura de projeções e a incapacidade de
passar dos objetos sensíveis aos conhecimentos abstratos que De Brosses resumirá a
situação de ignorância própria ao pensamento primitivo através de uma frase que não
deixa de ressoar a maneira com que Marx descreverá o desconhecimento ideológico:
“Eles não sabem o que vêem”80.
74
Sobre a relação Comte-De Brosses, ver Idem, La notion de fétichisme chez Auguste comte et l’ oeuvre
du Président De Brosses “Origines des dieux fétiches  », In : Revue d’ histoire des réligions, vol, 171, n. 2,
1967, pp. 207-221. Sobre a noçao de fetichismo em Comte, ver CANGUILHEM, Georges ; Histoire des
réligions et histoire des sciences dans la théorie du fétichisme d’ Auguste Comte, In : Etudes d´histoire et
philosophie des sciences, Paris : Vrin, 2002
75
A psicologia social continuará, por muito tempo, a definir o pensamento irracional como aquele preso
às amarras da projeção e da incapacidade de operar com abstrações. Ver, por exemplo, a maneira com
que Gustave Le Bon definia os móbiles da psicologia das massas, no final do século XIX, em LE BON,
Gustave; Psychologie des foules, Paris; PUF, 1947
76
DE BROSSES, ibidem, p. 101
77
IACONO, ibidem, p. 54
78
No entanto, notemos que o mais correto seria falar não em incapacidade de abstração, mas em
naturalização de processos de abstração feitos de maneira inconsciente. O “primitivo” que eleva o dente
de leão à condição de fetiche naturaliza a força enquanto atributo próprio à totalidade conceitualizada
do animal. Ele toma, assim, a parte pelo todo.
79
DE BROSSES, ibidem, p. 103
80
idem, p. 134
Eles não sabem o que desejam

Quando, mais de um século depois, o psicólogo francês Alfred Binet resolve utilizar o
termo “fetichismo” para descrever uma perversão sexual, o esquema compreensivo
sintetizado por Charles De Brosses já se tornara uma espécie de senso comum
intelectual. Trazer o termo para o interior das práticas clínicas da psicologia nascente
não exigiu saltos complexos. Como vimos, desde o início, a teoria do fetichismo dava
espaço à crença em um paralelismo entre progresso “histórico-natural” da humanidade
(filogênese) e desenvolvimento do indivíduo (ontogênese). Por sua vez, no final do
século XIX a doença mental era compreendida sobretudo como um fenômeno de
regressão e degenerescência onde o progresso da doença fazia o caminho inverso do
desenvolvimento do indivíduo, já que ela seria, principalmente, dissolução de funções
complexas de coordenação das faculdades e julgamentos; substituição de tais funções
por atividades cada vez mais simples e restritas. Tal noção de doença mental dependia
assim de uma certa teleologia evolutiva na qual etapas anteriores de maturação seriam
superadas e integradas em etapas subseqüentes; noção esta que se organiza a partir da
lógica do aperfeiçoamento progressivo. Neste contexto, o recurso ao fetichismo como
categoria clínica não deve nos estranhar, pois nada mais natural que aprofundar o
paralelismo pressuposto entre filogênese e ontogênese utilizando categorias descritivas
do processo evolutivo social para operar no interior da determinação de patologias
mentais.
Isto talvez nos explique porque, como Foucault bem compreendeu, o fetichismo
apareceu como “perversão modelo”81, como paradigma para a inteligibilidade de todas
as outras formas de perversão. Assim, quando Freud afirmar que: “a sexualidade
perversa não é outra coisa que a sexualidade infantil alargada, decomposta em suas
moções singulares”82, ele estará, à sua maneira, servindo-se do esquema evolutivo
hegemônico até então, que tendia a vincular perversão e bloqueio no progresso em
direção à maturação. E quando Freud afirmar que “vemos nos animais todas as formas
de perversão petrificadas (erstarren) em organização sexual”83, trata-se da conseqüência
de procurar descrever as etapas de evolução da libido através de um esquema
filogenético inspirado nas ciências naturais de sua época.
Por outro lado, que esta articulação entre filogênese e ontogênese ocorra de
maneira privilegiada no campo da reflexão sobre o comportamento sexual, como foi o
caso com o fetichismo, isto se explica pelo fato da sexualidade ter sido elevada à
condição de espaço privilegiado de manifestação do que é da ordem da verdade dos
sujeitos. Falar francamente sobre sexo foi um dispositivo maior de constituição dos
móbiles do esclarecimento em seu combate contra os preconceitos. No entanto, este
falar foi indissociável da implantação progressiva de discursos de aspiração científica
que visavam normatizá-lo através da sua submissão a uma taxionomia rígida, a uma
classificação exaustiva e valorativa sobre o que é da ordem do sexual e de seus prazeres.
Isto significa dizer que o falar franco sobre o sexo teve sua contrapartida no
desenvolvimento de uma clínica das perversões sexuais; como se a ordem médica
fornecesse, necessariamente, o regime de clarificação objetiva e de ordenamento seguro
do conteúdo trazido por este falar. Este é o contexto no qual o estudo de Binet apareceu:
contexto da constituição do discurso clínico sobre as perversões através destes extensos

81
FOUCAULT, Michel ; Histoire de la séxualité I,Paris : Gallimard, 1976, p. 203
82
FREUD, Sigmund ; Gesammelte Werke vol. XI, Frankfurt : Fischer, 1999, p. 321
83
Idem, p. 368
sistemas de ordenamento com seu “sadismo”, seu “masoquismo”, “voyerismo”,
“exibicionismo”, “don-juanismo”, “inversões”, etc.
Ao falar pela primeira vez sobre o fetichismo no amor, Binet inicia seu texto
lembrando que, se o fetichismo religioso consistiria na adoração de objetos inanimados
e naturais pretensamente dotados de poderes sobrenaturais, “no culto de nossos doentes,
a adoração religiosa foi substituída pelo apetite sexual”84. Neste contexto, o fetichismo
aparece como o “amor por coisas inertes”, como o investimento libidinal em objetos
inanimados (peças de vestuário, uniformes) ou em partes de representações globais de
pessoas (mãos, pés, olhos, cabelos, tranças, cheiro ou mesmo traços imateriais de
caráter, como a severidade, a dureza). Tais objetos e partes têm, em comum, a
incapacidade de satisfazer aquilo que Binet chama de “necessidades genitais”, ou seja, o
sexo submetido aos imperativos da reprodução. Por isto, eles seriam impróprios à vida
sexual normal. Assim, se uma das características maiores do fetichismo desde De
Brosses era a impossibilidade de se “passar dos objetos sensíveis aos conhecimentos
abstratos”, algo de semelhante ocorria aqui, já que o perverso fetichista seria incapaz de
passar do objeto à função, ou seja, do investimento nos objetos sensíveis e
particularidades ao investimento na função global de reprodução sexual. Função que, do
ponto de vista, dos objetos que atraem o desejo, é “abstrata” por exigir a transcendência
em relação àquilo que Freud chamará mais tarde de “prazer específico de órgão”.
Devido à fascinação generalizada por prazeres preliminares ao ato sexual e por
atributos específicos do sujeito desejado, Binet reconhece que todo mundo é mais ou
menos fetichista no amor. Daí a necessidade de distinguir o “pequeno” e o “grande”
fetichista (o único que seria realmente um caso patológico). Com tais termos, pode
parecer que a distinção é meramente quantitativa. De fato, Binet não cansará de dizer
que apenas quando a importância sexual do detalhe secundário é ‘exagerada”, quando a
parte apaga todo o resto da “pessoa física e moral”, quando a parte advém um todo
independente, que estaríamos diante de uma patologia fetichista. Isto o leva a afirmar
que: “o amor do pervertido é uma peça de teatro na qual um simples figurante avança
em direção à cena e toma o lugar do primeiro personagem”85.
Assim, Binet pode fornecer duas características maiores da perversão fetichista:
a abstração, compreendida aqui, de maneira bastante peculiar, como ato de abstrair-se
da “totalidade da pessoa” a fim de se fixar em um traço isolado ou em um objeto que lhe
seja contíguo, e a exageração (ou a sobrevalorização), já que os fetichistas procurariam
“tudo o que pode aumentar o volume físico ou a importância do objeto material que eles
adoram”86. Há claramente, nestas duas características, o que poderíamos chamar de
“processo de autonomização dos meios em relação aos fins”. Este é o ponto essencial, já
que ele indicaria impossibilidade de apreensão de estruturas finalistas e fascinação por
aquilo que aparece imediatamente.
No entanto, tais características implicam também em modificações qualitativas
no comportamento sexual. Pois o grande fetichista seria incapaz de gozar ou excitar-se
sexualmente a não ser através dos objetos e partes por ele investidos libidinalmente.
Fato, em última instância, ligado ao gozo fetichista ser fundamentalmente gozo do
primado da imagem e da imaginação. Para o fetichista “a realidade sempre permanece
inferior à imagem que ele dela fez” 87. Por isto, a terceira característica fundamental da

84
BINET, Alfred; Le fétichisme dans l’ amour, Paris : Payot et Rivages, 2001, p. 31. Para falar do
fetichismo religioso, Binet apoia-se principalmente no estudo do sanscritista alemão Friedrich Max
Müller intitulado “O fetichismo é uma forma primitiva de religião?”.
85
idem, p. 127
86
idem, p. 109
87
idem, p. 44
perversão fetichista seria a generalização. A fim de insistir na necessidade de
conformação do objeto à imagem mental produzida pelo perverso, Binet chega a dizer
que o fetichista ama, na verdade, o gênero, e não o objeto particular. O objeto particular
não é outra coisa do que a ocasião para a projeção de uma imagem mental que coloniza
o mundo dos objetos do desejo, tal como o selvagem fetichista preso a um sistema
projetivo de cognição. Algo muito diferente do amor normal, que seria a escolha de um
objeto particular, escolha que se concentra inteiramente em uma única pessoa
individualizada, da qual amaríamos, no mesmo grau, todas as partes de seu corpo e
todas as manifestações de seu espírito.
A respeito deste gozo da imagem próprio ao fetichismo, devemos levantar dois
aspectos. Primeiro, ao perguntar-se sobre a gênese da perversão fetichista, Binet, sem
deixar de reconhecer a hereditariedade como “causa das causas” que prepara o terreno
no qual o fetichismo poderá germinar, insiste na necessidade de um acontecimento na
história precoce do doente que teria a força de produzir a fixação fetichista. Por
exemplo, ao falar de um paciente, vítima de um peculiar “fetichismo da touca de
dormir”, Binet descreve como ele, aos cinco anos, dormia na mesma cama que sua mãe
e tinha uma ereção persistente ao vê-la vestida com a dita touca. Mais ou menos na
mesma época, o paciente via constantemente uma servente idosa tirar a roupa e, quando
esta colocava uma touca de dormir, ele sentia-se excitado tendo, com isto, uma ereção.
A explicação fornecida por Binet consiste em insistir na existência de um processo de
associação de idéias vinculando as duas situações de forma tal que as diferenças
sensíveis entre a mãe e uma servente idosa podiam ser ignoradas pelo desejo. Esta
associação de idéias se dá fundamentalmente através da força de analogias e
semelhanças impulsionadas pela imagem fantasmática e libidinalmente investida da
touca de dormir ligada ao prazer sentido no leito materno.
É sintomático o fato da psicologia social da época de Binet ver, neste pensar
associativo por imagens o ponto de convergência entre pensamento primitivo,
pensamento infantil, patologia mental e ... o pensamento das massas (mais uma figura
da minoridade). Todos eles seguiriam as relações de contigüidade e semelhança próprias
às imagens. É tendo isto em vista que devemos compreender afirmações como estas,
bastante aceitas à época:

“Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados,


baseados em associações: mas as idéias associadas pelas massas tem, entre elas,
apenas ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas encadeiam-se à
maneira das idéias de um esquimó que, sabendo por experiência que o gelo,
corpo transparente, dissolve na boca, conclui que o vidro, corpo igualmente
transparente, deve dissolver na boca também; ou do selvagem que acredita
adquirir a bravura de um inimigo corajoso ao comer seu coração, ou do operário
que, explorado pelo patrão, conclui que todos os patrões são exploradores”88.

Se estes “raciocínios inferiores” são diferentes dos “raciocínios elevados” (destes que
acreditam, contrariamente aos operários capazes de colocar vidro na boca, na existência
do bom patrão), é porque o pensamento por imagem é distinto do pensamento
conceitual em seu regime de associação. Ele não se deixaria aprisionar nas sendas da
analogia e da contigüidade.
Sendo assim, ao ser aplicado ao campo das perversões sexuais pelas mãos de
Alfred Binet, o fetichismo conservava seu caráter de indicador de fronteiras entre as
formas racionais de vida e os múltiplos regimes de minoridade. Suas duas
88
LE BON, idem, pp. 44-45
características maiores presentes desde Charles De Brosses continuavam, a saber, a
estrutura projetiva da relação entre consciência e o mundo dos objetos de seu desejo,
além da incapacidade de aceder ao pensamento conceitual, índice maior do progresso
intelectual. A primeira característica era visível na descrição do fetichismo como um
gozo de imagens, gozo de uma imaginação que procura reduzir os objetos a imagens
fantasmáticas de satisfação. A segunda característica nos levava ao fetichismo como
sintoma da perda da relação à totalidade, seja ao indivíduo como totalidade de
qualidades e atributos, seja à função de reprodução como vetor que totaliza os prazeres
parciais. Esta perda da relação à totalidade dava lugar a um pensamento por associações
impulsionadas por analogias e semelhanças imaginárias.
História, memória e sofrimento
Aula 8

Até agora, vimos no interior do segundo módulo do nosso curso como o


desenvolvimento da história como ciência forneceu parâmetros importantes para a
constituição da psicologia como saber. Vimos, por exemplo, como a noção de progresso
fora decisiva para a própria determinação do horizonte de cura, da distinção entre
normalidade e patologia tal como podemos encontrar na história da psicologia. Em larga
medida, a doença mental fora pensada a partir de dinâmicas de regressão, de fixação e
degenerescência, ou seja, ela faria o caminho inverso do progresso em direção à
maturação. Há claramente uma noção de tempo em progresso na consolidação do
horizonte de normalidade e cura na clínica do sofrimento psíquico. Procurei mostrar
como este tempo, com toda sua carga normativa, continuava claramente presente em
discussões e trabalhos fundamentais para o campo da psicologia do desenvolvimento,
como os de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg.
Para deixar mais claro este ponto, vimos na aula passada como as questões
internas à constituição de uma categoria clínica específica, a saber, o fetichismo. Vinda
de uma discussão histórica vinculada à teoria do progresso e dos processos de
modernização, a transformação do fetichismo em categoria clínica era muito mais do
que um mero uso por analogia. Ele explicitava o movimento de constituição de
categorias clínicas a partir do empréstimo conceitual maciço a outras áreas do saber. Ela
mostrava ainda como o quadro clínico da perversão era estruturalmente dependente de
uma noção de desenvolvimento aplicada à dinâmica dos estágios de desenvolvimento da
libido. Não por outra razão, veremos a tendência a aproximar o perverso e a criança, tal
como vemos, por exemplo, em Freud quando afirmar que a criança é um perverso
polimórfico. Esta polimorfia própria à perversão seria índice da incapacidade da
sexualidade encontrar sua forma adequada, esta capaz de submeter a multiplicidade dos
prazeres específicos de órgãos à função de reprodução com seu privilégio em relação ao
prazer genital.
Na aula de hoje, gostaria de explorar uma outra via. Gostaria de voltar às teorias
da história a fim de fornecer uma imagem do tempo histórico distinta desta
caracterizada pelo progresso linear em direção a reiteração de uma forma normativa
geral. Para tanto, gostaria de apresentar a vocês alguns aspectos essenciais da teoria da
história de um dos filósofos mais influentes no campo dos debates sobre a natureza do
processo histórico, a saber, Hegel. Feito isto, gostaria, na aula que vem, de apresentar
para vocês uma experiência clínica cujo manejo da temporalidade em muito se
assemelha ao que vocês poderão encontrar nesta noção hegeliana de tempo histórico, a
saber, a psicanálise de Jacques Lacan.

A temporalidade concreta

“A história universal é o progresso na consciência da liberdade”. Esta afirmação de


Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história traz uma série de pressupostos
importantes. Primeiro, existiria algo como uma “história universal”. Isto implica aceitar
que a multiplicidade de experiências históricas deve ser reduzida a um só motor, a uma
só orientação. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da definição da
história como “coletivo singular”. Isto permitiu que: “se atribuísse à história aquela
força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele
poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um
poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou mesmo em cujo nome
pôde acreditar estar agindo”89. Parece algo parecido que Hegel tem em mente ao falar do
Espírito do mundo como “alma interior de todos os indivíduos”.
Segundo, tal orientação unitária da história move-se de maneira progressiva. Por
fim, neste movimento se lê a tomada paulatina de consciência da liberdade ou, se
quisermos, da emancipação. Uma tomada de consciência que não é individual, mas
social. Neste sentido, a história deve ser a narrativa do progresso em direção à
consciência da liberdade e de afastamento da condição de alienação. Mas devemos
entender aqui o que significa, neste contexto, dois termos fundamentais, a saber,
“progresso” e “consciência da liberdade”.
“Os Persas são o primeiro povo histórico, porque a Pérsia é o primeiro império
que desapareceu (Persienist das erste Reich, das vergangenist)”90 deixando atrás de si
ruínas. Esta frase de Hegel diz muito a respeito daquilo que ele realmente entende por
“progresso”. O progresso é a consciência de um tempo que não está mais submetido à
simples repetição, mas que está submetido ao desaparecimento. “Progresso” não diz
respeito, inicialmente, a uma destinação, mas a uma certa forma de pensar a origem.
Pois, sob o progresso, a origem é o que, desde o início, marcada pela impossibilidade de
permanecer. “Origem” é, na verdade, o nome que damos à consciência da
impossibilidade de permanecer em uma estaticidade silenciosa. Por isto, que a
verdadeira origem, esta que aparece na Pérsia, é caracterizada por um espaço pleno de
ruínas.
O ato de desaparecer é assim compreendido como a conseqüência inicial da
história. Colocação importante por nos lembrar que as ruínas deixadas pelo movimento
histórico são, na verdade, modos de manifestação do Espírito em sua potência de
irrealização. Se os persas são o primeiro povo histórico é porque eles se deixam animar
pela inquietude e negatividade de um universal que arruína as determinações
particulares. Notemos como este desaparecimento não é a afirmação sem falhas da
necessidade de uma superação em direção a perfectibilidade. Na verdade, há uma
pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Esta pulsação contínua é,
de uma certa forma, o próprio telos da história. Assim, ela realiza sua finalidade quando
este movimento ganha perenidade, quando ele não é mais vivenciado como perda
irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente, nos abre para uma nova forma
de presença, liberada do paradigma da presença das coisas no espaço. O que explica
porque Hegel dirá: “ Deve-se inicialmente descartar o preconceito segundo o qual a
duração seria mais valiosa do que a desaparição” . Só as coisas que tem a força de
desaparecer permitem que se manifeste um Espírito que só constrói destruindo
continuamente. Neste sentido, vale a compreensão de Gérard Lebrun:

Se somos assegurados de que o progresso não é repetitivo, mas explicitador, é


porque o Espírito não se produz produzindo formações finitas mas, ao contrário,
recusando-as uma após outra. Não é a potência dos impérios, mas sua morte que
dá razão à história (...) do ponto de vista da história do mundo, os estados são
apenas momentos evanescentes91.

Este caráter inquieto do tempo nos leva, no entanto, a uma compreensão


renovada do que pode significar presente. Em vários momentos, Hegel fala de como o
89
KOSELLECK, idem, p. 52
90
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 215
91
LEBRUN, Gérard ; L’envers de la dialectique, Paris : Gallimard, 2007, p. 33
Espírito é capaz de construir uma experiência temporal baseada no “presente absoluto”.
Presente absoluto não é tempo da pura presença, que implicaria absorção integral do
instante sobre si mesmo. Presente absoluto é a expressão da temporalidade concreta,
expressão de como: “o presente concreto é resultado do passado e está prenhe de
futuro”92. Podemos procurar compreender sua estrutura se partimos de uma importante
afirmação de Hegel:

A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado,


permanecem simultâneos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem
como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os
tem em sua profundidade presente93.

O presente como um círculo de degraus que aparecem, ao mesmo tempo, como


simultâneos e como passados. Momentos que estão, ao mesmo tempo, atrás e presentes.
Como vemos, trata-se de uma experiência temporal contraditória para a perspectiva do
entendimento, mas que pode ser compreendida se lembrarmos como o conceito,
enquanto expressão da eternidade, é uma forma de movimento que faz todos os
processos desconexos se transfigurarem em momentos de uma unidade que não existia
até então, ou seja, que é criada a posteriori mas (e este é o ponto fundamental) só pode
ser criada porque coloca radicalmente em cheque a forma da unidade e da ligação tal
como até então vigorou.
Nesta sua força de colocar em simultaneidade o que até então era radicalmente
disjunto, de criar a contemporaneidade do não-contemporâneo, o conceito pode
instaurar o tempo de um presente absoluto no qual não há mais nada a esperar. Mas não
haver nada mais a esperar não significa que, a partir de agora, acontecimentos serão
desprovidos de história ou a história será desprovida de acontecimentos. Não há nada
mais a esperar porque os impossíveis podem agora se tornar possíveis, já que relações
contraditórias foram reconstruídas no interior de um mesmo processo em curso. Neste
sentido, podemos lembrar do que está pressuposto na própria construção hegeliana do
conceito de “história universal”, desta história que é o progresso na consciência da
liberdade.
Aceitar que exista algo como uma “história universal”, parece implicar que a
multiplicidade de experiências históricas e temporais devam se submeter a uma medida
única de tempo, como um corpo social unificado na multiplicidade de seus espaços
nacionais pelas mãos de plano que é a versão secularizada da Providência. No entanto, a
figura do círculo de degraus, ao mesmo tempo, simultâneos e passados não permite
pensar unificações temporais redutíveis a um plano geral unívoco a partir do qual todos
os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de um tempo definido como a
relação entre tempos que são incomensuráveis sem serem indiferentes entre si, o que
não é sem relação com o fato dos espaços nacionais animados pelo espírito do mundo
não poderem, por sua vez, ser submetidos a um plano comum de paz eterna sem darem
lugar a decisões soberanas marcadas pela contingência. Os espaços nacionais que
compõem a história universal entram em relação sem garantia alguma de paz e
estabilidade.
Da mesma forma, tempos incomensuráveis mas não indiferentes interpenetram-
se em um processo contínuo de mutação. Algo muito diferente da universalidade
produzida pelo primado do tempo homogêneo, mensurável e abstrato da produção
capitalista global, tão bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em “história
92
HEGEL,G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 259
93
HEGEL, G.W.F.’ Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. `104
universal” implica simplesmente defender que temporalidades incomensuráveis não são
indiferentes. Tal interpenetração de temporalidades incomensuráveis significa abertura
constante àquilo que não se submete à forma previamente estabilizada do tempo, o que
faz da totalidade representada pela história universal, do presente absoluto que ela
instaura, uma processualidade em contínua reordenação, por acontecimentos
contingentes, da forma das séries de elementos anteriormente postos em relação. Daí
sua plasticidade cambiante.
Neste sentido, podemos dizer que as relações entre os momentos obedecem a um
processo de transfiguração da contingência em necessidade, que não implica negação
simples da contingência. Em Hegel, a contingência não é vista como fruto de um
“defeito de nosso conhecimento”, mas é integrada como momento de um processo de
constituição da necessidade a partir de uma historicidade retroativa. Hegel determina a
contingência como uma “necessidade exterior”94, já que é acontecimento que aparece
como causado por outra coisa que si mesmo, não se integrando na imanência de uma
“necessidade interior” que põe suas próprias circunstâncias. No entanto, esta
exterioridade não é um erro a respeito do qual devemos abstratamente negar, mas um
momento necessário resultante do fato da imanência não estar imediatamente posta, dela
ser construída retroativamente a partir da liberalidade da razão em procurar integrar
retroativamente o que se produziu a partir de acontecimentos contingentes.
Tal liberalidade exige, no limite, pensar a totalidade posta pela história universal
como um sistema aberto ao desequilíbrio periódico, pois a integração contínua de novos
acontecimentos inicialmente experimentados como contingentes e indeterminados
reconfigura o sentido dos demais anteriormente dispostos. Se quisermos, podemos
afirmar que um belo exemplo deste movimento é a maneira com que Hegel lembra que
o Espírito pode “desfazer o acontecido” (ungeschehen machen kann95) reabsorvendo o
fato em uma nova significação. É só em uma totalidade pensada como processualidade
em plasticidade formal contínua que o acontecido pode ser desfeito e que as feridas do
Espírito podem ser curadas sem deixar cicatrizes 96. Neste ponto, é difícil não concordar
mais uma vez com Lebrun, para quem: “Se a História progride é para olhar para trás; se
é progressão de uma linha de sentido é por retrospecção (...) a ‘Necessidade-
Providência’ hegeliana é tão pouco autoritária que mais parece aprender, com o curso
do mundo, o que eram os seus desígnios”97.

Glorificar o existente

Mas voltemos a esta força do Espírito de “desfazer o acontecido” pois ela pode
nos fornecer mais orientações sobre o que está em jogo no conceito de presente
absoluto. Muitas vezes pareceu, com tal força, estarmos diante da defesa de uma teoria
do fato consumado que transfigura as violências do passado em necessidades no
caminho de realização da universalidade normativa de um Espírito que conta a história a
partir da perspectiva de quem está a: “deificar aquilo que é” 98. A confiança no Espírito
seria a senha para um certo quietismo em relação ao presente. Melhor seria definir o
94
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der Geschichte,
op. cit., p. 29
95
HEGEL, Fenomenologia do Espírito II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 139 .
96
“As feridas do espírito são curadas sem deixar cicatrizes. O fato não é o imperecível, mas é
reabsorvido pelo espírito dentro de si; o que desvanece imediatamente é o lado da singularidade
(Einzelnheit) que, seja como intenção, seja como negatividade e limite próprio ao existente, está
presente no fato” (idem, p. 140 – tradução modificada)
97
LEBRUN, O avesso da dialética, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 34-6.
98
ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
espírito do mundo: “objeto digno de definição, como catástrofe permanente” 99, ou seja,
consciência desperta do que foi necessário perder, e do que ainda é necessário, no
interior do processo histórico de racionalização social. Pois pode parecer que uma
filosofia a procura de explicar como os “homens históricos” [geschichtlichen
Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial” [welthistorischen Individuen]
serão aqueles cujos fins particulares não são postos apenas como fins particulares, mas
que submeteram tais fins à transfiguração, permitindo que eles contenham a “vontade
do espírito do mundo” [Wille des weltgeistes] só poderia nos levar a alguma forma de
justificação do curso do mundo, como temia Adorno em sua Dialética negativa,
repetindo uma crítica já feita por Nietzsche em sua Segunda consideração
intempestiva100 e por Marx quando acusa Hegel de “glorificar o existente” 101. Pois sendo
a vontade do Espírito do mundo aquilo que se manifesta através do querer dos homens
históricos, então como escapar da impressão de que, retroativamente, a filosofia
hegeliana da história constrói a universalidade a partir daquelas particularidades que
conseguiram vencer as batalhas da história? Como dirá Nietzsche: “quem aprendeu
inicialmente a se curvar e a inclinar a cabeça diante do ‘poder da história’ acaba, por
último, dizendo ‘sim’ a todo poder”102.
Escapa-se desta impressão, entretanto, explorando melhor duas características
fundamentais da ação histórica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua força
de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades perdidas que pareciam
petrificadas, isto através da reabertura do que está em jogo no presente. Sobre este
segundo ponto, lembremos como, quando o Espírito sobe à cena e narra a história, sua
prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham fatos. Primeiro
porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que se passou às
costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que rememora, que só alcança voo
depois do ocorrido. Uma totalização que não é mera recontagem, redescrição, mas
construção performativa do que, até então, não existia. Pois um relato não é apenas uma
relato. Ele é uma decisão a respeito do que terá visibilidade e será percebido daqui para
a frente, por isto as acusações que vem na filosofia hegeliana uma forma de
“passadismo” erram completamente de alvo.
A este respeito, lembremos de, por exemplo, Vittorio Hösle, para quem o
passadismo de Hegel mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao
passado, não prolepse e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E, na
medida em que o que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à filosofia;
ela apenas deve compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que devo
fazer?” não tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma resposta a ela
poderia no melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na realidade”” 103. Nada
mais distante da perspectiva que gostaria de defender, pois tal posição pressupõe que
“recordar” equivale a redescobrir fatos que foram arquivados na memória social. Se é
99
Idem, p. 266
100
“Chamou-se, com escárnio, esta história compreendida hegelianamente o caminhar de Deus sobre a
terra; mas um Deus criado por sua vez através da história. Todavia este Deus se tornou transparente e
compreensível para si mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus
dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo que, para Hegel, o ponto
culminante e o ponto final do processo do mundo se confundiriam com a sua própria existência
berlinense” (NIETZSCHE, Friedrich; Segunda consideração intempestiva, Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2003, p. 72)
101
MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91
102
Idem, p. 73
103
HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade,
Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468.
verdade que, para Hegel, filosofia é recordação, vale lembrar que todo ato de
rememoração é uma reinscrição do que ocorreu a partir das pressões do presente 104.
Rememorar é ainda agir, e não simplesmente chegar depois que a realidade já perdeu a
sua força. Antes, é mostrar como o passado está em perpétua reconfiguração,
redefinindo continuamente as possibilidades do presente e futuro. Neste sentido, ignorar
a força de decisão da descrição do passado é operar com a ficção da história como um
quadro estável “do que realmente ocorreu”, “wie es eigentlich gewesen”, como dizia
Ranke. No entanto, seremos mais fieis a Hegel se afirmarmos que o passado é o que está
perpetuamente ocorrendo, pois ele não é composto de uma sucessão de instantes que são
desconexos entre si. Ele é composto por momentos em retroação.

O trabalho de luto do conceito e seus fantasmas

Podemos compreender melhor esta força performativa da rememoração se


explorarmos a maneira com que a narrativa da história em Hegel se assemelha, em
certos pontos importantes, à elaboração de um trabalho de luto 105, fato difícil de
negligenciar em alguém que descreve a sequência de experiências da consciência em
direção ao saber absoluto como um “caminho do desespero”. Neste sentido, talvez não
haja momento mais claro do que esta passagem canônica de A razão na história:

Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia.
Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem
entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens,
sem cobrir-se de tristeza por um vida passada, forte e rica?106.

De novo, as ruínas; cuja descoberta aparece agora inicialmente como signo de


melancolia. Uma melancolia que parece expressar fixação em uma passado arruinado
que aparentemente poderia ter sido outro, deveria ter permanecido em seu esplendor.
Fixação que desqualifica o existente por ele pretensamente não estar à altura das
promessas que as ruinas das grandes conquistas um dia enunciaram. O que poderia esta
melancolia produzir além do circuito da perda e da reparação, além da crença de que a
transitoriedade nos revela o sofrimento de nossa vulnerabilidade extrema diante da
contingência e do gosto amargo do presente? Ainda mais se lembrarmos que: “a história
universal não é o lugar de felicidade”. Posição melancólica na qual a rejeição do
existente (o que poderia ter sido o presente se Cartago, Palmira, Roma não tivessem tal
destino?) pode facilmente se transmutar em acomodação conformista com o que é.
Mas é para nos livrar da fixação melancólica no passado, abrindo uma
processualidade retroativa, que o conceito trabalhará. Daí porque, no mesmo trecho,
Hegel, não deixará de dizer: “Mas a esta categoria da mudança liga-se igualmente a um
outro lado, que da morte emerge nova vida”. É importante lembrar, no entanto, como tal
trabalho de luto não opera por mera substituição do objeto perdido através do
deslocamento da libido. Dar a tal deslocamento o estatuto de uma substituição
equivaleria a colocar os objetos em um regime de intercambialidade estrutural, regime
no interior do qual a falta produzida pelo objeto perdido poderia ser suplementada em
sua integralidade pela construção de um objeto substituto a ocupar seu lugar. Um

104
Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Grande Hotel Abismo, São Paulo: Martins Fontes, 2012
105
Sobre este tema ver, por exemplo, COMAY, Rebecca; Mourning sickness, op. cit.; ARANTES, Paulo;
Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e LEBRUN, Gérard; L’envers de la dialectique, op. cit..
106
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der
Geschchte, op. cit., p. 35
mundo de balcão de trocas sem prazo de vencimento. Se, como diz Freud, o homem não
abandona antigas posições da libido mesmo quando um substituto lhe acena é porque
não se trata simplesmente de substituição. O tempo do luto não é o tempo da
reversibilidade absoluta. O desamparo que a perda do objeto produz não é simplesmente
revertida. Por isto, vincular o luto a uma operação de esquecimento seria elevar a
lobotomia a ideal de vida.
Nem substituição, nem esquecimento, o luto não significa deixar de amar objetos
perdidos. A respeito do luto, Freud fala de um tempo de latência no qual: “uma a uma,
as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e
superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido”107. Tal desligamento não é
um esquecimento, mas uma “operação de compromisso” a respeito da qual Freud não
diz muito, da mesma forma como não diz muito a propósito de um processo
estruturalmente semelhante ao luto, a saber, a sublimação. Talvez seja o caso de
afirmar que tal operação de compromisso própria ao trabalho de luto é indissociável da
abertura a um forma de existência entre a presença e a ausência, entre a permanência e a
duração. Uma existência espectral que, longe de ser um flerte com o irreal, é existência
objetiva do que habita em um espaço que força as determinações presentes através de
ressonâncias temporais108. Pois a existência do Espírito é descritível apenas em uma
linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma espessura
espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado à
desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma
metamorfose contínua. Metamorfose que Hegel não temeu em encontrar sua primeira
elaboração imperfeita na representação oriental da transmigração das almas
(Seelenwanderung)109. Nada melhor que o Espírito hegeliano mostra, mesmo que
Derrida não queira aceitar, como:

Se há algo como a espectralidade, há razão para duvidar desta ordem


asseguradora de presentes e sobretudo desta fronteira entre o presente, a
realidade atual ou o presente do presente a tudo o que podemos lhe opor: a
ausência, a não-presença, a inefetividade, a inatualidade, a virtualidade ou
mesmo o simulacro em geral, etc. Há de se duvidar inicialmente da
contemporaneidade a si do presente. Antes de saber se podemos diferenciar o
espectro do passado e este do futuro, do presente passado e do presente futuro,
faz-se necessário talvez perguntar se o efeito de espectralidade não consistiria
em desmontar tal oposição, mesmo tal dialética, entre o presente efetivo e seu
outro110.

Derrida não percebeu como é através deste efeito de espectralidade que , em Hegel,
desaparece a desaparição, é assim que o Espírito se afirma como processo de conversão
absoluta da violência das perdas e separações em ampliação do presente. Pois esse
espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma figura privilegiada da linguagem de
temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por isto, podemos dizer que o trabalho
de luto não é construção de processos de substituição próprias a uma lógica
compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se dispor em um
presente absoluto. Não se trata assim de justificar a realidade mas, de certa forma,

107
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
108
Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em GAGNEBIN,
Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo: Editora 34, 2014
109
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, op. cit., p. 35
110
DERRIDA, Jacques; idem, p. 72
desrealizá-la mostrando como os espectros do passado ainda estão vivos e prontos a
habitarem outros corpos, a abrirem outras potencialidades. Como se fosse o caso de dar
realidade à metáfora de Freud para falar da estrutura do sujeito moderno: uma cidade na
qual todos os estágios de seu desenvolvimento estão atualizados no mesmo lugar,
criando um espaço irrepresentável:

Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores nos


dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada
sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federação das
povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de
Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os
períodos da república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador
Aureliano cercou com as suas muralhas. (...) Permitam-nos agora, num vôo da
imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade
psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante — isto é, uma
entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases
anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. (...)
Se quisermos representar a seqüência histórica em termos espaciais, só
conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode
ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela
conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as
características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos.
História, memoria, sofrimento
Aula 9

Na aula passada, apresentei a vocês um modelo de tempo histórico distinto daquele


marcado por uma concepção linear de progresso e desenvolvimento em direção à
perfectibilidade. A leitura da filosofia hegeliana da história nos forneceu a visão de um
tempo que opera por retroação, por isto, tempo no interior do qual nada está
definitivamente estabilizado em seus efeitos e em seu sentido. Este é ainda um tempo no
qual acontecimentos contingentes são possíveis, já que o movimento de totalização da
experiência consiste em integrar contingências fazendo-as interagir com a totalidade
anteriormente constituída de forma tal que tal totalidade deverá mudar sua forma de
determinação. Por fim, este era um tempo no qual “historicidade” significava uma
compreensão do presente como tempo habitado por múltiplos tempos. Algo muito
próximo da figura fornecida por Freud ao falar da estrutura do Eu:

Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores nos


dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada
sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federação das
povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de
Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os
períodos da república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador
Aureliano cercou com as suas muralhas. (...) Permitam-nos agora, num vôo da
imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade
psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante — isto é, uma
entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases
anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. (...)
Se quisermos representar a seqüência histórica em termos espaciais, só
conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode
ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela
conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as
características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos.

Em outros momentos do nosso curso, vimos como a determinação do tempo


histórico foi decisivo para a constituição do horizonte de orientação da intervenção
clínica no campo da psicologia. A doença como regressão e degenerescência, a
maturação como conquista da autonomia são apenas alguns dos tópicos que
demonstram como a própria direção do tratamento foi construída, em larga medida,
através de um sistema de intersecções entre história e psicologia.
Agora, gostaria de apresentar uma perspectiva clínica que, a sua maneira, guarda
relações profundas com esta maneira de compreender a temporalidade histórica que
apresentei na aula passada. Trata-se da psicanálise de Jacques Lacan. Não se trata aqui
de fazer uma exposição geral da psicanálise lacaniana, mas de centrar o foco em um de
seus momentos e em alguns de seus problemas mais claramente ligados a nossa questão
sobre a temporalidade e a historicidade. O que apresentarei aqui vale principalmente
para um primeiro momentos das elaborações de Lacan sobre sua clínica. Certamente,
tais elaborações serão complexificadas posteriormente, sem nunca serem
completamente abandonadas.
O Eu e o tempo

“O fundamento, a dimensão própria da análise, é a reintegração pelo sujeito de sua


história até os últimos limites sensíveis” 111. Tal frase é clara em seus propósitos. Da
mesma maneira que Freud falava que a histérica sofria de reminiscências, ou seja, da
incapacidade de rememorar e elaborar o que continuava latente a espera de uma
integração pela consciência, Lacan insiste em como uma clínica desmedicalizada,
baseada na reorientação da fala do analisando, só pode operar por reintegração pelo
sujeito de sua história. Mas o que pode significar tal reintegração e o que devemos
compreender como “sua história”? O que, no interior da multiplicidade de fenômenos
que ocorrem diante de mim e em mim devem ser compreendidos como parte da “minha
história”? Lembremos desta frase que já apresentei para vocês em outros momentos de
nosso curso:

A história não é o passado. A história é o passado na medida em que ele é


historicizado no presente – historicizado no presente porque ele foi vivido no
passado. O caminho da restituição da história do sujeito toma a forma de uma
pesquisa de restituição do passado. Esta restituição é considerada como o ponto
fundamental visado pelas vias da técnica analítica (...) O fato que o sujeito
reviva, rememore no sentido intuitivo da palavra, os acontecimentos formadores
de sua existência, não é em si realmente importante. O que conta é que ele os
reconstrói (...) O que se trata, é menos de se lembrar do que de recriar a
história112.

Dizer que a história é o passado na medida em que ele é historicizado no


presente implica modificar radicalmente o que entendemos por “restituição da história
do sujeito”. Pois uma restituição que é uma reconstrução parece uma grande
contradição. Qual o sentido e a razão em falar que a técnica analítica restitui através de
reconstruções? No caso de Lacan, podemos entender este ponto se compreendermos o
que impede o sujeito de restituir sua própria história. Em última análise, para Lacan, é o
Eu que impede do sujeito de restituir sua própria história. Proposição que pode parecer
incompreensível, já que diríamos normalmente que o Eu é o agente de um processo de
reflexão e auto-compreensão de seu próprio desenvolvimento. No entanto, para Lacan, o
Eu é, de certa forma, uma instância psíquica sem tempo. Não por outra razão ele será
caracterizado por metáforas espaciais, como uma estátua, como dotado de fixação
formal ou, como ele dirá claramente:

A formação do eu simboliza-se oniricamente por um campo fortificado, ou


mesmo um estádio, que distribui da arena interna até sua muralha, até seu
cinturão de escombros e pântanos, dois campos de luta opostos em que o sujeito
se enrosca na busca do altivo e longínquo castelo interior, cuja forma (às vezes
justaposta no mesmo cenário) simboliza o isso de maneira surpreendente113.

O peso de metáforas espaciais não poderia ser mais claro: o Eu como uma muralha que
guarda um campo e que, por isto, não está em processo temporal de integração do que
lhe é exterior. Por que Lacan pensa o Eu assim?

111
LACAN, Jacques; Seminaire I, p. 18
112
Idem, p. 19
113
LACAN, Ecrits, p. 101
Uma primeira resposta possível é: porque a noção de identidade e de unidade
determinantes da função do Eu exige uma operação de esquecimento que Lacan chama
de “desconhecimento”. Para se determinar como auto-idêntico e unitário, o Eu deve
desconhecer sua própria origem, deve nada querer saber sobre sua gênese. Ele deve
esquecer a história de seus desejos que lhe levaram a se constituir a partir de
identificações e da internalização de investimentos libidinais abandonados. Daí porque a
cura estará ligada, em Lacan, a uma certa dissolução do Eu, a uma “experiência no
limite da despersonalização”114. Historicizar é, de certa forma, dissolver os limites do
Eu, encontrar na minha memória memórias de outros, provocar algo que Lacan chamará
mais tarde de “destituição subjetiva”, abrindo o espaço para uma outra experiência do
tempo.
Notem aqui um ponto importante, historicizar não é ampliar o Eu com trechos de
uma história que ele desconhece. Historicizar é passar a um modo de experiência que
não pode ser mais pensada como própria de um Eu. Daí porque a restituição da história
é uma reconstrução. Na verdade, reconstrução da experiência a partir de um modo de
síntese estranho aos princípios de unidade do Eu.
Para entender melhor este ponto, precisamos adentrar em alguns aspectos da
teoria lacaniana do Eu. Lacan tenta explicar a gênese do Eu a partir de um processo
descrito por ele como “estádio do espelho”. O estádio do espelho visa demonstrar como
a formação do Eu depende fundamentalmente de um processo ligado à constituição da
imagem do corpo próprio. Nos primeiros meses de vida de uma criança, não há nada
parecido a um Eu com suas funções de individualização e de síntese da experiência.
Esta inexistência do Eu como instância de auto-referência seria o resultado de uma
prematuração fundamental do bebê advinda, por exemplo, da incompletude anatômica
do cérebro com seu sistema piramidal e a conseqüente inexistência de um centro
funcional capaz de coordenar tanto a motricidade voluntária quanto as experiências
sensoriais. Na verdade, falta ao bebê o esquema mental de unidade do corpo próprio que
lhe permita constituir seu corpo como totalidade, assim como operar distinções entre
interno e externo, entre individualidade e alteridade.
É só entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida que tal esquema mental será
desenvolvido. Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento de si na imagem especular
ou a identificação com a imagem de um outro bebê. Pois ao reconhecer pela primeira
vez sua imagem no espelho, a criança tem uma apreensão global e unificada do seu
corpo. Desta forma, esta unidade do corpo será primeiramente visual. Uma unidade da
imagem que antecipará a descoordenação orgânica e que, por isto, induzirá o
desenvolvimento do bebê.
Lacan encontra uma prova deste caráter indutor da imagem em relação ao
comportamento através da apropriação de certas considerações sobre a biologia animal.
Pois haveria uma correlação entre comportamento animal e comportamento humano no
que diz respeito a relação à imagem. Biólogos como Leonard Harrison Matthews (1901-
1986) e Rémy Chauvin (1913- ) demonstraram que, no reino animal, a simples
presença de imagens acarreta modificações anatômicas e fisiológicas profundas. Por
exemplo, Chauvin, em 1941, provou que a passagem do estágio solitário para o estágio
gregário no gafanhoto migratório só poderia ser feita através da percepção da imagem
de um gafanhoto adulto, que serve aqui como tipo: representante da espécie para o
indivíduo, imagem que tem o valor de ideal. O que demonstraria como uma imagem
pode regular o desenvolvimento dos indivíduos através de um processo de formação que
é con-formação à espécie.

114
Jacques Lacan, Séminaire I (Paris : Seuil, 1980), p. 258
No caso humano, a imagem ideal poderia induzir o desenvolvimento por ser
modo de entrada em uma trama sócio-simbólica. A imagem do irmão, do pai, da mãe
são partes de um drama, contração de toda uma história normalmente ligada à estrutura
familiar. Ou seja, seu valor vem dela articular-se a um núcleo social no qual o sujeito
procura se inserir. Lembremos, por exemplo, desta descrição de Santo Agostinho, tão
utilizada por Lacan, a respeito do ciúme infantil: “Vi e observei”, dirá Agostinho, “uma
criança cheia de inveja (invidia), que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto
colérico, para o irmãozinho de colo”115. O que mobiliza a inveja em relação à imagem
do irmão de colo é a percepção de que ela indica o lugar no qual se encontra o desejo da
mãe, lugar que exclui o sujeito, mas cujo reconhecimento o constitui como objeto de
amor.
Desta forma, a imagem aparece como dispositivo fundamental de socialização e
individuação. Mas dar à imagem tal função implica privilegiar, ao menos para Lacan,
um dispositivo desprovido de tempo. Há uma longa tradição que visa distinguir imagem
e tempo, como se imagens fossem descrições de fixações formais, como se elas
impusessem um modelo de síntese por repetição do mesmo, por semelhança e analogia.
Mas notemos principalmente como esta teoria da gênese do Eu através da
imagem do corpo é, no fundo, a descrição do Eu como lugar privilegiado de alienação.
Lacan quer mostrar como a formação do Eu só se daria por identificações: processos
através dos quais o bebê introjeta uma imagem que vem de fora e que é oferecida por
um Outro. Assim, para orientar-se no pensar e no agir, para aprender a desejar, para ter
um lugar na estrutura familiar, o bebê inicialmente precisa raciocinar por analogia,
imitar uma imagem na posição de tipo ideal adotando, assim, a perspectiva de um outro.
Tais operações de imitação não são importantes apenas para a orientação das funções
cognitivas, mas têm valor fundamental na constituição e no desenvolvimento
subseqüente do Eu em outros momentos da vida madura. O que levava Lacan a afirmar
que “nada separa o eu de suas formas ideais” absorvidas no seio da vida social. Pois: “o
eu é um objeto feito como uma cebola, podemos descascá-lo e encontraremos as
identificações sucessivas que o constituíram” 116. O que nos lembra que não há nada de
próprio na imagem do si. Experiências de estranhamento diante de imagens do corpo
próprio em fotografias e espelhos seriam manifestações fenomenológicas exemplares
desta natureza alienante da imagem de si. Fantasmas de despedaçamento do corpo, tão
comum em crianças com menos de 5 anos, nos fornecem outro exemplo da precariedade
do enraizamento da imagem corporal.
Neste sentido, Lacan pode falar que a autonomia e a individualidade, atributos
essenciais à noção moderna de Eu, são apenas figuras do desconhecimento em relação a
uma dependência constitutiva ao outro. Acreditamos que nosso Eu é o centro de nossa
autonomia e auto-identidade. No entanto, sua gênese demonstra como, nas palavras de
Rimbaud, “Eu é um outro”. Daí a noção, central em Lacan, de que a verdadeira função
do Eu não está ligada à síntese psíquica ou à síntese das representações, mas ao
desconhecimento de sua própria gênese e à projeção de esquemas mentais no mundo.
Este último ponto pode nos explicar melhor o que Lacan entende por
Imaginário: uma das três instâncias, juntamente com o Simbólico e o Real, que dão
conta do campo possível de experiências subjetivas. Grosso modo, podemos dizer que o
Imaginário é aquilo que o homem tem em comum com o comportamento animal. Trata-
se de um conjunto de imagens ideais que guiam tanto o desenvolvimento da
personalidade do indivíduo quanto sua relação com seu meio ambiente próprio.

115
Agostinho, Confissões (Petrópolis: Vozes, 1993), I. 7
116
Jacques Lacan, SI, p. 194
Mas o que pode significar dizer que há um conjunto de imagens que guiam a
relação do indivíduo com seu meio ambiente? Lembremos inicialmente que, para a
psicanálise, os processos perceptivos e cognitivos não são “neutros”, mas dependem do
sistema de interesses que temos em relação ao mundo Isto implica em admitir que o
desejo é a função intencional determinante na interação do sujeito ao seu meio
ambiente. Uma colocação desta natureza parece implicar um relativismo e um
psicologismo extremos que nos levariam a afirmar ser o mundo nada mais do que aquilo
projetado pelo desejo particularista do sujeito. Relativismo aparentemente presente
quando Lacan diz que o homem só encontra em seu meio ambiente imagens das coisas
que ele próprio projetou: “É sempre em volta da sombra errante do seu próprio eu que
se estruturarão todos os objetos do seu mundo [assim como sua percepção dos outros
empíricos]. Eles terão um caráter fundamentalmente antropomórfico, digamos mesmo
egomórfico”117. O que explica porque o Imaginário em Lacan é fundamentalmente
narcísico.

A cura pelo desejo

Com esta teoria do Imaginário, Lacan precisa reconstruir o que pode ser uma cura
psicanalítica. Ela não poderá ser nenhuma forma de re-adaptação do Eu à realidade
social que lhe permitiria assumir, de maneira menos conflituosa, ideais e papéis sociais,
já que isto significaria reforçar um processo constitutivo de alienação.
Neste sentido, a clínica lacaniana só poderá ser uma certa forma de crítica da
alienação. Proposição que nos leva diretamente a um problema, já que quem diz
alienação diz perda de uma essência. Mas se o Eu é o resultado de um processo social
de identificação, então só posso falar em alienação de si se aceitar a existência de algo,
no interior do si mesmo, que não é um Eu, que é uma certa essência recalcada pelo
advento do Eu. Digamos que é neste Si mesmo estranho ao Eu, um Si mesmo que Lacan
chama de “sujeito”, que encontraremos o desejo. A este respeito, Lacan chega a criar
uma dualidade entre moi (o Eu produzido pela imagem do corpo) e Je (o sujeito do
desejo), isto para falar da: “discordância primordial entre Eu [moi] e o ser [do
sujeito]”118. Esta discordância entre o Eu e o sujeito do desejo é fundamental. É por isto
que o sujeito em Lacan é irremediavelmente descentrado, ou seja, ele nunca se
confunde com o Eu. É da história deste desejo que é feito o passado a ser rememorado,
não da história de suas escolhas, mas da história de sua inquietude.
Por sua vez, o conceito lacaniano de desejo virá de Alexandre Kojève. Podemos
dizer que, para Kojève, a verdade do desejo era ser pura negatividade que desconhece
satisfação com objetos empíricos. “Revelação de um vazio”119, manifestação do
negativo no sujeito, o desejo seria “nada de nomeável” 120. Daí porque Kojève insistirá
que o desejo humano não deseja objetos, ele deseja desejos, ele só se satisfaz ao
encontrar outra negatividade. A este desejo que sempre se manifesta como inadequação
em relação a todo objeto, Lacan dará o nome de “desejo puro”.
De fato, Kojève foi, ao menos neste ponto, fiel à intuição hegeliana de insistir
que a primeira manifestação da subjetividade é uma pura negatividade que aparece
inicialmente como desejo. Ao articular desejo e negatividade, Hegel vincula-se a uma
longa tradição que remota a Platão e compreende o desejo como manifestação da

117
Jacques Lacan, Séminaire II, (Paris : Seuil, 1982), p. 198
118
Jacques Lacan, Escritos (Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996), p. 188
119
Alexandre Kojève, Introdução à leitura de Hegel, p. 12
120
Jacques Lacan, SII, p. 261
falta121. No entanto, já em Hegel esta falta não é falta de algum objeto específico, falta
vinculada à pressão de alguma necessidade vital, tanto que o consumo do objeto não
leva à satisfação. A falta é aqui um modo de ser do sujeito, o que levará Lacan a falar do
desejo como uma “falta-a-ser”. Um modo de ser que demonstra este indeterminação
fundamental do sujeito moderno, esta liberdade manifestada pela ausência de essência
positiva que faz com que ele nunca tenha correlação natural com atributos físicos, nunca
seja completamente adequado às suas representações, imagens e papéis sociais. É
pensando nisto que o jovem Hegel chamará o homem de “a noite do mundo”. Uma
negatividade que é a potência inquieta do tempo, do que nos impede de nos
conformarmos a uma determinação completa no presente. Se Lacan pode dizer que: “o
centro de gravidade do sujeito é esta síntese presente do passado que se chama
história”122 é porque a síntese presente do passado permite a liberação de uma
negatividade que quebra uma noção imediata de presença.

Crítica e clínica

Notemos, finalmente, como funcionará esta clínica baseada em uma crítica da alienação
do Eu na imagem e na defesa do caráter negativo do desejo. Ela será fundamentalmente
uma clínica do reconhecimento intersubjetivo do desejo. “Intersubjetivo” porque se
trata de levar o sujeito a ter seu desejo reconhecido no interior de um campo social
partilhado. Dentro desta perspectiva, as patologias mentais aparecerão como déficits de
reconhecimento. Mesmo os sintomas serão compreendidos como formações que
procuram veicular uma demanda de reconhecimento do desejo lá onde o acesso á
palavra mostrou-se impossível.
Assim, quando Lacan afirmar, no início da década de sessenta, que a clínica
analítica é direcionada pela injunção ética de levar o sujeito a não ceder em seu desejo,
devemos compreender o que quer dizer exatamente “seu desejo” neste contexto. Não se
trata de um conjunto de escolhas pessoais ou de modos particulares de conduta. Desde
que se admite que o desejo do homem é o desejo do outro, a dimensão da
individualidade entra em colapso. Neste sentido, não ceder em seu desejo significa
apenas sustentar o que o desejo é em sua verdade essencial, ou seja, levá-lo a ser
reconhecido como a pura presença do negativo.
Tudo isto soa bastante abstrato, mas já podemos fornecer algumas coordenadas
clínicas esclarecedoras. Primeiro, sabemos que a clínica analítica, por ser uma clínica do
reconhecimento, é radicalmente desmedicalizada, isto no sentido de que a
medicalização, embora possa ser aceita como processo que em certos casos permite
viabilizar o início do tratamento, não se confunde com o tratamento. Neste sentido, a
clínica opera fundamentalmente com a reorientação da palavra do sujeito. Mas: “a
linguagem, antes de significar algo, significa para alguém” 123. Isto quer dizer: toda fala
tem um endereçamento; sua entonação, seu estilo (reivindicativo, passivo, questionador,
mortificado etc.), indica como ela é direcionada à imagem de um certo outro que sempre
trago comigo. A fala já traz a figura de seu ouvinte ideal. Se o analista atuar como um
espelho vazio, ou seja, como alguém que não “responde”, mas que, graças a um não-agir
calculado, apenas permite a projeção destas imagens no interior da relação analítica,
então a análise poderá começar.

121
Sobre este ponto, ver “Hegel e o trabalho do desejo” Em: Vladimir Safatle, A paixão do negativo (São
Paulo; Unesp, 2006)
122
LACAN, S I, p. 46
123
Jacques Lacan, Escritos, p. 86
O trabalho analítico consistirá em levar o sujeito a apreender estas imagens,
atualizadas pela relação analítica, que determinam sua relação ao mundo e à si mesmo.
Como tais imagens são contrações de tramas sócio-simbólicas nas quais o sujeito se
inseriu ao socializar seu desejo, sua apreensão será uma: “assunção falada de sua
história”124 ou, se quisermos, uma certa forma de rememoração da “história natural das
formas de captura do desejo”125.
No entanto, não se trata apenas de rememorar, mas mostrar como tais imagens às
quais o sujeito se vinculou eram a maneira desesperada de dar forma a um desejo
fundamentalmente opaco e desprovido de objeto, maneira de se defender desta
indeterminação angustiante fundamental que faz com que todo vínculo à imagem seja
frágil. Ou seja, esta análise, longe de resultar em uma ampliação da capacidade de
síntese do Eu, é solidária de uma operação de dissolução do mundo dos objetos
imaginários do desejo que deve ser chamada de “subjetivação da falta”. Neste contexto,
“subjetivação” significa: transformar algo em modo de manifestação de um sujeito.
Resta saber como transformar a falta em modo de manifestação do sujeito, ou ainda,
como reconhecer a si mesmo naquilo que não se conforma à imagem.

124
Jacques Lacan, SI. p. 312
125
Jacques Lacan, Escritos, p. 359
História, memória, sofrimento
Aula 10

Retomando nosso projeto

Até aqui, analisamos duas articulações principais. A primeira diz respeito a um


problema de ordem epistemológica, enquanto que a segunda refere-se a uma reflexão
eminentemente clínica. Inicialmente, procurei defender com vocês a hipótese de que
alguns conceitos fundamentais da psicologia são, na verdade, empréstimos de conceitos
desenvolvidos em outras áreas dos saberes, em especial, em outras áreas das chamadas
“ciências humanas”. Tal hipótese parte de uma posição clara a respeito da distinção
entre normal e patológico na clínica do sofrimento psíquico. Depois, procurei analisar o
modelo de funcionamento de um princípio maior de intervenção clínica, a saber, a
rememoração. Retomemos estes dois pontos.
A respeito do problema de ordem epistemológico, digamos existir grosso modo
duas perspectivas principais na compreensão da distinção entre normal e patológico. A
primeira compreenderá o julgamento a respeito dos estados de doença e saúde como um
julgamento descritivo vinculado à descrição de variáveis orgânicas individualizadas, de
déficits e excessos quantitativamente mensuráveis. Nesta perspectiva, a diferença entre
normal e patológico aparece como uma diferença quantitativa que diria respeito a
funções e órgãos isolados, como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo
vivo, apenas variações quantitativas, déficits ou excessos. Como lembra Canguilhem,
semanticamente, o patológico é designado a partir do normal, não tanto como a ou dis,
mas como hiper ou hipo. Assim: “a doença não é pensada como uma experiência
vivida, engendrando transtornos e desordens, mas como uma experimentação
aumentando as leis do normal”126. Quer dizer, a doença nada mais é do que um sub-
valor derivado do normal. É a definição do normal como estrutura positiva que define o
campo da clínica. Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um
campo mensurável acessível à observação. Tal campo privilegiado é a fisiologia que
aparece assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos
postulados de uma anatomia patológica: “As técnicas de intervenção terapêutica só
podem ser secundárias em relação à ciência fisiológica, isto na medida em que o
patológico só tem realidade provisória por declinação do normal”127.
Mas há uma outra forma de compreender a doença e, por conseqüência a cura e a
natureza das intervenções clínicas. Ao invés de utilizar um julgamento descritivo a
respeito da doença, podemos compreendê-la através de um julgamento valorativo
vinculado à consciência do decréscimo de capacidades e habilidades. Vincular a doença
não mais a variáveis orgânicas individualizadas, mas a valores qualitativamente
determinados e compreendidos como tais pelo doente.
A este respeito, lembremos como há uma outra perspectiva de análise das
distinções entre normal e patológico que insiste na distinção qualitativa, e não
meramente quantitativa, entre os dois. Tal perspectiva teria, ao menos, duas versões.
Uma deveria ser chamada de teoria ontológica devido ao fato de encarar a doença como
o resultado da presença do que tem realidade ontológica distinta do corpo são. A teoria
microbiana das doenças contagiosas (Pasteur) seria um caso paradigmático aqui por
fornecer, através do micróbio, uma “representação ontológica do mal” positivamente
localizada. Já a outra deveria ser chamada de teoria dinamista ou funcional e encontra
126
LE BLANC, Conguilhem et les normes, p. 34
127
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 42
na medicina grega seu exemplo fundador. Contrariamente a uma noção de doença
determinada a partir da possibilidade de localização, a medicina grega estaria marcada
por um certo dinamismo relacional que insiste no aspecto determinante das relações
entre organismo e meio-ambiente: “A natureza (physis) tanto no homem como fora
dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a
doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem. Está em todo o
homem e é toda dele”128. A doença aparece assim como um acontecimento que diz
respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade. Pois: “não há um único
fenômeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo
são”129. Quando classificamos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional
isolado, esquecemos que aquilo que os tornam patológicos é a relação de inserção na
totalidade indivisível de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a
afirmar que ser doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que
tal estratégia de vincular o normal a partir de uma relação normativa de ajustamento ao
meio implica em afirmar que não há fato algum que seja normal ou patológico em si.
Eles são normal e patológico no interior de uma relação entre organismo e meio
ambiente.
Mas é neste ponto que algumas questões devem ser complexificadas. Pois
devemos levar ao extremo a compreensão de que o meio-ambiente vital do ser humano
não é um meio natural bruto, mas um meio social, construído através de valores
reguladores que internalizamos e que guiam a maneira com que estruturamos o sentido
e a orientação as relações a si, as relações ao corpo. Tais valores são fundamentais na
determinação geral dos padrões de saúde e dos vetores de orientação dos processos de
cura. Mas, se assim for, temos todo o direito de nos perguntar: qual a genealogia de tais
valores presentes no horizonte de toda demanda de cura, qual o processo complexo que
os gera?
Levando isto em conta, procurei mostrar como valores ligados ao conceito
moderno de história, como progresso e desenvolvimento, apareciam no horizonte das
reflexões psicológicas sobre maturação subjetiva. Ela também estava presente na
compreensão, bastante difundida, da doença mental como regressão.
Por outro lado, tentei mostrar para vocês como o conceito clínico de
rememoração, tão presente, por exemplo, na prática clínica desenvolvida por Sigmund
Freud, era, na verdade, a implementação clínica da noção de “consciência histórica”. Ou
seja, havia uma profunda articulação entre, de um lado, o conceito clínico de memória e,
de outro, a noção de uma consciência capaz de construir a unidade de sua experiência
através da internalização do tempo histórico.
Mas, dei-me conta de uma peça faltante no nosso quebra cabeças. Creio já ter
ficado claro como o tempo rememorado no interior da experiência analítica não é o
tempo da lembrança e daquilo que Freud entende por mera repetição, mas o tempo da
elaboração. Cheguei a apresentar para vocês o caso Dora a fim de mostrar como a
neurose é para Freud patologia ligada a incapacidade de elaborar o passado e à fixação
em repeti-lo de maneira compulsiva. Por isto, Freud precisa dizer que seus neuróticos
não rememoram, eles simplesmente repetem, como se estivessem profundamente presos
a um passado fantasmático que nunca passa. Dora não rememora a história da sua
sexualidade, reinscrevendo suas escolhas e encontros a partir da pressão das situações
presentes. Ela repete continuamente suas impossibilidades e fracassos. Como se fosse
questão de lembrar a todo momento a incompletude de uma trabalho esperado de
reparação.
128
CANGUILHEM, idem, p. 20
129
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
Um estranho progresso

Agora, gostaria de acrescentar a última peça que falta ao nosso quebra-cabeças


ao explorar o que devemos entender por “consciência histórica”, como devemos
compreender o trabalho realizado pela consciência histórica. Trata-se de um tópico
fundamental em nosso esforço comparativo entre trabalho clínico e trabalho da história.
Para tanto, gostaria de expor o problema da consciência histórica a partir de um filósofo
que está na base desta discussão, a saber, Hegel.
“A história universal é o progresso na consciência da liberdade”. Esta afirmação
de Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história traz uma série de pressupostos
importantes. Primeiro, existiria algo como uma “história universal”. Isto implica aceitar
que a multiplicidade de experiências históricas deve ser reduzida a um só motor, a uma
só orientação. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da definição da
história como “coletivo singular”. Isto permitiu que: “se atribuísse à história aquela
força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele
poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um
poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou mesmo em cujo nome
pôde acreditar estar agindo”130. É algo parecido que Hegel tem em mente ao falar do
Espírito do mundo como “alma interior de todos os indivíduos”.
Segundo, tal orientação unitária da história move-se de maneira progressiva. Por
fim, neste movimento se lê a tomada paulatina de consciência da liberdade ou, se
quisermos, da emancipação. Uma tomada de consciência que não é individual, mas
social. Neste sentido, a história deve ser a narrativa do progresso em direção à
consciência da liberdade e de afastamento da condição de alienação. Mas devemos
entender aqui o que significa, neste contexto, dois termos fundamentais, a saber,
“progresso” e “consciência da liberdade”.
“Os Persas são o primeiro povo histórico, porque a Pérsia é o primeiro império
que desapareceu (Persienist das erste Reich, das vergangenist)”131 deixando atrás de si
ruínas. Esta frase de Hegel diz muito a respeito daquilo que ele realmente entende por
“progresso”. O progresso é a consciência de um tempo que não está mais submetido à
simples repetição, mas que está submetido ao desaparecimento. “Progresso” não diz
respeito, inicialmente, a uma destinação, mas a uma certa forma de pensar a origem.
Pois, sob o progresso, a origem é o que, desde o início, aparece marcada pela
impossibilidade de permanecer. “Origem” é, na verdade, o nome que damos à
consciência da impossibilidade de permanecer em uma estaticidade silenciosa. Por isto,
que a verdadeira origem, esta que aparece na Pérsia, é caracterizada por um espaço
pleno de ruínas.
O ato de desaparecer é assim compreendido como a conseqüência inicial da
história. Colocação importante por nos lembrar que as ruínas deixadas pelo movimento
histórico são, na verdade, modos de manifestação do Espírito em sua potência de
irrealização. Se os persas são o primeiro povo histórico é porque eles se deixam animar
pela inquietude e negatividade de um universal que arruína as determinações
particulares. Notemos como este desaparecimento não é a afirmação sem falhas da
necessidade de uma superação em direção a perfectibilidade. Na verdade, há uma
pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Esta pulsação contínua é,
de uma certa forma, o próprio telos da história. Assim, ela realiza sua finalidade quando
este movimento ganha perenidade, quando ele não é mais vivenciado como perda
130
KOSELLECK, idem, p. 52
131
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 215
irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente, nos abre para uma nova forma
de presença, liberada do paradigma da presença das coisas no espaço. O que explica
porque Hegel dirá: “ Deve-se inicialmente descartar o preconceito segundo o qual a
duração seria mais valiosa do que a desaparição” . Só as coisas que tem a força de
desaparecer permitem que se manifeste um Espírito que só constrói destruindo
continuamente.
Esta é uma maneira precisa de dizer que a narrativa da história do Espírito é, na
verdade, a narrativa do movimento de auto-evanescimento das determinações finitas. O
progresso aparece assim como o reconhecimento de um evanescimento formador. Para
entender melhor a necessidade deste topos, seria importante levar em conta o que Hegel
entende por “consciência da liberdade” enquanto motor do progresso da história. O
primeiro passo para isso é lembrar que o conceito hegeliano de liberdade não pode se
reduzir à noção liberal da liberdade positivas dos indivíduos que afirmam seus sistemas
particulares de interesses. Na verdade, há para Hegel uma liberdade em relação aos
limites que a noção de indivíduo impõe à experiência.
Hegel sabe que: “nada se realiza sem que os indivíduos que participam a esta
ação também se satisfaçam”132. No entanto, Hegel também é sensível ao fato de que, se
podemos sofrer por não sermos reconhecidos socialmente como indivíduos dotados de
interesses particulares e direitos positivos ligados à figura jurídica da pessoa, podemos
também sofrer por sermos apenas um indivíduo, submetidos a um profundo regime de
atomização social. Tal limitação própria à noção de indivíduo explica porque os
“homens históricos” [geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história
mundial” [welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são
postos apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração,
permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des
weltgeistes]. Mas há algo de profundamente inconsciente nesta vontade:

Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo
outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles
realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece no
interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção133.

Ou seja, o progresso é feito por ações nas quais os homens não se enxergam, nas
quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que
constitui o campo da história. Ou melhor dizendo, há um motor da história que para a
consciência individual aparecerá necessariamente como algo da ordem do involuntário.
É a confiança neste involuntário que constitui os “homens históricos”. Algo no mínimo
estranho se continuarmos aceitando que há uma espécie de reconciliação entre
consciência e tempo rememorado no interior da história. Que tipo de reconciliação é
esta na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão do involuntário, onde ela
necessariamente não sabe o que faz?
É levando isto em conta que podemos afirmar não serem os indivíduos aferrados
na finitude de seus sistemas particulares de interesses aqueles que fazem a história. Por
isto, não são eles quem podem narrá-la. Para Hegel, quem narra a história não são os
homens, mas aquilo que ele chama de “Espírito” (Geist). Sem entrar no mérito do que
exatamente o conceito de “Espírito” descreve (uma entidade metafísica, um conjunto de
práticas de interação social apropriado reflexivamente e genealogicamente por sujeitos
agentes), gostaria de salientar apenas um ponto; quando o Espírito sobe à cena e narra a
132
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 31
133
idem, p. 42
história, sua prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham
fatos. Primeiro porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que
se passou às costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que só alcança vôo depois
do ocorrido.
Neste sentido, se a língua do Espírito é a única capaz de realmente narrar a
história é porque devemos compreender a história como este espaço no qual os
indivíduos se dissolvem ao transfigurarem seus interesses particulares em um
movimento de valor geral. A história é o lugar no qual os indivíduos são superados e se
realizam ao desaparecer.
É a possibilidade de tal transfiguração dos indivíduos que devemos chamar de
“progresso”, Neste sentido, “progresso” não é a simples exposição da crença na
perfectibilidade humana e na suspensão de seus conflitos. “Progresso” é o nome de um
modo de experiência do tempo no qual nunca estou completamente limitado às
determinações do presente. Pois, através do progresso, liberto-me das limitações das
determinações do presente, liberto-me dos limites do que sou capaz de representar, isto
se compreendermos “representar” como instaurar algo diante de mim, instaurar algo em
um regime de presença que permite transformar minha visibilidade em modo de posse e
dominação.
Assim, se voltarmos à frase inicial de Hegel “A história é o progresso na direção
da consciência da liberdade”, podemos agora dar a ela uma interpretação mais
adequada. A história é o discurso que expõe o movimento de afirmação do que não se
esgota nos limites da capacidade representativa da consciência individual. Para Hegel,
este é o sentido da história. Talvez por isto, boa parte dos acontecimentos históricos
tenham sido animados pela procura em superar os limites da figura atualmente realizada
do homem. Talvez por isto, seja tão difícil abstrair a história do desejo de nos livrarmos
de nós mesmos e de realizarmos algo a respeito do qual ainda não temos figura134.

Muitas vozes

A história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e


vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma antiga era para
Robespierre um passado carregado de ‘agoras’, que ele fez explodir do
continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta.
Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo135.

Lembremos desta famosa tese de Walter Benjamin se quisermos entender melhor o que
está em jogo na liberdade produzida pela transfiguração dos indivíduos no interior da
história. Benjamin alude à história como “um tempo saturado de ‘agoras’”, ou seja, um
tempo parecido à metáfora que Freud utilizou para falar da estrutura do sujeito
moderno: uma cidade na qual todos os estágios de seu desenvolvimento estão
atualizados no mesmo lugar, criando um espaço irrepresentável:

Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores nos


dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada
sobre o Palatino. Seguiuse a fase dos Septimontium, uma federação das
povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de

134
Tomo a liberdade de remeter ao meu: SAFATLE, Vladimir; A esquerda que não teme dizer seu nome,
São Paulo: Três estrelas, 2012
135
BENJAMIN, Walter;“Teses sobre o conceito de história” in: Obras Escolhidas, São Paulo: Brasiliense,p.
230
Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os
períodos da república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador
Aureliano cercou com as suas muralhas. (...) Permitam-nos agora, num vôo da
imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade
psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante — isto é, uma
entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases
anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. (...)
Se quisermos representar a seqüência histórica em termos espaciais, só
conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode
ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela
conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as
características da vida mental através de suarepresentação em termos pictóricos.

Este tempo saturado é um tempo no qual cada gesto remete à uma série de gestos
passados que nunca passaram completamente, mas que continuam a habitar os gestos
presentes, dando-lhes uma densidade propriamente histórica. A história é um tempo
onde tudo é repetição. Algo não muito diferente do que o próprio Hegel tem em mente
quando afirma:

“A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado,


permanecem simultâneos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem
como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os
tem em sua profundidade presente”136.

Quando Benjamin fala da sucessão de “agoras” como uma repetição, ele lembra
como tal concepção explode a noção da história como uma continuidade. Se não
podemos falar desta repetição como uma continuidade, é porque sua apreensão, pela
consciência, produz uma profunda descontinuidade no tempo. Ao se ver como o palco
de uma multiplicidade de repetições, a consciência suspende seu modo de ser no interior
do tempo, ela abandona a crença na linearidade cumulativa própria a representações que
compreendem a passagem do tempo como passagem de um indivíduo após o outro. Ela
pode então se auto-compreender como portadora de um tempo onde o presente é apenas
a contração de múltiplas séries passadas. Tempo no qual as coisas que desaparecem
nunca passam porque a desaparição não é o destino de todas as coisas, porque estamos
no interior de uma cadeia de repetições onde as vozes de múltiplos sujeitos que nos
antecederam nunca cessam de falar. Ao explodir o continuum da história, explode-se
também a finitude que constitui os indivíduos. Esta explosão é o verdadeiro
acontecimento: uma lição não muito distante do que Hegel procura desenvolver ao falar
da superação da consciência em Espírito.

136
HEGEL, idem, p. `104

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