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We assume that the body is an operator of great symbolic significance and that
plays a factor in the cultural and artistic figurations, starring the reunion plural arts both
with the contemporary obsessions, as with most rituality ancestor. The speech that develop
on the body considers its activation in artistic practices like performance art, contemporary
dance, body art, carnal art, and creators of the next designated modern primitives, body
modification practitioners, supporters of urban movements incorporating use of piercings,
tattoos, scarification and other body transformations.
2
Para Paulo Aureliano da Mata e para meus pais
Pelas palavras de estímulo e otimismo,
pelo carinho permanente,
pela confiança latente.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu parceiro de vida e arte Paulo Aureliano da Mata pelos constantes
diálogos sobre definitivamente tudo o que estudo, penso e crio, pela paciência de Jó por
aturar meus surtos verborrágicos, pelo carinho, pelas palavras de otimismo e,
principalmente, pelo amor dedicado a mim, o que me faz extremamente feliz. A minha
mãe e ao meu pai pela amizade de sempre que nunca permitiu repressão, só motivação. Ao
meu tio Clóvis e a minha tia Sílvia por possibilitarem que eu retornasse a Portugal para
continuar meu projeto de pesquisa e, também, a minha sogra Lucinha, que junto do meu
sogro João Geraldo Lopes da Costa, confiou em absolutamente todos os projetos meus e do
Paulo, garantindo então minha permanência no país. Revelo meu mais sincero
agradecimento devido aos cuidados de Fátima Gomes Leite por ceder sempre materiais
que me foram imprescindíveis nas concepções. Igualmente, Sílvia Póvoas e toda equipe da
Norcópia pelas impressões impecáveis e pelo especial atendimento; Helder Gomes pela
base fornecida no mestrado e pela amizade estabelecida a partir de então; Fernando Matos
Oliveira, orientador do doutorado, pela indiscutível atenção prestada durante todo o
processo de elaboração da minha tese-projeto; Lis Castilho pelas referências enviadas.
Agradeço aos meus amigos pela parceria nos trabalho práticos: Lizi Menezes, Paula
Guedes, Xana Miranda, Daniel Oliveira, Joana Lleys, Miguel Ambrizzi, Suianni Macedo,
Marcus Guilherme, Jorge Quintela, Tânia Dinis, Thais Nepomuceno, Vanja Poty, Suianni
Macedo, Samuel Gerencsez, Leonardo Manzano, Marco Manzano, William Luchetti, Nenê
Clemente, Darcy Meinlschmiedt, Alex Mervart e Nathália Mello. Agradeço ainda a Carla
Moraes, funcionária da biblioteca da FBAUP pela boa vontade de sempre que ultrapassa o
mero ofício.
Agradeço minhas irmãs Ana Paola e Ana Carolina pela constante e intensa
colaboração artística e pelas conversas francas sobre nossas vivências de infância que tanto
estimularam as minhas produções. Vítor Dias de Moraes, Fernanda Dias de Moraes e Yan
Cardoso (meus sobrinhos amados) pela descontração e pelo apoio em todos projetos
artísticos que os convoquei para participarem, sempre com extrema seriedade e
profissionalismo.
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Depois de atentas leituras, Nathália Mello, Suianni Macedo e minhas queridas tias
Sílvia Stuchi e Silvana Dias me incentivaram a restaurar o discurso formulado, fazendo
assim com que eu revisitasse conceitos e argumentos e melhorasse o conteúdo do que
propus. Devo-lhes imenso agradecimento.
Devo enorme agradecimento a Patrícia Viana Almeida não só por ceder o estúdio
da FBAUP, onde realizei um dos trabalhos práticos que compõe esta tese, mas também por
me auxiliar com as melhores dicas técnicas de edição de vídeo. Rubens Rangel, da Orbi
Design, por dar o acabamento na imagem da fotoperformance (De)reter-se.
Aos espaços e eventos que acolheram meus trabalhos práticos desenvolvidos, eu
explicito ilimitada gratidão. São eles: NEC (Núcleo de Experimentação Coreográfica) –
especialmente a Cristiana Rocha – e Tenta de Saias, que me receberam para efetuar ensaios
durante o meu processo criativo; Teatro Municipal Rivoli – com especial agradecimento a
Tiago Guedes –; Espaço MIRA e Bienal da Maia – com agradecimento especial a José
Maia; CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura), que abrigou a exposição
Moda e Religiosidade em Registos Corporais com todas as criações artísticas
concretizadas no doutoramento – em especial, Ricardo Areias e Maria Luís Neiva; Festival
de Performance p.ARTE de Curitiba – especialmente Fernando Ribeiro –; Associação
Dell’Arte – gerida por Rafael Back e Cris Anovazzi – que foi crucial para tornar possível a
minha (com a Cia. Excessos) exposição Beija-me, que acionou, na Estação Cultura, junto
da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de Catanduva – São Paulo, a possibilidade de
eu mostrar dois dos trabalhos desta tese-projeto ao lado de tantas outras obras minhas e da
Companhia Excessos, sendo uma delas, Aliança, o meu casamento-performance com Paulo
Aureliano da Mata; Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, por abrigar meu
trabalho Dismorfofobia durante o evento Tômbola Show e Beija-se na deleitável noite da
festa intitulada por Pussy Faggot! e, desse evento, destaco os homônimos Daniel Pires,
Daniel Oliveira, Daniel Pinheiro e, fugindo do padrão de nomes e de gênero, Marta
Bernardes; Colóquio Estudos Feministas: o Futuro do Passado (Coimbra, Portugal);
Barricade (Kuala Lumpur, Malásia); Bangkok Experimental Film Festival (Bangkok,
Tailândia); Trânsitos e Visualidades (Vitória, Brasil); KLEX (Kuala Lumpur, Malásia);
Rapid Pulse International Festival (Chicago, USA), especialmente Joseph Ravens e a
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equipe da Defibrillator Gallery; Torino Performance Art International Festival (Turim,
Itália); Direct Action (Berlim, Alemanha); SESC-TV (Brasil); MAC-USP por acolher o
meu trabalho Re-banho como obra integrante do acervo permanente do Museu; SESC
Santos, SESC Rio Preto, SESC Campinas e SESC Ribeirão Preto por acolherem os
trabalhos criados a junto deste estudo.
Agradeço a Cristine Ágape (in memoriam), artista performática carioca, estudante
de Direção Teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que no dia da mentira,
proferiu uma dura verdade. No seu último dia de vida (dia 1 de abril), vestida como Pedrita
Flintstone, falou: “a partir de hoje, não uso mais roupas, só figurino”. Faleceu, vítima de
um acidente de moto, na madrugada do dia 1 para 2 de Abril de 2006 ao voltar para casa e
se eternizou com esta hilariante imagem, de figurino, fazendo valer o que nesse dia havia
prometido para todo o sempre, mantendo assim a pilhéria e o sarcasmo que sempre
estiveram latentes nas suas ideias e nos seus manifestos. Foi com ela que passei a levar a
sério a performance.
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“O encantamento e a sugestibilidade da produção artística nos levam a
encarar um certo número de problemas que podem ser chamados
problemas básicos, porque reside neles a explicação de alguns dos
fenômenos mais estranhos e mais importantes da nossa vida diária”.
7
ÍNDICE
INTRODUÇÃO........................................................................................................11
8
2. Nove Projetos Performativos
2.1. Projeto Performativo 1: Re-banho.......................................................185
2.2. Projeto Performativo 2: Dismorfofobia...............................................195
2.3. Projeto Performativo 3: Sede Vós........................................................209
2.4. Projeto Performativo 4: (De)reter-se...................................................215
2.5. Projeto Performativo 5: Proxim(a)idade.............................................221
2.6. Projeto Performativo 6: Atendo ao Molde...........................................229
2.7. Projeto Performativo 7: Beija-se.........................................................234
2.8. Projeto Performativo 8: Por um Fio....................................................242
2.9. Projeto Performativo 9: Aliança..........................................................250
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................262
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................267
ANEXOS
1. Entrevistas
1.1. Diálogos com Amelia Jones: avaliações sobre identidade, body art e
documentação de ações performativas.......................................................294
1.2. “Prêt-à-Médiatiser” em cinco perguntas e incontáveis reflexões......306
1.3. Moda e Religião com impulsos de construção de uma nova
identidade...................................................................................................313
2. Críticas sobre os meus trabalhos artísticos condizentes ao doutoramento
2.1. Imagem e Dessemelhança...................................................................317
2.2. Sobre ‘Dismorfofobia’: Conversa com Tales Frey.............................321
2.3. A Proxim(a)idade de Tales Frey da Cia. Excessos – Efemeridade versus
eternidade: ode aos vermes e aos confeitos de chocolate..........................327
2.4. Impressões de quem esteve Próxima: um Relato das Reflexões
Suscitadas pela performance Proxim(a)idade, de Tales Frey...................330
2.5. O Encontro Amoroso de Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey em
9
“Aliança”: Performance, Ritual e Respeito à Diversidade.......................333
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INTRODUÇÃO
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Incumbe, antes de mais, frisar que este trabalho intitulado por Performance e
Ritualização – Moda e Religiosidade em Registros Corporais, apresenta-se como uma
tese-projeto, filiada em recentes experiências de cruzamento entre investigação e criação,
realizadas em cursos de formação no domínio artístico, geralmente conhecidas como
Practice-led Research ou Research-led Practice. Sobretudo, trata-se da construção e
ativação continuada de um processo criativo pensado para a concepção de uma série de
projetos artísticos dentro de uma mesma temática, da qual deriva a experiência que
privilegia as formas de operar o argumento e a sua materialização numa poética
performativa e visual.
Há, evidentemente, um interesse pessoal que antecede, acompanha e sucede a
resolução deste estudo; antes de iniciar esta investigação, há toda a trajetória percorrida
com experiências advindas das criações desenvolvidas através da Cia. Excessos1 ou do
intenso alargamento teórico em torno da arte contemporânea com ênfase na arte da
performance por meio da eRevista Performatus2, que teve sua estruturação conjeturada
desde 2009, para ser constituída em 2012. Ainda é válido observar que, através dessa
revista virtual, realizei a curadoria e organização da Mostra Performatus #1 na Central
Galeria de Arte de São Paulo entre março e maio de 2014 junto com Paulo Aureliano da
Mata, reunindo artistas da performance de abrangência internacional. Também, por meio
da Performatus, além das curadorias realizadas em algumas galerias de arte e instituições
no Brasil e Portugal, concretizamos atividades de residências artísticas no Brasil no
Instituto Hilda Hilst entre 2013 e 2014 em Campinas-SP, sendo que, dentre os(as) artistas
por nós escolhidos, levamos Manuel Vason para desenvolver uma série de trabalhos
1
A Cia. Excessos é um duo criado com por mim e por Paulo Aureliano da Mata que foi iniciado em 2006 e
fundado em 2008. É o meio pelo qual realizamos todos os nossos projetos, criados individualente ou
coletivamente, inclusive, em alguns casos, contando com colaboração e/ou participação de outros artistas
em determinados trabalhos. Ver mais em www.ciaexcessos.com.br
2
Performatus é uma eRevista semestral especializada em estudos performativos, a qual foi fundada em
novembro de 2012 por mim e por Paulo Aureliano da Mata. A partir das reflexões sobre a arte
contemporânea e, mais especificamente, sobre o gênero artístico da performance, nós publicamos ensaios,
críticas, entrevistas, traduções e um item chamado “perfil de artista” como tópicos-estímulos para
gerarmos reflexões em torno do ato performático, ou ainda, conforme uma designação mais atual e
abrangente, do ato performativo.
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coletivos em torno da noção fotoperformance3 com outros nove artistas brasileiros que
elegemos.
A tese decorreu no âmbito do doutoramento em Estudos Artísticos – Especialização
em Estudos Teatrais e Performativos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Este doutoramento ocorre num contexto institucional que nos permite acesso às múltiplas
atividades de formação avançada, entre as que são desenvolvidas especificamente no
Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes (DHEEAA), mas
também no âmbito das conferências de pós-graduação do Colégio das Artes e das
atividades de programação e formação atualmente desenvolvidas pelo Teatro Acadêmico
de Gil Vicente. No seu conjunto, este enquadramento ajusta-se ao carácter transdisciplinar
da tese, a qual foi beneficiada do trabalho desenvolvido também noutras unidades
curriculares oferecidas pela Universidade de Coimbra, como a Antropologia da
Performance, Teatro e Performance, Antropologia Teatral, Antropologia Visual, Filosofia
do Corpo e da Corporeidade, entre outras.
Marvin Carlson, num estudo de referência, descreve a diversidade de campos e
associações que atualmente são ativados pelo conceito de performance:
3
Este gênero será melhor explicado no item 1.2. Sobre Performance e Documentação: videoperformance e
fotoperformance pertencente ao Capítulo III desta tese.
4
CARLSON, Marvin A. Performance: Uma Introdução Crítica, p. 17/18.
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Moda5 e da religiosidade. Desde a segunda metade do século XX, o corpo tem vindo a
ocupar um lugar cada vez mais central na linguagem artística, em diversas tradições
disciplinares e contextos criativos. Privilegiamos aqui as suas apropriações no âmbito da
arte da performance.
Tendo aparecido em diálogo próximo com as artes visuais, a performance afirma-se
enquanto prática artística no confronto com as artes cênicas, as artes plásticas e, em geral,
com o ímpeto experimental que se acentua a partir do modernismo e das vanguardas
históricas. Desde as primeiras décadas do século XX, empreende então um diálogo
múltiplo tanto com expressões consagradas, como com práticas emergentes, como a dança-
teatro, estéticas fringe ou linguagens próximas do que se designa por teatro pós-dramático
(conforme nomeia Hans-Thies Lehmann). O hibridismo formal e expressivo da
performance potencia o diálogo com as linhas temáticas que foi pretendido explorar até ao
ponto em que, como afirmou Renato Cohen, a virulência original da arte da performance
se confronta de modo crescente com o espetáculo perpétuo das imagens em movimento,
arriscando a apropriação pelos “mecanismos da mídia e da indústria cultural”6.
A tese divide-se em três partes principais: “Corpo e Corporeidade na Arte da
Performance”, “Moda e Religiosidade em Registro Corporal” e “Performance e
Ritualização – Nove Propostas”. Cada uma dessas partes estrutura-se em subcapítulos,
constando no primeiro os seguintes itens: “Ritual e Performance”, “Injunções
Performativas”, “Centralidade do Corpo na Arte: Catarse, Sujeito e Identidade” e “Moda e
Religiosidade como Referência para o ‘Corpo Artista’”. O segundo capítulo está
subdividido sob os seguintes títulos: “Timbre da Moda e da Religiosidade no Corpo” e
“Possíveis Rótulos/Nomenclaturas para os Corpos Contemporâneos”, sendo que, na
primeira subdivisão, temos: “Rituais, Moda e Religiosidade”, “Corpo sem Roupa (Vestido
de Signo)”, “Corpo Vestido (Despido do Traje Divino)”, “Conexões entre a Moda e a
Religião”, “Corpo e Religião”, “Corpo, Moda e Cultura de Massa”. Na segunda subdivisão
temos: “Corpos Normativos e Corpos Ordinários”, “Corpos Sobre-humanos Ordinários”,
5
O termo “Moda” é usado, dentro desse estudo, com a letra “m” maiúscula para que o sentido dessa palavra
seja compreendido com efeito de respeitabilidade similar ao da palavra “Deus” com “d” maiúsculo. A
intenção é relacionar os admiradores da moda como seguidores tão apaixonados (fanáticos) como são
certos adeptos de uma religião.
6
COHEN, Renato. A Performance como Linguagem, p. 14.
14
“Corpos Sobre-humanos Extraordinários” e “O Cibercorpo”. O último capítulo da tese
apresenta os seguintes tópicos: “Três Considerações Preliminares” e “Nove Projetos
Performativos”. O primeiro proporciona os subitens: “Sobre a Performance como
Investigação”, “Sobre Performance e Documentação: videoperformance e
fotoperformance”, “Sobre as minhas ritualizações”. No segundo, temos: “Projeto
Performativo 1: Re-banho”, “Projeto Performativo 2: Dismorfofobia”, “Projeto
Performativo 3: Sede Vós”, “Projeto Performativo 4: (De)reter-se”, “Projeto Performativo
5: Proxi(a)idade”, “Projeto Performativo 6: Atendo ao Molde”, “Projeto Performativo 7:
Beija-se” , “Projeto Performativo 8: Por um Fio” e “Projeto Performativo 9: Aliança”.
No primeiro capítulo da tese, através da análise da trajetória da performance,
pretendi evidenciar o modo como o corpo atua como um dos seus principais referentes.
São reunidas as principais menções dessa prática artística, considerando as suas origens
históricas e a influência específica de grupos, estéticas e de nomes como Antonin Artaud e
o “teatro da crueldade”, por exemplo.
Antes, importa-nos, nesta primeira parte, a relação fundacional que Richard
Schechner estabelece entre performance e ritual, bem como a noção de catarse e de
transformação (permanente ou temporária). A exposição decorre entre as reflexões
pioneiras de Émile Durkheim, o entendimento do ritual como uma “sequência complexa de
atos simbólicos”7 e significado dos rituais diários, de pequena escala. A reflexão sobre o
conceito de “corpo artista” será o ponto de chegada nesta primeira fase, momento em que a
percepção do corpo se desloca do estatuto subsidiário que tem na racionalidade moderna
para o embodiment radical do sujeito pós-moderno.
No segundo capítulo, “Moda e Religiosidade em Registros Corporais”, entrando
mais diretamente na temática da tese, pretende-se examinar a autoridade da Moda e da
religiosidade 8 , enquanto forças presentes numa vasta série de registros corporais na
7
TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play, p. 75. Tradução livre a partir do
inglês.
8
Opto pelo termo “religiosidade” e não por “religião”, pois não pretendo enfatizar detalhadamente as
práticas condizentes ao islamismo, budismo, cristianismo, hinduísmo, judaísmo ou qualquer religião de
forma específica. Pretendo abordar a noção da crença em algo divino, sobrenatural (incluindo as religiões
mencionadas e, até mesmo, outras que nem nome possuem), podendo, inclusive, haver casos de práticas
transcendentalistas inventadas, ou melhor, práticas ritualizadas de forma individual, que não integram
uma religião institucional, amplamente reconhecida e seguida por inúmeros adeptos.
15
contemporaneidade (marcas, modificações, deformações, etc.), além dos registros
ornamentais que discursam em cima da pele sem a torturar. Serão cruzadas referências do
mundo da arte e da cultura, em contextos que contribuem para a clarificação do argumento
principal. Moda e religiosidade importam-nos sobretudo como dois campos que alimentam
a ordenação simbólica do corpo, impondo ou condicionando formas de apresentação,
adornos, comportamentos e corporizações diversas, podendo direcionar o sujeito na sua
construção corporal baseada no que Le Breton nomeou por “extremo contemporâneo”9.
A terceira parte, intitulada “Performance e Ritualização – Nove Propostas”, é
dedicada à apresentação, documentação e reflexão conceitual sobre os nove projetos
performativos que constituem a parte prática da tese, em estreito diálogo com os capítulos
anteriores. Cada uma das criações é descrita e apresentada com os elementos de produção e
criação que lhe deram origem, incluindo artistas, a ficha técnica, espaços e materiais
utilizados. A documentação das apresentações foi tratada com especial cuidado, uma vez
que se relaciona com a possibilidade de memorizar a realidade efêmera e transitória da
performance. A este propósito são trabalhadas vias de documentação em relação
complementar, agregando fotografia, vídeo e documentação escrita. Alguns trabalhos já
foram elaborados a partir do gênero de fotoperformance e videoperformance, portanto, não
são meros documentos de uma ação realizada ao vivo, mas sim a obra em si.
Cabe ressaltar que o presente trabalho é formulado com base no português do Brasil
– embora já haja aqui a preocupação em acatar o novo acordo ortográfico, que aproxima o
português do Brasil do português de Portugal –, pois é suposto que seja coerente
proporcionar algo indissociável da composição prática concebida (componente
fundamental da tese) sob uma série de performances, as quais se apoiam num tipo de
expressão que, por excelência, não admite separação entre o artista e a obra e, sendo assim,
por vezes, o discurso em primeira pessoa se faz necessário.
Poderia haver nessa pesquisa, como é próprio em contexto acadêmico, citações em
idiomas variados, conforme a obra consultada, mas, para haver maior fluidez com o texto
por mim escrito, optei por traduzir as citações mais longas. Lógico que a arte
9
Expressão que aborda o corpo cada vez mais próximo de ser um corpo-máquina contra um corpo pleno.
Vemos, no sujeito que pratica tal transformação, a busca pelo total controle de si e do seu corpo e, ao
mesmo tempo, um narcisismo exacerbado próximo de uma vontade de potência niilista.
16
contemporânea, mote de discussão e prática dentro desta tese, está timbrada de
características multiculturalistas e, por vezes, relacionadas com uma autenticidade
expressiva que pretendemos valorizar; nestes casos mantive aqui algumas referências
conforme as recebi. Na verdade, a língua não representa mais um grande limite, num
tempo em que os tradutores online podem dar cabo desse obstáculo.
O cruzamento entre a Moda e a religiosidade bem como entre a performance e a
ritualização é adequado se pensarmos que, em âmbito da performance artística, da
religiosidade e da Moda, existe o forte comparecimento do ritual e do corpo como núcleo
das situações. Num evento de Moda, há corpos expostos na passarela, discursando e
pontuando a transição de um período ou estilo para um outro, ou seja, de uma tendência
que deixa de ser tendência e se confirma como fato social após este “rito de passagem”,
para ditar um estilo a ser seguido. Também, em um evento sagrado como um casamento
católico10, por exemplo, os dois corpos ali tradicionalmente trajados na igreja, após o
adorno da aliança, passam da condição de “solteiros” para a condição de “casados”. Estes
são singelos exemplos de eventos performativos, que embora não sejam performances
efetivamente artísticas, podem sintetizar o assunto que dá corpo a este trabalho e inspirar
um artista que arrisca tal temática para o seu processo criativo.
10
Evidentemente, o casamento pode, em alguns casos, ser apenas um ritual secular se não houver contexto
religioso.
17
CAPÍTULO I:
CORPO E CORPOREIDADE
NA ARTE DA PERFORMANCE
18
“A interioridade do sujeito é um esforço constante de exterioridade.”
Paul Valéry. Apud. LE BRETON (2003. p. 29)
19
1. Ritual e Performance
11
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIÉRO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p.57.
12
Idem.
13
Ibidem, p.58.
14
Idem.
15
CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo, p. 09.
20
É apropriado observar, antes de prosseguirmos no assunto, que a opção por uma
ordem cronológica de abordagem sobre a teoria e a história da performance para
pensarmos a sua evolução como gênero é adotada aqui meramente por convenção de um
entendimento mais simplificado, sendo uma maneira de aparelhar, de forma mais nítida, o
pensamento em torno do assunto. Também, no que diz respeito ao que é referido como
“contemporâneo” espelha sobretudo um diálogo com o atual e a época em que vivemos,
sem rotular de forma intransigente o que é atemporal e que não pode ser qualificado e
ultrapassado por um tempo inteiramente historicizante16. Em dados momentos, fatalmente,
alguns tópicos são antecipados, mas a abordagem mais detalhada do ponto de reflexão
deve seguir o assentamento pré-estabelecido.
Sobre o rótulo de “contemporâneo” atribuído à arte, acabo por esbarrar na forma
bruta e até “conservadora”, conforme expõe a autora Raymonde Moulin, em não dissociar
“a periodização da caracterização estética das obras”17, posicionando, sem pretensão, mas
levianamente, “o nascimento da arte contemporânea no decênio 1960-1969”18. Mas, ao
mesmo tempo, procuro evidenciar a contemporaneidade das obras de arte sem uma
cronologia rigidamente estabelecida, considerando contemporâneo o que “não se confunde
com a produção dos artistas vivos” 19 , levando em conta (ou tentando levar) que a
contemporaneidade, conforme Giorgio Agamben avalia em O que é o contemporâneo?, é
“uma relação singular com o nosso próprio tempo, que a ele adere e dele se distancia em
simultâneo”20.
Em Discursos Críticos através da Poética Visual de Márcia X., afirmo, por outras
palavras, que há quem sustente a ideia de que a performance esteja diretamente relacionada
a rituais muito mais remotos, mas procuro sempre assinalar que o conceito de performance
ligado à arte se afirmou e expandiu como gênero no decorrer do século XX21. Segundo a
autora Roselee Goldberg, a história da performance se explicita com a publicação do
primeiro manifesto futurista por Filippo Tommaso Marinetti no jornal Le Fígaro em Paris
16
Cf. SCOVINO, Felipe. Arquivo Contemporâneo, p. 7.
17
RAYMONDE, Moulin. O Mercado da Arte: Mundialização e Novas Tecnologias, p. 25.
18
Idem.
19
Idem.
20
AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 20.
21
Livro publicado pela Paco Editorial, gerado a partir da minha dissertação de Mestrado, a qual foi realizada
na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto entre 2008 e 2010.
21
no ano de 1909. Para essa autora, os primórdios da performance estão ligados ao
Futurismo e às ações das chamadas vanguardas históricas, mas só nas décadas de 1960 e
1970 é que a performance passou a ser aceita como um meio de expressão artística
independente, conquistando sua autonomia na história da arte22. Esse período coincide com
a afirmação da arte conceitual, em que a ideia era mais importante que o produto, sendo,
então, a performance um meio frequente para executar tais pensamentos. Essa afirmação
será melhor esclarecida no próximo tópico deste primeiro capítulo.23
Jorge Glusberg afirma que dois acontecimentos foram determinantes para o futuro
da performance: o recital apresentado pelos componentes do Dancers Workshop na Judson
Memorial Church de Nova York e a fundação do movimento Fluxus.24 Utilizando o termo
“pré-história” para comentar as origens deste gênero artístico, Glusberg ainda aponta os
desafios e provocações dos futuristas e dos dadaístas como movimentos que estabeleceram
pontos de contato com o que, hoje, conhecemos por performance. A evolução mais
particularizada sobre esse desenvolvimento, com exemplos de artistas envolvidos, será
melhor detalhada no subcapítulo a seguir. Para já, seguiremos com a relação entre ritual e
performance.
Para o autor Renato Cohen,
O que Cohen está justamente tentando afirmar é que há pontos de contato existentes
entre as “ações performativas”26 e o ritual, questão que foi absorvida a partir de Richard
Schechner, autor que estabelece um estudo mais específico nesse âmbito, o qual procura
sublinhar os pontos comuns entre o ritual e as ações performativas, tendo como base a
“solidariedade social”, a qual foi teorizada por Émile Durkheim:
22
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 07.
23
Cf. FREY, Tales. Discursos Críticos Através da Poética Visual de Márcia X., p. 27.
24
Cf. GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 37.
25
COHEN, Renato. A Performance como Linguagem, p. 41.
26
Essa expressão, bastante utilizada nesta tese-projeto, é mais abrangente e pode incluir as expressões
cênicas: teatro, dança, dança-teatro, performance, happening, etc.
22
Rituais não só expressam ideias como incorporam-nas. Os rituais são
pensamentos em/como ações. Essa é uma das qualidades que faz o ritual
ter pontos de contato com o teatro, sendo uma semelhança reconhecida por
Durkheim.27
27
SCHECHNER, Richard. Performance Studies, p. 57. Tradução livre a partir do inglês.
28
Idem.
29
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIERO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p. 50.
23
esportes, política, etc.), os “rituais religiosos” (ritos de passagem, celebrações, etc.) e os
“rituais estéticos” (formas codificadas por exemplo).30
O carnaval pode ser considerado um ritual religioso, mas também estético ao
mesmo tempo, sendo sagrado e secular; no carnaval – ritual que altera o cotidiano e, nele,
imprime o caráter de identidade de uma sociedade, fazendo com que ela reflita sobre si
através da sua própria exposição estereotipada, ornada de brilhos e regozijo –, é possível
experimentar o tabu e o excesso que não podemos vivenciar na vida habitual. Hoje,
notamos diferenças enormes com relação à sua origem, pois o evento, outrora dotado de
“antiestrutura” (conforme Turner avalia a liberação com relação à vida ordinária), é muitas
vezes entretenimento e comércio, não integrando a comunidade em um rito, mas
promovendo grandes espetáculos para serem vistos por plateias, decompondo um todo em
espetáculo e espectador. Claro que algo pertencente ao carnaval, que o legitimava como
um autêntico ritual, foi mantido, mas por conta dos poderosos meios de comunicação, algo
acabou por ser deteriorado da sua resistência originária. Na arte, vemos esse aspecto mais
instintivo nos happenings, os quais ajudaram a performance na sua afirmação e
diferenciação disciplinar.
Como forma de “ritual estético”, o gênero artístico da performance é, de certa
forma, recente (comparado a outras expressões de arte), conforme foi anteriormente
mencionado. Talvez a origem, não só para essa performance do século XX, mas para a arte
em geral – que foi feita a partir desse período –, deva-se ao pensamento de Nietzsche, que
funciona como uma mola propulsora para a chamada pós-modernidade e para aquilo que
Lyotard, pensador de vertente nietzschiana, denominou por pluralismo artístico.
Nietzsche se afirma como questionador dos valores morais da tradição, mais
especificamente, do modelo de moral de matriz cristã (uma moral de escravos que
permanecem escravos), onde “(...) não há metafísica que não deprecie a existência em
nome de um mundo suprassensível (...)31. Com isso, alguns “rituais religiosos” foram
postos em xeque por Nietzsche e possibilitaram novas formas de “rituais estéticos”, os
30
Cf. SCHECHNER, Richard. Performance Studies, 61.
31
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia, p. 55.
24
quais são muitas vezes apoiados justamente numa afirmação niilista da ritualidade, como
no caso da performance Re-banho que desenvolvi dentro desta pesquisa, por exemplo.
Em Nietzsche está timbrada a “vontade de poder”, ou seja, o que está em evidência
é o humano não mais tangenciado à proibição, ao impedimento e ao limite, mas sim ao
excesso, à hybris, ao descomedimento do excesso dionisíaco, um excesso criador. É uma
filosofia que afirma a força de vontade em detrimento de um modelo de mundo que vivia
de um maquinal extermínio da força criativa do sujeito. Modelo este que esteve, durante
toda a história até o advento da modernidade, vinculado aos impedimentos impostos pela
religião, que supostamente libera o sujeito para o deleite apenas nos dias de carnaval.
Através do impulso niilista, que acusa toda a cultura de raiz metafísica e o “ideal
ascético” que caracteriza a moral ocidental de raiz cristã, Nietzsche afirma a vida como tal,
sem estar subordinado a nenhum sentimento que traduza culpabilidade ou menoridade32. A
arte para Nietzsche é aparência enquanto tal, sem que, por isso, sua realidade seja
diminuída e, num sentido contrário a um ideal ascético, Nietzsche afirma um caráter plural
da experiência de mundo, o que, ao menos nas artes, virá a ser demonstrado na explosão
das diversas linguagens artísticas, dentre elas atualmente também a arte da performance e
os seus inúmeros desdobramentos, como a videoperformance, a fotoperformance, entre
outras.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche designa uma conhecida oposição entre
Dioniso e Apolo, sendo que um representa a liberdade, a pulsão e outro a castração. O
dionisíaco é a expressão do excesso33 que desfaz uma ordem e uma moral apresentadas
como opressivas.
O elemento apolíneo configura a razão, a perfeição, a ordem, a harmonia, sendo
assim, a linguagem verbal e a representação figurativa se incluem no que diz respeito a
Apolo. Para Nietzsche, o logos teria transportado um elemento de repressão e ocultação em
32
Essa afirmação da vida em detrimento da castração serviu de base para a elaboração da primeira, dentre as
nove performances elaboradas nesta pesquisa.
33
Essa noção nietzschiana sobre o “excesso” foi exatamente o que me motivou a dar o nome de Companhia
Excessos ao meu grupo de pesquisa e produção artística, no qual desenvolvo, junto de Paulo Aureliano da
Mata, trabalhos apoiados na noção plural de representação, que pode estar apoiada em diferentes
suportes.
25
nome de um ideal de verdade, distanciando o humano de uma autêntica experiência do
mundo.
Numa visão nietzschiana como esta, a realidade desponta do excesso, que somente
a música e Dioniso podem permitir: “(...) comparada à música, toda expressão verbal
possui qualquer coisa de indecente; o verbo atrasa e embrutece; o verbo despersonaliza: o
verbo banaliza aquilo que é raro”.34
A música, aqui, representa todo e qualquer elemento que abandona a linguagem
racional e “embrutecedora” de ordem apolínea, a qual, analisada sob uma ótica teatral em
recusa ao “textocentrismo”, vai ao encontro do ritual que antecede as normas estabelecidas
posteriormente à expressão cênica teatral. A performance, que é antes de tudo uma
expressão corporal-presencial, teve seu desenvolvimento, como manifesto artístico
independente, no decorrer do século XX, momento em que começa a ocorrer uma forte
rejeição ao texto como elemento dominante, o qual acabou por se tornar incontestável para
as artes cênicas durante séculos:
34
NIETZSCHE, Friedrich. Apud. GOMES, Helder. Friedrich Nietzsche: A Arte como Modelo da Relação
entre o Homem e o Real, p. 13.
35
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático, p. 76.
36
GOMES, Helder. Friedrich Nietzsche: A Arte como Modelo da Relação entre o Homem e o Real, p. 13.
26
verbal em Nietzsche, pois este pensador é “um filósofo que pensa através de conceitos”37 e
é um “poeta que produz arte através de palavras”38.
O Nascimento da Tragédia se trata, ainda, de um ajuste teórico para a ópera de
Wagner em particular, sendo um texto que afirma duas ideias que caminham de forma
contrária: “a experiência da realidade através da representação e a experiência da realidade
através de algo que, sendo embora de ordem cultural, não é representação”.39
Nietzsche comprova que ao lado da linha de pensamento Sócrates/Platão havia uma
manifestação colateral que permitia a liberdade criadora (não constrangida às coações de
um logos limitativo); existia Dioniso ao lado de Apolo. Com isso, Nietzsche declara um
retorno a uma espécie de sacralidade pré-religiosa, em que a arte podia funcionar como um
sustentáculo metafísico do próprio real:
37
Ibidem, p. 5.
38
Idem.
39
Ibidem, p. 14.
40
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia, p. 41.
27
Certamente, o espaço temporal a que seria necessário prestar atenção –
ainda que representando uma parte mínima e, praticamente a última, da
formação do universo – continua a ser uma zona muito profunda e nada
fácil de recolher e de interpretar coerentemente: fala-se de um milhão de
anos, ou mesmo mais, até hoje, como sendo o tempo que os estudiosos
atribuem ao aparecimento do gênero humano e, consequentemente, ao
aparecimento das primeiras manifestações do espírito religioso.41
O autor ainda explica que a performance possui uma conexão ontológica com um
movimento maior, uma forma distinta de olhar a arte, a live art, havendo aí uma maneira
peculiar de voltar o olhar para o artístico: é estabelecida uma aproximação direta da arte
com a vida, levando em conta a espontaneidade, o natural em detrimento do que é
previamente preparado, testado e ensaiado. Tirando a arte de sua autosuficiência estética, a
live art, arte ao vivo (arte viva), não deixa de ser um movimento de ruptura, o qual emerge
como uma maneira de extrair o caráter sagrado da arte, porém como um resgate da
característica ritualística dela através de um movimento que procura removê-la do
ambiente convencional (teatros, museus e galerias) para estabelecer, para a arte, uma
posição estrategicamente mais viva, transformadora e implicada no real.
Cohen afirma que a live art acontece assim:
41
ADRIANI, Maurilio. História das Religiões, p. 12.
42
COHEN, Renato. A Performance como Linguagem, p. 38.
28
(...) de um lado, se tira a arte de uma posição sacra, inatingível, vai se
buscar, de outro, a ritualização dos atos comuns da vida: dormir, comer,
movimentar-se, beber um copo de água (como numa performance de
George Brecht do Fluxus) passam a ser encarados como atos rituais e
artísticos.43
Pensando sobre a arte da performance, John Cage disse, certa vez, em entrevista
feita por Richard Schechner e Michael Kirby, que “poderia perceber a vida cotidiana como
teatro”44. Levando em conta esta forma de encarar a arte, Laban, Isadora Duncan e Merce
Cunninghan, por exemplo, desatam as amarras que mantinham a dança sob uma estrutura
mais rígida, incluindo, ao seu repertório, ocorrências do próprio dia-a-dia, como caminhar,
parar, sentar e mudar de roupa, por exemplo: “Personagens diárias (e não míticas), como
guardas, operários, mulheres gordas, etc., passam a fazer parte das coreografias (...)” 45.
Pina Bausch, por exemplo, viria a incorporar, nas últimas décadas do século XX,
representações similares a esses tipos de personagens em cena na sua conhecida “dança-
teatro”.
Na música, alguns artistas, durante o futurismo na Europa, deslocaram elementos
cotidianos para a arte, dando origem às músicas feitas de ruídos46, que John Cage também
se apoiou para desenvolver, explorando o silêncio na arte musical. A obra 4’33” provou
que não existe a possibilidade da ausência de som em nenhum ambiente; sempre haverá
alguma espécie de ruído/música em qualquer situação e em qualquer lugar que estivermos.
Tal como Duchamp, que deslocou objetos cotidianos para o espaço do museu,
atribuindo-lhes valor artístico, na arte da performance, desde o ato mais ordinário até o
mais extraordinário da vida cotidiana foram inseridos nos trabalhos artísticos e expostos
como arte.
Na performance, o principal pivô é o corpo do artista, que se apresenta de forma
crua e imediata, diferentemente dos atores de teatro, que estão protegidos por uma
43
Idem.
44
CAGE, John. An Interview with John Cage. Entrevista feita por Michael Kirby e Richard Schechner. In:
SANDFORD, Mariellen R. (ed.) Figures Happenings and others acts., p. 43. Livre tradução a partir do
inglês.
45
COHEN, Renato. A Performance como Linguagem, p. 39.
46
Em 1913, Russolo, em Roma, escreveu seu manifesto A Arte dos Ruídos.
29
personagem, uma fábula, um modo de interpretar. Na arte da performance podemos ver o
próprio artista a executar algo e não uma personagem a representar uma cena.
Nas artes performativas, a quebra mais radical com as convenções se dá
efetivamente no happening, expressão que desfaz de modo mais absoluto a distinção entre
palco e plateia, além das definições aristotélicas de estruturação de cena. É valido frisar
que a espontaneidade é explorada em outros gêneros teatrais, tais como o teatro do absurdo
e o teatro expressionista, mas é no happening que este aspecto desponta com maior
veemência. “O ‘happening’ responde à intenção de apropriar diretamente a vida através de
uma ação”47.
Para o autor Renato Cohen, as principais diferenças do ator com relação ao
performer é que o primeiro, ao nível da sustentação, está mais envolvido com a
representação, enquanto que o segundo está apoiado na live art, sendo que, diferentemente
do ator-intérprete, o performer expõe sua presença como pessoa e não como personagem,
embora haja sim um distanciamento do artista com relação a figura que ele expõe como
“atuante”48. Também, o “fio condutor”49 do ator é a narração e do performer se ampara na
colagem/ritual. Outras diferenças apontadas são com relação à ênfase marcada pela
dramaturgia e pela crítica social-política por parte do ator, já do performer a ênfase é
plástica, terapêutica e demarcada pelo discurso poético. Nesse ponto, não há como
concordar com o Cohen, pois muitas vezes o performer apresenta-se dotado de mais metas
politizadas na sua abordagem discursiva do que um ator.
Um acostamento do happening, live art e, portanto, da arte da performance, está
claramente reconhecido: o ritual. E numa pré-história mais recente do gênero, entre outros
indícios, podemos observar a teatralidade do Futurismo, a descontextualização do
Dadaísmo e o gesto da action painting, os quais serão mencionados, com maior detalhe, no
item a seguir.50
47
FIZ, Simón Marchán. Del arte obtejual al arte de concepto: epílogo sobre la sensibilidad ‘postmoderna’,
p. 193. Tradução livre a partir do espanhol.
48
O conceito de “atuante” mencionado por Cohen com base no autor Jacó Guinsburg será melhor
mencionado no subitem a seguir, em Emergência da arte da performance.
49
Cf. COHEN, Renato. A Performance como Linguagem, p. 135.
50
Os três indícios mencionados como origem do gênero da arte da performance são apontados pelo autor
Renato de Fusco em História da Arte Contemporânea, p. 356.
30
2. Injunções Performativas
51
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 13.
52
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 3.
53
SAINT-POINT, Valentine de. Manifesto da Mulher Futurista, p. 27.
54
SAINT-POINT, Valentine de. “Manifesto Futurista da Luxúria”. In: Manifesto da Mulher Futurista, p. 36.
31
ainda, que seria preciso “fazer da luxúria uma obra de arte”55. Além da igualdade entre os
gêneros, Saint-Point assegura uma espécie de sublimação do corpo e do desejo, não
reprimindo o corpo (masculino/feminino) em função de uma crença ou porque este segue
as modas. Para ela, “a moral cristã, só ela, sucedendo à moral pagã, foi fatalmente levada a
considerar a luxúria como uma fraqueza”56, sendo isso, então, uma falsa devoção, que fez
da luxúria um pecado:
Num ser saudável e jovem, de cada vez que a luxúria está em oposição
com a sentimentalidade, é a luxúria que o arrebata. A sentimentalidade
segue as modas, a luxúria é eterna. A luxúria triunfa porque é a exaltação
jovial que empurra o ser para além de si mesmo.57
55
Ibidem, p. 38.
56
Ibidem, p.37.
57
Ibidem, p. 39.
58
MOORE, Nancy G. “Transformative Geometries: Interpreting Saint-Point’s Figure Idéiste” In: SINA,
Adrien (curador). Feminine Futures – Valentine de Saint-Point – Performance, Danse, Guerre, Politique
et Érotisme, p. 41. Tradução livre a partir do inglês.
32
um manifesto sobre “o prazer de ser vaiado”, no qual afirma o “horror do sucesso
imediato”59:
Junto com os pintores Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Gino
Severini e Giacomo Balla, Marinetti publicou ainda o Manifesto Técnico da Pintura
Futurista (1910), base que os jovens futuristas usariam para traduzir ideias sobre
“espontaneidade e energia”61.
Os artistas futuristas voltaram-se para a arte da performance como uma maneira de
obrigar o público a tomar ciência das suas ideias. Aliás, a arte da performance – ainda que
neste instante não estivesse no formato como hoje conhecemos – estabelece uma relação
bastante peculiar no que diz respeito à obra/espectador, pois parece promover uma linha
menos delimitada de separação entre estes dois polos. Por isso, Marinetti apreciava o
chamado “teatro das variedades”, porque, para ele, este estilo de teatro não possuía mestres
ou dogmas e era um modelo ideal para as performances futuristas, já que não havia um
roteiro ou texto a ser seguido e isso obrigava o público a participar, libertando-se do lugar
de voyeur, ou seja, de mero observador.
As performances obviamente toavam como eventos peculiares para a época. Em
um espetáculo realizado em Roma, Fogo de Artifício, de Balla – inspirado em Fogo de
Artifício de Stravinski –, quarenta e nove cenários diferentes, acompanhados de variados
efeitos de luzes, garantiam a obra, a qual não incluía nenhum corpo humano em cena. Esse
59
MARINETTI, F.T. “The Pleasure of Beeing Booed”. POGGI, Christine; RAINEY, Lawrence; WITTMAN,
Laura (editores) In: Futurism: An Anthology, p. 96. Livre tradução a partir do inglês.
60
Idem.
61
BALLA, Giacomo; BOCCIONI, Umberto; CARRÀ, Carlo; RUSSOLO, Luigi; SEVERINI, Gino;
“Futurist Painting Technical Manifesto”. In: POGGI, Christine; RAINEY, Lawrence; WITTMAN, Laura
(editores). In: Futurism: An Anthology, p. 66. Livre tradução a partir do inglês.
33
espetáculo era composto somente por luz e cenário. Uma majestosa emissão de cenários e
desenhos de luz que despontavam e submergiam para apenas uma única apresentação de
somente cinco minutos. O próprio encenador conduzia a “coreografia” das luzes através de
um teclado.
62
62
Espetáculo Feet, de Filippo Tommaso Marinetti. Imagem obtida em:
http://www.princeton.edu/~sjgershm/misc/Feet. (consulta realizada em 10/05/2011).
63
Cf. MARINETTI, Filippo Tommaso Marinetti. Feet (1915). Informação obtida na própria rubrica da peça.
http://www.princeton.edu/~sjgershm/misc/Feet (consulta realizada em 10/05/2011).
34
até mesmo um objeto e o texto deve ser entendido no seu sentido semiológico e não
literal64.
Segundo Goldberg, “os futuristas acreditavam que uma obra só teria valor na
medida em que fosse improvisada (...) e não exaustivamente preparada” 65. Neste aspecto,
em Luz, de Francesco Cangiullo, em que a performance não teve o menor preparo senão
uma elaboração de um roteiro, a ação tem início com o palco e a plateia em escuridão
absoluta durante “três NEGROS minutos”66; então o que havia sido planejado para a ação
era que houvesse atores espalhados na plateia para despertar a obsessão pela entrada de
luzes, ocasionando a desordem e o desespero geral até que, por fim, todo espaço fosse
iluminado de forma completamente exagerada. O espetáculo foi, então, transferido do
palco para a plateia, fazendo existir somente atuantes e não espectadores, sendo esta uma
reminiscência de Adolphe Appia e, em certa medida, de Antonin Artaud. Em Relâche
(1924), de Francis Picabia, também há um brutal conjunto de refletores que emitem uma
intensa luminosidade contra a plateia, ou seja, “o cenário de Relâche se lança diretamente
sobre a plateia – absorvendo-a, concentrando-se nela – ao iluminá-la”67. Ou seja, “a plateia
é cegada mesmo quando é iluminada, e essa função dupla demonstra que uma vez que o
observador é incorporado fisicamente ao espetáculo, sua visão ofuscada não é mais capaz
de supervisionar os acontecimentos”68.
Pensando nessa ideia de um efeito de luz direcionada à plateia como forma de
integrá-la na obra, dentre outros conceitos, criei espelhos que projetavam luzes coloridas
contra os espectadores, as mesmas que formavam sombras de múltiplas cores, as quais
eram apreciadas como parte do espetáculo Dismorfofobia (2012), performance que integra
a parte correspondente à produção prática dessa tese-projeto (Capítulo III).
Na Rússia, em São Petersburgo, dentro do construtivismo, além dos encontros no
Café Cachorro Sem Dono, situado na praça Mikhailovskaya, os performers partiam para as
ruas tomados por trajes singulares como forma de “marchar” contra uma velha ordem,
adornando seus corpos como forma de manifesto artístico. Os performers apresentavam-se,
64
Cf. COHEN, Renato. A Performance como Linguagem, p. 28.
65
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 20.
66
Ibidem, p. 19.
67
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna, p. 255.
68
Idem.
35
portanto, ao grande público, defendendo, conforme o Manifesto da Moda Feminina
Futurista (1920), que “a moda é uma arte como arquitetura e música”69, abolindo “a
mediocridade da moderação”70 das suas vestimentas, quando caminhavam pelas ruas com
seus trajes excêntricos, rostos pintados, “rabanetes ou colheres nas casas dos botões.”71
Talvez esteja aqui uma das bases do que iria desaguar nas criações de Elsa Schiaparelli
com Salvador Dalí na década de 1930, provando que arte e Moda podem caminhar de
forma intrínseca e em relação de contiguidade criativa.
Vemos, em algumas atitudes artísticas do início do século XX, inclusive, um sinal
do que Salvador Dalí propunha como sua apresentação pública quando passeava com seu
tamandoá-bandeira pelas ruas de Paris no fim dos anos de 1960. Essa auto-exposição de
Dalí em meio ao contexto urbano parisiense retoma o que os artistas russos faziam antes
em São Petersburgo dentro do construtivismo. Entre os artistas desse período, destaco
David Burliuk e Vladimir Maiakovski.
David Burliuk levava rotineiramente consigo um par de halteres de quase dez
quilos. Isso implicava diretamente numa interferência postural através do peso excessivo
encarado como um indumento e, provocava ainda, a modificação do seu corpo, pois a
função dos pesos de desenvolver os músculos corporais acabava por ser, inclusive,
desempenhada.
Outro exemplo deste período é Vladimir Maiakovski, artista que usava diariamente
um traje de zangão e assumia para a sua própria vida a fantasia, o uso do figurino e não da
roupa convencional. Essas eram atitudes que libertavam as convenções da vida e da arte,
fazendo valer a afirmação de Marinetti quando, em 1920, disse: “graças a nós, virá o
tempo em que a vida já não será mera questão de pão e trabalho ou uma trajetória ociosa,
mas quando a vida será uma obra de arte.”72
69
VOLT. “Futurist Manifesto of Woman’s Fashion”. In: POGGI, Christine; RAINEY, Lawrence;
WITTMAN, Laura (editores). Futurism: An Anthology, p. 253. Livre tradução a partir do inglês.
70
BALLA, Giacomo. “The Antineutral Suit: Futurist Manifesto”. In: POGGI, Christine; RAINEY, Lawrence;
WITTMAN, Laura (editores). In: Futurism: An Anthology, p. 253. Livre tradução a partir do inglês.
71
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 22.
72
MARINETTI, Filippo T. “Beyond Communism”. In: POGGI, Christine; RAINEY, Lawrence; WITTMAN,
Laura (editores). In: Futurism: An Anthology, p. 264. Livre tradução a partir do inglês.
36
73
Essa declaração, a qual fez certo sentido também para Duchamp, que cortou os
cabelos sob a finalidade de desenhar uma estrela na parte traseira da cabeça, ostentando
seu corpo como suporte artístico, “gesto que pode ser visto como um vislumbre da arte de
performance, ou pelo menos, da body art”74 (e por que não da fotoperformance?), hoje,
pode nos fazer compreender melhor as atitudes de pessoas como Rick Genest, conhecido
por Zombie Boy, um jovem que, através de uma body modification, vinculou a sua
investigação estética pessoal de forma obsessiva sobre a sua própria pele, acarretando
numa irremovível imagem de esqueleto realizada em si.
Aqui, cabe mencionar, ao menos de forma sucinta, que a “tonsura” referida na obra
de Duchamp dialoga com a cerimônia religiosa em que o bispo dá o corte no cabelo do
ordinando ao conferir-lhe o primeiro grau de ordem no clero. A tonsura, também chamada
de “coroa de cristo”, surgiu no meio religioso no século IV e foi incorporada como um
sinal distintivo no século V, sendo essa noção apresentada de forma bastante consciente na
releitura desta obra feita pelo chileno Carlos Leppe nos anos 70.
Para muitos críticos das artes do corpo, conforme observa Marvin Carlson,
Duchamp “foi um dos primeiros artistas do corpo a ditar Moda”75. A esse exemplo, Erik
Sprague, conhecido como “homem lagarto”, abdicou de sua silhueta humana para se
assemelhar a este animal e, com a língua bifurcada e o corpo coberto de escamas
73
Da esquerda para a direita: Em Tonsure (1919), Duchamp é fotografado por Man Ray. Imagem obtida em Il
corpo come linguaggio (la “body-art” e storie simili), de Lea Vergine; Ensaio realizado para o estilista
Thierry Mugler. Vogue Japão, 2011; Erik Sprague, o “homem lagarto”. Imagem obtida em
http://www.thelizardman.com/. Consulta realizada em 07 de Janeiro de 2012.
74
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 19.
75
Cf. CARLSON, Marvin. Performance: Uma Introdução Crítica, p. 117.
37
(tatuagem), prometeu, em 2011, que implantaria um rabo 76 . Em suas apresentações,
conforme faria o animal, Sprague come moscas e promove seus espetáculos carregados de
ostentação da sua dor para serem contemplados pelos amantes do freak show,
relacionando-se, em certa medida, com o performer Oleg Kulik, que assume o
comportamento animal nas suas “monstruosas e sedutoras ações”77 (exemplo: quando se
declara um cão, ele ataca, morde, late, etc.), embora não assuma a forma desse animal
sobre si levando em conta que não expõe o seu corpo como quadrúpede.
Duchamp convertia-se em suporte do seu manifesto de arte, ostentava-se como sua
própria escultura quando imprimiu sobre si a composição da personagem Rrose Sélavy,
fotografada por Man Ray. Conforme Dietmar Elger observa, essa atitude de Duchamp é
um “enigmático comentário sobre toda a sua obra, repleta de inúmeros motivos sexuais”78.
Como forma de fazermos tal comprovação, “se dermos ao nome ‘Rrose Sélavy’ a sua
pronúncia francesa, também podemos interpretar como ‘Eros, c’est la vie’ (Eros é a
vida)”79, o que confirma o caráter erótico presente nas suas figurações. Aliás, Duchamp
usava muitos trocadilhos nos títulos dos seus trabalhos e, a exemplo disso, vale
destacarmos a sua versão para a reprodução de Monalisa (c. 1503 – 1506), de Leonardo da
Vinci, sobre a qual fez um bigode e barba com lápis, acrescentando a seguinte sequência
de letras abaixo da representação: “L.H.O.O.Q”, que em francês pode ser lido como “Elle a
chaud au cul”, algo como “Ela tem um cu excitante”.80
Como Rrose Sélavy, ele contornou as implicações sexuais de gênero do dândi,
igualando a masculinidade aristocrática ao domínio do feminino81, analisando a partir da
sua própria identidade sexual, “a incerteza de uma posição ambígua, como podemos ver
em muitas das suas obras artísticas”82. Inicialmente, em 1920, a proposta de Duchamp era
simplesmente mudar de identidade e, para isso, pensou em adotar um nome judeu,
mudando assim a sua religião, já que era católico. Depois, pensou em mudar
76
Informação obtida no site oficial de Erik Sprague: http://www.thelizardman.com/. Consulta realizada em
07 de Janeiro de 2012.
77
BREDIKHINA, Mila. “The Same. Enter Skotinin, Man on All Fours”. In: Oleg Kulik: Art Animal, p. 10.
Tradução livre a partir do inglês.
78
ELGER, Dietmar. Dadaísmo. p. 84.
79
Idem.
80
Cf. Ibidem, 82.
81
Cf. JONES, Amelia. Body Art – Performing the Subject, p. 69. Tradução livre a partir do inglês.
82
ELGER, Dietmar. Dadaísmo. p. 84.
38
ficcionalmente de sexo, o que era mais radical, surgindo então a personagem Rrose Sélavy
(com a letra “r” repetida mesmo). Duchamp exibiu na Galeria Wildenstein, durante uma
exposição surrealista, as roupas da sua personagem sobre um manequim em 1938 como
objeto de arte. O indumento, depois da comunhão com o seu corpo, transformou-se em
objeto autônomo de arte. O próprio Duchamp declara que, nesse objeto, encontrava-se a
própria Rrose Sélavy.83
Certamente, com base em Duchamp, Andy Warhol, fotografado por Christopher
Makos, concebe sua série Altered Image (1981-1982), vestindo-se com peruca, jeans,
camisa e gravata em congruência com sua face maquiada, mesclando elementos
masculinos e femininos em um só corpo. Também, Ulay em suas séries de auto-Polaroids
intituladas por Teasing (1972), Transformation (1975), S’he (1973) e Hermaphrodite
(1973), ou ainda, do acionismo vienense, Transvestite Action (1967) de Günter Brus, são
obras que exploram o travestismo como obra de arte.
84
83
Cf. DUCHAMP, Marcel. Engenheiro do Tempo Perdido, p. 99.
84
Da esquerda para a direita: Marcel Duchamp como Rrose Sélavy, Flávio de Carvalho e Andy Warhol.
Imagens obtidas respectivamente em:
http://bravonline.abril.com.br/materia/flavio-carvalho-arte-anedota (imagem obtida em 07/07/2011);
http://www.bbc.co.uk/news/entertainment-arts-13960718 (imagem obtida em 07/07/2011);
e em Il corpo come linguaggio (la “body-art” e storie simili), de Lea Vergine.
39
Segundo Flávio de Carvalho, essa indumentária surge de um prognóstico feito onze
anos antes da concretização do traje, com o qual buscava “projetar um trajo adequado ao
trópico”85, mas também demonstrar “a existência de um nivelamento entre o homem e a
mulher pela indumentária”86, correspondendo, na época, a uma antecipação sobre “algo
que nós presenciaríamos em tempos futuros”87.
Vale lembrar que antes dessa sua Experiência nº 3, de 1956, Flávio de Carvalho
realizou a sua Experiência nº 2, em 1931, consistindo na sua travessia, em sentido
contrário, com seu boné de veludo verde, em uma procissão de Corpus Christi na cidade
de São Paulo. Declarou Flávio de Carvalho sobre sua ação:
85
CARVALHO, Flávio. A Moda e o Novo Homem, p. 296
86
Idem.
87
Idem.
88
CARVALHO, Flávio de. Experiência n.2: Realizada sobre uma Procissão de Corpus Christi: Uma
Possível Teoria e uma Experiência, p. 21.
89
ELGER, Dietmar. Dadaísmo. p. 9.
40
Kurt Schwitters, “tudo o que um artista cospe é arte”90. O público via de fato o artista a
executar algo, onde a representação não permitia que o espectador se envolvesse e
“acreditasse” numa realidade posta em cena, mas sim na realidade performativa do próprio
fazer da ação. Wedekind não exibia um personagem, expunha-se enquanto artista na sua
radicalidade nada interpretativa quando executava suas ações vistas como “libertinas”91.
Naturalmente, por conta das suas propostas artísticas pouco convencionais, sempre foi
visto como um artista marginal.
Emergiam na arte do início do Século XX, ideias dadaístas e surrealistas de acaso e
de ações não intencionais, que influenciavam diretamente a arte da performance. Em meio
aos movimentos surrealistas, surgem as chamadas “peças para ler”, com um universo tão
onírico, que tornava o texto escrito praticamente impossível de ser transposto à cena, onde
a imaginação e a loucura não eram reprimidas: os loucos, para Breton, eram “pessoas de
escrupulosa honestidade”92. “Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a
meio-pau a bandeira da imaginação” 93 , registrou André Breton no Manifesto do
Surrealismo de 1929.
Antonin Artaud, artista francês, prontamente localizou um jeito de sair desse
impasse do texto tido por “imontável” e fundou com Roger Vitrac, o teatro Alfred Jarry,
em 1927, em homenagem a esse inovador, com o objetivo de restabelecer a liberdade total
ao teatro, algo que há na música, na poesia e na pintura e da qual o teatro, segundo ele,
ficou privado até esse momento. Artaud dizia que “no ponto de desgaste a que chegou
nossa sensibilidade, certamente precisamos, antes de mais nada, de um teatro que nos
desperte. Precisaríamos de nervos e coração”94.
90
Ibidem, p. 82.
91
Segundo R. Goldberg, pelos conservadores, Frank Wedekind era visto como uma “ameaça a moral
pública”.
92
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Disponível em:
http://www.ufscar.br/~cec/arquivos/referencias/Manifesto%20do%20Surrealismo%20%20Andr%20Breto
n.htm (consulta realizada em 05 de Junho de 2010).
93
Idem.
94
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo, p. 95.
41
segundo os mesmos ritos, sempre idênticos a si próprios, não pode
conquistar nossa adesão. Temos necessidade de que o espetáculo ao qual
assistimos seja único, que ele nos dê a impressão de ser tão imprevisto e
tão incapaz de se repetir quanto qualquer ato da vida, qualquer
acontecimento trazido pelas circunstâncias. 95
42
Lammzerreiβaktionen, que formaram o núcleo da maioria das suas mais de
oitenta performances dos últimos trinta anos.98
43
teriam porventura a mesma densidade. Body art, festas Raves, eventos com exibições de
suspensões, modern primitives, entre outras ostentações da dor (forma de relação com a
catarse presente nos rituais pré-teatrais) são imersões que relatam uma cultura que exibe a
aflição como espetáculo ritualizado, dotado de uma concepção passional e convulsiva de
vida, remontando os ideais de Artaud, que foi o germe dos happenings e das criações
coletivas de Grotowski e de Robert Wilson.
Outras ideias, que se fazem ainda inexauríveis para a arte atual e para a própria
temática proposta nesta tese, vieram da escola da Bauhaus e dos conhecimentos espaciais
problematizados nas teorias e práticas de Oskar Schlemmer. Esse artista desenvolveu uma
teoria mais específica da arte da performance, estabelecida na forma da clássica oposição
nietzschiana entre Apolo e Dioniso. Dos ensinamentos e das exercitações propostas por
Schlemmer, advém o aspecto mais marcante da Bauhaus, sendo a síntese entre a arte e a
tecnologia para atingir as formas “puras”. Para este fim, a performance foi o recurso mais
eficaz, pois acoplava os recursos mecânicos e a concepção pictórica desenvolvida, as quais
refletiam, ao mesmo tempo, a sensibilidade artística e a tecnologia da Bauhaus.
Outro aspecto notável neste período é a modificação corporal ou a conversão do
corpo em uma espécie de corpo-máquina, implicações figurativas que já fazem jus ao
pensamento sobre o “extremo contemporâneo” do antropólogo francês David Le Breton,
que, com essa expressão, procura refletir sobre o sujeito contemporâneo e sua radical
disposição para alterar o seu próprio corpo, retirando-o da condição plena para uma
situação mutável e de disponibilidade tecnológica.
O figurino schlemmeriano era constituído como um dos principais elementos das
concepções das performances da Bauhaus, o qual estabelecia a compressão entre o corpo e
o seu espaço de movimentação. Schlemmer rompeu com as tendências inicialmente
expressionistas das oficinas de teatro da Bauhaus para arquitetar coerentemente com uma
geometrização abstracionista através da busca dos elementos do movimento e do espaço.
Relação entre “o Humano e a Máquina” ocupa o mesmo lugar de relevo tanto nas
análises da Bauhaus sobre a arte e tecnologia, como nas abordagens dos performers ligados
ao construtivismo russo ou ao futurismo italiano. Os figurinos da oficina de teatro eram
desenhados de modo que a figura humana se metamorfoseasse num objeto mecânico,
44
sendo esta uma redefinição da silhueta humana bastante trabalhada por um performer de
uma geração bem posterior chamado Stelarc, o qual, dentro das suas propostas
performáticas realizadas desde as últimas décadas do século XX até hoje, “retira o
potencial do humano e apresenta o corpo como obsoleto, como uma estrutura
ultrapassada.”100 O artista procura expandir, por meio da tecnologia e da robótica, “as
capacidades sensoriais, operacionais, funcionais, perceptivas e motoras do ser humano”101.
102
Le Breton avalia que para Stelarc, “a era darwiniana está se extinguindo”104 quando
assegura que “o corpo antigo tornou-se anacrônico”105. De certa forma, tais ideias sobre
100
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo Como Suporte da Arte, p. 95.
101
Ibidem, p. 96.
102
Da esquerda para a direita: Oskar Schlemmer. Dança das Ripas, 1927. Ao fazer sua performance na semi-
obscuridade, a figura delineava a divisão geométrica do espaço e enfatizava a visão em perspectiva para o
público. Exoskeleton, de Stelarc. Imagem obtida no site oficial do artista em 18 de Outubro de 2010.
103
LE BRETON. David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 52.
104
Cf. LE BRETON. David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 52.
105
Idem.
45
esse corpo transformado em máquina advém, ao menos em investigação formal, da extinta
Escola da Bauhaus.
O período correspondente entre o fechamento da Escola da Bauhaus (1923) pelos
nazistas e o surgimento da arte conceitual das décadas de 1960/70 acabou por fazer
emergir grande número de ações que marcam a trajetória da performance principalmente
nos EUA. Claro, ocorriam sim experimentos que marcam esse andamento também na
Europa e em outros territórios, mas com menor intensidade (ao menos é o que a história
apresenta), já que muitos se transferiram para a América do Norte nesse momento da
história por conta da Segunda Guerra Mundial.
O importante de mencionarmos que em 1933, nos EUA, vinte e dois estudantes e
nove membros do corpo docente da Bauhaus ocuparam um grande edifício de colunas
brancas do qual avistavam a cidade de Black Mountain, é que foi a partir dessa escola
(Black Mountain College) que surgiu grande parte dos artistas responsáveis pela origem da
performance tal qual conhecemos hoje. Xanti Schawinsky entrou para o Black Mountain
College em 1936 e logo esboçou um programa de estudos cênicos que, em grande parte,
relacionava-se com as experiências anteriores da Bauhaus, sendo, então, uma extensão
desses estudos. O curso não pretendia “oferecer formação em nenhum segmento específico
do teatro contemporâneo”106; propunha um estudo geral de fenômenos fundamentais, tais
como espaço, forma, cor, luz, som, movimento, música, tempo, etc. Muitos
desmantelavam, assim, com as formas rígidas da composição figurativa das artes visuais e
da verbal das artes cênicas, garantindo o desenvolvimento da arte da performance a partir
disso.
John Cage, que ministrou aulas no Black Mountain College, exprime, em 1937,
suas ideias no manifesto intitulado O Futuro da Música, onde faz uso de sons de veículos a
passar, da chuva, de estações de rádio, etc. Em 1952, surge sua obra silenciosa 4’33’’, a
qual comprova que não existe o silêncio. O primeiro intérprete da obra, David Tudor,
sentava-se ao piano durante os quatro minutos e trinta e três segundos, agitando
silenciosamente os braços por três vezes. Nessa peça favorita de Cage, os espectadores
deveriam compreender que toda ausência de música era justamente a música; do suposto
106
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 111.
46
silêncio, emergia o som dos ruídos. Tudo e todos compunham a obra, não havendo
fronteiras entre o espetáculo e espectador; a música era coletivamente composta nesse
sentido. Diferentemente dos futuristas que eram vaiados e despertavam a ira da plateia,
Cage foi bem recebido pelos espectadores americanos, beneficiando assim da sua maior
capacidade para comunicar no espaço midiático.
Influenciado pelo Zen-Budismo, Cage pensava que a arte não deveria ser diferente
da vida, mas sim uma ação dentro da própria vida, levando em conta a casualidade e o
acidental. Com isso, as ideias dadaístas e surrealistas de acaso e ações não intencionais
foram naturalmente transpostas para suas obras. Alguns pintores, os quais acabaram por
ultrapassar os limites da tela, entre eles, Allan Kaprow, Robert Rauschenberg e Jackson
Pollock, bem como os artistas do grupo Fluxus foram influenciados pelas aulas de Cage e
pelos relatos de eventos ocorridos no Black Mountain College. Cage propunha que o
artista pudesse desfocar a mente do espectador, ou seja, “o artista não cria uma obra
separada e fechada, mas, sim, algo que torna o espectador mais aberto, mais consciente de
si mesmo e de seu ambiente”107. Essas ideias propiciaram, decisivamente, o surgimento do
happening, que, assim como as outras ações desenvolvidas também no segundo pós-guerra
(aktion, Fluxus, demonstration, direct art, destruction art, event art, body art, etc.)
cumpre uma primeira designação antes da nomenclatura performance art ou live art.108
“Foi o compositor John Cage quem abriu esta porta estética em particular”109.
Em 1959, em Nova York, Kaprow, que foi discípulo de Cage, possibilita que um
grupo de pessoas assista ao 18 Happenings em 6 Partes. No convite, havia a informação de
que o público faria parte integrante dos happenings e que poderia vivenciá-lo
simultaneamente. Além disso, continha a informação de que o espectador não deveria
aplaudir ao fim de cada unidade, mas que poderia fazer isso depois da sexta unidade, se
julgasse conveniente. Happening é um termo inventado por Allan Kaprow ao fim da
década de 1950, com a finalidade de denominar um acontecimento que é desenvolvido na
107
LUCIE-SMITH, Edward. Os Movimentos Artísticos a partir de 1945, p. 94.
108
Cf. MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais, p. 10.
109
FRICKE, Christiane. “Intermédia: Happenings, Acções e Fluxus”. In: WALTER, Ingo F. (org). Arte do
Século XX. Volume II, p. 582.
47
presença do público, sem que haja “obstáculos à criatividade pura”, ou seja, objetos,
transposições ou mediações.110
Conforme explicita o autor Renato de Fusco, no happening, há uma inevitável
passagem da ação bidimensional da pintura e da ação tridimensional da escultura para uma
“espacialidade mais vasta e vivida”111. Porém, o próprio ambiente convencional do teatro
passa a ser evitado, bem como os meios expressivos tradicionais, em uma criação que
rejeita a supremacia da palavra em prol da gestualidade.
Por outro lado, em 1960, a dança, influenciada pelas ideias de Cage, dos
happenings e das obras do grupo Fluxus, ganha também uma nova extensão:
110
Cf. FUSCO, Renato de. História da Arte Contemporânea, p. 356.
111
Idem.
112
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 129.
113
Ibidem, p. 135.
114
Cf. JONES, Amelia. Body Art – Performing the Subject, p. 99.
48
como forma de pôr em xeque a hierarquia relacionada aos gêneros através do seu corpo
masculino e da sua homossexualidade115.
Numa abordagem mais pictórica que aprimorava os trabalhos dos acionistas
vienenses nas suas aktions, havia, sem dúvidas, uma forte relação com a action painting de
Pollock, mas sobretudo, com a performatividade de Yves Klein. Em Hochzeit (1965), de
Rudolf Schwarzkogler, por exemplo, vemos o azul de Klein esparramado sobre a figura de
uma mulher trajada como uma noiva de branco e com a face coberta pelo imaculado véu.
O ambiente igualmente branco está sujo e respingado da mesma tonalidade azul, que ao
invés de aludir aos céus, junto de uma virginal nubente, ostenta uma composição
aterrorizante e contrária à crença do sagrado ritual de casamento. Mas, para além dos
sentidos advindos da semiologia exposta, era a composição, sobretudo, que interessava a
esse artista. “Schwarzkogler criava quadros de corpos enrolados em ligaduras,
demonstrando as suas hipersensíveis ideias sobre cor, proporções e relações espaciais entre
os objetos”116.
117
49
instalação que antecede a ação, depois, o desenvolvimento da performance, e, por último, a
instalação resultante da performance. Ainda, há um quarto momento, o qual expressa-se
através da videoperformance ou ainda da fotografia. Nessa ação, a artista propôs um ritual
aparentemente etéreo, espiritualizado, embora não seja habitual da artista colocar-se como
uma devota. Pelo contrário; Márcia X. normalmente usava elementos sagrados e objetos
facilmente encontrados no mercado para caçoar dos símbolos de poder, inclusive da Moda
e da religiosidade. Profanava, através dos seus rituais, a ultrapassada sacralidade, assim
como provocava um olhar crítico do espectador para a atual sociedade de consumo. Ao
fazer alusão a Klein em Alviceleste, Márcia X. preenche todo o espaço branco com
manchas azuis, como se pintasse o céu na terra, transpondo, portanto, um certo ceticismo
na sua ação aparentemente mística.
Da década de 1970, período em que a história da performance passou a ser mais
estável, não sendo realizada como uma manifestação transitória para dar início a uma obra
mais madura na pintura ou na escultura, como, por exemplo, no caso do futurismo na
década de 1910, que das arruaças vieram os pensamentos que garantiram as obras tangíveis
pertencentes ao movimento, é válido destacarmos algumas ações que utilizam a marca
corporal, a Moda, a religiosidade ou algum ponto em comum com a temática desta
pesquisa.
A chamada arte conceitual, oriunda desse mesmo período, vinha com uma proposta
contrária a da função comercial118, havendo, portanto, uma rejeição dos materiais como
tela e pincel. O corpo passou a ser um recurso pertinente para expor tais ideais artísticos,
então os performers usavam o corpo como suporte (justamente como Klein fez alguns anos
antes). “Tendo em conta que a arte conceitual implicava a experiência do tempo, do espaço
e do material, e não a sua representação na forma de objetos, o corpo tornou-se o meio de
expressão mais direto”119.
118
Não é a minha finalidade aqui discutir o quanto é contraditório o propósito da arte conceitual, mas, em
nota, creio que seja válido fazer este apontamento. A arte que outrora foi concebida supostamente sob a
finalidade de fugir à lógica comercial é vendável em formatos de vídeo e fotografia, por exemplo, e por
valores altíssimos no mercado atual das artes. Resquícios de ações performáticas de Marina Abramoviċ,
por exemplo, chegam a valer até 800 mil reais (300 mil euros ou 398 mil dólares em média). Esse valor é
referente a fotografia resultante do seu trabalho Art Must Be Beautiful, Artist Must Be Beautiful,
comercializado pela Galeria Luciana Brito de São Paulo durante o mês de Abril de 2013.
119
GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente, p. 193.
50
Nesse período, há uma explosão de ações voltadas para o corpo, o que Amelia
Jones chama de body art, que é uma designação vaga para abranger uma vasta gama de
interpretações segundo Goldberg, portanto o termo performance (ou live art) abrange
melhor todas nomenclaturas que dizem respeito a um mesmo tipo de expressão que tem o
corpo como principal ponto de criação.
120
Nessa época, emergiu uma série de artistas que trabalharam com um conjunto de
interferências criadas em seus corpos. Dentre eles, Dennis Oppenheim que, nos seus
trabalhos iniciais, pouco antes de desobrigar-se de trabalhar com performances ao vivo,
colocou um homem amputado usando uma perna mecânica de chumbo oco no lugar da sua
habitual de madeira e, com uma tocha de butano portátil (mini maçarico) acesa e presa ao
único pé desse sujeito, foi derretendo o membro de chumbo e, com isso, compôs uma
manipulação que “afeta a posição do corpo ao mesmo tempo que o próprio chumbo se
transforma”121. Essa sua ação, de 1970, recebeu o título de Lead Sink for Sebastian. Esse
trabalho, sem dúvida, também é referência para a minha performance (De)reter-se, criada
para compor o desenvolvimento prático dessa pesquisa.
Em outra ação, Reading Position for Second-Degree Burn (1970), o artista
repousou um livro no peito e deixou que o sol queimasse a sua pele com a finalidade de
marcar o objeto no seu corpo, evidenciando como a sua própria pele pode ser colorida tal
qual uma tela sobre a qual pintores investem os pigmentos. Com essa ação, Oppenheim
demonstra literalmente como pode sentir a mudança da sua tonalidade para uma cor mais
120
Dennis Oppenheim em Reading Position for Second Degree Burn (1970). Imagem obtida em:
http://www.dennis-oppenheim.com (consulta realizada em 19/04/2013).
121
OPPENHEIM, Dennis. Descrição sobre Lead Sink for Sebastian. In: CELANT, Germano (editor). Dennis
Oppenheim – Explorations, p.143.
51
avermelhada 122. Esse trabalho pode se relacionar com o de Ai Weiwei a fazer uma
queimadura solar no peito com a legenda “Fuck” em sua performance Fuck Off realizada
em Xangai123.
Também, desse mesmo período, em Shoot (1971), Chris Burden se propôs a receber
um tiro em seu braço para retratar o perigo de forma inovadora quando comparada às obras
teatrais ou as das artes visuais. O risco em que coloca sua própria vida é descomunal tal
qual na sua performance Deadman (1972), em que permanece dentro de um saco de lona
em uma autoestrada movimentada por um determinado tempo. “O impressionante
espetáculo de salvação e condenação, muitas vezes fascinantes da liturgia e das práticas da
igreja católica, exercem impacto na juventude de Burden”124, que elaborou uma série de
trabalhos que carregam alusões ao cristianismo, dentre eles: Doorway to Heaven (1973),
The Visitation e Trans-fixed (ambos trabalhos de 1974). James Westcott explica que, em
Trans-fixed, Burden, que teve as mãos pregadas atrás de um Volkswagen Beetle, fez isso
como uma atitude de extremado martírio, mas carregado de muito mais ironia do que
Marina Abramović em sua extrapolada agonia na ação Lips of Thomas (1975)125.
126
122
Cf. OPPENHEIM, Dennis. Descrição sobre Reading Position for Second-Degree Burn. In: CELANT,
Germano (editor). Dennis Oppenheim – Explorations, p.148.
123
Os registros dessa performance foram vistos durante a exposição Ai Weiwei – Interlacing, exibida no
Museu da Imagem e do Som da cidade de São Paulo entre Fevereiro e Abril de 2013.
124
STILES, Kristine. “Burden of Light”. In: HOFFMAN, Fred (coord). Chris Burden, p. 31.
125
WESTCOTT, James. When Marina Abramović Dies, p.72.
126
Da esquerda para a direita: Chris Burden em Trans-fixed. Imagem obtida na revista New Yorker de Maio
de 2007. Marina Abramović em Lips of Thomas (1975), obra revisitada em 2005 em seu projeto Seven
Easy Pieces realizado no Guggenheim Museum em Nova Iorque. A imagem é um frame retirado a partir
do vídeo.
52
Crucificados, tanto Burden quanto Abramović – ele literalmente com as mãos
fixadas no capô de um carro e ela deitada nua sobre barras de gelo – proclamam que a
sociedade seja expurgada e que ela tenha uma maior percepção da violência que há ao seu
redor com suas ações. Tal qual a dor de Jesus Cristo e o discurso nela impresso, com suas
dores, Abramović e Burden, ironicamente ou não (intencionalmente ou não), carregam o
discurso religioso de matriz cristã para os meandros da arte. Como se carregassem em seus
corpos as dores da humanidade, promovendo assim um efeito de cura.
127
127
De cima para baixo. Da esquerda para a direita: Saint Suaire (1993), de Orlan; Colaboration #5 (2003),
Franko B e Manuel Vason; I Miss You (2000), de Franko B; Blood Picture (1962), de Herman Nitsch.
Imagens obtidas respectivamente em: http://www.orlan.eu (consulta realizada em 26/05/2013). /
JOHNSON, Dominic (editor). Encounters: Manuel Vason. Performance, Photographic and
Collaboration, p. 168. / Imagem obtida a partir do acervo Performatus. /
http://www.tate.org.uk/art/artists/hermann-nitsch-1706 (consulta realizada em 26/05/2013).
53
Gina Pane, que, assim como Burden, influenciou imensamente o trabalho de
Marina Abramović; fazia cortes auto-infligidos nas mãos, nas costas e no rosto,
acreditando que a dor ritualizada tinha um efeito purificador e, com isso, ambicionava
sensibilizar a sociedade que ela avaliava como anestesiada. Ela usava, como elementos nas
suas performances, o sangue, o fogo, o leite e a recriação da dor. Em Self-Portrait(s)
(1973), em ação realizada em Paris na Galeria Stadler, Pane deitou-se sobre uma cama de
metal com inúmeras velas acesas por baixo, cortou a pele ao redor dos lábios e unhas com
auxílio de uma lâmina, enquanto imagens de mulheres a pintar suas próprias unhas eram
projetadas na parede. Ela fazia gargarejo com leite e cuspia em um recipiente, o qual era
gradativamente misturado ao sangue. Reações de mulheres eram registradas na plateia. 128
Nesse caso, assim como em tantos outros trabalhos de body art, a dor funciona “como uma
espécie de amortecimento de uma pena cuja origem se desconhece e cujo peso se torna
sufocante. E porque as palavras não servem ou não são suficientes, a linguagem encontrada
é a da dor e do sangue”129.
Franko B – inserido num período em que a arte está quase que automaticamente
voltada para o mercado, quando, após os anos 80, as galerias retrocederam para a produção
tangível e mais vendável de obras e, a partir de então, a arte passou a estar diretamente
relacionada ao capitalismo – mantém-se firme em suas ações performáticas, mas
naturalmente concebe a relíquia que a ação pode gerar e ser, consequentemente,
comercializada.
A artista Orlan, embora oriunda de um contexto anterior ao de Franko B, também
acaba por se encontrar nessa mesma condição. Aliás, muitos dos artistas que outrora
mantinham-se firmes em seus ideais anti-establishment, acabaram rendidos ao mercado. A
exemplo de suas invenções, podemos ver uma série de gazes hospitalares oriundas de
cirurgias com restos de sangue, as quais a artista se submeteu enquanto performance. As
obras Saint Suaire (1993) e Dessins Au Sang (1997) são tais exemplos. Ambos resquícios
imprimem o árduo ato de Orlan que derrama seu sangue e modifica o seu “corpo artista”130
128
Cf. PANE, Gina. Descrição de Self-Portrait(s) (1973). In: MORINEAU, Camille (comissária).
Elles@centrepompidou, p. 202. Tradução livre a partir do francês.
129
ANDRÉ, João Maria. “A dor, as suas Encenações e o Processo Criativo” IN: Sinais de Cena 2, p. 66.
130
Termo utilizado pela autora Christine Greiner em O Corpo: Pistas para Estudos Interdisciplinares.
54
em performances que acarretam em diálogos críticos tanto com a Moda como com a
religiosidade. Mais a frente, detalharei o trabalho desta performer e o seu conteúdo mordaz
em torno da temática.
Franko B, em I Miss You (2000), constrói uma trilha de sangue sobre uma imensa
passarela branca enquanto caminha nu com a pele coberta de maquiagem de coloração
igualmente clara. Dos seus braços, com auxílio de cateteres, deixa vazar grande quantidade
do líquido vermelho que preenche a passarela feita de tecido e que, após o fim do
“desfile”, é conservada e comercializada como obra de arte, assim como as fotos geradas a
partir da ação. Podemos perceber, nas marcas da trilha de sangue, uma alusão ao penoso
caminho que as modelos necessitam percorrer para alcançarem um lugar nas passarelas
contemporâneas, bem como a efemeridade do elemento que é exposto num evento de
Moda se observarmos a pouca durabilidade do tom vermelho sobre o tecido branco, que
muda de cor com o passar do tempo e com o seu apodrecimento. A criação de Franko B
acaba por ser uma criação que alude aos elementos que compõem o religioso Santo
Sudário – devido aos elementos da sua própria matéria – em um ambiente fashion, embora
o próprio artista afirme que apesar de transitar sobre uma passarela “é o corpo que é
fotografado; não são roupas para a Elle, Cosmopolitan ou Vogue”131.
Em Mama I Can’t Sing (1996), o artista estabelece relação similar com o Santo
Sudário (embora desenhasse com seu sangue a sua silhueta e não uma representação de si
sobre a parte interna da figura composta), assim como Orlan claramente exprimiu em
algumas de suas criações e como, indiretamente, também fez Herman Nitsch, por exemplo.
Em Portugal, a exemplo do discurso circunscrito nesta mesma temática
(compreendendo a Moda e a religiosidade), observamos um contorno estético próximo dos
casos acima mencionados se observarmos a ação Color (2009) de Beatriz Albuquerque,
através da qual ela, inicialmente, pinta os seus lábios com um batom de tom vermelho-
sangue e, aos poucos, (des)controladamente, passa a pintar todo o rosto até que, por fim,
ela apresenta um lenço branco e o encosta sobre sua face, sob a finalidade de cobrir sua
feição e timbrar assim a sua exterioridade no ínfimo pano que foi inicialmente exibido
131
B, Franko. Apud. WATSON, Gray. (s/p). “Franko B interviewed by Gray Watson”. In: Franko B. Oh
Lover Boy. Londres: Black Dog Publishing Limited, 2001. Livre tradução a partir do inglês.
55
puro. A alusão ao Santo Sudário e ao Véu de Verônica feita com o excesso de maquiagem
impregna a aparência de um rosto feminino e pode estar a satirizar o prazer, a libido, a
sedução e não apenas o sofrimento marcado por sangue como no Santo Sudário religioso.
Pode ser um deboche com relação a toda história que é amparada por grandes ícones
masculinos, sendo uma negação de Cristo para afirmar uma figura feminina em seu lugar.
Ao mesmo tempo, Beatriz Albuquerque estabelece justamente o contrário: a
demonstração da dor através da cor que alude ao sangue; e este trabalho pode
perfeitamente funcionar como uma crítica com relação ao patriarcado ao expor o seu
próprio rosto deformado com auxílio da maquilagem para evidenciar o fascínio
estabelecido pelo adorno feminino, o qual está atrelado diametralmente a um trágico
histórico machista que merece ser revisto e, por este motivo, pode ser apresentado dentro
desta metáfora. Esta ação pode ser vista também como videoperformance.
Desde o momento em que a performance se define como um meio de expressão
independente até aos criadores que sucederam este período fundador e se voltam
progressivamente para o mercado, há um vasto inventário de artistas que comentarei no
decorrer desta tese-projeto, por se relacionarem mais diretamente aos temas apresentados
nas páginas seguintes.
Nas últimas décadas do século XX, sob a era da media art, assim como na arte em
geral, ocorre um hibridismo exacerbado, entre o teatro e a performance, tendo como efeito
uma maior indistinção nas linguagens, pois um meio de expressão passa a interpenetrar no
outro. Die Klage der Kaiserin (1990), de Pina Bausch é um exemplo da fusão entre vídeo,
dança, teatro e performance, resultando numa espécie de videodança132, se não for de fato
um exemplo concreto desse recente gênero artístico, que tem base no vislumbre de Maya
Deren, a qual explorava o movimento do bailarino sem ignorar sua relação imbricada na
afinidade com a câmera, por exemplo, em A Study in Choreography for Camera, de 1945.
Westbeth, trabalho elaborado no início dos anos 70, de Merce Cunningham, pode ser outro
exemplo de origem para este gênero artístico.
132
Videodança é uma forma artística que ainda está em desenvolvimento em todo o mundo; é basicamente
formada da junção da dança, do vídeo, das novas tecnologias e do cinema.
56
Sob essa lógica, não podemos excluir ainda as combinações entre o gênero artístico
da performance e os suportes que garantem a sua materialidade em aparente contradição
com sua característica efêmera, sendo a fotografia e o vídeo dois recursos amplamente
explorados, gerando a fotoperformance e a videoperformance. Ambos gêneros artísticos
são especulados na componente prática desta tese, por exemplo, em (De)reter-se, Atendo
ao Molde e Por um Fio, concepções que exemplificam ações feitas para serem apreciadas
através dos registros e não na esfera do ao vivo.
Assim como nas artes visuais, um meio de expressão onde podemos notar um
retorno à pintura mais figurativa nos anos de 1980, o teatro e a dança promoveram um
distanciamento dos fundamentos intelectuais das experiências dos anos de 1970. Os
artistas desse período produziram obras mais tradicionais (entretenimento), com cenários,
figurinos, corpos extremamente preparados, embora alguns artistas tenham permanecido
ativos através dos moldes mais radicais da performance art.
O teatro “pós-dramático”, conforme nomeia Hans-Thies Lehmann, surge
exatamente quando a performance evolui para uma condição que não a torna tão distante
do teatro, tornando-se o que Roselee Goldberg chama de “nova performance”, “novo
teatro”, ou ainda, “performance fringe”. O teatro, a performance e a dança aos moldes dos
períodos anteriores não deixaram de ser feitos, mas insurgia nesse momento, com maior
ênfase, a síntese das expressões artísticas que podemos ver impressas nos trabalhos de Pina
Bausch, Laurie Anderson, Romeo Castellucci, Jan Fabre, Bob Wilson, ou ainda, do grupo
Forced Entertainment, entre outros. Esses artistas e coletivos da “geração da mídia” são
exemplos de que, na arte contemporânea, não há mais possibilidade de se pensar
isoladamente o teatro, a dança, a música ou qualquer outro meio de expressão; as artes
estão completamente integradas.
Caminhamos para uma arte total, para uma transmídia, para a eliminação
de suportes que impedem ou que se tornem mais importantes que a própria
transmissão da mensagem artística.133
57
dias atuais. Em tempos que o apagar da luz da plateia pode nem ser mais necessário,
integrando em si também o chamado “teatro da crueldade” de Artaud. A exemplo disso,
podemos destacar os espetáculos ritualísticos de José Celso Martinez Corrêa no Brasil, os
quais envolvem mídias de vídeo, dança, canto e total integração da plateia com o
espetáculo. 134 Dismorfofobia (2012) talvez seja o trabalho constituído dentro desta
pesquisa em que essa ideia foi melhor investida.
Tomando emprestada a observação da autora Christine Mello com relação ao vídeo
e seus limites, as expressões artísticas, “ao modo antropofágico, devem ser desfrutadas,
comidas, negadas, transmutadas”135.
Claro que, em meio às magistrais e cada vez mais avançadas tecnologias das
mídias, restam muitos artistas ainda engajados em ações que acabam por nem utilizar
tantas soluções com o apelo high-tech, mas que discutem ou produzem indagações em
torno da temática “corpo e presença”, “virtualidade”, “cibercorpo”, etc. A relação do corpo
com o espaço (real/virtual) e suas composições para nele se expor é notavelmente matéria
de dedicação na arte contemporânea, incorporando, para esse atual contexto, os
movimentos de resistência vindo de mulheres, dos gays e das minorias étnicas. Essas
temáticas já tão exploradas nas décadas de 1970, 80 e 90, continuam a motivar artistas nas
suas próprias preocupações com relação à identidade e a fazer sentido tanto na primeira
década do século XXI como na nossa presente data. “A performance de resistência atual é
tão variada e complexa que não se poderia criar um exemplo típico”136. Basta observarmos
os trabalhos elaborados por Susan Silton, Zackary Drucker, Tina Takemoto, Vaginal
Davis, Heather Cassils, Ron Athey, Guillermo Gómez-Peña, Nao Bustamante e
Narcissister.
134
Assisti, em 2005, no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, Os Sertões, de Euclides da
Cunha, com encenação de José Celso Martinez Corrêa. O espetáculo foi composto por cinco partes,
tendo, em média, seis horas de duração cada uma delas.
135
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo, p. 21.
136
CARLSON, Marvin. Performance: Uma Introdução Crítica. p. 210.
58
3. Centralidade do Corpo na Arte: Catarse, Sujeito e Identidade
137
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, p.13.
138
COHEN, Renato. Performance como Linguagem, p. 147.
139
CANTON, Kátia. Corpo, Identidade e Erotismo, p. 24.
140
Ibidem, p. 25.
59
performance, que tem o corpo como um importante suporte, é um meio de expressão
recursivo para esta temática tão abundante neste presente momento.
Falar em performance em qualquer lugar do mundo, há que se pensar em alguns
movimentos, conceitos e estratégias que incluem o corpo como centralidade na elaboração
dos trabalhos, além dos artistas que compõem o universo que envolve esse tipo de
manifesto artístico. A pluralidade dos discursos e das práticas criativas incluem
movimentos como a action painting e nomes como Jackson Pollock, primeiro pintor a
renunciar todo e qualquer compromisso com o processo de pintura convencional e a
despejar tinta em vez de usar pincel e paleta; mas também, sob a mesma perspectiva, Yves
Klein e suas pinturas ao vivo em Antropometrias do Período Azul, tal como Piero Manzoni
com suas esculturas vivas.
A arte da performance contempla igualmente uma atitude de resistência e
questionamento dos discursos hegemônicos no campo artístico sob o suporte do corpo,
visível em estratégias antiarte (Lygia Clark e Helio Oiticica) ou na tradição dos
happenings, na arte conceitual com relação à valorização da ideia em detrimento do
produto final e na atitude artística própria do movimento Fluxus, a qual pode ser
confrontada com a do Grupo Rex do Brasil, composto por Wesley Duke Lee, Nelson
Leiner, Geraldo de Barros, Carlos Fajardo, José Resende e Frederico Nasser, bem como
com o Grupo Puzzle, que envolveu artistas portugueses e internacionais. Instantâneo
também é levar em conta as ações radicais de Joseph Beuys, a body art e os limites do
corpo levados ao extremo por criadores como Marina Abramović, Vito Aconcci, Dennis
Oppenheim, Chris Burden, Gina Pane, assim como a chamada carnal art de Orlan, que são
alusões indissociáveis da arte da performance e que, ao pensarmos no corpo esquizofrênico
da contemporaneidade, esses ganham destaque no que diz respeito ao discurso crítico atado
à corporeidade do artista, ou até mesmo, encravado na sua carne (marcada de signos).
Com relação a outros manifestos artísticos, a performance (incluindo a body art) é a
expressão que melhor representa o discurso sobre o corpo. Segundo Henri-Pierre Jeudy,
“somente na expressão ‘arte de fazer’ o corpo em si é percebido como capaz de produzir a
60
referencia à arte. Sem ele, a ideia de estética que acompanha as maneiras de fazer não teria
fundamento”141.
A autoridade exercida pelo corpo naquilo que o autor chama por “arte de fazer”
ocorre, indubitavelmente, porque o corpo em si já é um elemento pulsante de expressão e,
nas manifestações que aproximam artista e arte, o mote corporal ganha, decisivamente,
lugar de destaque.
Em outras palavras, o corpo é tomado, a priori, por um objeto de arte vivo.
Essa concepção comum do estetismo no quotidiano não ocorre sem ligação
com o fato de se considerar o corpo como produtor de sinais. Ela supõe, a
priori, que o corpo não para de assinalar-se pelo estilo de emissão dos
sinais, quer dizer, seguindo uma finalidade estética colocada desde o
começo de sua vida, desde a primeira infância. 142
141
JEUDY, Henri-Pierre. O Corpo como Objeto de Arte, p.176.
142
Ibidem, p.176.
143
GREINER, Christine. O Corpo: Pistas para Estudos Indisciplinares, p. 122.
144
FISCHER-LICHTE, Erika. The Transformative Power of Performance – A New Aesthetics, p. 78.
Tradução livre para o português.
145
PIANOWSKI, Fabiane. O Corpo como Arte; Günter Brus e o Acionismo Vienense
http://www.observacionesfilosoficas.net/ocorpocomoarte.html (Consulta realizada em 10/01/2012).
61
Para a autora Fabiane Pianowski, a liberdade cobiçada, em decorrência da Segunda
Guerra Mundial, era a do próprio corpo e este livre-arbítrio, na arte, era explicado no que
Christine Greiner opta por chamar de “corpo artista”. Muitos criadores (alguns
extremamente radicais) serão elencados a seguir como forma de explicitar a arte
desenvolvida sob essa problematização do corpo como mote das suas elaborações
artísticas. Leva-se em conta que o contexto europeu, com o advento do nazismo, encerrou
o capítulo das performances no continente durante alguns anos, senão décadas, fazendo
com que o eixo principal das ações performativas fosse transferido para a América do
Norte. No entanto, “com o florescimento da contracultura e do movimento hippie, os anos
60 vão ser marcados por uma produção maciça” 146 de ações performativas, as quais
ocorreram tanto em continente americano quanto europeu, onde as ações buscavam atingir
as propostas humanistas da época.
Para o autor Simón Marchán Fiz, a performance desse período nos EUA estava
centrada no “pop” e nos fetiches do consumismo, enquanto as experiências europeias
buscavam instaurar uma “autoatividade que fizesse visível o contexto político-social em
suas determinantes possibilidades de transformação”147.
Joseph Beuys, artista também participante do Fluxus, buscava transformar a
sociedade através das suas “esculturas sociais”. Em uma de suas ações, I Like America and
America Likes Me, ele conviveu por uma semana com um coiote, onde delatava a
perseguição aos índios norte-americanos e toda relação existente entre os Estados Unidos e
a Europa. Essa ação, segundo o artista, “representou a transformação da ideologia na ideia
de liberdade”148.
62
cresce e evolui para o que podemos chamar o aspecto futurológico da
minha teoria: a cidade do sol, o calor grama, escultura social.149
Ana Mendieta, artista cubana que viveu nos Estados Unidos, é uma prova de que,
se os discursos das performances americanas eram ou pareciam ser mais frívolos que os
das europeias num determinado momento da história, ela mostrava-se como uma exceção.
Essa artista foi, talvez, a precursora de uma atuação em que o corpo é ritualizado e pode se
tornar núcleo de uma poética absolutamente profunda, a qual permeia entre a morte, a vida
e a transcendência. Ao menos em uma (dentre as suas variadas expressões) emerge o
argumento crítico relacionado ao consumismo, inclusive, com certo humor, o que não era
comum nas ações dessa artista.
150
151
149
BEUYS, Joseph. Apud. TISDALL, Caroline. Joseph Beuys – Coyote, p. 13. Tradução livre para o
português.
150
Da esquerda para a direita: Ana Mendieta. Untitled (Facial Cosmetic Variations), 1972; Cindy Sherman.
Untitled, 2000. Imagens obtidas em: http://www.phillipsdepury.com/ (20/01/2012).
63
Em Facial Cosmetic Variations (série fotográfica de 1975), a artista transforma sua
figura em dramáticas personagens ao fazer uso de perucas e maquilagens, comprovando a
instabilidade não só feminina, mas do sujeito na atualidade, submisso às suas próprias
mudanças e contradições. Essas várias faces que revelam a inconstância humana enquanto
afirmação da sua própria identidade é uma estratégia também aproveitada pela brasileira
Lenora de Barros na sua obra Procuro-me e por Cindy Sherman ao examinar, em si, os
estereótipos femininos sempre com sarcasmo e humor.
Eleanor Antin, em The King (1972), aplica pelos em seu rosto, até adquirir uma
espessa barba que a transforma em um personagem recorrente de suas performances.
Pacientemente, fio por fio é posto em seu rosto, fazendo sua feição feminina adquirir
aparência masculina. Sobre esta ação, a própria artista explica que, aplicando o cabelo no
rosto, ela se move através de uma variedade de rostos barbudos que buscam a identidade
mais apropriada para sua estrutura facial e tenta, assim, “satisfazer às suas aspirações”152.
153
151
Lenora de Barros. Procuro-me, 2002. Imagem obtida em: http://mam.org.br/acervo_online/ver/6585
(04/04/2012).
152
ANTIN, Eleanor. Informação obtida no catálogo virtual da Electronic Arts Intermix.
http://www.eai.org/title.htm?id=4339 (Consulta realizada em 08/04/2012).
153
The King (1972), de Eleanor Antin. Imagem obtida em http://www.eai.org/title.htm?id=4339 (Consulta
realizada em 08/04/2012).
64
reprimida, mediante atos de purificação e redenção do sofrimento”154. Eram artistas que
declaravam a destruição como estética e como forma de libertação. David Harvey afirma
que “o modernista tem que destruir para criar”155, o que é uma característica que acaba por
servir também a esse grupo de artistas.
65
tesouras e um saca-rolhas na sua composição, sendo que esses elementos prendem-se na
sua pele, a qual adere como uma potente cola todos estes artefatos. O corpo transformado
(camada de tinta branca grudenta que sobrepõe a superfície física do performer) em algo
bizarro é, então, retalhado sob auxílio desses utensílios cortantes. A tinta preta marca a
simbólica mutilação, bem como a sugestão feita através dos objetos.
157
157
As imagens referem-se ao vídeo Self-mutilation (1965) de Kurt Kren. Ambas foram recolhidas a partir do
vídeo, o qual está disponível em http://www.ubuweb.com/ (Consulta realizada em 08/04/2012).
158
Impressões discorridas a partir de uma pesquisa de campo realizada na Sala “Material Gestures – Painting
and Sculpture (1945-1960)” - TATE Modern de Londres.
66
entre o performer e o espectador pode ser similar ao que Aristóteles afirma na Poética pela
compaixão, mas também ao preceito freudiano de reviver os traumas como forma de
libertação, contornando as censuras estabelecidas pelo superego. Sob uma ótica voltada
para o pensamento junguiano, o performer pode compartilhar com alguém o que está
perturbando e sobrecarregando o seu “self”. As práticas da body art sublinham sem
dúvidas essas afirmações.
A autora Amelia Jones em Body Art / Performing the Subject, explica que percebe a
body art da seguinte forma:
Ela crê que esta deslocação é a mais profunda transformação que caracteriza o que
chamamos de pós-modernismo:
161
A body art (ou simplesmente arte do corpo) deve ser compreendida como uma
vertente da arte contemporânea em oposição ao mercado tangível das artes. O corpo é o
159
JONES, Amelia. Body Art / Performing the Subject, p. 1. Tradução livre para o português.
160
Ibidem, p. 5. Tradução livre para o português.
161
Imagens fotográficas geradas a partir do processo de criação da videoperformance Romance Violentado de
Paulo Aureliano da Mata (Cia. Excessos). Fotografias de Daniel Polari. Este tríptico foi apresentado na
exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais no CAAA em Guimarães juntamente com todas
as obras que foram criadas nessa tese-projeto.
67
principal meio de expressão e, por isso, a sua relação se dá de forma quase intrínseca à arte
da performance162. Na body art é onde encontramos as intervenções artísticas realizadas
sobre o corpo de forma mais violenta: tatuagens, ferimentos, escarificações, etc. Romance
Violentado (2011), de Paulo Aureliano da Mata, nada mais é que uma tatuagem dotada de
conotação artística, na qual uma organização de palavras que compõe um violento registro
feito na sua pele para que o ato fosse analisado através do veículo do vídeo e do dispositivo
da fotografia, os quais são capazes de exprimir uma sarcástica combinação de vocábulos
que traduzem uma particular frustração amorosa vivida, com um agudo desejo carnal, com
intenso amor somado a sua concludente ferida.
Também, na body art, podemos considerar as manifestações e os gestos menos
agressivos, onde o corpo serve de suporte para rituais não associados à dor e à tortura,
sendo o “travestimento”, por exemplo, um tipo de body art que se concretiza enquanto
uma simples inversão de códigos relacionados aos gêneros impressos sobre os corpos dos
indivíduos. Um exemplo de performance elaborada a partir dessa noção é a que desenvolvi
para criar a componente prática desta tese-projeto, intitulada por Beija-se, onde exponho a
minha identidade volátil e a minha própria sexualidade persistente e problematizo as
noções de gênero na sociedade em que vivo, afinal, “a body art é uma crítica pelo corpo
das condições de existência”163.
162
O que caracteriza a diferença entre a performance e a body art é que a segunda definição está restrita a
uma manifestação de arte que tem o corpo como o principal suporte da criação artística.
163
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 44.
68
(1921-1986), entre as décadas de 1960 e 1970, devem ser considerados
164
para a compreensão do contexto de surgimento da body art.
Por conta dos objetivos e do próprio resultado imagético, a carnal art não tem a
mesma acepção da body art:
Como distinta da "Body Art", Arte Carnal não concebe a dor como
redentora ou como uma fonte de purificação. Arte Carnal não está
interessada no resultado da cirurgia plástica, mas no processo de cirurgia,
no espetáculo e no discurso do corpo modificado, que tornou-se o lugar de
um debate público.167
164
Definição sobre body art encontrada na página do Itaú Cultural: http://migre.me/947kK (consulta
realizada em 13/05/2012).
165
SCHECHNER, Richard. “Post Modern Performance – Two Views” In: Performing Arts Journal, p. 16.
166
Afirmação da própria artista obtida em: http://www.orlan.net/texts/. Pesquisa realizada em 06/01/2012.
Tradução livre a partir do inglês.
167
Idem. Tradução livre a partir do inglês.
69
adição. O corpo, contra a dor, é transformado em linguagem e afirma “hurray for the
morphine!”168
Orlan aqui faz retumbar os corpos contemporâneos resultantes dos obcecados
indivíduos perseguidores da imagem idealizada, desprovidos das crenças que enaltecem o
corpo padecedor para fazer advir o prazer da entrega da própria carne aos milagrosos
bisturis. O discurso oriundo das ações radicais de Orlan retrata ainda o quanto a Moda
(corpo indolor) destroça a religião (corpo dolente).
169
168
Afirmação presente no manifesto da carnal art, juntamente com as outras seguintes: “vive la morphine!”
e, ainda, “down with the pain!”.
169
Orlan lendo La Robe, de Eugénie Lemoine-Luccioni. 1st Surgery-performance, Julho de 1990, Paris.
Imagem obtida em: http://www.orlan.net/texts/. Pesquisa realizada em 06/01/2012.
70
Vênus de Sandro Botticelli, Diana Saindo do Banho de François Boucher e Monalisa de
Leonardo da Vinci.
No que diz respeito à centralidade do corpo, a performance de Orlan é radical. Ela
mantinha-se consciente durante as cirurgias às quais era submetida para, então, proferir
suas palavras desconcertantes e até alucinadas – embora dotadas de uma sobriedade
absurda – que compunham seu Manifesto de Arte Carnal.
Décadas antes, Gina Pane (poderíamos citar ainda Marina Abramoviċ, Ulay e Chris
Burden, por exemplo) buscava afirmar, de certo modo, o oposto do discurso de Orlan,
embora também infligisse marcas extremas no seu próprio corpo como forma de expressar
suas ideias. A artista não era adepta do corpo modificado sem dor, porque acreditava na
dor como forma de purificação e praticava a automutilação como uma configuração
artística, como uma body art, que nesse sentido se difere da carnal art.
É válido ressaltar que grande parte dos artistas mencionados neste trecho da tese
intitulado Centralidade do Corpo na Arte: Catarse, Sujeito e Identidade estabelece uma
crítica, ou ainda, um contraponto poético para toda uma concepção de sujeição voluntária
dos corpos contemporâneos, que vêm sendo moldados desde a chamada pós-modernidade
para apresentarem-se hoje como prisioneiros da imagem.
Sobre as constituições corporais relativas à identidade, a autora Katia Canton
assegura que:
Tatuagens, piercings, maquiagem, cirurgias plásticas, escarificação,
pinturas, queimaduras (branding), além de vestimentas e adornos corporais
– são maneiras de construir a relação de identidade e alteridade por meio
do próprio corpo. Ele é, afinal, nossa existência materializada e
estetizada.170
E continua:
170
CANTON, Kátia. Corpo, Identidade e Erotismo, p. 35.
171
Idem.
71
Sem dúvidas, vivemos um momento de extrema consideração da aparência, sendo a
exterioridade desvirtuada para o topo do que atribuímos importância; impera na nossa
sociedade o “culto ao corpo” e, dentro dessa lógica, o desejo de aperfeiçoá-lo aos padrões
ponderados por belos, “cool” ou simplesmente aceitos. Isso implica em modificações leves
ou radicais mediante a dietas alimentares, ginásticas e intervenções cirúrgicas.
172
Hans Eijkelboom, artista holandês, retrata uma massa padronizada, quando expõe,
através de fotos de transeuntes em diferentes partes do mundo, uma série de repetições de
aparências pessoais, provando que apesar da busca pela diferenciação, o ser humano repete
padrões dentro de uma lógica homogeneizante: “A disciplina e o rigor de suas observações
lembram aspectos de estudos antropológicos”173 e confrontam “noções de identidade e a
relação entre individualidade e coletividade”174.
Cultua-se, hoje, o corpo ideal que vem do contexto das mídias ao mesmo tempo
que existe o desejo de se tornar um ser uno, em destaque, diferenciado em meio de uma
massa neutralizada por padrões estéticos: “Uma nova pele entra em jogo, marcada a ferro,
fogo e perfuração, uma pele-comunicação, uma pele-cultura, constituída com os artifícios
172
Da esquerda para a direita: Photo Note August 24, 1997 • Hudson River Park, New York; Photo Note
October 4, 2005 • Henan Nan Lu, Shanghai; Photo Note May 5, 2012 • Centro, São Paulo. Fotografias de
Hans Eijkelboom que fazem parte do acervo Performatus.
173
Texto sobre a obra de Hans Eijkelboon. Guia da Exposição Trigésima Bienal de São Paulo – Iminência
das Poéticas, p. 81.
174
Idem.
72
de uma linguagem”175. O “corpo artista”, conforme nomeia a autora Christine Greiner, é
um organismo que aponta para uma possibilidade de organização estrutural, que considera,
além da estruturação dos órgãos, “a relação mente-corpo, corpo-mundo, etc.”176. Greiner
revela que, cada vez que o corpo compreende o mundo, ele transforma a sua própria
conjuntura e, nesse sentido, o “corpo artista” exerce papel fulcral, pois é justamente aquele
que ativa a desestabilização de todos os outros corpos na sociedade; é aquele que aciona as
emoções e a compreensão de um sistema social. Considerando isso, a autora explica:
73
4. Moda e Religiosidade como referências para o “corpo artista”
A carnal art de Orlan, que não é um autorretrato no seu sentido clássico, porque é
atinado através da possibilidade da tecnologia, talvez seja o melhor e maior exemplo de
obra de arte que compreenda uma série de identificadores corporais oriundos da Moda e da
religiosidade ao mesmo tempo. Entre a configuração e a reconfiguração, insurge a
inscrição na carne da própria artista, que retoma, em si, a noção de objeto ready-made
duchampiano e a metamorfose anatômica de Orlan é assistida enquanto ocorre. O debate
proposto a partir deste ato alude ao tempo efêmero das passarelas, que exibe o que está
sobre o corpo e melhor o demarca, além de retomar a dor moralizante quando a ritualiza e,
com ela, ostenta a coragem. A dor de Orlan é uma dor contemporânea, anestesiada e que
decreta a inutilidade do sofrimento. Afirma um corpo sem culpa, um corpo sem sofrimento
e que condena a dor como algo anormal, ou melhor, ultrapassado, pois, com o advento da
anestesia no século XIX, a dor perdeu o seu “papel enobrecedor” 180 (de enobrecer a dor).
A dor hoje perdeu o sentido e Orlan, dotada de um “ideal ascético”, desaprova a dor
típica do sujeito que se autopune e que sofre como forma de negar o prazer ou de ter prazer
em provar sua sofrida coragem. A artista exclui a culpa deliberadamente quando
permanece consciente e anestesiada a observar o processo da sua transformação corporal
em prol de um objetivo imagético, de um referencial estético. E o que fazem as mulheres
que perseguem a magreza de Gisele Bündchen quando submetem-se à lipoaspiração e à
179
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 38.
180
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de Passagem: Ensaios sobre a Subjetividade Contemporânea,
p. 38.
181
Idem.
74
abdominoplastia senão uma forma consciente de resolver suas aspirações estéticas sob um
corpo indolor (anestesiado)?
A boca de Cindy Crawford obtida através de implantes de silicone e o nariz de Kate
Moss moldado sob rasgos de bisturis são comuns na atual sociedade que, cada vez mais,
entrega-se ao culto do corpo, que outrora era desmantelado pelo culto da alma imaculada.
Alguns artistas, assim como Orlan, subvertem os ideais de beleza sob o uso de seus
corpos e, em suas abordagens, ironizam os padrões estéticos presentes, por exemplo, em
catálogos de Moda. Discorrendo sobre as modelos e seus padrões estéticos atuais, a artista
norte-americana Cindy Sherman afirma o seguinte:
(...) o que sou contra é como nossa cabeça ferra a gente com o que a gente
devia ser, em vez de pensar no que a gente é. Acho a maioria das modelos
nas revistas de moda repulsivas. As poucas vezes que vi modelos de perto,
ao vivo, me pareceram tão esquisitas como alguém de três olhos. A cabeça
minúscula, o corpo muito magro e comprido, os traços perfeitamente
simétricos eram muito estranhos.182
Desde o princípio da década de 1980, quando a série Untitled Film Stills, de Cindy
Sherman atraiu a atenção do universo da arte, o trabalho fotográfico dessa artista vem nos
apresentando pessoas desfiguradas, alucinadas, dementes, doentes, naturezas-mortas de
vômito e comida disseminada de forma grotesca e, mais recentemente, bonecas mutiladas e
camuflagens horrendamente decompostas.
Sherman realizou diversos corpos de trabalhos atrelados ao universo fashion.
Incumbida por importantes designers de Moda para inventar algumas representações
publicitárias a partir das roupas que eles elaboraram, a artista descumpriu o objetivo e
“virou do avesso as convenções da fotografia de moda”183, destruindo e desconstruindo por
completo a noção de beleza que está ligada a esse meio através da sua criação. As imagens
que concebeu (de forma alguma encantadoras), eram “sinistras e declaradamente
bizarras” 184 , podiam ser compreendidas como reveladoras proclamações “antimoda”,
“antifashion”. Entretanto, as imagens concebidas receberam aprovação por parte dos
182
SHERMAN, Cindy. In: TOMKINS, Calvin. As Vidas dos Artistas, p. 52.
183
HEARTNEY, Eleanor. Pós-modernismo, p. 57.
184
Idem.
75
estilistas, que ignoraram (ou não compreenderam) a sabotagem de Cindy Sherman que
visava arruinar a linguagem visual corriqueira dos catálogos de Moda.
Entre 1980 e 1990, a artista refaz (sob o recurso fotográfico) alguns retratos
extraídos de pinturas famosas da arte ocidental, onde se apoia num trabalho com
fotografias coloridas e transforma-se em suas personagens imaginadas, sempre auxiliada
pelo uso de roupas e maquiagem, além de próteses de todo o tipo. Ainda, a artista passa
por complexos processos que incluem emagrecer e engordar. Toda a artificialidade
incorporada nas suas concepções são evidentes e não ocultam as imperfeições que
confirmam o que não é natural. “Pouco importa que a astúcia e o artifício sejam
conhecidos de todos, se o sucesso é seguro e o efeito sempre irresistível”185. Charles
Baudelaire, em O Elogio da Maquilhagem, disse que “a maquilhagem não deve esconder-
se, evitar ser adivinhada; pode, pelo contrário, expor-se, senão com afetação, pelo menos
com uma espécie de candura”186.
Com Intra-Venus, último trabalho de Hannah Wilke, a artista, nessa composição
fotográfica, comenta padrões de beleza com o próprio corpo no hospital dias antes de sua
morte em decorrência de um câncer. Nessa obra, a artista documenta as questões existentes
sobre a vida e morte e as transformações físicas e mentais surgidas a partir de sua doença.
Sobre este trabalho, escreve Amelia Jones:
185
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna, p. 51.
186
Ibidem, p. 52.
187
JONES, Amelia. Body Art – Performing the Subject, p. 189. Livre tradução a partir do inglês.
76
188
Hannah Wilke não expõe a sua imagem como digna de pena ou compaixão, quando
exibe seu misericordioso olhar de Virgem Maria no hospital. Tampouco promove
sinceramente a exibição de si mesma como forma de elevar sua beleza. A artista é mesmo
cruel e sarcástica ao zombar, de forma sádica, do estatuto do belo enquanto está
completamente enferma e não tenciona despertar desejo ou clemência. A temática por ela
diligenciada exibe a sutil linha de separação entre a vida e a morte, assunto que é a base
para o vídeo Por um Fio, trabalho que compõe a parte prática desta tese-projeto.
As artistas brasileiras Priscilla Davanzo e Márcia X. expõem os seus corpos em
seus manifestos também como forma de zombar do culto ao belo e do universo da Moda,
ou ainda, do que está atrelado a essas duas ideias. Ambas fazem crítica às obsessivas
práticas cosméticas tão presentes na vida da mulher contemporânea.
Através da dor (destituída de conotação religiosa ou purificadora), Priscilla
Davanzo alude às práticas habituais ligadas ao culto do corpo, como, por exemplo, certos
exercícios físicos e tratamentos de beleza. Em uma de suas ações, Pour être plus belle et
plus efficiente, que quer dizer “para ser mais bonita e mais eficiente”, a artista arrecada
flores de um jardim e as cose na própria pele. Tendo em conta o quanto a França é
referencial no mundo fashion, sob esse título em francês, a artista parece fazer menção não
apenas à integração corpo e natureza, mas também a uma árdua perseguição por parte de
uma sociedade de consumo em sua busca desenfreada pelo que a ditadura do corpo propõe
como norma a ser seguida e que, normalmente, implica em sofrimento para que possamos
188
Hannah Wilke. Série INTRA-VENUS. 26 de Julho – 19 de Fevereiro – 15 de Junho de 1992 – 30 de
Janeiro de 1992. Autorretrato performativo com Donald Goddard. Imagens obtidas em
http://www.feldmangallery.com (21/01/2010).
77
alcançar uma estética almejada. Tratando-se de flores naturais, estas murcham com a
mesma rapidez que a Moda se transforma, ou seja, para manter esse corpo sempre ornado e
belo, seria necessário refazer a mesma penosa prática diariamente. Essa mesma ideia está
implícita também em Pour être une seductrice (2005/2015), performance em que a artista
costura, em seu próprio corpo, um par de meias do tipo 7/8, que é fixado diretamente nas
suas coxas, ou ainda, em Pour être infâme: Pour être une femme (2006), performance em
que Davanzo, usando fios de sutura, acopla um par de bojo aos seus seios reais, fazendo
alusão aos, cada vez mais comuns, implantes de silicone, algo tão presente na nossa cultura
cada vez mais obsessiva em satisfazer um protótipo antinatural de beleza.
189
78
pacote de confeitos coloridos, assentando todo o conteúdo numa peneira grande. Márcia X.
peneira os granulados coloridos de chocolate sobre sua cabeça e o seu corpo e repete a
ação com todos os sacos desse doce até o esgotamento. 190
Então, com o “pancake” aplicado sobre o seu corpo, Márcia X. estabelece uma
junção dos rituais de embelezamento da mulher (como a maquiagem) com elementos
utilizados nos preparativos de um doce ou até mesmo um bolo (cake), daí o título
“pancake”. “Pan” nos direciona para o nome do deus dos rebanhos, Pã, o qual derivou a
palavra “pânico”. E Pancake é uma “maquiagem” fascinante e asquerosa de uma só vez.
Essa ação tem o poder de ilustrar tanto o disputado doce de festa infantil quanto o excesso
de maquiagem que chega até mesmo a deformar a figura feminina, atribuindo-lhe um
191
aspecto incontestavelmente bizarro. Claro, o título faz menção a uma modalidade
sexual chamada “Bukkake” em que uma pessoa recebe a ejaculação de diversos homens.
192
Também, a ação alude aos “proibidos” doces que podem fazer a mulher engordar e
“desfigurar sua beleza” que, para os padrões atuais, deve se manter próxima da magreza
esquelética, tão bem ilustrada na body art de Zombie Boy, que cobriu o corpo de tatuagem
para transformar-se em uma caveira, o que lhe garantiu fama e lugar nas mais importantes
revistas de Moda. Hoje, sob sua “maquilagem definitiva”, é tido como uma divindade do
mundo fashion, que exige corpos-esqueletos como referenciais de beleza. E o traje criado
pela designer de Moda por Elsa Schiaparelli, em 1938, que evidencia ossos marcados sob
190
Cf. FREY, Tales. Discursos Críticos Através da Poética Visual de Márcia X., p. 77.
191
Ibidem, 78.
192
Márcia X. em Pancake. Imagens obtidas em www.marciax.art.br. Consulta realizada em 20/04/2012.
79
um tecido negro não se trataria de mais um exemplo de que a magreza é que deve ser
exibida como artefato da beleza? Ao invés de recorrer ao traje, Rick Genest (ou Zombie
Boy) construiu sobre si o seu “traje definitivo” ou sua “constante maquiagem”.
193
(...) para nos restringirmos àquilo que a nossa época designa vulgarmente
como maquilhagem, quem não percebe que o uso do pó-de-arroz, tão
inocentemente anatematizado pelos filósofos cândidos, tem como
finalidade e como resultado fazer desaparecer da tez todas as manchas que
a natureza aí semeou ultrajosamente, e criar uma unidade abstrata no grão e
na cor da pele, unidade que, como aquela que o maillot produz, aproxima o
ser humano da estátua, isto é, de um ser divino e superior?194
Rodrigo Braga, artista brasileiro, em sua série de fotos Sem Título (2005) pintou a
região dos olhos de vermelho e manteve as pálpebras abertas durante essa sua pintura.
Concepção de uma maquiagem que o cega? A mesma cor que homogeneíza a sua face em
uma tonalidade artificial na região dos olhos traduz metaforicamente a “cegueira” cunhada
nos comportamentos extremos em prol de um referencial que o humano acredita. “Fé
cega” que move o sujeito a embelezar seu corpo em nome de uma crença, de uma ideia,
seja ela em função da Moda ou da religiosidade, ou ainda, qualquer força que fundamente
esse ato.
193
The Skeleton Dress (1938), criação de Elsa Schiaparelli, com colaboração de Salvador Dalí. Imagem
obtida em http://collections.vam.ac.uk/item/O65687/the-skeleton-dress-the-circus-evening-dress-elsa-
schiaparelli/. Consulta realizada em 23/03/2013.
194
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna, p. 51.
80
Claro que a ação poderia ser executada, mas trata-se de uma manipulação da
imagem real, justamente em uma série de trabalhos que o artista propunha questionar “a
velha ideia de senso comum em que tudo o que a lente registra é verdade”195.
Os artistas que investem na arte da performance como estratégia de criação
discursiva possuem um denominador comum: desfetichizar o corpo humano.196 Nas suas
criações, buscam eliminar do corpo humano “toda beleza a que ele foi elevado durante
séculos pela literatura, pintura e escultura – para trazê-lo à sua verdadeira função: a de
instrumento do humano, do qual por sua vez, depende o humano”197.
198
195
BRAGA, Rodrigo. Informações obtidas através de conversa pela web realizada em 07 de agosto de 2013.
196
Cf. GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 42.
197
Idem.
198
Sem título | fotografia | 10 x 15 cm | 2005. Imagens gentilmente enviadas pelo próprio artista.
81
fora? De qual lado está o artista e de qual lado estamos? Não estaria assim ele
evidenciando uma relação de espelho? Estas perguntas todas podem ser respondidas
positivamente, pois todas estas ideias podem estar contidas na mesma composição visual,
afinal, o artista está dos dois lados, ou seja, através da ação e do seu veículo de
transmissão.
199
Fatalmente, esta composição de Masi pode ser base de inspiração imagética para
Bruce Nauman em sua ação intitulada por Body Pressure (1974), a qual foi refeita por
Marina Abramoviċ em Seven Easy Peaces em 2005 no Guggenheim Museum em Nova
York. Também, provavelmente serviu de influência para Ana Mendieta com sua ação
Glass on Body (1972). Vale a pena relacionar a essa obra de Masi à instalação de Nam
June Paik intitulada por TV-Buddha (1974), sendo uma televisão, uma câmera com circuito
fechado (preto e branco) que é posicionada de frente para uma imagem do Buda do Século
XVIII, logo, na TV, está a imagem do Buda e do observador que se posicionar atrás dele.
Ainda, a minha videoperformance Vidrar (2015) talvez tenha sido assimilada
(ainda que de forma inconsciente) a partir desse referencial somado aos meus trabalhos
anteriores.
199
Denis Masi em Lip Smear (1971). Imagem obtida em: http://denismasi.com (consulta realizada em
09/04/2013).
82
200
A arte de Duane Michals, por seu lado, pode relevar as duas ideias (Moda e
religiosidade) em harmonia sobre os corpos dos modelos que elege, pois, nas suas
composições, o artista (que já foi fotógrafo de Moda) imprime seus conceitos
transcendentais nas imagens que cria. Compõe representações que lembram editoriais de
Moda com apresentação de corpos e/ou identidades repetidos e/ou fragmentados, mas
também identidades disfarçadas ou nulas em ascensão: “Eu estou interessado no
que acontece quando morremos. Eu não sei como alguém pode estar vivo e não questionar
isso – eu acho que é uma pergunta muito racional”201, confirma o próprio Michals.
202
200
Tales Frey (Cia. Excessos), Vidrar, 2015.
201
MICHALS, Duane. Informação obtida em: http://www.revistafotografia.com.br/a-arte-de-duane-michals/
(consulta realizada em 09/04/2013).
202
Da esquerda para a direita: The Iluminate Man e Mirrors. Composições fotográficas de Duane Michals.
Imagens obtidas em: http://www.revistafotografia.com.br/a-arte-de-duane-michals/ (consulta realizada em
09/04/2013).
83
Sigalit Landau, com a vídeo instalação Barbed Hula (2001), feita a partir de uma
ação performática, expõe o corpo feminino em uma situação de autoflagelação no plano da
tela, rebolando com o uso de um bambolê de arame farpado, que agride e lacera sua pele
na altura da cintura. Há sim a exploração da sensualidade existente no corpo feminino
considerado esbelto, que segue o padrão de beleza imposto à mulher contemporânea e,
também, a violência contra esse corpo que se expõe nu em uma praia entre Jaffa e Tel
Aviv.
203
203
Frame colhido por mim a partir do vídeo original. O registro foi obtido em visita à exposição Elles, em
maio de 2010 no Centre Pompidou em Paris.
204
LANDAU, Sigalit. Descrição de Barbed Hula (2001) disponível em MORINEAU, Camille (comissária).
Elles@centrepompidou, p. 69. Tradução livre para o português.
84
uma dança havaiana, a qual ocorreu em 1957 na Califórnia.
No apogeu da moda, 20 mil bambolês eram fabricados e vendidos
diariamente em todo o mundo. Na antiga União Soviética, a venda e o uso
do bambolê foram proibidos por simbolizar os Estados Unidos, e no Japão
foi proibido por ser extremamente sedutor.205
205
Idem.
85
CAPÍTULO II:
MODA E RELIGIOSIDADE
EM REGISTROS CORPORAIS
86
“O pudor é provocado por aquilo que deprecia o indivíduo – portanto um apetrecho ou
manifestação que corrija esta depreciação, satifaz ao pudor e torna-se MODA”.
87
1. Timbres da Moda e da Religiosidade no Corpos
206
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIERO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p. 49.
207
Idem.
208
Idem.
209
Idem.
210
Noção vista em Performance Studies de Richard Schechner.
211
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIERO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p. 54.
212
Ibidem, p. 53.
88
Tanto a Moda quanto a religiosidade estão presentes até mesmo em “rituais
seculares” mais simples, estando igualmente presentes também, no cotidiano, como
singelos hábitos de ingênuas rotinas213. Rezar antes de dormir, retocar a raiz do cabelo
descolorido, depositar uma fruta para o duende, passar creme antirrugas diariamente, fazer
sinal da cruz ao atravessar a frente de uma igreja, entre outros gestos recorrentes na vida
corriqueira de um indivíduo revelam a potência que estas duas forças (Moda e
religiosidade) exercem sobre ele.
Levando em conta o sentido estrito da palavra ritual e o que define a sua
significação, destaco, neste breve trecho do estudo, dois principais eventos que abarcam a
Moda e a religiosidade de uma única só vez: o casamento e os eventos dos chamados
modern primitivies. Ambos eventos (seculares e sagrados de forma combinada) podem
promover em seus adeptos a disposição para praticarem ações que acarretem nas suas
definitivas transformações.
No casamento, da condição de “solteiro”, o indivíduo passa para a condição de
“casado”, dentro de um processo que inclui o cerimonial religioso bem como a aquisição
dos indumentos que advêm dos bens de consumo, centrados em tendências modais. O
casamento “é a performance sancionada pelo Estado, uma cerimonia religiosa e a reunião
da família e dos amigos”214 e, também, um evento em que todos exibem suas roupas
especialmente compradas ou confeccionadas para serem ostentadas nessa específica
ocasião. Pensando nessa condição do casamento, criei, com colaboração de Paulo
Aureliano da Mata, a performance Aliança, que compõe a componente prática desta
pesquisa.
Nesse tipo de ritual, a performance da cerimônia é repetida segundo padrões, que
incluem, em específicas culturas, além da troca de alianças, o jogar do buquê de flores da
noiva, o jogar do punhado de arroz na saída da igreja nos noivos, bem como o cortar do
bolo com as mãos unidas do casal durante a festa. Em certos casamentos, a noiva passa
pela festa arrecadando dinheiro sobre uma bandeja onde exibe o seu sapato, enquanto o
213
O autor Richard Schechner afirma que é difícil diferenciar, na vida diária, ritual de hábito e rotina, mas
nos hábitos religiosos, tal divisão é bastante clara.
214
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIERO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p. 56.
89
noivo, junto dos homens da festa, sai espalhando retalhos da sua gravata que é cortada e
distribuída para os convidados que retribuem com gratificações em dinheiro normalmente.
O vestuário é uma peça de extrema importância no ritual do casamento, sendo algo que
advém do meio comercial e, nesse tipo de evento, a Moda atua com extraordinária força. O
vestido da noiva pode ser consultado em revistas especializadas, as quais exibem a
tendência do momento em que tal exame é realizado. Nota-se, ainda com relação ao
casamento, que o uso contínuo da aliança pode gerar alterações nos dedos de quem faz uso
delas. Essa marca corporal pode também traduzir a eficácia transformadora do evento.
Os “primitivos modernos” ou “primitivos urbanos”, que são pessoas adeptas das
práticas ritualísticas de modificação do corpo, fazem referência ou homenagem ao “rito de
passagem” das práticas de culturas primitivistas 215 . Essas práticas podem incluir a
perfuração do corpo, tatuagens, piercings, suspensão, tight lacing, escarificação, branding,
etc. A motivação, ou seja, o propósito para os adeptos se engajarem em tais práticas pode
estar relacionado com o processo de crescimento pessoal, curiosidade espiritual ou até
sexual. Levando em conta a curiosidade espiritual, esse tipo de ação incorpora, de uma só
vez, a noção de religiosidade e a reminiscência da Moda, pois imprime a ideia sagrada da
ação e a estética da marca gerada.
O fascínio que a Moda promove instala-se em todos os meios possíveis, bem como
a autoridade da religiosidade e, com isso, o corpo pode ser transporte de informação entre
o entendimento de um indivíduo e o meio que ele habita, havendo, assim, a
espetacularização do corpo com discursos pertinentes para dar margem às múltiplas
reflexões.
215
Não devemos compreender o termo primitivo como algo anterior ao comportamento ocidental, pois estas
práticas são antes fundadoras no processo histórico da construção do Ocidente.
90
1.2. Corpo sem roupa (vestido de signo)
216
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 21.
217
EXPORT, Valie. Descrição de Action Pants: Genital Panic. In: BIESENBACH, Klaus. Marina Abramović
– The Artist is Present. p. 190.
91
Newman usou esse traje durante o dia todo e só o retirou ao anoitecer. Ela afirma
que: “no trabalho, o corpo se articula com a emoção controlada através de uma reação
física timbrada na forma de queimaduras solares intensas”218.
219
Nota-se que, de acordo com James Laver, o conceito de Moda teve início no final
da Idade Média, época em que surgem os primeiros trajes concebidos sob a finalidade de
realçar as diferenças entre o corpo feminino e o masculino220, sendo que “o traje marca,
desde então, uma diferença radical entre masculino e feminino, sexualiza como nunca a
aparência”221:
92
como forma de se engrandecer e de se mostrar como um indivíduo incorruptível com
relação a deus. A religião prega o desapego da matéria e o enaltecimento do espírito,
portanto afirma o sofrimento, a negação do prazer, a dor física e o sacrifício da carne como
forma de valorizar o espírito.
“A nudez, na nossa cultura, é inseparável de uma marca teológica”223 e Hayley
Newman expõe, na sua pele, os elementos que originam a Moda ao compor um traje de
banho que provoca o olhar de desejo do(a) outro(a) para o seu corpo feminino ao mesmo
tempo que castiga a sua matéria e faz retumbar o que, em outros tempos, era visto como
um sinal de devoção a deus. A artista dialoga com dois tempos no registro feito sobre o seu
corpo nu: o passado, que condenava a beleza física e qualquer coisa que evocasse a libido;
– e o momento presente – em que a beleza é considerada fundamental.
A sociedade contemporânea, menos ascética, tende a ser movida pelo princípio do
prazer e não abre mão de (paradoxalmente) se sacrificar ao cultuar um deus incógnito
chamado Moda: “Moda é prazer. É por meio dela que o indivíduo visivelmente se faz belo,
se modifica conforme seu desejo, se torna único, se sente parte de uma cultura”224.
Claude Wampler, em sua performance intitulada por Knitease: Ms. LeFarge Gives
Another Historical Performance (1998), refaz, durante a sua ação de quatro horas de
duração, um novo vestido com a mesma lã que compunha o que inicialmente usava. O ato
de desfazer o vestido para recriar um novo implica na sua condição nua diante do público,
onde o indumento e o corpo são cernes da obra. A ação artesanal nos remete para o
mercado têxtil e para o consumo da Moda ao mesmo tempo que revela a nudez e a
necessidade de cobrirmos o corpo, seja por conta do pudor, da proteção ou da
ornamentação; o esforço exposto no árduo trabalho de tricotar um novo vestido revela a
obstinação e obrigação de nos adornarmos para o esconder da nudez.
Do domínio religioso (judaico-cristão), a performer, nua ou vestida, desrespeita
certas condutas impostas em passagens bíblicas do Velho Testamento que prega: “não
vistas tecidos compostos de lã e linho (Dt 22,11)”225 e expõe seu corpo “pecador” como
223
AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 73.
224
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 38.
225
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Ed.
Difusora Bíblica, 2008. p. 288.
93
forma de afirmar seu sexo e a sua identidade. No título, vemos um trocadilho entre vestir e
despir: respectivamente, “Knit easy” (malha fácil) supõe o tecido que oculta a nudez,
enquanto, o “strip-tease” a revela.
226
Dentro da lógica cristã, não existe um estudo da religião e das coisas divinas sobre
a nudez, mas sim, unicamente, da veste, conforme observou Agamben em sua obra Nudez,
ao analisar a performance de Vanessa Beecroft, ocorrida em Berlim na Neue
Nationalgalerie, onde cem mulheres nuas (vestidas com collants transparentes)
permaneciam estáticas para serem contempladas pelos observadores dessa (in)ação:
226
Fotos em Polaroid que registram o progresso/processo desta performance de Claude Wampler. Imagens
obtidas no site oficial da artista: http://www.claudewampler.com (consulta realizada em 16/11/2012).
227
AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 72.
94
desta vez transparente, e que não escondia seu corpo desnudo. Uma simbologia da mesma
“nudez” cristã e que faz referência ao corpo de Eva antes do pecado original.
Repercutindo na mídia local, a ação foi criticada por uma estilista também chamada
Márcia Pinheiro, a qual se mostrou revoltada pela associação dos seus nomes e, então,
afirmou que julgava aquela performance um rebaixamento do seu posto profissional, que
era vestir e não despir pessoas. Foi esse episódio que fez com que Márcia X. adotasse essa
incógnita no lugar do seu nome original, algo que pode ser interpretado por “ex”
(pronunciado em inglês tal e qual a letra “X”). Na transição entre os nomes Márcia
Pinheiro e Márcia X., a artista permaneceu por um tempo como “Márcia X. Pinheiro”, o
que pode também dar a conotação de Márcia “versus” Pinheiro, ou seja, a artista que
profana a sacralidade quando brinca com a ideia de expor a nudez coberta por um “manto
sagrado” de plástico transparente versus a estilista que veste e oculta a silhueta corporal,
reprimindo a natureza humana instintiva.228
228
A interpretação sobre a performance de Márcia X. apresentada aqui é completamente pessoal. Usei esta
mesma ideia na segunda edição do livro dedicado a trajetória dessa artista brasileira, intitulado por
Discursos Críticos através da Poética Visual de Márcia X.
95
1.3. Corpo Vestido (Despido de Traje Divino)
A relação humana com o corpo nu, segundo Agamben, comentando o que autor
Erik Peterson apresenta em Theologie des Kleides, é que o corpo antes do pecado original
estava “coberto” e que, após o pecado original, foi “descoberto”. “Antes estava velado e
vestido o que agora é desvelado e despido” 229 . Essa noção de corpo vestido de
indumentária, portanto, implica justamente na ausência de pureza, tornando, então,
necessária a ocultação de uma corporeidade que assim se apresenta desprovida do
intermédio sagrado, da “veste sagrada”, do “traje divino”, elemento que impediria o olhar
desaprovador para as marcas da sexualidade presentes nos corpos dos seres humanos.
A vergonha do corpo nu é diretamente relacionada à conduta religiosa e, sobretudo,
ao medo de Deus. No Gênesis, encontramos a seguinte declaração de Adão para Deus
depois do pecado original: “ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me, porque
estou nu (Gn 3, 10)”230.
Para Le Breton, o corpo em si já representa o pecado original, “a mácula de uma
humanidade da qual alguns lamentam que ela não seja de imediato de proveniência
tecnológica. O corpo é um membro supranumerário, seria necessário suprimi-lo”231. O
autor revela, assim, a luta do humano para melhorar a sua matéria-prima, sendo o corpo
tomado como um suporte a ser aperfeiçoado, tal qual os ornamentos que lhe atribuem a
aparência desejada.
As passarelas contemporâneas – exibidoras do corpo sexualizado, vestido de
pecado e descoberto do tal elemento sagrado – louvam uma nova força considerada divina,
sendo uma força terrena e não mais sobrenatural, uma potência efêmera e pouco palpável
quanto Deus com “d” maiúsculo, inclusive, também move uma legião de seguidores em
prol do que advém de si, algo que não pertence às religiões; são pregações de tendências,
de estilo, de gostos, tão inconstantes quanto o ponteiro do relógio. Deus, alento dos fiéis
que buscam a religiosidade, é tão respeitável quanto a Moda é para os seus seguidores,
229
PETERSON, Erik. Apud. AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 75.
230
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Ed.
Difusora Bíblica, 2008. p. 288.
231
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 15.
96
sendo a Vogue o livro sagrado desses adeptos, com sermões que são trocados
mensalmente, sendo um “novo testamento” que está sempre a ser reinventado.
Observando o desfile Arab Spring 2013 Collection do estilista Jeremy Scott, evento
performativo que integrou a tradicional Semana de Moda de Nova Iorque (NYFW 2012), já
a primeira figura que emerge na passarela é a de uma mulher quase totalmente
ocidentalizada em sua sensual vestimenta, porém, adornada com uma burca de tecido preto
transparente que cobre a indumentária de baixo, mas sem ocultá-la. O contexto intrigante
do evento demonstra o poder da globalização sobre o mundo, que neste caso particular – o
da chamada “Primavera Árabe” – culminou na queda de vários poderes totalitários dos
países que se juntaram a essa revolta.
232
Fatalmente, Jeremy Scott tocou justamente na temática que norteia essa pesquisa;
explicitou sim os elementos de conflitos militares, mas expôs, com isso, não apenas a luta
em prol da liberdade e do fim da opressão, descobriu o véu que reprime o corpo feminino
no contexto religioso desses países, trouxe à luz o corpo da modelo – que se torna uma
alegoria de signos, emprestando seu corpo ao discurso do designer. Nas duas imagens
referenciadas em nota, tanto o véu negro – que não oculta o corpo vestido – quanto o véu
232
Imagens de Arab Spring 2013 Collection do estilista Jeremy Scott obtidas em:
http://www.vogue.co.uk/fashion/spring-summer-2013/ready-to-wear/jeremy-scott (consulta realizada em
09/10/2012).
97
estampado (imitando, em tons de dourado, a pele de uma onça), em tecidos esvoaçantes,
propõe liberdade ao corpo feminino, que ao invés de estar escondido, está exageradamente
exposto em uma das passarelas mais requisitadas do mundo.
A brasileira Lenora de Barros, em sua videoperformance Já vi tudo (2005), está
com seu rosto cerrado por um adorno semelhante a um gorro, o qual cobre toda sua face. O
plano do registro do vídeo está limitado à altura da cabeça da artista, que retira duas
agulhas brancas de tricô que prendem os pontos da trama de lã desse adereço de tonalidade
escura (referência à condição da mulher religiosa de países árabes?), então, à medida que
vai puxando os fios da textura que oculta sua face, o adereço é desfeito e seus olhos são
revelados, mas, não tarda para que, através do recurso de reverter a imagem em
movimento, ela recubra todo o rosto e refaça a mesma trama escura que a cerrava por
debaixo do incômodo indumento.
233
Em Re-banho, uma das performances elaboradas para a parte prática deste trabalho,
procurei expor a relação do indumento com o corpo do sujeito e, com isso, levei em conta
a noção de confecção de roupa, portanto Moda, bem como o pudor/culpa e a ausência do
“traje divino” nos seres humanos.
Em 2010, durante a XIV Bienal de Arte Sacra Contemporânea, o artista Francesco
de Molfetta expôs sua escultura de Virgem Maria vestida com um “manto sagrado”
233
Já vi tudo (2005), Lenora de Barros. Frame da videoperformance. Re-banho (2010), Tales Frey – Cia.
Excessos. Registro fotográfico de Marcos Guilherme. Ambas imagens pertencem ao acervo da
Performatus.
98
inteiramente preenchido pelas iniciais “L” e “V”, que definem a logomarca da grife Louis
Vuitton, sendo, então, uma estratégia artística de fazer o observador refletir sobre a
sociedade de consumo em que está inserido, onde o “culto da aparência” é ilustrado no
monograma que está sobre a Nossa Senhora e, a fusão de ambos elementos representam a
“busca pela felicidade efêmera” do sujeito atual, conforme explica o próprio autor da obra.
Se Moda é prazer e prazer é pecado, a virgem Maria é pecadora quando veste um manto de
grife em tons escuros, que ostentam a logomarca, imagem ícone do consumo modal, em
tom dourado, carregado de uma suntuosidade completamente mundana.
234
Na Vogue Brasil, a tal “busca pela felicidade efêmera” não aparece como protesto,
mas como condição em si, sob fotografias de Giampaolo Sgura e styling de Ana Dello
Russo, a modelo Izabel Goulart desponta ornada como uma freira em ambientações
religiosas da cidade de Salvador no editorial intitulado por Cheia de Graça. Os vestuários
são criações de Saint Laurent, Marc Jacobs, Gucci, Prada, Valentino, entre outras grifes
mundialmente conhecidas, que aparentam ao indumento em seu conjunto, quase
precisamente igual ao de uma religiosa, mas estando esta repleta de esplendor consumista.
234
Da esquerda para a direita: Lourdes Vuitton, de Francesco De Molfetta. Imagem obtida em:
http://revistacriativa.globo.com/ (consulta realizada em 14/04/2013). Cheia de graça, editorial elaborado
para a Revista Vogue Brasil de Fevereiro de 2013.
99
Destaco ainda, aqui, o trabalho do figurinista Jason Alper, que, em produções
voltadas para as artes visuais, construiu uma série de alterações em obras de artes clássicas
com a impressão da marca Louis Vuitton sobre as representações de tecidos presentes em
tais pinturas. A Última Ceia, de Leonardo da Vinci (sob o novo título de Who’s paying?), é
retomada com ironia ao ter representado, sobre a mesa, um soberbo tecido que substitui o
simplório pano branco que antes cobria o sustento de madeira, onde, ao redor, estão
reunidos os doze apóstolos. What would Jesus wear? e The stigmatization of the fashion,
de Alper, fazem referência, respectivamente, às obras A incredulidade de São Tomé (1599)
e São Francisco de Assis em êxtase (1595), ambos do pintor Caravaggio. Todas as obras
expõem os tecidos presentes em artefatos de luxo, ironizando a essência sagrada da
imagem, explicitando o consumo da Moda até mesmo entre as figuras admiradas pela total
ausência de desrespeito a algum preceito religioso.
David LaChapelle, em sua série Jesus is my homeboy (2003), reconstrói a Última
Ceia com características exageradamente coloridas e humoradas, as quais bem explicitam
a falta de espontaneidade nos comportamentos contemporâneos, circunscritos numa
sociedade de consumo, onde a imagem deve ser e estar “perfeita” e corresponder a algum
rótulo em meio ao caos originado pela ambientação abarrotada de pessoas e ornamentos
com seus pertences, seus objetos. Apóstolos “B-boys”, com suas condutas correspondentes
aos “guetos” que frequentam se diluem na religiosidade satirizada, estando todos
congelados com seus vestuários da marca Adidas, típica dos rappers. Isso nos direciona
justamente para Baudrillard, que inicia o seu livro A Sociedade de Consumo, descrevendo
como hoje somos rodeados pela “evidência fantástica do consumo e da abundância”235 e
como, com isso, ocorreu uma “mutação fundamental na ecologia da espécie humana”236. O
cenário mostrado na ceia de Cristo parece pouco farto, mas as cores em excesso apagam a
miséria daquele recinto humilde, fazendo sobressair o glamour e o deleite do vestuário
contemporâneo em suas paletas vibrantes.
235
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo, p. 15.
236
Idem.
100
237
238
237
Versão da Santa Ceia de Jason Alper intitulada por Who’s paying?. Imagem obtida em:
http://jasonalper.com. (consulta realizada em 14/04/2013).
238
Last Super, da série Jesus is my homeboy (2003), por David LaChapelle. Imagem obtida no site oficial do
artista: http://www.davidlachapelle.com (consulta realizada em 14/04/2013).
101
Em homenagem ao autor José Saramago, a revista Playboy portuguesa, de Junho de
2010, expôs a representação de Jesus Cristo com mulheres nuas como forma de fazer
alusão ao Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, obra em que é retratado um Jesus
humanizado e, também, seu arbitrário envolvimento afetivo e carnal com Maria Madalena.
Na obra, Saramago descreve, em determinada situação, por exemplo, que “Jesus e Maria
de Magdala despediram-se com um abraço que parecia não ter fim”239, depois que ele
“conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem” 240 . Na narrativa, Jesus
confessou: “Confortai-me com uvas passas, fortalecei-me com maçãs, porque desfaleço de
amor”241. Obviamente, a obra de Saramago gerou enorme revolta por parte dos adeptos do
catolicismo mais fervorosos. Exposta a alusão à obra de Saramago na revista Playboy –
revista especializada em entretenimento erótico para o público que admira o nu feminino –
o burburinho, talvez bem menor, não foi inexistente.
242
102
de Orlan intitulada por S’Habiller de Sa Propre Nudité (1976-77) – que veste ao mesmo
tempo que sugere o corpo nu; não peca (num âmbito moralista) por ocultar a verdadeira
nudez, mas detona com as normas morais ao estampar essa nudez sobre a própria
vestimenta. O duplo sentido pode ser compreendido no próprio título desse trabalho. A
metáfora da nudez é literal quando surge timbrada no tecido que a oculta e alude a sua
natureza ao mesmo tempo. A obra expõe o corpo pecador, o corpo feminino e o masculino
despidos do “traje divino”, vestidos de sexualidade.
243
243
Da esquerda para a direita: Veste Nu (2010) e Troca-Troca (2008), de Daniel Toledo. Tanto o registro
fotográfico quanto o frame do vídeo pertencem ao acervo Performatus.
103
1.4. Conexões entre a Moda e a Religião
244
FLÜGEL, J.C. A Psicologia das Roupas, p. 125.
245
AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 73.
246
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Ed.
Difusora Bíblica, 2008. p. 28.
247
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 73.
248
ibdem, p. 74.
104
O tempo da moda é, deste modo, constitutivamente um tempo que se
antecipa a si próprio e, precisamente, por isso, está sempre atrasado, tem
sempre a forma de um limiar incaptável entre um “ainda não” e um “já
não”. 249
249
Ibdem, p. 24.
250
Sobre a Moda, Georg Simmel afirma que “não se pode dizer que ela ‘é’, pois está sempre ‘se fazendo’”.
Esta afirmação foi absorvida do livro 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, de Zygmunt Bauman.
251
Ibidem, p. 29.
105
respeito a valorização das formas, mas que foi reprimida com o aparecimento do
cristianismo. O conforto, ao menos para os corpos masculinos na antiguidade grega252, foi
gradativamente sendo substituído pelo rigor e desconforto até que, no século XVI, chega
ao seu apogeu. Enquanto molestava o corpo, o vestuário podia ocultar as “vergonhas”, mas
ao mesmo tempo, enfatizar as diferenças entres os sexos, como o codpiece, uma espécie de
tapa-sexo que tinha, por objetivo, acentuar o sexo masculino. O rufo (que inibia os
movimentos), o corpete (que obrigava o sujeito a manter a postura ereta) e o acolchoado
(que eliminava as dobras existentes em determinadas áreas dos vestuários) limitavam a
movimentação física como forma de ostentar a aristocracia, que não precisava realizar
tarefas pesadas.
Somente com a descoberta de Willian Harvey, divulgada em 1628, sobre o
funcionamento do coração é que a noção de temperatura corporal253 é alterada, fato que se
choca com a visão cristã medieval, a qual atribuía ao coração o valor de “órgão da
compaixão”254.
Instaura-se nesse momento, então, um cuidado maior em relação ao movimento
corporal, antes impedido pelo vestuário. Há ainda uma alteração nos cuidados com a
higiene pessoal, além da higiene no meio ambiente em que viviam. Nada podia ficar
estagnado, seja no organismo ou na cidade, pois a saúde estava firmada na circulação, no
movimento. Conforme observa a autora Beatriz Ferreira Pires:
252
Cf. SENNETT, Richard. Carne e Pedra: O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental, p. 31.
253
O autor Richard Sennett, em Carne e Pedra: O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental, explica que,
na antiguidade grega, na época de Péricles, acreditava-se que a diferenciação entre os homens e mulheres era
abjudicada ao conceito de calor corporal, sendo que o calor corporal dos homens era superior ao das
mulheres. “Segundo os gregos, o corpo quente era mais forte, reativo e ágil do que um corpo frio e inerte” (p.
31). Conforme esclarece o autor, esse conceito foi utilizado também no antigo Egito.
254
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo Como Suporte da Arte, p. 46.
255
Idem.
106
A revolução médica parecia ter operado a troca de moralidade por saúde –
e os engenheiros sociais estabelecido a identidade entre saúde e
locomoção/circulação. Estava criado um novo arquétipo da felicidade
humana.256
Uma mulher não poderá usar coisas de homem e um homem não poderá
vestir-se com roupas de mulher, porque o SENHOR, teu Deus, abomina
257
quem assim procede (Dt 22, 5).
Talvez não haja a intenção explícita de romper com os tabus de ordem judaico-
cristã, mas tão somente de rescindir com todo um conjunto cultural, embora o signo do
256
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental, p. 216.
257
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima: Ed.
Difusora Bíblica, 2008. p. 288.
107
estranhamento seja justamente o de expor o conforto do indumento feminino sobre a
recalcada macheza social, afinal é o calor que o leva a isso. O discurso de Flávio de
Carvalho desvirtua a lógica normativa e paira sobre o questionamento dos comportamentos
sociais estigmatizados, fazendo valer também os “desviantes”, logo acaba, em certa
medida, por funcionar como um vislumbre da Queer Theory.
258
108
Embora a religião condicione de formas diversas o desejo sexual, quando há a
diferenciação no vestuário masculino e feminino, a humanidade fica mais sexualizada
através dos códigos que valorizam os sexos opostos. É uma contradição, mas a igreja eleva
o prazer carnal quando reprime os corpos a usarem padrões correspondentes aos seus sexos
biológicos. O ser humano é impuro para o cristianismo e deve evitar cair em tentação
mediante às exigências comportamentais impostas por um cruel ditador, a quem muitos
dão o nome de Deus (com d maiúsculo).
260
259
CARVALHO, Flávio de. A Moda e o Novo Homem: Dialética da Moda, p. 171.
260
Da esquerda para a direita: Şükran Moral. The Artist (1994). Imagem captada durante a exposição Despair
& METANOIA: Şükran Moral | VALIE EXPORT na Galeri Zilberman (Istambul, Turquia) entre os dias 12
de setembro e 26 de outubro de 2013. Giuseppe Campuzano, Dolorosa, 2007. Catálogo do Salão Arte
Pará 2009.
109
outras que compõem a nossa cultura. Vale lembrar que artistas como Urs Lüthi e Luciano
Castelli apostaram nessa temática Queer e buscaram quebrar preceitos estabelecidos.
Assim como Hannah Wilke que procurou colocar em xeque a ideologia patriarcal do
cristianismo com sua obra Hannah Wilke Super-t-art (1974), ou ainda, Şükran Moral
quando realizou The Artist em 1994 e Giuseppe Campuzano em sua composição Dolorosa
de 2007.
110
1.5. Corpo e Religião
Declara Jorge Glusberg que a origem “do uso do corpo humano posto como sujeito
e força motriz do ritual remonta os tempos antigos” 261 . Pensando no corpo sob a
perspectiva religiosa de matriz judaico-cristã, a ideia do pecado original é configurada na
representação da nudez corporal de Adão e Eva.262
Quando discorremos sobre o corpo e as relações deste no âmbito religioso, logo
remetemos nosso pensamento para a noção de culpa e para a uma severa negação do prazer
como forma de afirmar o ascetismo e engrandecer a alma; numa lógica ascética, o corpo
deve ser mortificado em prol da ascensão do espírito.
Em sua obra Carne e Pedra. O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental,
Richard Sennett afirma que:
Na Grécia Clássica, por exemplo, havia uma imensa preocupação com a saúde dos
cidadãos, onde os médicos recomendavam prática de esportes e uma dieta equilibrada. Ao
contrário de uma crença ancorada na condenação do corpo ou na autoflagelação, essa
sociedade acreditava em um modo de vida saudável. Mas, conforme ressalva Richard
Sennett:
261
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 11.
262
Cf. Idem.
263
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental, p. 112.
264
Idem.
111
Cybelle Weinberg e Táki Athanássios Cordás advertem que a configuração cristã
do ascetismo tem como princípio a teoria do filósofo grego Platão, “para quem a alma,
divina e etérea, encontra-se literalmente encarcerada no corpo que a prende ao mundo e
impede a sua libertação”265.
O ascetismo em sua forma mais radical teve seu clímax no século IV, com os “pais
do deserto” e com as santas jejuadoras na Idade Média. Nesse momento, houve, inclusive,
um afrouxamento por parte da Igreja no que diz respeito aos jejuns e autoflagelações, mas
esses santos do deserto e essas “mulheres místicas” reagiam a essa moderação. As práticas
eram extremas: usavam sapatos com pontas de pregos, dormiam em camas também com
esses elementos pontiagudos, perfuravam suas línguas, maltratavam seus corpos nas partes
mais variadas com uso de alfinetes, por exemplo. 266
A esse respeito, cabe citar Le Breton com a seguinte afirmação:
265
CORDÁS, Táki Athanássios; WEIBERG, Cybelle. Do Altar às Passarelas – Da Anorexia Santa à
Anorexia Nervosa, p. 23.
266
Cf. Ibidem, p. 27.
267
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 14.
112
status corporal perdeu sua força quando, entre os séculos XV e XVI, estas práticas
passaram a ser encaradas como sinais de bruxaria e como possessões demoníacas.
Mesmo depois de Nietzsche posicionar-se como um arauto da morte de Deus,
emerge, a partir do século XX, práticas que remontam essas que foram mencionadas e que
ocorriam associadas ao ideal ascético. Práticas que desencadearam nas que percebemos
hoje, as quais evidenciam um status corporal vinculado a alguma crença religiosa, ou
então, ao total desinteresse espiritual sob a afirmação irrestrita do material. De certa forma,
quando Le Breton reflete sobre o “extremo contemporâneo”, ele está a evidenciar que o
mesmo processo de condenação ao corpo – considerado anacrônico – é retomado, desta
vez em prol dos avanços tecnológicos das últimas décadas do Século XX.
Para Le Breton, “uma versão moderna do dualismo não opõe mais o corpo ao
espírito ou à alma, porém, mais precisamente, ao próprio sujeito” 268 . O corpo
contemporâneo – salvo exceções e, como singelo exemplo, cabe evidenciar os pertencentes
ao sangrento ritual árabe do dia da Ashura – afirma a sua própria matéria quando é alterado
pelo acréscimo e introdução de novos elementos e se confirma enquanto alter-ego do
sujeito, que pode projetar seus desejos, seus prazeres em sua própria matéria prima. É um
corpo que realiza o seu ideal e o consome sobre si; “a anatomia não é mais um destino,
mas um acessório da presença, uma matéria-prima a modelar, a redefinir, a submeter ao
design do momento”269. Com o corpo na Moda, o sujeito nega a condenação a favor do seu
deleite, afinal Moda é gozo.
268
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p, 28.
269
Idem.
113
1.6. Corpo, Moda e Cultura de Massa
Não é assim tão recente o desejo do sujeito de modificar seu corpo em prol de uma
aparência exterior. Num momento decisivo de afirmação da experiência da modernidade e
de expressão do sujeito através da Moda, Baudelaire anuncia em O Pintor da Vida
270
FLÜGEL, J.C. A Psicologia das roupas, p. 13.
271
RIO, João do. “A Alma Encantadora das Ruas”. In: ARAUJO, Leusa. Tatuagem, Piercing e Outras
Mensagens do Corpo, p. 8.
272
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 18.
114
Moderna a sua intuição acerca do poder da relação entre o meio e o indivíduo, abordando a
noção de identidade que cada um pode esculpir em si mesmo:
Talvez a prática da body modification274 seja o que melhor traduz, nesse instante da
história em que vivemos, as radicais transformações corporais em prol de um ideal de
imagem capaz de exprimir o sujeito. Se “todas as modas são encantadoras”, conforme
afirmava Baudelaire em O Elogio da Maquilhagem, o encanto da Moda leva hoje o
indivíduo a ir mais longe e a moldar seu corpo conforme o que é ditado como tendência.
“Fashion`s great seduction is its mutability”275 ; sendo assim, a inconstância da aparência
pessoal, seja ela impressa no estilo de roupas, no penteado, na coloração dos cabelos, nos
acessórios ou na própria pele, é, em grande parte dos casos, resultado de um fenômeno
modal que está em permanente mutação. Na definição do historiador de arte Kenneth
Clark, “a nudez é o corpo despido, vestido de cultura”276, ou seja, é no corpo também que
toda uma cultura condizente a um determinado tempo vai ser timbrada.
Lady Gaga, Madonna e Marilyn Manson são exemplos de cantores que atingem
uma massa consumidora não só com as suas composições musicais, mas também com as
suas imagens. Nos três cantores, percebemos a congruência da Moda e da religiosidade,
mas também o efeito de autocracias corporais, simultaneamente movidas por tendências e
ditadoras de propensões. São discursos aparentemente levianos, por vezes encontrados nas
suas canções e videoclipes, mas impactantes em suas composições sonoras e imagéticas,
convincentes em seus merchandisings, por serem ajustados à atmosfera imersiva da nossa
época.
Madonna, em 1989, em seu videoclipe Like a Prayer – música proibida nas redes
musicais do vaticano na época –, beija um santo negro. Depois, sobre a vida religiosa
273
BAUDELAIRE. O Pintor da Vida Moderna, p. 8.
274
Conceito usado para designar as modificações corporais executadas das mais diversas formas.
275
KODA, Harold. Extreme Beauty – The Body Transformed, p. 8.
276
CLARK, Kenneth. Apud. KODA, Harold. Extreme Beauty. The Body Transformed, p. 8.
115
privada, declara sua adesão ao Kabbalah Centre em Nova Iorque e, posteriormente, à Opus
Dei277. Faz uso da religião e da Moda nos seus trabalhos como forma de escandalizar e,
sobretudo, despertar interesse do público e da mídia desde as últimas décadas do século
XX e retomou com entusiasmo, em 2012, essa sua marca. Ao cantar Like a Prayer e
Vogue, ela embaralha os dois universos adjacentes nas suas performances sobre o palco,
onde, com o seu corpo, destroça o sagrado em sua profana figura, contraditoriamente,
vestida de branco em Like a Virgin, abstendo da abençoada representação da noiva que
veste-se cândida, para dar lugar ao seu corpo conspurco, fazendo ode à volúpia, ao prazer
carnal.
278
116
mas não declaradamente referido como fonte de inspiração. O mesmo acontece com o sofá
de carne, Chair Apollinaire, de 1996, criado por Sterbak, que é absorvido, sem qualquer
menção para os shows da cantora.
Mórbido, o traje não instiga a fome, ao contrário, dá enjoo, provoca-nos a perda de
apetite e, sendo assim, o título da obra de Sterbak faz jus ao que ocorre com o seu
desdobramento em Lady Gaga, que o apresenta sobre sua pele clara e corpo tão estreito
quanto os das modelos obcecadas pelo padrão da magreza. De fato, a cantora, protegida em
seu “cibercorpo”, através da rede da internet, proclama seu discurso pró-ana/mia através do
seu Twitter, ou seja, defendendo a anorexia de certa forma, convocando que uma legião de
fãs cultuem igualmente o corpo magro de forma nada saudável quando declara: “Just killed
back to back spin classes. Eating a salad dreaming of a cheeseburger”279. Vale lembrar que
a cantora já confessou ter sofrido de bulimia nervosa durante a adolescência.
Em 2011, Lady Gaga lança seu single Judas, fazendo alusão à famosa passagem
bíblica, que somente o nome já nos situa, exibindo uma versão modernizada do Judas e dos
demais apóstolos de Cristo em suas motocicletas e jaquetas de couro com tachas prateadas.
Gaga incorpora a própria Maria Madalena, estabelecendo relações iconográficas às
passagens sagradas que envolvem as figuras dramáticas da alegoria elegida. Todos
atores/modelos do clipe foram vestidos por Nicola Formichetti, que usou indumentos da
Christian Lacroix Couture, Schott Perfecto, Thierry Mugler, Alexander McQueen, Sally
LaPointe, Erik Halley, entre outras pomposas grifes expostas no vídeo que “fashioniza” a
alegoria religiosa. Provocante, libidinosa, Gaga jura ter amor pelo Judas como uma
estratégia marqueteira de chocar seu público para comercializar o que cria. Em 2013,
repete a fórmula ao compor a canção Burqa, propondo aparições públicas trajada em uma
sensual burca cor-de-rosa. Além da produção de música, a cantora tem o The Haus of
Gaga280, com a qual quer trazer a performance art como corrente principal281 nas suas
criações.
279
GAGA, Lady. Apud. D`Ospina, Elisa. Lady Gaga and the Bulimia. 04 de Março de 2012. Vogue Italia.
Informação obtida em: http://www.vogue.it/en/vogue-curvy/the-curvy-blog/2012/04/lady-gaga-on-twitter
(consulta realizada em 06/04/2013).
280
Haus of Gaga (inspirada na Factory de Warhol) é a equipe criativa da artista pop, a qual cria suas roupas
cotidianas e de palco, bem como os seus estilos de cabelo. É composta pelos principais designers de
Moda da atualidade.
117
Não somente Lady Gaga e Madonna exploram a Moda e a religião em seus shows
ao vivo, fazendo uso de crucifixos e de símbolos religiosos como artifícios recorrentes nas
suas invenções. Marilyn Manson, cantor de estilo gótico, opta pelo tom mefistofélico nas
suas apresentações performáticas e videoclipes. Claramente influenciado por Rozz
Williams da banda Premature Ejaculation, a qual tinha Ron Athey também como
integrante, Marilyn Manson subverte e sataniza o elemento santificado, talvez como forma
de desestabilizar crendices – ou para constatar que essas já se encontram deterioradas na
atual sociedade –, fazendo a inclusão da indústria da Moda nas suas performances estético-
ideológicas:
283
118
no que nos propõe Marilyn Manson, Madonna e Lady Gaga com seus corpos. Em
catálogos de Moda, todos estes artistas foram referenciados para ditarem alguma regra a
ser seguida. Alguma regra que foi elaborada sob influência do próprio meio que ela (a
Moda) influencia.
A arte da performance, com suas vertentes, acabou incorporada pela cultura de
massa desde os anos 80 e, desde então, temos nos apoiado na síntese das mídias, unindo do
tosco ao conceitual numa mesma consumação mixed-midia. Veja-se a performer Heather
Cassils atuando em videoclipe da Lady Gaga, Yoko Ono cantando com ela, ou ainda, Lady
Gaga associada com Marina Abramović284 em seu álbum Art Pop lançado em 2013. Ou
ainda, Abramović, Roselee Goldberg e outras celebridades do universo da arte da
performance em parceria com Jay-Z na execução de seu clipe-performance Picasso Baby
(2013).
Vemos assim, um claro exemplo daquilo que Guillermo Gómez Peña chama de
“mainstream bizarre”285, para refletir sobre uma condição existente na performance atual
que volta-se para uma “estratégia de marketing sexy e pop”286:
Sem estabelecermos juízo de valor, sem fazermos qualquer observação crítica com
relação ao gênero da performance diluído no mainstream, podemos perceber, numa
performance ao vivo de Lady Gaga, Madonna ou Marilyn Manson, por exemplo, em que,
284
Esta sintonia entre o universo pop e a linguagem da arte da performance avança a tal ponto que acaba por
chegar ao contato “metodológico”, onde a cantora Lady Gaga “executa” (em representação similar ao
editorial de Moda) o método criado por Marina Abramović: http://vimeo.com/71919803 (Consulta realizada
em 31 de outubro de 2014). Este é um contacto que, afinal, diz tanto sobre a canibalização da performance
pela arte de massas, como sobre o perigo que a performance corre quando abandona a resistência ao mercado
que a definiu na origem, para se relacionar porventura de forma demasiado íntima, com os termos do
mercado artístico.
285
GÓMEZ PEÑA, Guillermo. “In Defence of Performance Art”. In: HEATHFIELD, Adrian. Live: Art and
Performance. p. 84.
286
Idem.
287
Idem.
119
no aqui-agora, o “performer” tem que segurar a atenção do seu público, a característica de
rito quando vemos a transformação da condição espetáculo-espectador em uma espécie de
“comunhão”. Inclusive, vemos nas atitudes comportamentais e nos adornos corporais do
seu público a transposição do que vem do palco e vice-versa. Não podemos negar que as
lentes de contato brancas de Marilyn Manson não tenham influído numa série de cidadãos,
mas não podemos negar, igualmente, que essa coloração de lente não tenha sido sugada de
alguns grupos da nossa sociedade. O mesmo vale para os demais artistas, por exemplo,
Lady Gaga no álbum Born This Way com suas maquiagens absorvidas de Orlan (observem
a polêmica em torno da acusação de plágio por Orlan contra Lady Gaga), Zombie Boy e
dos adeptos da body art e body modification.
O processo de construção do corpo na cultura de massa está diretamente ligado aos
poderosos meios de comunicação como a televisão e a internet, onde a Moda é
frequentemente ovacionada e representada por estrelas da música, do cinema e da própria
indústria da Moda, onde o simulacro substitui o real, onde o natural é negado para dar
lugar aos supostos corpos perfeitos.
Beatriz Ferreira Pires, em O Corpo como Suporte da Arte, divide da seguinte
maneira os grupos que praticam as modificações corporais atualmente: um primeiro grupo,
sendo composto pelos indivíduos que buscam justamente o ideal determinado pela
sociedade e pela época em que estão a viver; e um segundo grupo, composto por
indivíduos que fazem uso de transformações que não possuem características
correspondentes ao corpo humano. Nesta pesquisa, Performance e Ritualização – Moda e
Religiosidade em Registros Corporais, são nomeados, respectivamente, por “corpos
normativos” e “corpos sobre-humanos”. A autora Beatriz Ferreira Pires divide o último
grupo, o qual nomeio por “corpos sobre-humanos”, em outros dois: o primeiro por
seguidores da Moda que percebem as alterações corporais como um requisito estético para
estarem inseridos no contexto urbano atual; e um segundo que possui ideias e ideais com
relação às modificações corporais, sendo este último grupo adepto da body modification.
Nesta pesquisa, os dois últimos grupos mencionados (subgrupos intitulados por “corpos
sobre-humanos”) serão referidos, respectivamente, como “corpos sobre-humanos
ordinários” e “corpos sobre-humanos extraordinários”. Acrescentei ainda um último grupo
120
a este quadro que a seguir apresentarei com base na teoria de Le Breton: o “cibercorpo”.
Sobre a body modification, afirma Beatriz Ferreira Pires:
E conforme observa George Bataille, “quanto mais as formas são irreais, menos
claramente elas se subordinam à verdade animal, à verdade fisiológica do corpo
humano” 289 . Esse autor ainda afirma que “a multiplicação perturba um estado de
simplicidade do ser, um excesso destrói os limites, chega de alguma maneira ao
transbordamento”290.
288
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 20.
289
BATAILLE, George. O Erotismo, p. 94.
290
Idem.
121
2. Para um Mapa do Corpo Contemporâneo
Apresento aqui uma tabela que resume e antecipa a discussão que finalizará o
segundo capítulo deste estudo:
122
2.1. Corpos Normativos e Corpos Ordinários
Antes de comentar cada um dos grupos criados aqui, convém ressaltar que não é
pretendido designar categorias inflexíveis acerca dos tipos corpóreos, mas sim estabelecer
um esquema de estudo específico para melhor dissecar os tantos tipos de corpos que
existem, tentando compreender as motivações que os conduzem em suas próprias
alterações ou não.
O chamado “corpo ordinário” aqui é o que não se submete a nenhum tipo de
transformação de forma não natural e que, no máximo, faz intervenções como cortar as
unhas, cabelos, pelos, etc. Anteriormente à exploração do que nomeei por “corpo
normativo”, convém explicar um “corpo não normativo e não sobrehumano” e que aqui
não é especulado. Assim como chamados aqui “corpos normativos”, os “não normativos e
não sobrehumanos” seriam também os que não promovem alterações corpóreas em busca
de características não pertencentes ao corpo humano (como tatuagens, piercings, etc.).
Essses corpos seriam os corpos advindos da cultura e política Queer, tais como os
crossdressers e drag queens que não se encaixam num modelo binário/heteronormativo
por exemplo. Também poderíamos enquadrar como corpos “não normativos e não
sobrehumanos” as Gamguro e Yamamba, dois movimentos urbanos de contracultura
japoneses que negam os padrões de beleza impostos às pessoas de gênero feminino que,
naquele contexto, devem ser brancas, com cabelos pretos lisos, devem usar trajes neutros,
etc. As Gamguro e Yamamba se maquiam em excesso, fazem bronzeamento artificial em
excesso, enrolam os cabelos e se “montam” criando um estereótipo da normatividade
ocidental e, ao mesmo tempo, desafiam a normatividade oriental através de um
exterioridade extremamente alegre.
Ressalto que os corpos Queers, as Gamguro e Yamamba, bem como as(os)
transexuais (F2M bem como M2F, ou seja, sexo biológico masculino transformado em
feminino e vice-versa) podem se enquadrar tanto nos “corpos normativos” como “não
normativos e não sobrehumanos”, como nos “sobre-humanos ordinários”, “sobre-humanos
extraordinários” e “cibercorpos”; isso depende de como eles obedeceriam (ou não) às
regras sociais e, também, a forma como alterariam (ou não) os seus traços humanos. A
análise deste estudo não tem nada a ver com sexualidade e identidade de gênero.
123
Corpo “normativo”, ou seja, corpo que está enquadrado em uma regra tida por
“normal”, “natural”, correspondente ao que é espontaneamente humano; não adulterado
(embora haja artifícios) ao ponto de superar a convenção correspondentemente à da
silhueta humana. É notável que essa nomenclatura faz referência aos corpos oriundos de
um processo de reprodução do que vem da mídia: imagens amparadas em normas e, de
forma alguma, nega a obsessão narcisista extrema, furiosa, presente no que Le Breton
chama de “extremo contemporâneo”, fazendo fusão entre esse sujeito narcisista e sua
“vontade de poder” niilista: “O extremo contemporâneo define um mundo em que a
significação da existência é uma significação própria do indivíduo e não mais uma
evidência cultural”291.
Com relação a este grupo, no qual estão compreendidos os corpos aqui chamados
de “corpos normativos”, podemos incluir as modificações corporais tais como próteses de
seio (silicone), além de outras formas de cirurgia plástica (lipoaspiração, abdominoplastia,
etc.), modificações da tonalidade da pele através do bronzeamento ou clareamento sob
efeito de cosméticos e produtos dermatológicos, alterações na coloração dos cabelos por
uso de tintas, ou ainda, na coloração dos olhos através do uso de lentes de contato e,
também, modificações corporais sob auxílio de exercícios físicos e dietas.
Nas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI, a silhueta
corporal exigida para que um indivíduo possa “estar na Moda” e ser considerado
“benquisto”, socialmente aceito, um corpo-referência, além da estatura alta, é que ele tenha
um corpo extremamente magro, que pode ser alcançado, em muitos casos, dificilmente de
forma saudável. O corpo esquelético, estabelecido pelo mundo “fashion” como um corpo
belo, propicia uma legião de pessoas desequilibradas psicologicamente numa busca
desenfreada pelo resultado ordenado como o ideal. Pertencem, portanto, a este primeiro
grupo também os casos patológicos de anorexia e bulimia decorrentes destas obsessões.
É válido lembrar que esse corpo magro, exigido na atualidade, remonta os corpos
igualmente esqueléticos de um momento ascético da história, quando as santas medievais
praticavam os jejuns religiosos. O corpo desnutrido e chupado era status na Idade Média
assim como hoje o é. Naquele período, deixar de comer significava estreitar uma relação
291
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 31.
124
com o divino, momento em que se praticava o desapego do corpo em prol da alma. Hoje, é
o contrário, pratica-se o jejum para supervalorizar o corpo (fisionomia bela é a mesma que
outrora era tida por horrenda) e, com isso, dedicar a escravidão não mais ao Deus absoluto
de outrora, mas sim a um deus trocado pela Moda. Nesse momento da história, predomina
o lema presente na seguinte afirmação: “(...) se as santas medievais almejavam a
comunhão eterna com Deus, as anoréxicas de hoje se contentam com a glória efêmera das
passarelas” 292.
Websites de pró-ana ou pró-anorexia293 são antros de pessoas que, em sua maioria,
sofrem de distúrbios alimentares (anorexia e/ou bulimia) e cultuam essa magreza
excessiva, incentivando, através da grande rede, que outras pessoas (leitores desses sites e
blogs) adiram aos mesmos desequilíbrios. O conteúdo desses endereços virtuais expõe
imagens de pessoas extremamente esguias (normalmente são digitalmente alteradas), com
a finalidade de revelar esses distúrbios alimentares como formações próprias de um estilo
de vida e não como doenças sérias que são: “Mastigue bem a comida, para que pedaços
grandes não te machuquem na hora de miar”294, é o que sugere a blogueira identificada por
Sparkle Eyes para auxiliar a(o) bulímica(o) no momento de provocar o vômito. Ela ainda
sugere cada passo a ser dado para que não haja nenhum lapso que revele o “segredo” de
quem assim procede, caracterizando o sério distúrbio como apenas um aventureiro modo
de viver.
Em sua maioria mulheres, estas internautas insistem, através desse tipo de prática,
na construção de suas identidades baseadas em condutas classificadas como pró-ana,
princípio estabelecido com base na prática corporal tão presente no âmbito da cultura de
consumo.
Para compreender a norma corporal contemporânea e o culto da magreza que
despreza qualquer sobra de gordura, é imprescindível analisarmos os procedimentos mais
abrangentes que influenciam absolutamente na constituição dessas representações
imagéticas.
292
CORDÁS, Táki Athanássios; WEIBERG, Cybelle; Do Altar às Passarelas – Da Anorexia Santa à
Anorexia Nervosa, p. 9.
293
Estes websites de conteúdo pró-ana e pró-mia são páginas que fazem apologia à obtenção do corpo magro
através da anorexia e bulimia.
294
Discurso presente em: http://promiaeproana.blogspot.pt. (Consulta realizada em 11/08/2013).
125
A sociedade de consumo é caracterizada pelo comportamento narcisista e
hedonista, sendo o consumo uma forma de alcançar a autorrealização das pessoas que
compõem essa sociedade, as quais são inspiradas pelos seus prazeres pessoais e pela
conquista de suas satisfações. O corpo, “vetor eficaz”, nesse sentido, é uma forma de
refletir o nosso amor próprio, pois nos esclarece, “através da relação que temos com ele”,
os nossos sentidos e capacidades.295
Dentro de uma lógica capitalista, emerge o sujeito interessado em saciar
unicamente o seu próprio prazer através do consumo e o seu corpo, principal veículo da
sua manifestação individual, pode ser moldado conforme o padrão cultural de beleza
ditado na contemporaneidade:
A consequência gerada pela imposição desse padrão de beleza – que exige corpos
magros e com características específicas do modelo europeu de aparência – é fazer com
que o sujeito atual estabeleça uma busca obsessiva pela suposta perfeição (algo que é
extremamente característico do tempo em que vivemos), a qual chega a ser patológica.
A vigorexia é um distúrbio hoje bastante discutido entre os psiquiatras, pois há, um
aumento significativo com relação aos sujeitos que buscam modelar seus músculos em
295
Cf. LIRA, Luciana Capelo de. Narrativas de Ana: Corpo, Consumo e Self em um Grupo Pró-anorexia na
Internet, p. 106.
296
Ibidem, p. 107.
126
função meramente estética com o aumento exagerado deles, os quais são chamados de
body builders, que em casos mais exagerados, quando tal busca por tornear seus corpos
ultrapassa a sanidade, a obsessão recebe o rótulo patológico de vigorexia.
Num geral, dotados de tal patologia ou não, os body builders constroem seus
corpos para exibir os músculos que nem vemos no corpo humano de forma natural e, sobre
isso, declara Le Breton:
É válido, porém, lembrar que a relação de cada indivíduo com seu corpo pode estar
ligada a mecanismos mais complexos, relacionados às suas experiências psicológicas.298
As chamadas “Síndromes Dismorfofóbicas” 299 (Anorexia, Bulimia e Vigorexia) são
distúrbios em que o sujeito que sofre de tal patologia tenta insistentemente construir em si
a sua imagem idealizada. No caso da Anorexia e Bulimia, que são transtornos alimentares,
há o medo patológico do corpo obeso e, no caso da Vigorexia, uma repulsa do corpo sem
músculos, ao corpo esquelético e sem formas.
Os Transtornos Dismórficos Corporais acarretam em queixas, vindas dos
indivíduos que sofrem dessas doenças, referentes a uma série de “defeitos” nos seus
corpos. Supostas deformações faciais (a forma ou tamanho do nariz, do queixo), bem como
a tonalidade da pele, o tamanho dos membros, etc.
Padrões de beleza são ditados constantemente. Nas ruas, nos deparamos com
outdoors gigantescos, com chamarizes descomunais a direcionar a nossa atenção para
produtos discursados por modelos em seus impecáveis corpos magros e “sarados” que são,
por consequência, idolatrados. Na televisão também é assim; telenovelas, filmes,
comerciais estão sempre a exibir o corpo-padrão e a resposta de como obter “a felicidade”.
Qualquer aparência diferente ou contrária à que vemos na mídia pode impulsionar num
indivíduo a sua árdua luta por uma transformação corporal e, inclusive, despertar
297
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 42.
298
Cf. GRECO, Musso Garcia. Declinações da Dismorfofobia: Estudo Psicanalítico da Distorção da
Imagem Corporal, p. 19.
299
Expressão utilizada pelo autor Musso Garcia Greco para agrupar a Bulimia, a Anorexia e a Vigorexia.
127
patologias por conta disso:
Além das buscas obsessivas pela boa aparência e eterna juventude que imperam na
nossa sociedade atual, Le Breton diz que “(...) muitas vezes os que usam a cirurgia estética
são indivíduos em crise (por divórcio, desemprego, envelhecimento, morte de um próximo,
ruptura com a família, etc.)”301. E o autor completa que esses indivíduos “(...) encontram
nesse recurso a possibilidade de romper de uma vez com a orientação de sua existência,
modificando os traços de seu rosto ou o aspecto de seu corpo”302.
Na árdua busca pelo embelezamento, Catwoman Jocelyn Wildenstein, ex-mulher
do bilionário Alec Wildenstein, passou por inúmeras cirurgias plásticas por temer o fim do
seu casamento e, então, inspirada no seu amor por gatos, sob o medo de ter seu marido
desinteressado na sua, então, natural aparência, resolveu reconstruir sua feição para se
refazer mais jovem e mais sedutora. O resultado foi desastroso, apesar de investir dois
milhões de libras em plásticas corporais e, depois de mais de sete “facelifts”, injeções de
colágeno nos lábios, bochecha e queixo, acabou por se transformar numa figura
incontestavelmente aterrorizante. 303
O descomedimento na procura por auxílios estéticos advindos das cirurgias
plásticas podem deformar e não aperfeiçoar o padrão desejado. O mesmo ocorre com o
abuso de cosméticos, embora esse exagero seja removível, ao contrário das intervenções
cirúrgicas, que podem ser destruidoras.
300
LIRA, Luciana Campelo de. Narrativas de Ana: Corpo, Consumo e Self em um Grupo Pró-anorexia na
Internet, p. 118.
301
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 30.
302
Idem.
303
Cf. LOVELL, Tammy. Catwoman Jocelyn Wildenstein Flaunts her Feline Features on A Romantic Day
out with her Man. Artigo disponível em http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1056573/Catwoman-
Jocelyn-Wildenstein-flaunts-feline-features-romantic-day-man.html (consulta realizada em 15/11/2012).
128
Donatella Versace (irmã do falecido estilista Gianni Versace) é a atual
administradora da grife italiana. Com o rosto preenchido por colágeno, ela é a prova viva
das catástrofes geradas pela insistência incondicional no ato de adaptar a própria silhueta
corpórea em prol de padrões estéticos.
304 305
306 307
304
Imagem de Catwoman Jocelyn Wildenstein disponível em: http://www.dailymail.co.uk (consulta realizada
em 15 de novembro de 2012).
305
Imagem de Donatella Versace. Figura disponível em: http://modaspot.abril.com.br/spot-doc/marcas-
estilistas/donatella-versace-2 (consulta realizada em 15/11/2012).
306
Michael Jackson quando criança. Imagem obtida na Revista Veja de 10 de outubro de 2011, disponível
em: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/musica-no-blog/semana-da-crianca-musical-michael-
jackson-um-genio-aos-9-anos-de-idade/ (consulta realizada em 15/11/2012).
307
Michael Jackson após uma exagerada série de intervenções cirúrgicas. Imagem obtida em:
http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/p_092.html (consulta realizada em 15/11/2012).
129
A obsessão pelos padrões europeus de beleza, que incluem a pele clara como
artefato de perfeição, fez com que o cantor Michael Jackson se empenhasse de forma quase
doentia (se não for completamente) na sua alteração radical, com a qual negava sua afro-
descendência através da mudança da tonalidade da pele (gerada pela doença que sofria e
que não foi tratada), no alisamento dos cabelos, da redução da espessura do nariz, entre
outras tantas mudanças, que lhe deram um aspecto bizarro, mas que, em âmbito das artes
performativas, garantiram a sua peculiaridade e ajudaram à sua fama. Fama latente até
mesmo nas inúmeras situações infames que envolviam o astro pop falecido em 2009.
O cirurgião plástico mais cotado do mundo em sua especialidade308, Ivo Pitanguy,
pertence ao segundo país que mais pratica a cirurgia plástica309. E, com base na sua
experiência, comenta:
308
Afirmação obtida na edição de aniversário de 35 da Revista Veja. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/p_092.html (consulta realizada em 15/11/2012).
309
Os Estados Unidos lideram essa posição. Tal constatação pode ser vista em:
http://veja.abril.com.br/noticia/saude/comecou-a-temporada-de-cirurgias-plasticas (consulta realizada em
15/11/2012).
310
PITANGUY, Ivo. Conserte a Natureza. [24 de Setembro de 2003]. São Paulo: Revista Veja. Entrevista
concedia a Sônia Biondo.
311
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 30.
130
esfoliante e devido a sua produção de colágeno. Pode ser adquirido por preços populares,
mas há quem prefira pagar cerca altos preços por um pote com 460 gramas do tão
almejado Crème de La Mer, considerado o creme mais caro do mundo312. O sujeito atual –
principalmente o jovem dos mais elevados padrões sociais – incorpora certos rituais em
seu cotidiano para conservar a juventude, para se refazer mais belo e, para além de afirmar
seu status social, sentir-se aceito dentro de uma sociedade que exige a aparência
impecavelmente admirável e bela, pois, afinal, nas sociedades contemporâneas, “é por seu
corpo que você é julgado e classificado”313.
314
312
Os dados precisos podem ser confirmados em: http://veja.abril.com.br/noticia/saude/comecou-a-
temporada-de-cirurgias-plasticas (consulta realizada em 15/11/2012).
313
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 31.
314
Da esquerda para a direita: Mannequin e Hot Lunch (séries fotográficas de Narcissister com fotos feitas
por Tony Stamolis. Imagens obtidas no site oficial da artista: http://www.narcissister.com (Consulta
realizada em: 11/05/2013); ARTificial (2008), fotoperformance / Cartão Postal. Trabalho realizado em
colaboração com Fernanda Dias de Moraes.
131
sobre os sujeitos atuais, que buscam nesses corpos os referenciais apropriados para a
estruturação dos seus. Algo que pode ser absolutamente confirmado no vídeo
Winter/Spring Collection (2013), feito em parceria com A.L. Steiner315. Ela constrói um
corpo que, naturalmente, devolve nosso olhar para uma fotografia de uma colagem
escultural de Man Ray intitulada por Cabide (1920/21) ou para as composições Untitled
#250 e Untitled #255 (ambas de 1992) de Cindy Sherman por exemplo. Através dessa sua
composição, a artista traz para a contemporaneidade o Mito do Narciso para o contexto
feminino alucinado na concretização com relação ao que sua autoimagem propõe, aludindo
às mulheres que se reconstroem tal qual as imagens tratadas em Photoshop, adquirindo, por
vezes, aspecto tão falso, que parecem ser de plástico ou cera.
Há, aqui, certa similaridade com o trabalho ARTificial (2008), que realizei em
colaboração com Fernanda Dias de Moraes, fotoperformance e arte postal em que
moldamos uma colagem de membros recortados de revistas de Moda sobre o real rosto
infantil feminino, compondo, dessa forma, uma face artificial que mesclava um rosto
bidimensional adulto de papel sobre a inocente faceta tridimensional de uma criança. As
palavras “Wild” e “artificial” compõem a dualidade presente na imagem gerada a partir da
ação que é compartilhada através de postais.
316
315
Vídeo disponível no site da Revista Artforum em:
http://artforum.com/video/id=41112&mode=large&page_id=0 (Consulta realizada em: 11/05/2013).
316
Da esquerda para a direita: Modelo Karlie Kloss é apresentada com duas axilas em ensaio fotográfico;
Campanha da Victoria’s Secret expõe modelo sem braço; modelo Raica Oliveira sem umbigo em
campanha publicitária. Imagens obtidas em: http://migre.me/e3lnh (10/04/2013).
132
Pessoas sem braço, sem umbigo, com duas axilas, magras de forma tão absurda que
só mortas (ou moribundas) atingiriam tanta discrepância com o real são exemplos de
corpos que vemos em campanhas publicitárias de Moda. Profissionais de tão obsessivos
em seus recursos (Photoshop) deixam, por vezes, vazar certas imagens que nos alertam não
só para a mentira evidente, mas também para a “verdade” que pode e deve ser sempre alvo
de desconfiança. Nos ilusórios corpos “perfeitos” podem existir imperfeições mundanas
por detrás das dissimulações e, essas “deficiências” mundanas é que são perfeitas de
verdade e que precisam ser aceitas como são, porque são coerentes, são reais, são
humanas.
Mas nessa afirmação, não estaria eu então sendo muito purista em um mundo que
procura reconstruir a beleza? Em torno de uma reflexão sobre um novo conceito de beleza
existente na atualidade, o fotógrafo Phillip Toledano diz: “estou interessado no que
podemos definir como belo, quando decidimos recriá-lo em nós”317. E aperfeiçoa o seu
argumento com as seguintes observações e indagações:
133
todas se assemelham, todas formam um protótipo que nos dá a impressão de que estamos a
presenciar entes de uma mesma família. E acaba por ser isso, porque trata-se de uma
geração refeita a partir de uma mesma época, de um tempo ainda por ser especulado e que
não é mais a genética que define as circunscrições da exterioridade.
319
319
Algumas imagens selecionadas a partir da série fotográfica New Kind of Beauty (2008-2010), de Phillip
Toledano. Imagens obtidas em: TOLEDANO, Phillip. A New Kind of Beauty, s/ página.
134
2.2. Corpos Sobre-humanos Ordinários
Esta nomenclatura refere-se aos sujeitos que não se contentam com a natural
aparência e que buscam uma exterioridade não pertencente a do corpo humano. São, aqui,
listados os sujeitos influenciados pelo padrão estético ditado pelo meio em que vivem,
normalmente urbanos, e que seguem tendências de Moda. Predominam, neste grupo, os
adeptos do uso de tatuagens, de piercings, de cores de cabelos não correspondentes as que
são naturalmente humanas, etc.
A exemplo dos “corpos sobre-humanos ordinários”, destacam-se os movimentos
punk e new wave, que, durante os anos 70, marcaram uma estética irreverente e diferente
do que foi visto na Moda até então. Os adeptos do movimento adornavam-se com
piercings, tatuagens e cabelos coloridos (verde, azul, vermelho, laranja, etc.). O
movimento perdurou também para a década seguinte, momento em que “não se sonha mais
com a sociedade alternativa”320 . O lema “paz e amor” passou a soar ingênuo nesta
sociedade que viu o sonho hippie ser sugado pelo sistema321 e que se tornou mais agressiva
na atitude.
322
No fim dos anos de 1970, os punks ingleses perfuravam suas peles com alfinetes de
fralda ou faziam pequenas escarificações com a finalidade de usar seus corpos em prol de
320
COHEN, Renato. Performance como Linguagem, p. 144.
321
Cf. Idem.
322
Da esquerda para a direita. Capa do single God Save the Queen. Imagem obtida em:
http://portal.anhembi.br/sbds/pdf/11.pdf (consulta realizada em 14/10/2012).
Jovem punk usando alfinetes na orelha e piercing no nariz. Imagem obtida em:
http://gds.parkland.edu/gds/!lectures/history/1985/digital.html (consulta realizada em 14/10/2012).
135
um protesto, “como se cravassem pregos na imaculada face conservadora da Inglaterra”323.
De certa forma, construiam um discurso calcado na body art e na live art, fazendo de seus
corpos o suporte de seus argumentos e das suas vidas cotidianas o meio de disseminação
dos seus ideais, usando suas próprias peles como superfícies de projeção das suas recusas
em viver nas condições de uma determinada juventude. “O ódio social converte-se em um
ódio do corpo”324.
Há, nos anos 80, uma admiração a uma “radicalidade que se autodestrói”325. E
embora houvesse tal radicalidade, “a cultura punk entra, contudo, no circuito do consumo,
desviada, transformada em estilo”326.
A Moda deste período propicia o que hoje ainda ecoa nas alterações corporais
condizentes aos referenciais mais próximos, que incluem, a década de 1990, período de
ascensão da música eletrônica e das festas Raves. Nesse momento, passou a ser bastante
comum o uso de uma joia de metal em formato de haltere (barbell) no supercílio pelos
frequentadores dos clubes noturnos de música eletrônica, os quais eram chamados de
clubbers. Deste grupo, advêm os adoradores das pastilhas de ecstasy – conhecidas como
“droga do amor” – que buscavam uma fabricação dos seus humores e comportamentos,
comprados assim como seus apetrechos e marcas corporais. Como nos adverte Le Breton,
“(...) a anatomia não é mais um destino, a afetividade tampouco, quando um vasto leque de
meios farmacológicos propõe seus serviços”327.
Artista pop e influenciado principalmente pela música new wave, Boy George, em
1995, apresenta seu novo visual, repaginado aos moldes que a última década do século XX
determinava, dotado de um visual cibernético, ornado com piercings tipo spyke,
defendendo a tonalidade prata do metal e o gosto pelo material sintético; frequentar clubes
noturnos nas grandes metrópoles, usar lentes de contato de coloração branca e piercings na
região do rosto era uma grande tendência da Moda dos anos de 1990 e o artista pop fez
questão de aderir tal convergência sobre o seu corpo e difundi-la entre os seus adeptos.
323
ARAUJO, Leusa. Tatuagem, Piercing e Outras Mensagens do Corpo, p. 29.
324
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 34.
325
COHEN, Renato. Performance como Linguagem, p. 145.
326
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 34.
327
Ibidem, p. 57.
136
328
329
O desfile que acabava por revelar a mesma diversidade e descontração que estava
presente nas chamadas festas Raves, trazia a adrenalina despertada pela música e pela
forma pouco rígida dos modelos se comportarem na passarela em suas caracterizações
exageradamente sexualizadas; ao mesmo tempo, a liberdade gestual direcionava-nos a tais
ambientes em que o consumo de drogas era praticamente legalizado, permitindo que o
poder psicoativo das pastilhas de ecstasy pudesse ser sentido de forma aproximadamente
coletiva. McQueen imprimiu todas essas sensações na exibição da sua coleção. É neste
desfile que surge um indumento elaborado a partir da releitura de uma máscara de esgrima,
328
Imagens obtidas a partir do videoclipe feito para a música Funtime, de Boy George. Vídeo disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=amnfjOAMtA8 (consulta realizada em 14/10/2012).
329
Imagens do desfile primavera/verão de Alexander McQueen ocorrido em 1996. Trata-se de um frame
retirado a partir do vídeo que está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fjIANEFWs8U
(consulta realizada em: 14 de outubro de 2012).
137
“o qual chocou a audiência de McQueen”330 num primeiro instante e é uma peça que
acabou por ser revisitada em coleções seguintes e “chegou a ser considerado uma das suas
marcas registradas”331.
332 333
334 335
330
KNOX, Kristin. Alexander McQueen: Genius of a Generation, p. 21
331
Idem.
332
Modelos usando piercings e tatuagens em imagem para campanha da grife brasileira Skull Jewelry.
Imagem obtida em: http://www.tattootatuagem.com.br/noticias/1829/the-death-collection-skull-jewelry/
(consulta realizada em 15/10/2012).
333
Modelo tatuado em desfile de Adam Kimmel. Imagem obtida em: http://www.adamkimmel.com (consulta
realizada em 15/10/2012).
334
Imagem da camisa tatuada de Yasmine Sterea, editora de moda da Vogue. Imagem obtida em:
http://vogue.globo.com/moda/news/couro-tatuado-by-patricia-viera-e-hit-absoluto-entre-fashionistas/
(consulta realizada em 13/10/2012).
335
Modelo Canadense Rick Genest, conhecido como Zombie Boy. Foi descoberto por Nicola Formichetti,
diretor de moda de Lady Gaga em 2010. Em 2011 foi modelo principal do desfile de roupa masculina da
Mugler. Este é um caso que justifico em “corpos sobre-humanos extraordinários”. Imagem obtida em
http://rickgenest.com (consulta realizada em 15/10/2012).
138
O uso da tatuagem – que é milenar – está extremamente presente neste contexto
globalizado da atualidade desde a sua disseminação (ao menos no campo da Moda urbana)
causada principalmente pelo movimento punk da década de 1970. Ornamentos corporais
tais como uso de piercing e tatuagem têm “efeito de fazer o corpo parecer menos nu”336 e
“renascem nas ruas como enfeites da Moda, novas formas de criar beleza, talismãs
modernos” 337 e são, hoje, menos discriminadas, inclusive, suavizadas em tatuagens
provisórias vendidas aos montes no comércio e até presentes em doces de crianças para
serem aplicadas com auxílio de água.
Hoje, o uso de piercings e tatuagens está totalmente disseminado no meio urbano e,
por consequência, em catálogos de Moda, desfiles e campanhas publicitárias é cada vez
mais comum haver modelos que divulguem esses hábitos que definem o sujeito que, nesta
pesquisa, nomeei por “corpos sobre-humanos ordinários”.
Patrícia Viera, estilista carioca, usou alguns referenciais clássicos de desenhos de
tatuagens para marcar peças de roupas de couro que são realmente tatuadas com os
desenhos. Cada estampa acaba por ser uma verdadeira tatuagem criada por Tita Herbert
(tatuadora profissional), que executa o trabalho que tem um acabamento artesanal.
Com base no que os índios Kadiwéus contam, as peles dos animais e dos pássaros
eram desprovidas de excessos e eram preenchidas por uma insossa coloração branca, até
que eles mergulharam em lagos e saíram azuis, outros em um lago cheio de sangue e
saíram vermelhos, outros esbarraram em folhas e ganharam a coloração verde, etc.338 Com
base nessa lúdica explicação vinda dos índios Kadiwéus para a origem das particularidades
de cada um dos animais, a autora Leusa Araujo supõe que a pintura corporal, o piercing e a
tatuagem podem ter uma procedência repousada justamente na sensação de ausência de
enfeites que o ser humano poderia sentir ao se comparar com outros seres tão exuberantes
no meio da natureza. Com base nisso, o ser humano definiu então que poderia criar
inúmeros adornos em seu corpo, inclusive, os que pudessem perdurar para sempre:
336
FLÜGEL, J.C. A Psicologia das Roupas, p. 35. Observo que o autor utiliza esta expressão somente para
refletir sobre a tatuagem.
337
ARAUJO, Leusa. Tatuagem, Piercing e Outras Mensagens do Corpo, p. 7.
338
Cf. Ibidem, p. 11.
139
Primeiro como distintivo de pequenos grupos, depois como expressões dos
movimentos jovens, até ganhar a adesão de pessoas de todas as idades e
estilos, a tatuagem e o piercing se popularizaram durante o século XX,
alterando a paisagem das ruas neste novo milênio.
Passa o selvagem na motocicleta, o hippie com flores pintadas no rosto,
anunciando a era de Aquarius, o punk moicano com alfinetes na bochecha,
profeta do novo caos, o rapper mensageiro das periferias. São tantas as
tribos, que olham para o mundo construído pelo branco e não gostam nada
do que veem! Enfeitados de tinta, metal e aço cirúrgico, fazem verdadeiros
manifestos corporais. Sonhos de liberdade, de resistência e de salvação.339
Não é recente o anseio do ser humano de se tornar diferente daquilo que as suas
formas naturais propiciam. Ötzi, assim chamada a múmia descoberta há 5.200 anos, é “o
primeiro tatuado que se tem notícia” 340 , totalizando cinquenta marcas de tatuagem
registradas em sua pele, realizou todas elas na região traseira do seu corpo (costas e atrás
dos joelhos). Foi encontrado, ainda, na Sibéria, em 1948, o corpo de um guerreiro dos
Citas – que viveu há 2.500 anos – todo tatuado com figuras de ovelhas, carneiros e peixes
nos braços, costas, peito e parte inferior das pernas. Os Pictos, povo que vivia onde
atualmente é a Escócia, já eram mencionados pelo célebre historiador Heródoto (490-
425/20 a.C.) pelo fato de decorarem todo o corpo com desenhos. Amunet, múmia egípcia
encontrada em Tebas, revela que continha tatuagens em sua barriga também há milhares de
anos (quatro mil anos atrás). Descobertas como essas demonstram que esse recurso
estético, aparentemente tão contemporâneo, existe há milhares de anos.341
Os povos do Industão já faziam uso de ossos ou tocos de madeira (hoje
recompostos como piercings) há 4.500 anos, ou seja, ainda na Idade da Pedra. A narigueira
de ouro, por exemplo, uma espécie de piercing e que simbolizava nobreza e autoridade, era
usada por “xamãs de várias culturas pré-colombianas entre os séculos V a.C. e XV
d.C.”342.
Hoje, encontramos ainda resquícios destes registros em tribos como, por exemplo,
Enawenê Nawê (Amazônia), onde o abdômen das meninas são marcados como forma de
assinalar a entrada delas para o período fértil, por exemplo, e na tribo Nambikwara (Mato
339
Ibidem, p. 65.
340
Ibidem, p. 12.
341
Cf. Ibidem, p. 12 – 15.
342
Ibidem, p. 14.
140
Grosso e Roraima), cujos os habitantes adornam o lábio superior com varetas que parecem
um chifre longo e estreito. Este ornamento é chamado de labrete e é feito de bambu ou de
resina. Os nativos de Papua-Nova Guiné usam tipos semelhantes de adornos dos povos do
Industão.
343
343
Da esquerda para a direita. A Jovem Filha dos Pictos (1585-88), de Jacques Le Moyne de Morgues; Chefe
maori, início do século XX; Beth Oemby com seu brinco de nariz, modismo importado do balneário de
Deauville, na França. Todas estas imagens foram obtidas em: ARAUJO, Leusa. Tatuagem, Piercing e Outras
Mensagens do Corpo.
344
Cf. ARAUJO, Leusa. Tatuagem, Piercing e Outras Mensagens do Corpo, p. 25.
345
FLÜGEL, J.C. A Psicologia das Roupas. Pág. 13.
141
Ethel Granger, figura excêntrica que “modelou a sua vida em um cânone
estético”346, obteve a cintura mais estreita do mundo, a qual chegou a medir 33cm. Foi uma
opção estética radical advinda do corpo que estava em voga na década de 1950 e que foi
remodelado de forma exagerada. É válido ressaltar que este ideal pela cintura finíssima
(“cintura de vespa”) era procurado já na civilização minoica, que devia fazer o uso dos
seus tradicionais cintos de placas de metal “desde a mais tenra infância”347 para obter um
resultado de uma cintura extremamente acanhada na fase adulta, estética que influenciou o
período de Elizabeth I, por exemplo, e inclusive um determinado grupo do nosso. “Os
antigos habitantes de Creta, que, como agora sabemos, desenvolveram alta civilização há
mais de dois mil anos antes de Cristo, permitiam extrema constrição da cintura em ambos
os sexos”348, mas a preferência por esta estética corporal parece ter afetado, depois desse
período, sempre mais mulheres do que homens.
349
346
BOTTENGHI, Francesca. Wasp waist. Vogue Itália. Setembro de 2011 (n. 733), p. 84.
347
LAVER, James. A Roupa e a Moda: Uma História Concisa, p. 22.
348
FLÜGEL, J.C. A Psicologia das Roupas. Pág. 37.
349
Ethel Granger. Imagens obtidas em: http://www.vogue.it/en/people-are-talking-about/obsession-of-the-
day/2011/09/ethel-granger (consulta realizada em 14/11/2012).
142
Além da cintura, Granger fazia uso de piercings nos mamilos e no nariz. O objetivo
de tais modificações corporais, segundo consta, foi atender aos fetiches do marido William
Granger, astrônomo que funcionou muitas vezes como seu sádico “personal stylist”.
William Granger acreditava que a Moda era capaz de influenciar a estrutura de
nossos pensamentos mais íntimos e, então, dizia que as mulheres com peitos pequenos da
década de 1920 eram subprodutos de uma perversão mais grave do que a sua obsessão pela
cintura extremamente fina.350 Os esforços necessários para reduzir a cintura da pessoa, mas
também as dificuldades do uso de saltos altos e de piercings, para William Granger, eram
fundamentais conforme sua visão simbolista da Moda e da feminilidade. Sobre os
implantes de piercings, William indagou: “nada é mais repulsivo ao caprichoso do que ver
uma orelha feminina esmagada com um grampo ou parafuso. Como isso pode competir
com o elegante piercing em que jóias podem balançar livres?” 351
352
350
Cf. GRANGER,William Informação obtida em texto publicado em http://www.vogue.it/en/people-are-
talking-about/obsession-of-the-day/2011/09/ethel-granger (consulta realizada em 14/11/2012).
351
GRANGER, William. Declaração obtida em texto publicado em http://www.vogue.it/en/people-are-
talking-about/obsession-of-the-day/2011/09/ethel-granger (consulta realizada em 14/11/2012). Livre
tradução a partir do inglês.
352
Fotografias de Steven Meisel para a Vogue Itália de setembro de 2011.
143
Inspirado na vida desta mulher extravagante e da sua submissão com relação aos
ideais estéticos que seu marido propunha, o fotógrafo Steven Meisel realizou um ensaio
com a modelo Stella Tennant para a Vogue Itália de Setembro de 2011.
Embora muitos dos adeptos destes ornamentos aqui descritos justifiquem motivos e
significados para tais práticas, no fundo, o que os incita de verdade é uma agitação modal,
uma caça para consolidar uma imagem. Esse último caso descrito, por ser radicalmente
alterado, assim como o modelo “Zombie Boy” já mencionado anteriormente, são casos que
talvez melhor anunciem o tópico seguinte, com o qual busco descrever o que nomeei por
“corpos sobre-humanos extraordinários”.
144
2.3. Corpos sobre-humanos Extraordinários
A evolução humana pode estar entrando em uma nova fase, que Charles
Darwin nunca teria imaginado.353
353
DEITCH, Jeffrey. Post Human exhibite catalog essay 1992-93. Texto disponível em:
http://www.artic.edu/~pcarroll/PostHuman.html (consulta realizada em 28/11/2012). Livre tradução a
partir do inglês.
354
FLÜGEL, J.C. A Psicologia das Roupas. Pág. 37.
355
De acordo com a autora Míriam Elza Gorender, entre os 1,25 bilhões de habitantes da China, existem
menos de 40 mulheres que fazem essa prática, sendo que a maioria tem mais de 80 anos. GORENDER,
Míriam Elza. Estéticas do corpo: técnicas de modificação corporal. Gogito. Vol. 9. Número 9. Salvador.
2008.
356
Idem.
145
relacionar à conquista do parceiro (no caso das mulheres-girafa pode justamente ter a
função contrária, que é para não despertar desejo dos homens de outras tribos, assim,
evitando os estupros e sequestros)357. Em todos os casos apresentados, articula-se também
a ideia do matrimônio (seja para conquistá-lo ou para conservá-lo), logo, de certa forma,
são consumações que não afastam totalmente a religiosidade como influência para a
conquista de tais qualidades corpóreas, afinal, podemos considerar o casamento, com
ressalvas, como um ritual sagrado.
Nota-se que há mais de uma explicação sobre o porquê de as mulheres-girafa
usarem a mola metálica no pescoço. Uma das explicações é que “para esse grupo, o centro
da alma é o pescoço, responsável por proteger os habitantes e a identidade da tribo”358, fato
que denota a crendice, a religiosidade:
Com base nessa declaração da autora Aline Stürmer, o que Roberto Kovalick
afirma com relação ao fato dessas mulheres usarem as molas como forma de proteção
contra estupro e sequestro – o que significa que elas na verdade se enfeiam – parece ser
uma ideia errônea sobre os motivos que elas têm, ou então, a informação sobre a
explicação para a origem desse hábito já não é mais precisa nem mesmo entre o grupo que
a pratica, o que dificulta uma clareza sobre o fato.
357
Cf. KOVALICK, Roberto. Modernidade Ameaça Tradição das Mulheres-girafa na Tailândia.
http://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2012/07/modernidade-ameaca-tradicao-das-mulheres-girafa-
na-tailandia.html (consulta realizada em 26/11/2012).
358
STÜRMER, Aline. Viagem: Tailândia e As Mulheres-girafa. http://casa.abril.com.br/materia/viagem-
tailandia-e-as-mulheres-girafa (consulta realizada em 26/11/2012).
359
Idem.
146
360
As influências da mídia têm feito com que até tradições não ocidentais absorvam os
ideais que vemos nos principais veículos de transmissão das tendências da Moda. O corpo-
norma, portanto, acaba por ditar o fim de tradições como as da tribo Kayan Lahwi em que
as mulheres aparentemente aumentam o tamanho do pescoço ao utilizarem essas argolas
(que na verdade são espirais parecidos com molas). A deformação não é propriamente no
pescoço, mas sim na caixa torácica por conta das argolas pesadas que pressionam a
clavícula. 361 Kan Khwan é a religião praticada pelas mulheres-girafa, a qual “reúne
influências do budismo tailandês e de práticas animistas ancestrais que consideram
sagrados o cosmo, a natureza e todos os seres vivos”362.
Aqui, no grupo “corpos sobre-humanos extraordinários”, estão as mais radicais
alterações corporais, que não são realizadas devido a um comportamento modal, mas sim a
uma ideologia de vida. Neste grupo, também incluo as práticas que condizem aos
chamados modern primitives. Essa denominação “surgiu em 1967 para designar o modo de
vida de indivíduos que, mesmo sendo membros de uma sociedade que se desenvolve
baseada na razão e na lógica”363 se norteiam pelo intuitivo e o corpo físico funciona como
o cerne das suas experiências. Também conhecidos como urban primitives, este grupo é
360
Da esquerda para a direita: - Raio x de um pé de uma chinesa praticante da deformação do “pé de lótus”;
- Ethel Granger. Imagens obtidas em: http://www.vogue.it/en/people-are-talking-about/obsession-of-the-
day/2011/09/ethel-granger (consulta realizada em 14/11/2012); “Mulher-girafa” de Myanmar da
Tailândia.
361
Cf. Cf. KOVALICK, Roberto. Modernidade ameaça tradição das mulheres-girafa na Tailândia.
http://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2012/07/modernidade-ameaca-tradicao-das-mulheres-girafa-
na-tailandia.html (consulta realizada em 26/11/2012).
362
STÜRMER, Aline. Viagem: Tailândia e as mulheres-girafa. http://casa.abril.com.br/materia/viagem-
tailandia-e-as-mulheres-girafa (consulta realizada em 26/11/2012).
363
Cf. PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 102.
147
composto por pessoas que tem como motivação o engajamento em práticas variadas que
podem servir como um crescimento pessoal, servir como um ritual de passagem ou
curiosidade espiritual, etc.
364
Fakir Musafar, que já aos treze anos de idade perfurou sozinho o seu próprio
prepúcio365, é a principal referência neste assunto, sendo considerado o pai dos modern
primitives. As práticas incluem piercings, implantes, escarificações, tatuagens e
suspensões. Durante os anos 50, reduziu sua cintura de 73 cm para 47 cm com o uso de
cintas e cinturões especiais, alegando que, para além do seu crescimento pessoal através da
experiência com a dor, o espartilho proporciona prazer para homens e mulheres durante a
relação sexual.
Não existe nada melhor para um homem que esteja usando um cinturão do
que fazer amor com uma mulher que também o esteja usando. É uma
experiência que não se alcança de outra forma – todos os órgãos internos e
sensuais mudaram de posição, e estão sob uma pressão diversa.366
Conforme vimos, o que motivou Ethel Granger a alterar sua silhueta corporal foi a
submissão ao prazer do seu parceiro. Conduta sofrida que prometia o gozo, mas que
364
Fakir Musafar em 1959, com 47 cm de cintura. Imagens obtidas em: PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo
como Suporte da Arte, p. 119.
365
Ibidem, 103.
366
MUSAFAR, Fakir. Apud. PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 119.
148
também moldava sua existência carnal em um padrão por alguns considerado como belo.
O espartilho, bastante utilizado pela Moda, reúne, como sentido em si, o artefato
embelezador e o componente que enseja dor.
Analisando a dor e a beleza física sob um ponto de vista cristão, a autora Beatriz
Ferreira Pires indaga se a Moda e sua relação com a dor e o desconforto físico não estaria
justamente ligada ao fato de a religião exigir um corpo dolente e sofredor em detrimento de
um corpo repleto de culpa por ser belo. Uma resposta não pode ser facilmente propagada,
mas tal conclusão (com muitas interrogações) pode fazer total sentido.
Nesse trecho da tese, existem, ainda, alguns casos isolados que merecem a nossa
dedicação em tentar enquadrá-los em algum grupo que aqui apresento, mas considerando
que “o extremo contemporâneo define um mundo em que a significação da existência é
uma decisão própria do indivíduo e não mais uma evidência cultural”367. Em alguns casos,
há um fator meramente estético que move os sujeitos nas suas radicais transformações,
mas, em outras vezes, há qualquer evidência mágica.
Dennis Avner, que cresceu numa comunidade composta por índios das tribos
Huron e Lakota, é também conhecido como homem gato (“Catman” ou “Stalking Cat”).
Ele iniciou por volta de 1980, aos 22 anos, a realização de diversas alterações em seu
corpo para se assemelhar a forma física de um felino. A busca, segundo ele, adveio da sua
crença mística após ouvir a afirmação do chefe de sua tribo que ele devia “seguir os
caminhos do tigre”368. Com todo o corpo tatuado, ele afirma que só tem uma tatuagem,
pois todas estão interligadas. Ele diz que fez tal transformação por uma razão espiritual e
não para se tornar uma celebridade e, então, conta que segue uma tradição indígena muito
antiga, a qual consiste em tornar-se o mais parecido possível com o seu “totem”, o seu
animal espiritual. Embora essa sua explicação sobre uma tradição remota de transformação
dentro da sua tribo de origem seja duvidosa, Avner explica que essa mutação já não é mais
367
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 31.
368
Esta afirmação foi retirada de texto disposto em:
http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/11/14/313274-conhecido-como-homem-gato-
dennis-avner-e-encontrado-morto#8 (consulta realizada em 15/11/2012).
149
praticada, mas que outrora era bastante comum e implementada em âmbito desta tribo
indígena da qual é descendente. 369
370
A body art e a arte da performance acabaram por penetrar na vida cotidiana, assim
como, em outro período e ainda hoje, a vida cotidiana também chegou a impregnar certos
campos da arte. A televisão, inclusive, veículo de comunicação de massa, aderiu certos
assuntos relacionados a estes dois gêneros artísticos e, hoje, a prática da body modification
acabou por ser disseminada através dessa fonte poderosa de transmissão. O programa de
televisão Tabu América Latina da Nat Geo373 é um exemplo concreto dessas afirmações
acima quando opta por exibir imagens advindas das seguintes interrogações:
369
Informações obtidas a partir da entrevista concedida para o Programa Márcia da rede Bandeirantes de
Televisão, a qual foi ao ar no dia 30 de novembro de 2009.
370
Imagens obtidas em: http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/11/14/313274-conhecido-
como-homem-gato-dennis-avner-e-encontrado-morto#0 (consulta realizada em 15/11/2012).
371
Dennis Avner em entrevista concedida no programa Márcia. Canal de televisão SBT. Brasil. 30 de
novembro de 2009.
372
PIRES, Beatriz Ferreira. Corpo Inciso, Vazado, Transmudado – Inscrições e Temporalidades, p. 27.
373
Nat Geo é um site dedicado a América Latina que pertencente ao National Geographic
150
Por que se decide modificar ao extremo um corpo "comum" para deixá-lo o
mais parecido possível ao de uma "mulher vampiro"? Por que arriscar a
vida e se expor à dor para pendurar o próprio corpo em um helicóptero,
como parte de uma performance?374
375
374
Texto disponível no site oficial do programa: http://www.natgeo.com.br/br/especiais/tabu-america-latina/
(consulta realizada em 09/05/2012).
375
Imagem obtida em: http://www.francetv.fr/info/un-oeil-sur-l-actu_56325.html (consulta realizada em
09/05/2012).
151
Mundo Mix em São Paulo é um exemplo de evento que incorpora o comércio hype que
pode ser apreciado em seus stands, ao mesmo tempo que ocorre uma performance de
suspensão, por exemplo, em uma área qualquer do recinto. Piercings, tatuagens,
alargadores, entre outros adornos corporais são incorporados em pessoas perante os olhos
nus de quem transita por este tipo de evento.
Alguns adeptos da body modification realizam esta prática como uma body art,
como uma expressão performativa em que o corpo é o suporte e também objeto-arte,
fazendo de seus corpos o ambiente onde a obra se expressa. É uma redução do espaço
cênico, onde há a ritualização das práticas diárias como arte em um mesmo e reduzido
espaço: o corpo. A semântica é absorvida todo o tempo por qualquer um que observar o
sujeito que usa seu corpo para formar esse tipo de expressão artística ainda nova e pouco
explorada teoricamente.
Priscilla Davanzo e Erik Sprague (“O homem lagarto” ou “The Lizard Man”) são
exemplos de artistas conscientes da prática que efetuam em seus corpos. Não fazem de
forma irrefletida ou por influência de um grupo étnico. Buscam expressão artística através
da alteração de seus corpos, onde imprimem/timbram seus discursos.
Erik Sprague afirma que "os répteis simbolizam o poder, desde as histórias do Éden
aos dragões"376. Ele diz querer contribuir com algo diferente e raro dentro da sociedade,
estabelecendo o seu corpo como algo surrealista.
377
376
SPRAGUE, Erik. Afirmação disponível em:
http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/10/23/311693-homem-lagarto-um-freak-que-nao-se-
arrepende-das-transformacoes-alcancadas#3 (consulta realizada em 26/11/2012).
152
378
377
Imagem obtida em http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2012/10/23/homem-lagarto-um-freak-
que-nao-se-arrepende-das-transformacoes-alcancadas.htm (consulta realizada em 26/11/2012).
378
Imagem de Priscilla Davanzo feita por Fábia Fuzeti para registrar o trabalho As vacas comem duas vezes a
mesma comida. Imagens gentilmente cedidas pela artista.
379
DAVANZO, Priscilla. Geotomia. Vídeo. 19’. Marcelo Garcia. São Paulo, 2000.
http://www.youtube.com/watch?v=1AQLzXIMGqE (consulta realizada em 18/12/ 2013).
153
criado. “O sujeito é objeto e não deixará de ser, independentemente do tempo e do espaço
em que se encontre”380.
Fazendo menção à exposição chave dos anos noventa chamada Post-Human381, na
qual Matthew Barney expôs alguns dos seus trabalhos, o autor Massimiliano Gioni
descreve características da obra desse artista, que procura explicitar o quanto o
confinamento do nosso corpo foi estendido 382 . Essa constatação inclui as práticas
analisadas até aqui. As suas composições narram os dilemas atuais do sujeito e do seu
corpo moldável, cujo estômago digere comidas geneticamente modificadas; Barney expõe
um humano que se reinventou. Conforme explica Gioni:
É difícil separar a vida da arte quando uma adentrou a outra. A arte passou a ser
uma quase reprodução da vida real – por exemplo, quando Matthew Barney expõe um ser
pós-humano em seu Drawing Restraint 7 (1993) – e o contrário também ocorre; basta
olharmos para as figuras construídas por Dennis Avner ou para Mary José Cristema, que
parecem afirmar que “ser o que se é torna-se uma performance efêmera, sem futuro, um
maneirismo desencantado em um mundo sem maneiras”384. Ambos são exemplos de
corpos sobre-humanos extraordinários que afirmam, em suas “performances”, a vida
enquanto arte e a arte enquanto vida em seus rituais diários. “O que é afinal a vida
humana? Senão uma contínua performance na qual todos atuam?”385
380
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte, p. 138/139.
381
Exposição realizada de sob curadoria de Jaffrey Deitch de 1992.
382
Cf. GIONI, Massimiliano. Matthew Barney, p. 8.
383
Idem. Tradução livre a partir do inglês.
384
BAUDRILLARD, J. Da Sedução, p. 22.
385
ROTTERDAM, Erasmo de. Apud. CAMARGO, Robson Corrêa de. REINATO, Eduardo José. CAPEL,
Heloisa Selma Fernandes. Performances Culturais, p. 11.
154
2.4. O Cibercorpo
Diz Le Breton que “o extremo contemporâneo erige o corpo como realidade em si,
como simulacro do humano por meio do qual é avaliada a qualidade de sua presença e no
qual ele mesmo ostenta a imagem que pretende dar aos outros”386. Não mostramos em
nossos perfis de sites de relacionamentos somente o que queremos? A nossa melhor foto
ou até a que nos faz parecer outra diferente do que realmente somos? Não proferimos com
nossos perfis virtuais o que queremos disseminar ou usar como escudo para tornar mais
seguro o esconderijo? Há quem prefira usar fotos de personagens de filmes, de desenhos
animados, ou ainda, usar outro nome, outra identidade e fingir por completo ser outra
pessoa na rede da Internet. Há quem apresente seus ideais e pregue o seu discurso através
da grande rede, escondido por detrás dessa faceta virtual.
Obviamente, no sentido mais voltado para a carne em desuso, em função de uma
substituição do corpo pela máquina, Stelarc seria o melhor exemplo e que melhor se
enquadraria nessa breve avaliação sobre o “cibercorpo” na arte, pois explicita essa ideia
em seu manifesto performático, mas o que é pretendido é percebermos o corpo ausente, o
corpo virtual, virtual no sentido estrito e, portanto, as práticas descritas e comentadas a
seguir, talvez, sejam as que melhor permitem as conexões que eu pretendi atingir acerca do
sujeito e das suas relações com o mundo através do aval da Internet e de toda a
virtualidade.
Começando pela relação humana no âmbito do evento ao vivo, podemos eleger a
performance The Artist is Present realizada no MoMA em 2010 – ação originada a partir
de Nightsea Crossing (1981-87) e de Conjunction (1983), ambas idealizadas com Ulay –,
em que a performer Marina Abramović coloca-se à disposição do espectador para uma
intensa troca de energia. Ela permanece sentada em uma cadeira de frente para outro
assento idêntico, espaço que pode ser ocupado por qualquer387 visitante que queira encarar
a artista por um determinado período de tempo. Alguns passam minutos, outros horas.
Segundo a própria artista, o museu funciona como seu templo, onde os visitantes vão vê-la,
386
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 31.
387
Na verdade estes espaços na exposição realizada no MoMA, em 2010, eram reservados para pessoas
selecionadas ou para pagantes.
155
assim, ela atinge um estado mental de tal nível que ela chega a “poder dar oxigênio para as
pessoas”388, afinal, para ela, “performance é um certo tipo de construção mental e física em
que um artista se apresenta na frente do público”389.
A energia, assim como o estado mental e físico, são componentes de suma
importância no seu trabalho, que é realizado sempre com extrema resistência, até que
podemos enumerar alguns episódios que contrapõem a primeira ideia aqui abalizada. Um
deles (o único que vou comentar aqui) foi a quebra de rigidez que se deu durante o
reencontro de Marina com Ulay, que se sentou na cadeira de frente para a artista e acabou
por surpreende-la e, então, ambos choraram, deram as mãos, evidenciaram a potência
daquele encontro e receberam aplausos. Desse fatídico encontro, o olhar disse muito mais
do que palavras e garantiu a eficácia de um encontro ao vivo, não intermediado por
qualquer meio e, embora o propósito da ação tenha sofrido alguma falha, acabou por
sublinhar justamente o que era pretendido ressaltar: a força da troca através do olhar e o
vigor de um encontro ao vivo.
390
156
em seu descontentamento o quanto a artista é intermediada por uma equipe, por uma marca
chamada Marina Abramović. A autora expõe que a conheceu em um restaurante em
Chicago e que ganhou um cartão pessoal da artista e que, na ocasião, recebeu o aval da
própria para lhe fornecer uma entrevista, no entanto, ao contatá-la, não foi Marina quem
respondeu e sim um de seus assistentes.
A partir disso, Eler expôs uma série de confirmações de que a artista “não está
presente”391, como afirma nos títulos da sua performance e da exposição do MoMA;
presente está a sua marca, que pode ser seguida no Facebook através da página do seu
Instituto. Utilizando o recurso dessa rede de relacionamentos, a equipe Marina Abramović
cria uma série de propagandas que circulam na rede em forma de vídeo, onde tanto o grupo
quanto a própria artista fazem apologia ao uso do Facebook392.
Nesse artigo, Eler apresenta-nos uma performance que responde justamente a sua
indignação por conta da contraditória posição de uma artista que se coloca supostamente
íntegra para uma relação olho-no-olho, mas que, na verdade, está sempre intercedida pela
rede da Internet e por sua marca.
393
391
ELER, Alicia. The Artist is Not Present but the Brand Sure is. Hyperallergic. 17 de Julho de 2013.
http://hyperallergic.com/75766/the-artist-is-not-present-but-the-brand-sure-is/
392
Isso pode ser comprovado em https://vimeo.com/64745220 ou em https://www.facebook.com/MAIhudson
(consultas realizadas em: 20/07/2013).
393
Imagem obtida em: http://hyperallergic.com/75766/the-artist-is-not-present-but-the-brand-sure-is/
(consulta realizada em: 20/07/2013).
157
The Artist is Kinda Present é uma performance em que a artista An Xiao faz alusão
ao trabalho de Abramović, embora não proponha, no encontro ao vivo, uma relação
ardente de energia, pois, apesar de estar absolutamente próxima do espectador (“presente”
no mesmo espaço físico), ela usa óculos e estabelece troca através de dispositivos
eletrônicos sob o auxílio da Internet, ou seja, somente em campo virtual ela se comunica
através de mensagens de texto. Xiao bem traduz o tempo em que vivemos e que nem
mesmo Marina Abramović escapa, embora pregue o contrário na expressão artística
enunciada anteriormente.
Acerca dessa nova relação espaço-tempo nas sociedades contemporâneas, vale
lembrar a indagação de Paul Virílio: “Como viver verdadeiramente se o aqui não o é mais
e se tudo é agora?”394
Alguns casos particulares merecem ser destacados nesse trecho em que abordamos
o “cibercorpo”, dentre eles, Amina, uma jovem tunisiana, de dezenove anos de idade que,
com a seguinte legenda sobre a sua pele, fez seu manifesto on-line: "meu corpo pertence a
mim e não é a fonte da honra de ninguém". O protesto consistia em apresentar seu corpo
parcialmente desnudo, com seios à mostra (topless), em sua página da web, criada para
apoiar o grupo radical feminista ucraniano Femen. O episódio fez com que a ativista
permanecesse escondida, com medo de por em risco a sua vida e a de seus familiares, já
que recebeu inclusive ameaça de ser apedrejada até a morte, conforme a condenou um
sacerdote islâmico da Tunísia, embora essa pena já tenha sido abolida no país que
abrandou suas radicalidades. Rumores disseram que ela havia sido internada em um
hospício, mas nada está comprovado a este respeito.395
A página do Facebook da ativista foi atacada por um hacker identificado por Al
Angu, que, movido pelo ódio religioso, substituiu a imagem de Amina por versículos do
Alcorão, depois trocou a imagem pela de um homem a exibir a frase “Maomé, o enviado
de Alá”.396
394
VIRILIO, Paul. “O Espaço Crítico”. In: CANTON, Katia. Tempo e Memória, p. 18.
395
The Guardian News: http://www.guardian.co.uk/world/2013/apr/07/tunisian-feminist-fears-for-life
(consulta realizada em 02/03/2013).
396
Cf. NOBLAT, Ricardo. Jovem Tunisiana é Condenada à Morte por Fazer Topless em Protesto. Jornal O
Globo. Brasil. 22/03/2013.
158
Amina, encorajada pelo fascínio dos corpos femininos luminosos, exuberantes,
politizados e fortes (como os de soldadas) das meninas do Femen, intermediados pela
mídia e pela rede da internet, exerceram sobre a jovem tunisiana grande influência para
que ela desejasse pertencer ao grupo também. Talvez não seja só a grande repressão ao
corpo da mulher nos países islâmicos ainda não completamente laicos que tenha movido
Amina a agir de tal forma, dando seu corpo como protesto de uma causa, mas
nomeadamente o encanto dos corpos das jovens que compõem o Femen, sendo todas
magras, fetichizadas e padronizadas segundo a lógica da Moda atual.
O convite “Come out, Go topless and Win!” como promessa de destronar uma
sociedade patriarcal, a qual Amina sempre presenciou de forma mais latente por pertencer
ao contexto religioso islâmico, somado a sua provável vontade de se sentir acolhida por um
grupo que só elege corpos-padrões, sendo eles resolutos no quesito de beleza, fez da jovem
tunisiana não só uma adepta do movimento promovido pelo grupo, mas também referência
de imagem para estampar uma camiseta que é vendida por vinte e cinco dólares na página
desse grupo feminista.
397
397
Da esquerda para a direita: 1- Imagem/protesto de integrantes do Femen referente ao Dia Internacional do
Trabalho. 2- Imagem de Amine que gerou revolta dos religiosos na Tunísia; 3- T-shirt à venda por vinte e
cinco dólares com imagem de Amine estampada em preto na página de vendas do site oficial do grupo
Femen. Todas imagens foram obtidas em http://femen.org (consulta realizada em 02/05/2013).
159
ação performativa de oposição, que após ser recriminada, origina um produto a ser
comercializado com a sua imagem de protesto associada à página do grupo feminista que
reúne mulheres que não se diferem de top models, se levarmos em conta apenas as suas
aparências, portanto temos o catálogo, as modelos e o produto com seu conceito num único
site.
Igualmente impregnada de discurso que contesta o papel da mulher na sociedade,
exigindo igualdade dos gêneros, a extraordinária performer Lauren Barri The-Famous
Holstein (em contraste com a ordinária cidadã Lauren Barri Holstein) exibe suas duas
identidades na rede social Facebook. Em uma das suas páginas, ela, Lauren Barri The-
Famous Holstein, apresenta todos os seus trabalhos artísticos de tons sarcásticos,
insolentes, nos quais usa o seu corpo como manifesto, pondo e retirando de seus orifícios
diversas composições aparentemente repugnantes, mas feitas com produtos que quase
todos norte-americanos consomem: ketchup, cupcake, entre outros diversos artigos
alimentícios industrializados ou não. Muitos destes itens são introduzidos na sua vagina e,
depois, expelidos, parecendo aludir ao pensamento de Bauman quando afirma que: “o
consumismo de hoje não consiste em acumular objetos, mas em seu gozo descartável”398.
Os trabalhos, que são normalmente apresentados em palco italiano, são registrados
e, assim, seus resquícios fotográficos são expostos na sua página da Internet juntamente
com os vídeos que documentam o evento. Para avaliar tanto o que é visto ao vivo como
intermediado pela sua faceta virtual, uso palavras da autora Nathália Mello que, sobre o
trabalho de Holstein, diz que: “mesmo que intelectualmente seduzido, o espectador está
perdido”399, algo que ocorre tanto no âmbito do ao vivo quanto do virtual.
A sociedade patriarcal é ridicularizada e disseminada através das suas ações e,
também, do seu “cibercorpo” artístico, embora o seu “cibercorpo” ordinário seja tão
artificialmente convencional que chega a ridicularizar o lugar comum também, composto
de pessoas aparentemente felizes, realizadas em suas bodas, em jantares sofisticados, em
398
BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo Parasitário, p. 42.
399
MELLO, Nathália. Como Montar 1-2 Perfis de Lauren Barri, The Famous Holstein?. Revista
Performatus: http://performatus.net/perfil-do-artista/the-famous-lauren-barri-holstein/ (consulta realizada
em 02/05/2013).
160
passeios tão serenos em parques que chegam a parecer propaganda do leite instantâneo
Molico.
Nessa composição de uma vida trivial, ela ostenta sua bolsa de grife, seu melhor
look, usando todos seus bens de consumo que possam narrar a hilariante obsessão pela
exibição do gozo da sociedade atual, com suas melhores vestimentas, com suas condutas
religiosas “adequadas”, com sua vida “perfeitamente” regrada, com seu parceiro e seu
cachorro de raça claramente bem tratado, etc. No perfil virtual Lauren Barri Holstein,
vemos o oposto do Lauren Barri The-Famous Holstein, que questiona de forma fulgente os
valores de uma sociedade de consumo, enquanto a primeira expõe a sua própria suposta
veracidade como deboche da sua própria condição. Ambas demonstram que “não basta
consumir para continuar vivo se você quer viver e agir de acordo com as regras do
consumismo”400 (enfatizo aqui que Bauman esclarece que consumo é uma necessidade e
consumismo não).
401
400
BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, p. 83.
401
As imagens correspondem respectivamente aos dois perfis de Lauren no Facebook. Ambas obtidas na
eRevista Performatus: http://performatus.net/perfil-do-artista/the-famous-lauren-barri-holstein/ (consulta
realizada em 02/05/2013).
161
Na performance-instalação do artista português Fábio Lopes, denominada por
Subterrâneo: o corpo distribuído, o espectador não encontra o corpo do artista presente no
espaço, mas somente um aparelho de telefone móvel com o qual é possível ser estabelecido
um “encontro” entre o público e o próprio artista. O enfoque temático da performance
permeia sobre a forma como o sujeito contemporâneo se isola por detrás de aparatos
tecnológicos, com os quais consegue estabelecer o ambiente ideal para realizar seus
fetiches sexuais, sem sair de casa e sem estabelecer qualquer contato físico com o outro.
Fábio Lopes evidencia, em signos funestos, a morte do corpo carnal para vangloriar (ou
ferozmente criticar) o advento da tecnologia que permite que o corpo do outro (e também o
nosso) se torne uma espécie de “Eros eletrônico”, um corpo virtual e fetichizado, protegido
por trás de computadores e sob auxílio da rede de Internet.
402
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 24.
403
Ibidem, p. 164.
162
necessária”404, já que os relacionamentos virtuais “parecem inteligentes e limpos, fáceis de
usar, compreender e manusear”405.
Seria o fim do prazer carnal? O fim da auto-exposição em espaço real? Sobre a
última pergunta, Christine Ellison, com sua performance Prêt-à-Médiatisier (2011), em
signos de imagem, aborda justamente como as rede sociais atuam com relação ao sujeito e
como a sua auto-exposição pode ser mediada e, ainda assim, ditar normas, tendências de
Moda. Indagada sobre a ação, ela explica:
Por não serem peças de roupas criadas para ganharem sentido em espaço real,
Ellison optou por investir em recortes de superfícies rígidas e não de tecidos para a
fabricação das peças que compõem seu design de Moda. As roupas são, portanto,
bidimensionais, conforme seriam vistas na tela de um computador, por exemplo. O
resultado estético do “desfile” é intrigante, pois, não só orienta o nosso olhar para esse traje
mediado na era da Internet, mas também para os corpos robotizados cada vez mais
próximos de se tornarem uma realidade ordinária.
407
404
Idem.
405
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido, p. 13.
406
ELLISON, Christine. Prèt-à-Médiatisier em cinco perguntas e incontáveis reflexões. Entrevista concedida
para a Revista Performatus. Novembro de 2011. Ano 1. Nº 1. Consultar nos anexos da tese.
407
Imagens da performance Prèt-à-Médiatisier (2011), de Christine Ellison. Imagens obtidas em:
163
Os andróides são anunciados em composições de Stelarc, mas também nas de
Christine Ellison com o coletivo POLLYFIBRE, que expressa Moda em perspectiva
tecnológica, design em fusão com máquinas, algo que tem base presumível na Bauhaus e
que não tergiversa para a banda de música eletrônica Kraftwerk. Dismorfofobia, proposta
performativa que compõe esta tese-projeto, teve forte influência deste trabalho de Ellison.
Embora eu me utilize de citações do Le Breton para afirmar o desuso do corpo na
atualidade, faço questão de enfatizar que o próprio autor, depois de constatações em que
coloca o corpo moderno como um acessório moldável e até obsoleto, finaliza a sua obra
Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade com as seguintes palavras: “felizmente,
continuamos a ser de carne para não perder o sabor do mundo”408.
http://www.pollyfibre.com (consulta realizada em 18/11/2012).
408
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 226.
164
CAPÍTULO III:
PERFORMANCE E RITUALIZAÇÃO
NOVE PROPOSTAS
165
“A performance é uma necessidade. Se eu não performar durante um
longo período de tempo, digamos dois ou três meses, torno-me
insuportável e levo todos os que estão próximos de mim à loucura”.
Guillermo Gómez Peña. Apud. HEATHFIELD, Adrian. Live: Art and Performance p.81
166
1. Três Considerações Preliminares
1.1. Sobre a Performance como Investigação
167
Dada a especificidade da elaboração de uma tese-projeto, que é fundamentalmente
uma pesquisa baseada em artes, no caso presente, com foco no gênero artístico da
performance, reconheço a necessidade de tentar esclarecer algumas suspeitas que podem
surgir pelo fato de, apesar do contexto acadêmico de partida, esta tese percorrer um
caminho diferente de uma proposta estritamente científica; desde logo, ao incorporar a
criação artística, não devemos ignorar a sua natureza reflexiva, mas também
simultaneamente mais intuitiva e instintiva, para darmos lugar a algo exageradamente
ortodoxo e, para isso, foi exemplificado, antes de tudo, a prática de investigação – processo
criativo – de Marina Abramović.
A investigação-criação focada em arte, naturalmente, difere-se de outras disciplinas
e não coincide com uma lógica científica tal qual a teoria produzida em outros campos da
investigação acadêmica, mesmo os pertencentes às ciências humanas. O foco foi constituir
a produção de nove trabalhos práticos de arte através de uma abordagem de pesquisa
orientada, sob um formato próprio de linguagem de expressão, cobiçando a análise e
desenvolvimento de métodos funcionais e, também, estratégias ligadas ao trabalho
artístico.
Conforme observa John Baldacchino:
Esse autor, através de uma revisão sobre o livro Handbook of the arts in qualitative
research (Knowles, J.G., & Cole, A.L.), diz, em seu ensaio sobre pesquisas baseadas em
artes, que devemos afirmar a natureza autônoma e imanente das artes e das pesquisas
baseadas em artes, assegurando a especificidade das suas abordagens. Ele defende que a
investigação das artes é uma força tangível de criatividade e inventividade e conforme
412
Baldacchino, J. (2009). Opening the picture: On the political responsibility of arts-based research: A
review essay. International Journal of Education & the Arts, Volume 10 (Review 3) / 01 de Fevereiro de
2009. Disponível em: http://www.ijea.org/v10r3/ (consulta realizada em 15/07/2013). Tradução livre a partir
do inglês.
168
adverte, “as artes são inerentemente aporéticas”413. Por outras palavras, o autor diz que a
prática da arte é, em si, uma forma específica e especial de investigação e que, portanto,
não podemos ignorar o fato de que, mesmo quando a prática da arte é considerada como
pesquisa artística, a arte não pode perder o controle de sua autonomia. Claro, Baldacchino
não declara em seu discurso a certificação da arte pela arte, mas sim que as artes devem
afirmar suas especialidades e especificidades estéticas, pois, sem isso, não haveria nem arte
e nem mesmo investigação artística.
No seu ensaio, são expostos dois compromissos opostos: “a legitimidade acadêmica
e prestação de contas” e “a autonomia da arte e da afirmação da imanência estética”.
Buscando a garantia da validação da pesquisa baseada em artes e a sua legitimação, o autor
esclarece que não podemos menosprezar a pesquisa em antropologia, sociologia e em
nenhuma ciência humana, mas expõe que essas linhas de pesquisa devem se manter
distintas das baseadas em arte, mesmo quando a pesquisa abalizada em arte utiliza métodos
de investigação emprestados dessas disciplinas. Não se trata de purismo disciplinar, mas
sim do reconhecimento da pesquisa artística em poder ser caracterizada como alguma coisa
imanente, crítica e discursiva.
Claro que ao raciocinar sobre o objetivo de distinguir a arte (levando em conta não
só a prática, mas também a pesquisa) como algo autônomo, pondero as palavras de
Theodor Adorno que ecoam na minha memória, com as quais ele pretendia remover a arte
de quaisquer estruturas institucionais de controle e afirmar a ela o carácter de persistente
questionamento crítico do mundo e do tempo em que se implanta:
413
Idem.
414
ADORNO, Theodor W., Teoria Estética, p. 35.
169
Ressalto que, lembrar Adorno aqui nessa passagem, é precisamente por fazer elevar
todo argumento que a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt erigiu para questionar a
racionalidade inerente à Razão moderna e para questionar o Logos e, por consequência,
todo tradicionalismo positivista que diminuiria qualquer discurso calcado na linguagem
poética e metafórica.
Sobre o validar ou não um discurso, lembro-me de Michel Foucault e a sua reflexão
em A Ordem do Discurso sobre a oposição entre a razão e a loucura, entre o verdadeiro e o
falso para tratar da separação e da rejeição, avaliando a “vontade de verdade” inerente ao
suporte institucional, convocando autorização e legitimação a partir dessa organização.
Foucault comenta a existência de um “desnivelamento”, tendo de um lado o discurso
fundamental ou criador e de outro o trivial, que reproduz, explica, glosa, comenta.
Como prática investigativa artística, avalio que, em âmbito acadêmico, institucional
portanto, eu pretendi produzir conhecimento através de uma poética visual performativa,
com sua presumível criticidade, tendo em conta os dilemas que envolvem esse tipo de
escolha mesmo quando esse método de pesquisa está amparado em cursos que defendem a
sua especificidade. O curso que escolhi (Estudos Artísticos) acolhe tanto as pesquisas que
tenham a prática como base de contribuição para o conhecimento (Practice-based), como
investigações que conduzem às novas compreensões sobre a prática (Practice-led
Research). No meu caso, não há um discernimento tão claro que separe uma teoria que
tenha me conduzido à prática ou a prática geradora da teoria elaborada; essas duas
vertentes acabaram se contaminando.
170
1.2. Sobre Performance e Documentação:
videoperformance e fotoperformance
Sabemos que os objetos gerados a partir das ações performativas podem conter
circunscrições das próprias performances, podem transmitir indícios do que ocorreu no
plano do ao vivo para um plano tangível e, conforme a autora Kristine Stiles assegura em
seu livro Theories and Documents of Contemporary Art: a Sourcebook of Artist’s Writings,
esses vestígios podem ter uma relação estreita com os próprios atos performáticos, sendo
que performers e espectadores estão conectados de forma metonímica415, o que dá a tais
objetos a missão da transmissão de sinais da própria ação. A autora explica que sujeitos e
objetos estão envolvidos entre si; podem estar vinculados como “comissuras”416. A palavra
“comissuras”, de origem latina, refere-se ao “local onde dois corpos (ou partes de um
corpo) se encontram e se unem em uma articulação, costura, fechamento, fenda,
conjuntura”417.
Esse modo de compreensão da performance e dos seus desdobramentos tem sido
alvo de veemência criativa para um conjunto enorme de artistas na contemporaneidade, os
quais radicalizam com uma acepção inflexível da performance condizente a algo
acomodado unicamente ao instante, algo que não se repete e que não pode ser representado
com mesmo potencial através de seus registros por dizer respeito exclusivamente ao “aqui-
agora”. Com outra visão sobre o assunto, a autora Peggy Phelan mostra-se firme na sua
conduta de que a performance é um tipo de ação que não permite repetição e, por isso,
encerra-se no próprio ato.
415
Cf. STILES, Kristine. Theories and documents of Contemporary Art: A Sourcebook of Artist’s Writings, p.
798.
416
Palavra bastante utilizada pela própria autora.
417
STILES, Kristine. “Survey: Cloud with its Shadow”. In: BIESENBACH, Klaus; ILES, Chrissie; STILES,
Kristine (org). Marina Abramović, 74. Tradução livre a partir do inglês.
418
PHELAN, Peggy. Unmarked: the Politics of Performance, p. 146.
171
Tal afirmação de Phelan coincide com a de Renato Cohen que diz que “para
caracterizar uma performance, algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele
local”419. Então emerge a pergunta: precisa, necessariamente, haver audiência nesse local?
Não poderia o performer estar intermediado do seu espectador através de uma lente de uma
câmera fotográfica ou de filmar?
Cada vez mais, testemunhamos documentos de ações performáticas em museus
como objetos de arte, a mediação como parte integrante da própria ação, seja através de
vídeo, da fotografia, de depoimentos escritos ou orais, mapeamentos das ações, esboços,
etc. Amelia Jones que, em Body Art: Performing the Subject, faz uma explicitação de
como o termo body art substitui o que muitos teóricos preferem chamar de performance
art, explica que opera assim para distinguir as ações efêmeras de outras que não procedem
assim420. Perguntei-lhe, portanto, em entrevista para ser publicada na quinta edição da
eRevista Performatus, sobre a documentação gerada a partir das ações denominadas por
body art, mas que hoje são contraditoriamente comercializadas, embora tenham sido
originadas num tempo em que a arte priorizava a ideia em detrimento do produto. Em
resposta a esta pergunta, ela disse:
419
COHEN, Renato. Performance como Linguagem, p. 28.
420
JONES, Amelia. Body Art: Performing the Subject, p. 10.
421
JONES, Amelia. Diálogos com Amelia Jones: Avaliações sobre Identidade, Body Art e Documentações
de Ações Performativas. Entrevista concedida a mim para a 5º edição da revista Performatus. Ano 1 | Nº 5 |
Julho de 2013. Disponível em: http://performatus.net/ameliajones/ (consulta realizada em 17/07/2013).
172
A performatividade é congregada para as artes visuais como uma nova
configuração norteadora, gerando novos debates para inovadoras propostas de
significações emergidas a partir de performances que são trazidas para o campo da
fotografia e do vídeo (a exemplo disso, observem a Bienal de São Paulo de 2012). A fusão
de um ato que é cênico e visual ao mesmo tempo com o vídeo e com a fotografia acabou
por originar novos gêneros (ou subgêneros) artísticos, tais como a videoperformance e a
fotoperformance.
Num período em que os artistas tinham a intenção de sublinhar o processo como
obra (nas décadas de 1960 e 1970), o registro do momento criativo em seus estúdios fazia
extremo sentido e, sendo assim, vale exemplificar a sequência de imagens fotográficas da
artista Carolee Schneemann em seu atelier, propondo seu corpo e seu ambiente de trabalho
como superfícies pictóricas em Eye Body (1963) e mais para frente um pouco, Bruce
Nauman a explorar uma série de vídeos sobre a sua prática processual em estúdio, sendo
ele, então, “o pioneiro da atividade performativa para vídeo” 422 , conforme defende
Willoughby Sharp. Primeiramente, ele produziu “um pequeno número de estudos
fílmicos”423, por exemplo: Manipulating the T-Bar (1965-6), Thighing (1967), Playing a
Note on the Violin While I Walk Around the Studio (1967-68) e Bouncing Two Balls
Between the Floor and Ceiling with Changing Rhythms (1967-68). Depois, Nauman
evoluiu na sua experimentação em vídeos devido a sua fácil acessibilidade ao material de
captação, explorando lentes angulares grandes, pontos de vista e perspectivas incomuns,
além da produção de vídeos em que usava o tempo total do rolo de filme424.
A exemplo de artistas que trabalharam diretamente com o vídeo ou com a
fotografia como forma de intermediar suas ações e o espectador, podemos elencar alguns
nomes como Bas Jan Ader, Richard Serra, Vito Acconci, Joan Jonas, Letícia Parente, Anna
Bella Geiger, Chris Burden, Marina Abramović, Ana Mendieta, Orlan, entre outros vários
desde a década de 1960 até a atualidade.
422
SHARP, Willoughby. “Videoperformance”. In: SCHNEIDER, Ira; KOROT, Beryl. Video Art - An
Anthology, p. 252.
423
Ibidem, p. 253.
424
Cf. Idem.
173
Procurei, dentro desta pesquisa artística elaborada em âmbito acadêmico, além de
produzir ações performáticas, originar outras expressões que o gênero artístico da
performance pode oferecer: texto, áudio, fotografia instantânea, analógica e digital, vídeo
(formato digital e Super 8), instalação, etc. De algumas performances que foram
concebidas como ações para serem concretizadas ao vivo, acabei por originar o registro
como obra de arte, como é o caso do registro em vídeo de Re-banho, o qual hoje faz parte
do acervo permanente do MAC/USP no Brasil. Já ações como Atendo ao Molde, Sede Vós
e Por um Fio foram praticadas especificamente para serem contempladas através do vídeo,
sem nenhuma audiência, ou seja, desde a origem, elas foram concebidas especialmente
para o meio eletrônico, para serem exibidas como videoperformances. A primeira, Atendo
ao Molde, foi captada em formato digital em tempo real, com aproximadamente sessenta
minutos de duração e, depois, foi exageradamente acelerada para resultar essa uma hora de
permanência em apenas pouco menos de um minuto.
Na exploração das possibilidades que as videoperformances hoje podem oferecer,
observamos um investimento muito maior com relação à manipulação e edição das
imagens, o que era praticamente inacessível nos tempos em que esse tipo de prática teve
início, entre as décadas de 1960 e 1970. Evidentemente, alguns artistas, ainda hoje,
resgatam o formato original e preservam a captação do tempo real inabalado, como, por
exemplo, Waléria Américo com Mergulho na Paisagem (2006) e Lia Chaia com Desenho
Corpo (2001). Porém, ainda que existam tais conhecidos exemplos de artistas que se
apoiam no vídeo ou na fotografia como recurso para transmitirem suas performances, há
uma enorme controvérsia levantada pelos teóricos a este respeito e, sobre o uso do vídeo
como mediação, Cohen diz:
425
COHEN, Renato. Performance como Linguagem, p. 28.
174
Entendemos, assim, que videoperformance é um outro gênero artístico, inventado a
partir da performance em fusão com o vídeo e vice-versa. Refletindo sobre este gênero da
videoperformance – termo que é ainda recente e gera múltiplas discussões para que
possamos chegar facilmente a um consenso –, temos três níveis básicos para pensarmos ao
seu respeito: o primeiro, sendo um vídeo a ocorrer simultaneamente (e subordinado) a uma
ação; o segundo, sendo uma performance feita unicamente para ser vista através do vídeo,
pois, sem esse recurso, a ação seria presenciada apenas pelo(a) cinegrafista; o terceiro, a
gravação de uma performance como registro simples.
Nos dois primeiros casos, obviamente, podemos enumerar uma série de fatores que
podem legitimar uma distinção desse novo gênero com relação ao da videoarte ou da
performance, lembrando que videoperformance é uma “performance em que o artista
incorpora uma filmadora ou equipamento de vídeo, e em que é dada à tecnologia uma
posição tão proeminente quanto a do corpo humano, como um complemento dele”426.
Para Willoughby Sharp, a videoperformance ocorre quando o trabalho da
performance “não pode ser assimilado na ausência do elemento vídeo” 427 e, como
conclusão, em seu texto intitulado por Videoperformance, de 1979, Sharp menciona a
performance Back to You (1974) de Chris Burden e Claim (1971) de Vito Aconcci para
definir o que, de fato, pode ser uma videoperformance, que ao seu ver, bem como desses
próprios artistas, deve ser uma ação para ser assistida através do vídeo, mas que esteja a
ocorrer ao mesmo tempo e simultaneamente a ele, ou seja, só o primeiro caso aqui avaliado
é que seria considerado videoperformance por eles.
Sobre o terceiro caso, embora haja episódios em que a ação registrada seja para ser
inicialmente executada ao vivo e não tenha o objetivo de ser realizada enquanto vídeo, eu
não descarto o desdobramento que esse registro pode vir a ter como um novo gênero
artístico, não funcionando como mero afã documental, pois acaba por se enquadrar naquilo
que demarca uma videoperformance, meio em que “encontramos uma postura estética
426
POISSANT, Louise. New Media Dictionary: Part II: Video. In Leonardo, v. 34 n. 1, fev. 2001. p. 41-44.
Disponível em: http://muse.jhu.edu/journals/leonardo/v034/34.1dictionary.html (consulta realizada em
18/07/2013).
427
SHARP, Willoughby. “Videoperformance”. In: SCHNEIDER, I; KOROT, B. Video Art - An Anthology, p.
252.
175
direta, que amplia e desloca os domínios da linguagem”428. O vídeo registro, em muitos
casos, passa a ser tão autônomo quanto a própria ação, carregando os traços do conceito
inicial numa relação de imbricação com ele e não de obstinação contraproducente. Aliás, o
registro, nesse caso, pode colocar a ação original numa situação de que nem ela atingiria
tal resultado evidenciado na documentação, havendo aí, um claro identificador do
pensamento de Walter Benjamin429. “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a
reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida”430.
Em tempos em que a carne humana já é considerada obsoleta (vejam as previsões
de um futuro cibernético por Stelarc ou as palavras persistentes de Le Breton), a
performance dos anos de 1970 – já com aspectos datados e que sobreviveram durante os
anos de 1980 – foi transformada, decomposta e repensada com maior intensidade a partir
dos anos de 1990, período em que ela se fundiu à logica do consumo e das mídias. A partir
daí, “o corpo, suporte central e definidor da performance, torna-se então obsoleto, porque
perde sua eficácia como instrumento de expressão e simbolização”431, conforme declara o
autor Silvio de Gracia. O corpo, segundo ele, “é relegado pela onipotência simbolizante e
representacional das tecnologias de comunicação que administram e concebem uma
‘realidade’ mais verossímil que a própria experiência cotidiana”432.
Para o autor, tanto os registros documentais como as próprias videoperformances
mostram-nos “a presença de um corpo encurralado e midiatizado pela tecnologia do
vídeo”433, ou sugerem a eletrônica “não-presença” virtualizada de um corpo. “É possível
falar de uma nova ‘desmaterialização’, na qual a carne é substituída por sua projeção, e a
presença por um sinal virtual”434.
Ainda, assistimos, em museus, galerias e centros culturais, hoje, uma enorme
ascensão de fotografias, além dos demais registros que exploram o gênero da performance
como pujança do trabalho exposto. Manuel Vason, Rodrigo Braga, Nino Cais, Marcela
428
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. p. 152.
429
Cf. BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica” In: Sobre Arte,
Técnica, Linguagem e Política, p. 78.
430
Ibidem, p. 80.
431
GRACIA, Silvio de. “A Dimensão Eletrônica: da Obsolescência do Corpo às Estratégias da
Tecnoperformance” In: Performance Presente Futuro, p. 49.
432
Idem.
433
Ibidem, p. 48.
434
Idem.
176
Tiboni, Lenora de Barros, etc. São muitos os artistas que especulam essa hibridização da
performance com a fotografia, investindo sobre as chamadas “performances fotográficas”
ou “fotoperformances”.
435
VANHAESEBROUCK, Karel. Teatro, Estudos Performáticos e Fotografia: uma História de
Contaminação Permanente. Revista Performatus. Ano 1 | Nº 4 | Maio de 2013. Disponível em:
http://performatus.net/teatro-estudos-performaticos-e-fotografia/ (consulta realizada em 17/07/2013).
177
1.3 Sobre as minhas ritualizações
Sob a proposta de investigação sobre o corpo e suas transformações por meio das
influências exercidas pela Moda e/ou pela religiosidade, propus a criação de uma série de
nove ações performativas e, compreendendo que o termo “performativo” é amplo e inclui
diversas vertentes artísticas – como os subgêneros: fotoperformance e videoperformance –,
optei por desenvolver este trabalho sob a forma de uma tese-projeto, no domínio do
doutorado em Estudos Teatrais e Performativos da Universidade de Coimbra, contexto
crítico e institucional no qual foi possível aplicar minhas principais especificidades
436
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte, p. 11.
437
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 51.
178
artísticas profissionais, adquiridas, principalmente, através das minhas duas primeiras
formações acadêmicas: graduação e mestrado.
Busquei, em 2003, uma graduação em Artes Cênicas – Direção Teatral (8
semestres) e, ao mesmo tempo, cumpri quatro semestres de uma graduação em
Indumentária também na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2008, ingressei no
mestrado em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes
da Universidade do Porto, que foi concluído em dezembro de 2010. Conforme minha
trajetória acadêmica, a minha produção artística situa-se entre as artes cênicas e as artes
visuais, sendo que o corpo tem sido o centro de todas as minhas criações até então. As
temáticas, ainda que muitas vezes de forma inconsciente, sempre permearam em torno do
indumento e do corpo. No período de Faculdade, desenvolvi Os Sapatinhos Vermelhos,
espetáculo apresentado no Rio de Janeiro entre 2006 e 2008, cujo elemento principal da
trama era um par de sapatos vermelhos e o fetiche relacionado a eles. O mesmo ocorreu em
Esta propriedade está condenada, espetáculo de 2006, no qual a personagem protagonista
vestia-se com as roupas da sua irmã morta. Um lindo punhado de fitas lindas, espetáculo
de 2005, minha primeira encenação, o elemento de fetiche era um laço de fita de cetim
amarrado na cabeça da personagem principal.
Embora já tivesse desenvolvido algumas ações performativas antes de buscar
qualquer curso superior, bem como enquanto realizava minha graduação ou depois de
concluí-la, foi a partir do mestrado que priorizei a performance como meio mais frequente
de expressão. Neste âmbito desenvolvi Vende-se: Aceita-se Cartão de Débito, ação em que
eu vendia as roupas do meu próprio corpo nas ruas da cidade do Porto. O
participante/comprador podia pagar em dinheiro ou através de cartão de débito cada peça
obtida. Desenvolvi, ainda, O Beijo e O Outro Beijo no Asfalto, ações em que dois
performers “cross-dressers” beijam-se durante meia hora: um homem vestido com roupas e
acessórios definidos como femininos e uma mulher vestida com trajes tidos por masculinos
numa cultura heterocentrada. Nessas ações, o elemento decisivo para atingir o objetivo da
estranheza não é o beijo em si ou o seu tempo excessivo, mas a indumentária que confunde
o observador, ao ver códigos normalizantes subvertidos. Há, ainda, a performance que
desenvolvi a partir destas, Reciprocidade Desalmada, em que um grupo numeroso de
179
pessoas beija a própria imagem diante do espelho durante uma hora seguida. Todos
performers vestem trajes convencionalmente trocados no que corresponde aos que são
atribuídos a cada corpo segundo certas condições sociais.
Traje de banho para sujar (2009) tem também o indumento como elemento de
destaque da obra. Espetáculo híbrido, cujo título determina o traje adequado para que os
observadores possam participar da ação, a qual ocorreu em meio a natureza no interior do
estado de São Paulo. O espetáculo tinha como desfecho um banho grupal na lama após a
exibição de diversas cenas que abordavam as neuroses em torno da beleza. A sujeira era
uma forma de “lavar a alma” coletivamente e funcionava como um ritual libertador das
opressoras imposições sobrevindas da mídia.
O elemento ritualístico sempre esteve presente nos trabalhos que concebi, sendo
que as obras nem sempre foram imaginadas de uma forma fechada, permitindo a interação,
a participação do “espectador” como fator determinante também para o resultado final da
criação. De forma inconsciente, eu acabava por incorporar, dentro do meu trabalho, o que
Turner nomeou por “antiestrutura”, à medida que eu buscava produzir uma obra que
abarcasse espectador e espetáculo em prol da libertação das coações oriundas do dia a dia.
O sentimento de “communitas” (mencionado por Turner) foi experimentado
principalmente em “Traje de Banho para Sujar”, pois, ao fim da performance (que se
aproximava por diversos fatores do ritual), todos estavam compartilhando a mesma
situação (brincando na lama) de forma espontânea, prevalecendo ali a franqueza e as
inflamadas emoções de um coletivo em perfeita harmonia.
Embora a Moda e suas relações com o corpo sempre tenham permanecido
concentradas nos meus trabalhos artísticos, a religiosidade (de certa forma) também estava
sempre presente. Traje de casamento (vestido e terno), portanto o matrimônio, que
correspondendo a um ritual sagrado (com ressalvas) de grande relevo social, esteve
presente em O Outro Beijo no Asfalto (2009 – 2012), performance que, assim como O
Beijo (2006), Reciprocidade Desalmada (2009 – 2012) e Vende-se: Aceita-se Cartão de
Débito (2009) faziam referência aos problemas de gênero, assunto que é tabu ainda hoje
em grande parte das religiões.
180
O desejo e a repressão também foram exacerbadamente investigados nas minhas
composições artísticas, sendo que em Os Sapatinhos Vermelhos, busquei me apoiar nas
crenças católicas, no que diz respeito às restrições impostas ao individuo durante a Semana
Santa. Após um término de relação, a personagem protagonista – interpretada pela atriz
brasileira Débora Paganni – buscava, obsessivamente, depois de cinco anos de
relacionamento casto e monogâmico, suprir seu forte desejo sexual, antes reprimido,
através de encontros marcados a partir redes sociais da internet (verificando-se aqui
também a presença crítica do “cibercorpo”). Em plena Sexta-feira da paixão, a
personagem faz sexo grupal, bebe álcool, fuma e usa sapatos de salto alto de cor vermelha.
Passada a voluptuosa noitada, no dia seguinte, a personagem veste-se de branco e porta-se
culpada.
Como tentei demonstrar, a Moda e a religiosidade, enquanto dois discursos
pensados em relação direta ou indireta com o corpo, foram argumentos recorrentes nas
minhas produções artísticas. Deste modo, ao convocar nesta tese-projeto este arquivo
visual e pessoal procurei planear, desenvolver e executar um conjunto seletivo de nove
ações performativas, considerando que há neste processo, assim como nos happenings e
performances, “(...) o ponto de intersecção de três meios: plástico-visual, musical e teatral,
predominando em cada caso uma faceta”438, mas sempre primando pelo que de fato me
mobilizou: os discursos da Moda e da religiosidade como influências capazes de se
impregnarem sobre/no corpo do sujeito.
Os rituais diários que observo e dos quais me aproprio como fonte de inspiração
para as concepções performativas servem como fundamental argumento para o meu
discurso corporal. Conforme observa o autor Simón Marchán Fiz sobre a performance:
438
FIZ, Simón Marchán. Del arte objetual al arte de concepto – epílogo sobre la sensibilidad
“postmoderna” (1960-1974), p. 196. Texto livremente traduzido do espanhol.
439
Ibidem, p. 193.
181
É da atual vida cotidiana que absorvo inspiração para as criações que me propus
desenvolver como tese. Considero igualmente que “(...)o artista é a tese que diz respeito
tanto a si mesmo quanto seu assunto. Isso quer dizer que ele mesmo se coloca como
objeto, uma vez que ele está consciente do processo em que ele está envolvido”440.
Devo ponderar que, como resultado dessa pesquisa, naturalmente, tal qual ocorre
com os praticantes da arte da performance, houve um recursivo apelo ao ascetismo, uma
forma de espiritualidade mundana, uma espécie de teologia contrária, concretizada na
atitude do ritualismo como forma de buscar a força adicional para a investigação da
relação entre a atividade estética e o deleite regressivo441. São “cerimônias sem Deus,
rituais sem crenças”442, sob um niilismo carregado de ironia.
Os trabalhos não foram resumidos a estas ações performativas apresentadas ao
público; as performances foram expandidas, ainda, em forma de registros e resquícios
(vídeos, fotografias e instalações).
Fiz a opção, em muitos casos, de não “performar” sozinho e contar com a
participação de outros artistas convidados por mim, para os quais propus um tipo de
performance que, de certa forma, ainda que de maneira muito sutil, acaba por tocar na
própria condição de uma encenação teatral. Isso, é claro, deve-se ao fato de a performance
ser, por excelência, uma arte cênica e que, aqui, apresenta-se um pouco mais distanciada
da sua origem que está centrada nas artes visuais.
Em absolutamente todos os casos, somos artistas a executar um programa pré-
estabelecido, sem estarmos protegidos por detrás de uma personagem; apresentamo-nos
como somos, sem intenções interpretadas; há, inevitavelmente, uma máscara alegórica em
cada um de nós que não permite que sejamos personagens, mas também não somos nós
como no nosso dia-a-dia.
Ainda, embora eu não opte sempre pelos espaços convencionais (galerias, museus,
teatros, etc.) e procure o espaço público (ou o privado mais alternativo) como forma de
conseguir reações menos previsíveis a partir das ações mostradas, todos performers
440
VERGINE, Lea. Il corpo como linguaggio (La body art e storie simili), p. 13. Texto livremente traduzido
do inglês.
441
Cf. Idem.
442
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance, p. 37.
182
obedecem ao meu posicionamento, ou seja, acabo por figurar como uma espécie de
encenador, mas, neste caso, de performance e não de teatro.
A série composta por nove projetos artísticos foi desenvolvida durante o triênio de
2010/2013, com extensão até 2015, sendo que a temática nem sempre se manifestou de
forma concreta, ou seja, não necessariamente timbrou marcas no meu próprio corpo, mas
teve o meu corpo (e o de artistas convidados) como cerne do discurso que me propus a
desenvolver e pronunciar. Corpo este que procura discursar sem a restrição da razão
castradora, fazendo valer o discurso de Foucault em A Ordem do Discurso, que analisa a
oposição da razão e da loucura, onde há implícita (ou até explícita mesmo) a ideia
nietzschiana de oposição entre Apolo e Dioniso, entre a razão castradora e a liberdade
(excesso)443, a qual segundo Nietzsche é a verdade. Para esse pensador, a racionalidade
não deve castrar o sonho e a pulsão artística. Aliás, sobre a verdade, o próprio Foucault diz
que a vontade de verdade atravessou vários séculos de nossa história.444
Tal qual o “louco” que não se apoia na razão para discursar, procuro validar, em
meu próprio corpo e no corpo dos artistas que me acompanham o campo simbólico de um
discurso que não desponte já reprimido.
Em cada um dos trabalhos performativos elaborados, procurei utilizar as
representações do corpo e os aspectos das marcas corporais e deformações. Para isso,
utilizei os seguintes elementos como artefatos: indumentárias (com aspectos de trajes de
ambientes sagrados e hospitalares e trajes de festa), espelhos, água, urina, tintas (de cabelo,
maquiagem, etc.), restos de cabelo, recipientes para armazenar os líquidos que uso nas
ações (baldes, copos, garrafas, etc.), alimentos, velas, fitas coloridas, balões de aniversário,
batons e imagem católica de parafina. Em cinco trabalhos elaborados dentro dessa
pesquisa, utilizei a longa duração como forma de dirigir o olhar do espectador para algo
que foge à lógica convencional de tempo, pois, levando em conta a construção das
narrativas contemporâneas, momento em que prioriza-se mais informação com o menor
tempo possível, assim como Bill Viola, proponho o contrário, mostrar cada vez menos
443
Devido ao pensamento nietzschiano no que diz respeito ao excesso e à busca de uma sacralidade pré-
religiosa, escolhi o nome da minha companhia de arte, composta por mim e por Paulo Aureliano da Mata,
como Cia. Excessos.
444
Cf. FOUCALT, Michel. A Ordem do Discurso, p.06.
183
informação em mais tempo445. Além disso, atingir uma transformação física e mental em
mim (e nos performers que trabalham comigo) – como por exemplo, as três horas em que
fiquei praticamente imóvel em Proxim(a)idade, performance que marcou meu aniversário
de trinta e um anos – é algo que faço há alguns anos e que experimentei e concluí na
prática.
Re-banho, Dismorfofobia, Sede Vós, Atendo ao Molde, Beija-se, Proxim(a)idade,
(De)reter-se, Por um Fio e Aliança são os nove trabalhos concebidos como componente
prática desta tese-projeto, que teve desfecho sob forma de exposição de 01 a 30 de junho
de 2013 no Centro para Assuntos da Arte e Arquitectura (CAAA) em Guimarães. Incluí,
nessa exposição, o trabalho Romance Violentado (2011) de Paulo Aureliano da Mata e
minha série fotográfica Faceless (2011), pois ambas produções dialogam diretamente com
os trabalhos desenvolvidos dentro dessa pesquisa. A exposição, devido a esta inclusão, foi
assinada por mim e por Paulo como Cia. Excessos.
A exposição também foi apresentada no Brasil no SESC Campinas (novembro de
2013) e no SESC São José do Rio Preto (abril de 2014), sendo ambas unidades situadas no
interior do estado de São Paulo.
445
VIOLLA, Bill. Entrevista feita por Marcello Dantas. Processing the Signal (Nova York, 1989). Disponível
em: http://www.youtube.com/watch?v=6MZ4U41PSuo (consulta realizada em 22/07/2013).
184
2. Nove Projetos Performativos
2.1. Projeto performativo 1: Re-banho
Sinopse/Conceito:
Re-banho é uma performance que envolve o ato de se banhar como forma de
purificação, de benção, simbolizando o batismo e a repetição de um ritual que se pratica
habitualmente (como ir à missa aos domingos para receber a água “benta”). Ao mesmo
tempo, a performance faz retumbar o que Nietzsche, há mais de um século, afirmou contra
os limites da noção metafísica de razão que prevaleceu ao longo da modernidade.
Assim como Nietzsche afirmou em A Gaia Ciência que a moralidade é “o instinto
de rebanho no indivíduo”446, esta ação, Re-banho, vem enfatizar o quanto esse modelo
moral de matriz cristã é castrador, o que gera o pudor e a culpa em detrimento da liberdade
do sujeito.
Descrição:
A ação consiste em um banho em frente a uma igreja, sob trajes virtuosos, com
auxílio de água e sabão. Em momento algum o corpo é exibido, pois a ação de lavar ocorre
por baixo da indumentária, sendo que o banho só termina quando a barra de sabão chega
ao fim, levando a exaustão o ato de esfregar a pele e retirar a suposta sujeira, podendo,
inclusive, surgir vermelhidões cutâneas devido a ação de friccionar.
Ficha técnica:
Concepção e direção geral: Tales Frey
Performers: Joana Lleys, Lizi Menezes, Miguel Ambrizzi, Paula Guedes, Tânia
Dinis e Tales Frey.
Operação de Câmera, edição de imagem e som: Jorge Quintela
Registros fotográficos: Suianni Macedo e Marcos Guilherme
Realização: Cia Excessos
Porto / Portugal, 2010.
446
NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, p. 142.
185
Materiais:
12 baldes pretos de plástico;
Trajes e acessórios que aludem aos usados em ambientes religiosos em tons de
branco, preto e cinza;
10 litros de água para cada performer (total de 60 litros de água);
6 barras de sabonete de coloração branca.
Ambientação:
Antes da atual edificação da Igreja de Santo Ildefonso, sabe-se que havia uma
antiga Ermida em seu local, referida em uma provisão municipal de 30 de Maio de 1560,
por “Sant'llafon”, cuja data de edificação é desconhecida. Ao menos, em um testamento do
Bispo do Porto, D. Vicente Mendes, datado de 1296, uma menção a esse prédio demonstra
que sua existência é, obviamente, anterior a essa data, porém para comprovar a origem de
sua construção não há documentação e, portanto, não há uma data precisa.447
Com base na brochura disponível para os visitantes no próprio local448, tem-se o
conhecimento de que, ali, faziam passar a tradicional procissão do Corpo de Deus, saída da
Sé, atravessando as muralhas fernandinas e, junto dessa ermida havia, ainda, uma
albergaria para peregrinos e, em 1521, o Hospício dos Entrevados, cujos falecidos desse
hospício eram enterrados no adro da Igreja. Esses foram os principais motivos que me
fizeram eleger a Igreja de Santo Ildefonso como a ambientação mais apropriada.
Sobre a igreja de Santo Ildefonso há poucos conhecimentos sustentados por fontes
documentais, mas podemos conhecer um pouco da origem da sociedade cristã de Santo
Ildefonso e seu sítio de culto através das prospecções que foram começadas em Julho de
2000, sob a orientação do Pároco Cônego Doutor Alfredo Soares e do Arquiteto Jofre
Bispo.
Diante de uma elevação do soalho da Igreja, a exploração confirmou estarmos
perante a um cemitério térreo e, na capela-mor, foram localizadas pedras de alicerce que
447
Cf. SOARES, Alfredo Leite – Igreja de Santo Ildefonso (Brochura virtual). Brochura disponível no site:
http://tinyurl.com/35va89y (consulta realizada em 01/05/2012).
448
Disponível nos anexos desta tese-projeto.
186
corresponderiam à referida Ermida, a qual foi demolida em 1709 para dar lugar à
edificação da atual igreja de Santo Ildefonso, a qual foi construída ao longo de trinta anos
(1709-1739). Então, no dia 18 de Julho de 1939 é inaugurada e benzida a nova igreja de
Santo Ildefonso. Sabe-se que esta atual igreja foi construída sobre o terreno da antiga
ermida e acolheu o Santíssimo Sacramento e as imagens sacras que haviam sido
transladadas para a Capela de Nossa Senhora da Batalha (demolida nos princípios do
século XX).
449
449
Igreja de Santo Ildefonso. Foto de Oscar Coelho da Silva de 1968. Imagem obtida em:
http://www.flickr.com/photos/teodias/2592760708/ (Consulta realizada em 01/05/2012).
187
450
450
Imagens da performance Re-banho na Igreja de Santo Ildefonso. Estes registros são de autoria do
fotógrafo português Marcos Guilherme. Outubro de 2010.
188
Referências:
Conceitualmente, Re-banho, embora tenha a ambientação da igreja como signo de
relevância para a evocação do que me proponho refletir e tenha de fato que ser assim, não
podendo ser uma ação executada em um espaço interno convencional (museu, galeria,
etc.), acaba por remeter nosso olhar para a performance Sunday Bath de Herma Wittstock,
apresentada em Milão no ano de 2003 no PAC – Padiglione d`Arte Contemporanea, ação
em que a artista se banha nua em uma bacia repleta de pregos e não de água. Há uma
coincidência temática deste trabalho com o meu e que procuro aqui enfatizar. A
performance de Wittstock não serviu de base ou referência para esta minha criação, pois
tive conhecimento do trabalho dela somente alguns meses depois de já realizado o meu,
mas sublinho o quanto há nele qualquer relação temática com a minha criação, não só pela
imediatidade advinda da leitura crítica estabelecida com relação ao universo cristão, mas
também pelos próprios elementos de base para a execução da ação: o corpo, o banho, o
recipiente (bacia) e a vermelhidão surgida na pele.
No meu caso, apoiei-me no uso literal do banho, ou seja, nos recipientes (baldes),
havia água mesmo para lavar os corpos durante a ação. De forma oposta, não exibi meu
corpo nu como ela o fez, mas de forma similar, estabeleci uma visão crítica ao modelo
cristão de moral que condena a condição da nudez, impelindo o pudor na relação do sujeito
com o seu próprio corpo. Ambos trabalhos retratam o corpo que se autopune em prol de
algo sagrado: Wittstock evidencia com violência o martírio religioso quando faz uso do
efeito dos pregos esfregados na pele (pregos que nos orientam para a imagem de Jesus
crucificado), ato que a deixa suja e ferida, enquanto eu demonstro e denuncio o efeito da
vergonha num ato que, naturalmente, exigiria a nudez, mas, ao contrário, proponho um
banho com corpos ocultos pelo vestuário, corpos que se lavam de forma obsessiva com
barras de sabonetes.
Re-banho, assim como Sunday Bath, foi pela primeira vez realizada em um
domingo e, conforme explica a artista Herma Wittstock “aos domingos, deve-se lavar a si
mesmo, deve-se lavar antes de entrar na igreja, a fim de ter uma renovada alma limpa”451.
451
WITTSTOCK, Herma. Apud. ABRAMOVIC, Marina. Student Body, p. 434. Tradução livre para o
português.
189
A religião (de ordem cristã) é sim a elucidação mais imediata ao examinarmos as
duas propostas imagéticas, mas a Moda está igualmente presente em ambas concepções
também. Na minha proposta, o corpo – por conta do enfeite, da proteção e principalmente
do pudor –, está vestido até mesmo para se banhar e, em Sunday Bath, o corpo obeso é
reprovado, estigmatizado e exposto como repressor da própria condição estética ao
promover ferimentos em si mesmo, assegurando que para um corpo estar nu na nossa
atualidade, há que se aderir o gosto pela lipofobia, ou seja, pela total rejeição e intolerância
à gordura.
452
452
Imagem obtida em ABRAMOVIC, Marina. Student Body, p. 434.
190
Processo:
Foi a partir de uma reflexão durante o meu próprio banho, em outubro de 2010, que
desenvolvi a performance Re-banho. Nesse momento, pensei nas relações dos humanos
com seus corpos e, como que isso pode e deve proceder com alguém exageradamente
devoto. Pensei na fase natural de masturbação, por exemplo, que é mais presente durante a
puberdade do ser humano e pensei ainda no banho como momento único de uma pessoa
estar completamente nua e em contato total consigo mesma (com o seu corpo sem
ornamentos e proteções). Também, refletia, nesse instante, sobre o banho até como
estratégia de isolamento, de fuga do coletivo, para alguém, em paz, ter o prazer de se auto-
tocar. Daí, me insurgia a fé descomedida em deus como um fator para a auto-repressão,
para o impedimento desse contato íntimo do sujeito com seu corpo nu. Então, lembrando-
me de que o banho, ritual diário de higiene pessoal, é transportado para a religião e
ritualizado nela, por exemplo, no batismo católico, resolvi transformar o meu banho em
uma ritualização artística.
Então, sob o tema “Moda e religiosidade”, quis trabalhar a contradição existente em
um banho completamente vestido, um banho pudico, que não permitisse contato direto
com meu corpo pela interferência causada pela Moda (roupa) e também pela religião
(pudor), então, pensei em fazê-lo no ambiente da igreja, onde eu tivesse que driblar essa
dificuldade de estar com o corpo cerrado por tecidos para me banhar, para me higienizar.
Normalmente, inicio meus trabalhos de performance elegendo palavras aleatórias
que me recorrem a partir de um tema ou de uma ideia qualquer. Através de palavras soltas,
vou fechando o conceito e o título de cada trabalho e, assim foi com Re-banho.
O título da ação surgiu, após eu fazer, sobre uma folha de papel, uma enumeração
de palavras que pudessem se relacionar com o tema e, então, dessa lista, após ler em voz
alta “espírito de rebanho” (uma citação de Nietzsche), a palavra “rebanho” pareceu fazer
todo sentido, pois acoplava mais de uma ideia em si, o que acho fundamental para o nome
de uma obra, que não deve nunca ser literal. Bastou colocar um hífen depois da sílaba “re”,
que de “rebanho”, noção de humano devoto segundo Nietzsche, adveio o ato ritualístico do
banho, pois “re” impõe a condição de “fazer outra vez”, ou seja, de repetição.
191
453
453
Estudo para definir um título para a ação.
192
reverência pelos transeuntes que lá percorreram. Uma criança, inclusive, sentou na
escadaria em que nos banhávamos e assistiu com extremo respeito ao nosso ritual que
profanava a sacralidade relacionada àquele espaço. Talvez, embora carregada de crítica à
conduta moralista da igreja, a performance não imprima em si um discurso agressivo.
Trajetória:
Esta ação foi selecionada como videoperformance para ser apresentada no PerfoArtNet: V
International Biennial of Performance, com curadoria de Consuelo Pabón em maio de
2016, Bogotá, Colômbia. Também, foi exibida como videoperformance nos seguintes
eventos: CÓDEC Festival de Vídeo Y Creaciones Sonoras, Cidade do México, México;
Mostra EN DIFERIDO. 7º Encuentro de Acción en Vivo y Diferido, A SEIS MANOS,
setembro de 2015, Bogotá, Colômbia; I Bienal da Maia: Lugares de Viagem - Múltiplas
Perspectivas e não menos Contradições e Sonhos, com curadoria de José Maia, de 13 de
junho a 30 de agosto de 2015, Maia, Portugal; Exposição coletiva (Tra)vestir um Fa(c)to,
com curadoria de José Maia, espaço Mira, maio a junho de 2015, Porto, Portugal; tpa
Exchange, com curadoria de Manuela Macco e Guido Salvini, Galleria Moitre, 19 de
março, Torino, Itália; Exposição coletiva Corpo (i)materializado, Mostra Performatus #1,
Central Galeria de Arte, São Paulo, Brasil; Rapid Pulse Performance Art Festival: Video
Series, Defibrillator Gallery, junho de 2012, Chicago, EUA; Festival
torinoPERFORMANCEART 2013, junho de 2013, Turim, Itália; Kuala Lumpur 7th
Triennial – Barricade, com curadoria de Kok Siew Wai, MAPKL, fevereiro e março de
2013, Kuala Lumpur, Malásia; Trânsitos e Visualidades. Exposição que compõe o
Seminário Poéticas da Criação - territórios, memórias e identidades na arte, com
curadoria de José Cirilo e Marcos Martins, dezembro de 2012, Vitória – Espírito Santo,
Brasil; KLEX in Georgetown Festival, Public Display of Affections, Penang, Malásia,
2012; The Biennial 6th Bangkok Experimental Film Festival (BEFF6), Bangkok Art and
Culture Centre, janeiro e fevereiro de 2012, Bangkok, Tailândia; The 2nd Kuala Lumpur
Experimental Film and Video Festival 2011 – KLEX, novembro de 2011, Kuala Lumpur,
Malásia; Direct Action, Institut Für Alles Mögliche, maio de 2011, Berlim, Alemanha;
193
Vídeo selecionado para integrar o CurtaDoc – Uma janela para o documentário, SESCTV,
Brasil, 2011.
Re-banho compõe a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais,
apresentada em junho de 2013 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e da
Arquitetura) na cidade de Guimarães em Portugal, bem como no Brasil nos seguintes
espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas unidades da instituição localizadas no
estado de São Paulo).
Hoje, o vídeo registro da ação faz parte do acervo permanente do MAC/USP no
Brasil.
194
2.2. Projeto performativo 2: Dismorfofobia
454
Sinopse:
Esta performance faz uma exposição dos corpos vigentes na sociedade
contemporânea, seja através da narrativa fragmentada em fuga à lógica unidimensional, ou
ainda, sob o apoio das imagens bidimensionais presentes em outdoors, revistas e telas de
cinema e televisão. A atual sociedade de consumo, de característica hedonista e narcisista,
persegue incessantemente uma reprodução dessas “imagens-normas” ditadas pela mídia.
Dismorfofobia (transtorno dismórfico corporal) revela corpos permanentemente
insatisfeitos com suas próprias representações diante de espelhos, que refletem imagens
distorcidas, imprecisas, deformadas num âmbito psicológico, mas naturalmente
verossímeis com relação ao plano real.
Descrição:
Levando em conta que “a arte contemporânea penetra as questões cotidianas,
espelhando e refletindo exatamente aquilo que diz respeito a vida”455, a dramaturgia relata
os lixos psíquicos do mundo atual no que diz respeito às neuroses condizentes à Moda e à
beleza, sob “uma narrativa fragmentada, indireta, que desconstrói as possiblidades de uma
454
Imagem obtida a partir do video composto para ser usada na performance. Nesta imagem, experimentei
sobrepor pinceladas de tinta preta, recurso que utilizo em cena.
455
CANTON, Katia. Narrativas enviesadas. p. 35.
195
leitura linear”456. A transdisciplinaridade garante a materialização de Dismorfofobia, que
classifico como uma performance fringe pelo seu caráter múltiplo de linguagens artísticas:
vídeo, performance, dança, desenho/pintura e teatro.
Esta performance fringe é composta por três partes: a primeira, um ritual de
passagem457 do espaço externo para o ambiente da ação; a segunda, sendo uma videoarte
fundida em uma pintura/desenho ao vivo; e a terceira correspondendo a um desfile de
roupas não convencionais, apresentadas em sombras coloridas (luzes em combinação
especificada por “RGB”).
Ficha Técnica:
Concepção e direção: Tales Frey
Performers: Lizi Menezes, Paulo Aureliano da Mata, Tânia Dinis, Tales Frey e
Xana Miranda
Vídeo/Captação: Jorge Quintela
Vídeo/Edição: Tales Frey
Sonorização: Lizi Menezes e Tales Frey
Operação de Luz: Daniel Oliveira
Realização: Cia. Excessos
Porto / Portugal, 2012.
Materiais:
- Três refletores com gelatinas coloridas (vermelha, azul e verde - RGB);
- Tela branca de tecido opaco, tela branca de tecido transparente;
- Cinco recortes de papelão que refazem, em dimensões relativas ao corpo de cada
performer, certas figuras encontradas em catálogos de Moda e revistas. Estas
formas são compostas por superfícies espelhadas fragmentadas;
456
Ibidem, p. 36.
457
Uso essa expressão para fazer alusão aos “ritos de passagem” e o poder de “eficácia” que esses eventos
têm na transformação dos sujeitos que estão envolvidos neles. Não afirmo, com isso, que proponho de
fato um ritual, mas sim a intenção de transformar os sujeitos que ali estão e que precisam expor suas
medidas corporais para entrarem no espaço, algo que é tabu para grande parte deles. Gostaria que esses
espectadores refletissem sobre essa conduta e melhorassem com relação as suas auto-aceitações a partir
desse evento.
196
- Indumentárias em tons de branco e preto;
- Um balde de tinta para cabelo e pincel;
- Recortes a partir de papéis espelhados que representam (em formato
bidimensional) a “Faixa de Miss”, a coroa e o buquê de flores de um concurso de
beleza;
- Caneta hidrocor e papel espelhado para anotação.
- Fita métrica e balança.
Ambientação:
Maus Hábitos, Espaço de Intervenção Cultural da cidade do Porto acabou por ser o
local para a realização da primeira experiência para a concretização de Dismorfofobia. A
respeito do nome desse espaço, na própria descrição disposta no site, podemos ler o
seguinte:
Este ambiente de mediação cultural surgiu em 2001, ano em que o Porto estava
vivendo uma grande efervescência artística, fortemente subsidiado por conta do ano em
que o foi “Capital Europeia da Cultura”. Hoje, mesmo em tempos de crise, o espaço se
mantém ativo e coerente com os ideais que o fizeram despontar, pois não expõe
concepções artísticas vendáveis e pouco arriscadas. O quarto andar de um edifício situado
em frente ao conhecido Coliseu do Porto, não dispõe de palco italiano, no entanto, permite
que sejam feitas apresentações de teatro lá. O espaço não é uma convencional galeria, mas
recebe exposições dentro de suas condições. O ambiente é flexível e abriga cenas mais
híbridas e menos interessadas pelo resultado certeiro; o risco é benquisto.
458
Informação obtida em: http://www.maushabitos.com (consulta realizada em 22/10/2012).
197
Dismorfofobia não foi preparado para ser prontamente absorvido, porque corria o
risco de fracassar e frustrar expectativas. O Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos
permitiu essa ousadia e, sendo assim, a criação foi zelada em um irreprochável refúgio.
Processo:
Paulo Aureliano da Mata, meu parceiro na Companhia Excessos, recebeu um
convite de Marta Bernardes para apresentar algum trabalho no Espaço de Intervenção
Cultural Maus Hábitos, dentro de um projeto chamado Tômbola Show. Isso ocorreu logo
após a minha apresentação de Espasmos Caninos em Abril de 2012 para esse mesmo
projeto referido. Paulo, após elaborar algo, desistiu de expor o que construiu, pois a ideia
que ele tinha acabou por tomar um rumo que não mais se enquadrava no evento que a
motivou, mas sabe-se que a arte tem dessas surpresas; as vezes, nós, criadores, temos de
nos render às exigências da nossa própria criação. A conclusão é que eu assumi este posto
sem propriamente ter algo para criar para o projeto. Isso, duas semanas antes do evento
(28/10/2012).
Comentei com Marta Bernardes sobre o Dismorfofobia e ela pareceu entusiasmada
com o que eu ia descrevendo como criação possível e este diálogo mexeu com a minha
pré-disposição (e naturalmente com o desafio de levar um projeto à prática, pois era algo já
idealizado e engavetado desde 2011). Reuni todos os referenciais que eu havia juntado
para este trabalho e, em duas semanas, estruturei a performance, que incorporou o evento
Tômbola Show, o qual pressupunha um sorteio para ser realizado ao fim do acontecimento.
Pensei, então, em sortear uma faixa de miss (ou mister), uma coroa e um buquê de flores:
elementos que compõe o corpo do vencedor de um típico concurso de beleza. Cogitei fazer
com que o espectador sorteado (participante) sentisse a mesma sensação de um destes
sujeitos quando vencem tais concursos. Inclusive, dou a possibilidade de o sorteado
discursar algo, o que marca o fim da performance. Os elementos foram elaborados a partir
de papel espelhado, portanto são de estrutura bidimensional. A premiação ocorreu por
detrás de uma tela, portanto, a visualização da premiação foi através de sombra.
A princípio (2011), para Dismorfofobia, eu elaborei apenas um áudio (que seria
usado em off na “cena”), revelando a minha voz completamente alterada, a fazer
198
pontuações absorvidas do meio em que estou inserido. São frases minhas construídas a
partir de ideias que ouço no meu dia a dia, são elocuções de propagandas de produtos que
recebo via e-mail, opiniões que escuto em publicidades de televisão, enfim, muitas ideias
que aspirei e expeli como um texto dramático ou como uma oração. Dentre as frases, há
muitas vindas a partir de A Filosofia de Andy Warhol: de A a B e de volta a A, obra de
Andy Warhol que reflete e ironiza tudo o que diz respeito à Moda e à beleza, onde o humor
e a pilhéria são concentrados em lugares-comuns.
Warhol escreve “acredito em cirurgias plásticas” 459 quando se refere a certas
“belezas problemáticas”. Debocha da perseguição obsessiva pela magreza e da ojeriza ao
corpo obeso quando dá a seguinte receita de dieta: “se você não cuida do seu peso,
experimente a dieta Nova York de Andy Warhol: quando peço um prato num restaurante,
escolho tudo que não quero, assim tenho uma porção de coisas para brincar enquanto todo
mundo come”460. Indagado sobre quem é a pessoa mais bonita que já viu, Warhol, após
refletir sobre as belezas inconfundíveis do cinema, conclui que “na vida, nem as estrelas de
cinema chegam aos padrões que elas estabelecem nos filmes”461. Essa última frase, por
exemplo, é utilizada no texto narrativo de Dismorfofobia, enquanto que as demais
possibilitaram ideias para eu formar um outro escrito.
O áudio foi construído com minha voz a narrar o texto elaborado e, então, na
semana do evento, juntei a ele uma composição eletroacústica que reúne sons captados da
academia de ginástica que frequento na cidade do Porto (Virgin Active). Os sons dos
aparelhos de musculação, bem como os diálogos do ambiente foram distorcidos em um
programa simples de áudio chamado Audacity e, por isso, nenhum ruído é totalmente
reconhecível, mas todos fazem pano de fundo ao discurso esquizofrênico.
Enquanto o texto é narrado, exponho um vídeo em que uso rodelas de pepinos nos
olhos, retiro-as e as mastigo, depois torno a pô-las nos olhos, então as mastigo outra vez,
depois penteio os cabelos alucinadamente, sempre fazendo uso da lente da câmera como se
fosse um espelho, expondo, assim, a minha imagem completamente preocupada com a
ideal exterioridade. Enquanto o vídeo e o áudio são expostos, eu (ao vivo) tento fixar a
459
WARHOL, Andy. A Filosofia de Andy Warhol: de A a B e de volta a A, p. 79.
460
Ibidem, p. 85.
461
Ibidem, p. 84.
199
imagem em movimento através do auxílio da tinta (a mesma com que pinto o cabelo e a
barba antes de iniciar a pintura do tecido) sobre a tela em que há a projeção da minha
imagem. Nesse mesmo momento, há cinco performers a sorrirem com suas placas
espelhadas, nas quais estão as formas geométricas do corpo ideal que cada um deles me
apresentou previamente.
Fiz uma entrevista com Christine Ellison para a primeira edição da revista
Performatus 462 , onde ela afirmava, comentando o seu trabalho performativo Prêt-à-
Médiatiser, que estava tentando destacar a ideia de como observamos figuras inanimadas
em revistas de Moda e nem pensamos sobre isso. Ellison propôs, em cena, um desfile de
roupas bidimensionais para enfatizar o caráter inerte destas imagens que absorvemos dos
catálogos e revistas. Isso me influenciou muito e me fez pensar sobre o plano
bidimensional dos principais veículos de difusão da Moda para a massa. São poucos os que
assistem, ao vivo, a um desfile, então o que ocorre é que a massa consumidora vê imagens
bidimensionais nas revistas e catálogos de Moda e, depois, aplica o que absorve sobre os
seus corpos.
Somando o que absorvi de Christine Ellison com a minha reflexão sobre a falta de
coesão na aplicação de algo bidimensional para o nosso corpo (tridimensional por
excelência), resolvi construir suportes que não se assemelham ao corpo humano e que não
pudessem servir como como roupas (como no caso da performance de Ellison). Propus
silhuetas geométricas espelhadas, estranhas, para serem exibidas em sombra da seguinte
maneira: enquanto todos espectadores veem o performer que foi apresentar-se através de
sombra por detrás da tela, há uma estranheza com relação à forma de quem vemos entrar
para trás da tela e a forma que sai projetada sobre ela. Essa diferença exagerada é para
pontuar a particularidade de cada imagem e evidenciar a obsessiva e absurda busca do
sujeito contemporâneo por um corpo inatingível. As placas espelhadas projetam naqueles
corpos os próprios espectadores deformados.
A ambientação em que o espectador permanece é cercada por duas telas, ou seja,
quase tudo que a plateia vê está intermediado pela tela e não acontece propriamente no
mesmo espaço.
462
Entrevista disponível nos anexos desta tese.
200
463
464
Estas imagens serviram como moldes para serem acoplados à frente do corpo de
cada um deles, sendo que tais moldes possibilitaram a construção de sombras geométricas
coloridas sobre uma tela de tecido branco iluminada pelas seguintes cores: azul, vermelho
e verde (RGB). O resultado é a projeção variada de espectros coloridos que apresentam
463
Imagens para esclarecer a descrição sobre o espaço. Da esquerda para a direita: Foto feita por mim e por
Marta Bernardes.
464
Sequência que esclarece o processo que criei para abstrair a figura do referencial apresentado até obter o
molde espelhado que foi usado por uma das performers.
201
formas totalmente diferentes das que pertencem aos modelos que as expõem quando
mergulham em tais arquétipos, simbolizando assim seus ideias em figuras geométricas
bidimensionais.
Solicidado pelo programador cultural Francisco Galvão do SESC Piracicaba,
adaptei a ação para ser executada unicamente por mim em uma sala de computadores em
março de 2014. Nessa versão, que intitulei por Dismorfofobia: Variante I, eu simplifico a
performance quando exponho as sombras do meu próprio corpo com auxílio de refletores
de luz em cominação RGB; eu me movia por detrás de uma tela de papel em tom branco
fosco, sobre o qual surgiam variadas formas corporais que se fundiam, conotando ao
público a possibilidade de haver mais de um corpo a executar a ação ali naquele espaço
restrito.
A sala da ação era toda espelhada e isso, obviamente foi um contributo conceitual e
formal para a ação, pois as projeções todas eram multiplicadas tal qual o efeito de um
caleidoscópio. A minha ação consistiu exclusivamente em passar o conteúdo todo de um
protetor solar (fator trinta) de 400ml por todo o meu corpo por duas horas initerruptamente.
O espaço constituído por luzes remetia a um solário, ou seja, representava uma câmara de
bronzeamento, mas a ação se opunha à lógica quando se tratava de um corpo a buscar
proteção contra as radiações das luzes. Tratava-se de uma representação clara da
insatisfação corpórea: o (não) querer ser moreno e o (não) querer ser branco.
Dentro do espaço, havia nove câmeras a captar, ao vivo, imagens de partes
específicas do meu corpo, sendo então as tais imagens projetadas em nove monitores dos
computadores locais. Uma única câmera captava a imagem gerada pelas sombras coloridas
da combinação de luzes para projetá-la sobre uma enorme tela branca. Portanto, mais uma
vez, o meu corpo estava intermediado por telas, mas desta vez, unicamente visto desta
forma.
Ainda, criei mais dois desdobramentos desta ação a partir das duas experiências
realizadas: Dismorfofobia: Variante II e Dismorfofobia: Variante III, sendo ambos
trabalhos amparados pelo gênero da videoperformance. O primeiro é uma filmagem da
minha ação de pintar uma tela transparente na tentativa frustrada de fixar a imagem
oriunda de uma projeção do meu rosto a mover-se todo o tempo sobre ela; a segunda é a
202
filmagem da minha ação de passar protetor solar por trás de uma tela branca e sobre ela
projetar as minhas sombras multicoloridas com auxílio das luzes em combinação RGB.
465
465
Detalhe da ação Dismorfofobia: Variante I realizada no SESC Piracicaba em março de 2014. Registro
fotográfico de Rafael Rolland.
203
Referências:
467
466
Visage, música de 1980 da banda de estilo New Wave britânica Visage.
467
Foto feita por Steve Meisel para a edição da Vogue Itália de Julho de 2012.
468
NERY, Marie Louise. A Evolução da Indumentária – Subsídios para Criação de Figurino, p. 266.
469
Idem.
204
Schelemmer da escola da Bauhaus em concepções formais do corpo-máquina bem como a
Action painting de Pollock são referências estéticas que serviram também como apoio.
Texto performático:
VOZ – Sabe o que eu faço quando vou a um restaurante? Escolho só o que eu não
gosto de comer... Se possível tudo aquilo que eu detesto. Peço um prato que eu não
quero e que jamais escolheria. Tudo que chega a me dar nojo. E então, enquanto
todos comem, eu brinco com a comida... Aprendi isso com Andy Warhol. É a
“dieta Nova York”. É o nome da dieta.
Peso hoje 53kg. Ãhãn. 53kg. Mas... Eu pretendo atingir minha meta.
Em nome da Beleza. Por que eu não posso ser magro? Claro que eu posso.
Peso 53 e preciso perder 63kg. Quero pesar “menos 10”!!!
Beleza! Eu também tenho direito.
Afinal, “se sou magro, logo sou bonito”!!!
205
Moda.
Ótima forma em um vestido Calvin Klein.
Muda.
Gucci de Deus! Quero ser Jesus Luz!
Não se sentem satisfeitas com seus traços, o comprimento das pernas, a cor da pele,
sua textura, a forma da boca ou dos olhos:
Cirurgião plástico!
"Injustiça da natureza".
Aparência física. Também os homens podem mudar a aparência recorrendo à
cirurgia plástica…
Ivo Pitanguy… Quero engrossar os lábios, sei lá… Lábios muito grossos!
Mudar o Nariz… Sumir com as espinhas, SUMIR!
Mexer na mandíbula.
Barriga…
Cabelo…
Busto. Fugir da discriminação...
Salões de cabeleireiro…Indústria cosmética… Corpo perfeito…
Pés.
Mãos.
Genitais.
Estatura.
Modelo de beleza: pele branca, olhos claros e cabelos loiros.
Eterna juventude... Sucesso profissional…
É preciso ser selecionado numa "peneira".
Fama internacional.
Cuidados faciais…
Alimentação. Esfoliantes. Esticar a pele do rosto. Firmar os glúteos.Tornear as
pernas.
ssssssSSSssssssilicone.
206
Próteses de seio.
E… uma recuperação pós-cirúrgica.
Lipoaspiração!!! Beleza ao alcance de todos.
Clínicas informais? 70% de descontos em tratamentos.
“Estamos em condições de devolver à sociedade parte do que esta nos deu,
apoiando aqueles que desejam fazer um tratamento e não tenham acesso
economicamente”.
A pressão social para ter melhor aparência é tão árdua que até mesmo gente muito
pobre arruma uma forma de conseguir o dinheiro necessário!
Fobia de deformação física.
Essa gente…
Porque eu não… Quer dizer… eu…
Injeções de botox!
Diminuir as rugas. 'Lifting' facial. "Weekend touch up".
“Sem nem mesmo perceber como deveria ser seu corpo, as crianças repetem os
sinais dessa cultura doentia”.
(voz repete o texto como oração) Loiras… Altas… E magras...
Anorexia. Loja de roupas. Bulimia. Shopping center.
Medidas na média.
Revistas. Imagens de pessoas "perfeitas". Estereotipo de beleza.
Alto risco para…
A pressão da cultura por um corpo magro.
…para a saúde.
Individualismo excessivo.
Aceitação social.
Métodos intensivos de beleza. Rostos modelados cirurgicamente...
Beleza e Moda. Por que o Brasil não tem uma grande top negra?
Pele morena. Pele negra… Por que?
Reforma!
207
Clarear a pele… Pela desvantagem competitiva frente a esses outros seres
considerados belos!
“Clarant B3”
Obesidade.
Possível anomalia física. Dismorfofobia.
Porque um bom padrão não admite réplica!
“Bom gosto e bom senso nunca saem de Moda”.
“Chique é ser inteligente”!
Trajetória:
Esta performance foi pela primeira vez apresentada em Outubro de 2012, como
referido, no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos na cidade do Porto em Portugal,
dentro do evento Tômbola Show (que financiou o trabalho), comissariado por Marta
Bernardes.
O trabalho compõe a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais,
sendo apresentado, sob o formato de registro de vídeo, em junho de 2013 no CAAA
(Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura) na cidade de Guimarães em Portugal,
bem como no Brasil nos seguintes espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas
unidades da instituição localizadas no interior do estado de São Paulo).
Houve ainda o desdobramento da ação em Dismorfofobia: Variante I, sendo esta
versão mostrada no SESC Piracicaba (estado de São Paulo) em março de 2014 no Brasil e
no SESC Rio Preto em julho de 2015.
208
2.3. Projeto performativo 3: Sede Vós
Sinopse:
Verbo ser no modo imperativo afirmativo: Sê, seja, sejamos, SEDE, sejam! Até
obter uma hiponatremia em nome da beleza!
A felicidade num mundo patologicamente capitalista está diretamente associada à
imagem perfeita e, essa imagem perfeita diretamente relacionada à Moda. A magreza é um
padrão determinado pelo universo “fashion”, logo há o equívoco de que “ser bonito é ser
magro”. Slogans ordenam comportamentos, determinam o que devemos vestir, comer e
beber. “Beba Coca-Cola”, por exemplo. O projeto Sede Vós, ao expor como elemento de
consumo a água e a urina, ao mesmo tempo que incentiva o observador a refletir sobre a
própria essência, debocha desse tom imperativo da linguagem publicitária, que exibe
paisagens perfeitas e pessoas aparentemente felizes. As santas medievais que jejuavam e
470
VANDEREYCKEN; VAN DETH. Apud. WEINBERG, C; CORDAS, T. A. Do Altar às Passarelas: da
Anorexia Santa à Anorexia Nervosa, p. 29
209
maltratavam seus corpos em nome de um deus são retomadas em corpos contemporâneos
que, obcecados pelo emagrecimento excessivo, aceitam também a submissão aos
autoflagelos que os levem em direção e aceitação de uma espécie de substituto da
divindade de outrora: a Moda.
Descrição:
Sede Vós é uma videoperformance que exibe seres supostamente equilibrados em
um ambiente instável de uma capela cristã em ruínas, cujo chão revela-se completamente
irregular, com diversos recipientes transparentes de vidro, todos repletos de água. O vídeo
evidencia o ciclo da digestão da água que, após ser eliminada na urina (para ser engolida e
eliminada outra vez) tem a sua cor alterada. Inicialmente, a urina tem uma tonalidade
amarelada (antes da ingestão da água), depois, transparente (após a ingestão de uma
quantidade grande de água), até que, por fim, obtém novamente a cor amarelada (quando
não há mais água para beber, apenas urina).
Ficha técnica:
Concepção e direção geral: Tales Frey
Performers: Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey
Edição de imagem e som: Tales Frey
Operação de Câmera: Paulo Aureliano da Mata, Tales Frey e Tânia Dinis
Contrarregra: Lizi Menezes
Realização: Cia. Excessos
Formato digital: Full HD
Duração: 25’’
Porto / Portugal, 2013.
Materiais:
Dezenas de recipientes de vidro;
2 túnicas brancas (semelhantes a trajes hospitalares e, ao mesmo tempo, roupas
usadas em rituais religiosos);
210
20 litros de água potável.
Ambientação:
O trabalho foi realizado nas ruínas da capela Senhor do Carvalhinho (sem
autorização da Câmara do Porto ou de qualquer responsável) sob o intuito de congregar
alguns signos que, inevitavelmente, estão impressos neste lugar e que bem justificam o
conceito da proposta artística ali desenvolvida.
Tal qual o trabalho do grafiteiro que busca tornar lugares invisíveis em visíveis471,
Sede Vós – videoperformance que emerge de acusações com relação ao poder da Moda e
da religião exercido sobre o sujeito que busca um corpo segundo um determinado ideal –
não deixa de ser também uma estratégia de chamar a atenção para um ponto da cidade que
quase nunca (ou literalmente nunca) é lembrado.
A capela Senhor do Carvalhinho está situada na escarpa do bairro das Fontainhas,
centro histórico da cidade do Porto, portanto está construída em uma região pertencente ao
que a UNESCO classificou por Patrimônio Cultural da Humanidade. Atualmente, as
condições do local demostram o enorme descaso com este lugar maltratado, abandonado e
sucateado. A capela Senhor do Carvalhinho está deitada à sombra da vida urbana
portuguesa.
Esta capela pertencia a uma propriedade denominada Quinta da Fraga, a qual foi
posta à venda em 1821 e, em 1840, deu lugar a uma fábrica de cerâmica, que foi
transferida para outro edifício em 1930. 472
473
471
LEAL, Sérgio. Apud. CANTON, Katia. Espaço e Lugar, p. 45.
472
Informações obtidas em: http://www.portoxxi.com/cultura/imprimir_folha.php?id=17 (consulta realizada
em 30/04/2012).
473
Imagens das ruínas da capela Senhor do Carvalhinho feitas por mim em 29 de abril de 2012.
211
Quinta da Fraga era uma propriedade com muitos cômodos pertencente aos padres
da Companhia de Jesus (jesuítas). Para ali eram levados os religiosos doentes ou os que
necessitavam de descanso, mas em 1759, após a expulsão dos jesuítas, “a propriedade foi
expropriada a favor do Estado”474, até pertencer a Thomaz Nunes da Cunha e António
Monteiro Cantarino, fundadores da Fábrica do Carvalhinho (fábrica de cerâmica).
Ao menos até pouco além de 1910, o altar-mor, todo em talha dourada dos finais do
século XVII, estava intacto, mas hoje, nada mais resta do que escombros diluídos nos lixos
que são depositados no local, juntos dos vestígios dos usuários de drogas. É um ambiente
não mais observado ou sujeito a escrutínio público; está esquecido.
Fábrica de cerâmica e capela: alusão simultânea ao consumo e à religião. O
histórico do espaço também justifica a ideia da videoperformance, assim como o estado em
que esta ambientação se encontra hoje, como que devolvendo a decadência dos sujeitos
que absorvem certas influências, as quais culminam na degradação dos seus próprios
corpos.
475
474
Jornal de Notícias. Conhecer a história através da leitura dos jornais do dia 24 de Outubro de 2004.
475
Imagem obtida em http://monumentosdesaparecidos.blogspot.pt/2011/02/capela-do-sr-do-carvalhinho-
cidade-do.html. (consulta realizada no dia 01/05/2012).
212
Referências:
O ato de só ingerir água exprime os regimes descontrolados que desencadeiam em
desequilíbrios físicos e psíquicos (bulimia e anorexia) e, também, representa os jejuns
religiosos. A mesma água que percorre o corpo dos artistas e que os abandona em forma de
urina funciona como um “líquido sagrado” ou, ao menos, simula um líquido com certo
valor atribuído, pois o “corpo artista”, nesta ação, representa o corpo santificado das beatas
e santas medievais, que jejuavam em nome de um ideal ascético, e também o corpo das top
models, o qual corresponde ao ideal contemporâneo de beleza. Se por um acaso cósmico
tivéssemos armazenado a urina de Santa Caterina de Siena ou de Gisele Bündchen,
poderíamos comprovar que essas excreções valeriam muito mais do que o vidro de água
benta comercializado na cidade portuguesa de Fátima, por exemplo, que pratica uma
religiosidade frequentemente dissolvida em práticas comerciais admitidas pelos peregrinos
que aí também literalmente ‘pagam’ promessas. Nesse caso hipotético que referia, o(a)
asceta e o(a) escravo(a) da Moda seguramente consumiriam o líquido com extrema sede
em busca de suas volições.
Processo:
Formulada a ideia, passei a refletir sobre o nome da ação, que sempre é uma
questão de suma importância nos meus trabalhos. Nomear as minhas performances
equivale a abrir um território semântico que costumo usar para estabelecer associações e
explorar sentidos. Assim, ao pronunciar para mim mesmo a palavra “sede” enquanto a
escrevia (já como título provisório), quando refletia sobre os líquidos (urina e água),
imediatamente pensei na forma imperativa do verbo ser na segunda pessoa do plural,
acrescentando então o pronome “Vós” na frente de “Sede” e, desta forma, o duplo sentido
da mesma palavra (sede) acabava por justificar o conceito.
Para a realização, desde 2011, quando formulei a ideia, tenho tentado reunir um
grupo grande de pessoas para executar a ação como performers. Acabei, depois de tantos
desencontros, optando por fazer o trabalho com apenas dois performers, eu e Paulo
Aureliano da Mata.
213
476
Trajetória:
O trabalho compõe a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais,
sendo apresentado, sob o formato de registro de vídeo, em junho de 2013 no CAAA
(Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura) na cidade de Guimarães em Portugal,
bem como no Brasil nos seguintes espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas
unidades da instituição localizadas no interior do estado de São Paulo).
476
Processo de estudo de criação do título para o trabalho e dos planos a serem explorados no vídeo.
214
2.4. Projeto performativo 4: (De)reter-se
Sinopse/conceito/descrição:
A ação consiste em derreter um ex. voto (imagem de uma criança de cera de
coloração quase branca) com auxílio de calda para preparo da “maçã caramelizada”, a qual
é chamada de “maçã do amor” no Brasil. O líquido vermelho que reveste a fruta é feito à
base de açúcar, glicose de milho e corante alimentício vermelho. A calda é fervida no
próprio espaço da ação e o líquido (que exala um sedutor cheiro doce), com temperatura de
até 145ºC, é dissolvido sobre a imagem infantil de um menino de cera disposta no espaço,
que perde a expressão religiosa para dar lugar a uma assustadora composição visual em
tons de branco e vermelho.
A ação pretende abordar e convocar figurativamente o abuso sexual na infância em
ambientes religiosos, aqui transposta para o derretimento da pureza infantil, que dá lugar
aos corpos condenados, deformados e retidos de traumas. Também, é estabelecida, nessa
fotoperformance, uma sugestão aos corpos desfigurados por conta de uma “alimentação”
demasiadamente calórica ao mesmo tempo que expõe o risco da queimadura no próprio
corpo do performer, que não se banha e tampouco se alimenta desse “letal” prazer
215
alimentício; contenta-se em condenar o outro ao deleite pecaminoso do alimento
“proibido”, enquanto enaltece o seu próprio corpo intacto sob indumentária branca, embora
o risco de contato com o líquido quente seja permanente.
A instalação gerada pode acompanhar a fotoperformance que reúne, no seu conjunto, doze
diferentes momentos da ação.
Ficha técnica:
Concepção: Tales Frey
Assistência e registro fotográfico: Paulo Aureliano da Mata
Realização: Cia. Excessos
Porto / Portugal, 2013.
Materiais:
Figurino branco similar ao que eu usava quando tinha 5 anos de idade (usado em
festas de eventos tais como casamentos, batizados, etc.);
1 litro de calda para maçã caramelizada;
1 panela de alumínio;
1 fogareiro elétrico;
Ambientação:
Esta ação foi pensada para ser realizada em um espaço neutro, mas ao mesmo
tempo com amplo potencial cênico, onde apenas os elementos da própria performance
pudessem traduzir os cinco sentidos humanos para serem experienciados pelos
espectadores: o tato, o olfato, a visão, o paladar e a audição. Ressalto que, por se tratar de
uma fotoperformance, somente o próprio performer e o operador da câmera fotográfica é
que puderam usufruir de todos os cinco sentidos, que são, através da visão do registo
fotográfico, sugeridos ao espectador, neste caso, portanto, em presença assumidamente
diferida. Como possibilidade de apresentação pública do projeto, a fotografia feita em
estúdio pode contudo ser acompanhada da instalação composta pelo ex. voto derretido com
216
o líquido alimentício vermelho, permitindo, deste modo, a experimentação dos sentidos
pelo observador.
Referências:
Para a elaboração desta performance, eu me apropriei de algumas referências
visuais, entre elas a criação artística no setor publicitário da DPZ Propaganda, empresa que
exibiu, na feira Sweet Brasil, as imagens de duas mulheres (uma negra e outra branca) a
derreterem-se como se fossem de chocolate. Ambas imagens femininas seduzem o
consumidor e expressam, de forma artística e envolvente, o chocolate em uma associação
imediata ao corpo das duas mulheres.
Outra referência em que me apoio é a performance Cair em Si de Márcia X., ação
em que a artista preenche obsessivamente diversos copos de vidro que estão espalhados
pelo espaço expositivo com um líquido branco, uma espécie de mingau. Ainda, há uma
forte referência visual à Tragedia Endogonidia de Romeo Castellucci, ou melhor, a uma
das imagens concebidas nessa sua encenação de referência.
477
477
Imagens criadas pela DPZ Propaganda, uma das maiores agências de publicidade do Brasil. Essas peças
foram criadas para a feira Sweet Brasil. Imagens obtidas em http://www.dpz.com.br/main.htm (consulta
realizada em 02/05/2012).
217
478
479
478
Cair em Si (2002), performance/instalação da artista brasileira Márcia X. Imagens disponíveis no site da
artista: http://www.marciax.art.br/ (consulta realizada no dia 02/05/2012).
479
Tragedia Endogonidia (2002) de Romeo Castellucci. Imagem retirada do livro: HEATHFIELD, Adrian.
Live Art and Performance, p. 195.
480
KELLEHER, Joe. Apud. HEATHFIELD, Adrian. Live Art and Performance, p. 194. Tradução livre para o
português.
218
Processo:
Talvez a imagem composta para a fotoperformance seja uma associação dos lugares
que percorro diariamente e das minhas memórias de infância. Atravessando a zona dos
Clérigos (onde vivo na cidade do Porto), vejo as imagens brancas dos ex-votos nas vitrines
da lojas, mesmo ao lado dos horrendos talhos com suas bizarras composições carnais.
Nestes instantes, chegam-me involuntariamente fábulas infantis como Os Três Porquinhos,
por exemplo. Testemunho porcos inteiros mortos e expostos de uma forma completamente
sanguinária, junto de coelhinhos pendurados em ganchos, de pés de galinhas aos montes,
etc. E nos vidros destas vitrines, meu rosto é refletido em fusão com a Torre dos Clérigos e
o neón com o nome do estabelecimento, numa sucessão de projeções grotescas entre o
vivido, o visível e o imaginado.
Da infância, talvez tenha buscado ainda um episódio que me marcou
profundamente; aliás, está intimamente preservado na minha memória, junto com uma
cicatriz inesquecível, que me devolve sempre ao dia em que queimava bonecas de plástico
com minha irmã Ana Paola, no quintal da casa onde passei minha infância em Catanduva.
Gostávamos de jogar as bonecas de tamanho similar aos dos ex-votos na fogueira para vê-
las derreterem nas chamas. Ríamos das rápidas expressões apavorantes que as bonecas
ganhavam, antes de virarem líquido de plástico derretido. Em uma das bonecas, eu batia
com um pedaço de pau que furava com facilidade o seu rosto e, então, o plástico acabou
preso nesse utensílio que eu usava e, por conta do meu gestual descontrolado, sem querer,
lancei aquele viscoso líquido excessivamente quente nas minhas costas. Eu devia ter uns
cinco anos. Talvez seja a mesma idade em que sofri um abuso sexual. Já não tenho certeza
sobre quantos anos eu tinha. Só sei que era novo demais para aquela experiência com
alguém tão mais velho. A minha cicatriz traduz a mesma dor que sentia quando me
culpava por ter sido vítima da prática inescrupulosa daquele adulto que me molestava.
Diz a autora Katia Canton que “nas artes, a evocação das memórias pessoais
implica a construção de um lugar de resiliência”481 e que essa evocação “é também o
território de recriação e de reordenamento da existência – um testemunho de riquezas
481
CANTON, Katia. Tempo e Memória, p. 21.
219
afetivas que o artista oferece ou insinua ao espectador, com a cumplicidade e a intimidade
de quem abre um diário”482.
Embora eu apresente meu “diário pessoal” escancarado nas palavras aqui escritas
sobre a minha vivência traumática da infância, não projeto uma analogia freudiana na
minha construção artística intitulada por (De)reter-se, onde, conscientemente e de forma
amadurecida pelo posicionamento crítico de hoje, construo minha narrativa visual, com a
qual estabeleço uma autorregulação, expondo minha dor física e psicológica acompanhada
das suas marcas: a anatômica (queimadura) e a que faz parte da memória (os traumas). Não
afirmo, de forma alguma, que traumas me inspiraram, pois trabalho artisticamente com
toda minha sensibilidade e experiência de vida, assim, considero que existem diversos
estímulos que me conduziram a tais assuntos traumáticos, mas que são sobretudo
relembrados por conta do que aqui também poderíamos chamar de “acasos
significativos”483. Em suma, a prática psicanalítica não é afirmada aqui como critério
último de avaliação do conteúdo visual e expressivo da obra e nem mesmo do seu processo
criativo.
Processo similar ocorreu na minha performance Espasmos Caninos (2002-2012),
através da qual exponho a minha memória traumática em conversas realizadas na minha
primeira sessão de psicanálise.
Trajetória:
O trabalho foi apresentado ao vivo em âmbito de um ensaio fotográfico realizado
na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. A imagem composta por doze
momentos da ação, impressa em C-print Flex foi, pela primeira vez, apresentada na
exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais, em Junho de 2013, no CAAA
(Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura) na cidade de Guimarães, Portugal.
Em 2015, foi apresentada na I Bienal de Arte de Gaia, de 11 de junho a 11 de
setembro, Gaia, Portugal.
482
Ibidem, p. 34.
483
Termo utilizado pela autora Fayga Ostrower em sua obra Acasos e Criação Artística.
220
2.5. Projeto performativo 5: Proxim(a)idade
484
Sinopse:
Na data de comemoração da minha próxima idade485, uso meu corpo como campo
simbólico para converter signos que marcam o ritual de passagem do meu aniversário em
anúncios da proximidade com a minha morte. Do festejado novo ano de vida, assinalo o
anúncio do meu falecimento.
A temporária juventude e beleza dão lugar à senilidade construída de elementos que
estão presentes, tanto nas contentes festas de aniversário quanto nos fúnebres eventos de
velórios. A performance explicita a comemoração de uma mocidade cética, obcecada pelo
consumo do que é fugaz, mas cheia de entusiasmo, ladeada da velhice apegada à fé
metafísica alimentada pelo medo de um cruel desfecho num vácuo. A contradição enfatiza
dois andamentos advindos de uma mesma data, em que comemoramos um ano a mais na
vida e lamentamos o tempo que nos conduz mais depressa à morte.
484
Registro fotográfico feito por Thais Nepomuceno durante a apresentação do Centro para os Assuntos da
Arte e Arquitectura em Guimarães. 20 de junho de 2013.
485
Sobre esta temática relacionada aos ritos de passagem do meu aniversário, recomendo o meu pacto
declarado em: http://performatus.net/performance-aniversario/
221
Descrição:
A performance foi pela primeira vez realizada durante a exposição Moda e
Religiosidade em Registos Corporais, onde comemorei e lamentei, junto dos meus
espectadores, os meus trinta e um anos de idade (no dia 20 de Junho de 2013).
Nessa ação converto-me em algo similar a um “bolo de festa” ou a um “presente
embrulhado”, principais elementos da festa de aniversário, ao mesmo tempo que deformo
minha aparência, fazendo uso de alguns utensílios e ingredientes usados na preparação do
bolo e de ornamento do presente, sob a finalidade de me transformar em uma espécie de
múmia, com a forma de um defunto, mas ao mesmo tempo, forma afetuosamente próxima
de um doce festivo. O excesso de doce sobre minha pele alude simultaneamente ao uso
exagerado de maquiagem numa tentativa de esconder a idade, mas, nesse caso, com o
excesso acabo por me assemelhar inversamente a um cadáver.
Prendo balões coloridos ao meu corpo, como se quisesse fazê-lo ascender.
Permaneço deitado por 3 horas, enquanto um áudio, em loop, repete ininterruptamente
obsessões em torno da morte e da beleza e da eterna juventude.
Às 0h, já sem as fitas e sem o doce sobre o corpo, soltei os balões no meio da rua,
que então subiram, até sumirem no céu.
Ficha técnica:
Concepção/Direção/Performer: Tales Frey
Duração: 3 horas
Contrarregra: Lizi Menezes, Paulo Aureliano da Mata, Tânia Dinis e Thais
Nepomuceno
Registro fotografico: Maria Luis Neiva, Paulo Aureliano da Mata, Tânia Dinis e
Thais Nepomuceno
Registro em vídeo: Paulo Aureliano da Mata e Tânia Dinis
Edição de vídeo e áudio: Tales Frey
Realização: Cia. Excessos
Guimarães, Portugal, 2013.
222
Materiais:
3kg brigadeiro;
1kg de confeitos coloridos;
12 rolos de fitas coloridas (cada carretel com 100 metros);
31 balões a gás;
Mesa com doces e bebidas.
Ambientação:
Assim como em (De)reter-se, esta ação foi pensada para ocorrer em um espaço
neutro, onde apenas os elementos da própria performance pudessem traduzir os cinco
sentidos humanos presentes para serem experienciados pelos espectadores: o tato, o olfato,
a visão, o paladar e a audição. Não buscava um espaço que pudesse complementar com
nenhum signo na ação, portanto, a performance poderia ser ambientada em lugares como
uma galeria ou em uma sala de espetáculos. A primeira experiência foi realizada no Centro
de Assuntos para a Arte e Arquitectura (CAAA) em Guimarães, durante a exposição Moda
e Religiosidade em Registos Corporais; então, como tinha uma sala repleta de todos os
outros trabalhos que compõem a tese (além de mais outros dois que encaixei pela
proximidade temática486), acabei por optar pela utilização da black box do centro cultural,
onde iluminei com luz branca a área onde meu corpo ficaria instalado e mantive toda a sala
mais escura. Fora do palco, deixei uma mesa igualmente iluminada com alguns doces e
algumas bebidas para que qualquer espectador pudesse desfrutar.
Referências:
Fatalmente, fui influenciado ou simplesmente motivado pelas composições de
algumas artistas que abordam o universo feminino quando recorrem a elementos da
culinária para formularem suas estratégias visuais e artísticas. São elas: Márcia X. e o
coletivo The Icelandic Love Corporation.
486
As obras que incluí na exposição são: Romance Violentado (2011), de Paulo Aureliano da Mata e
Faceless, série de fotos que realizei em 2011. Ambos trabalhos podem ser encontrados juntamente com os
anexos da tese.
223
Das obras a que me refiro destaco sobretudo Pancake (2001) de Márcia X. e
Woman good enough to eat (1997), do coletivo The Icelandic Love Corporation. Em
ambas composições, os corpos são adornados com alimentos doces, embora o discurso não
aborde propriamente a morte e vida como núcleos da obra, mas sim a mulher enquanto
objeto de consumo. Evidentemente, essas composições todas que cito como referências
(bem com a minha) remetem nosso olhar para vários trabalhos da artista cubana Ana
Mendieta.
487
Processo:
A imagem gerada a partir da performance foi previamente elaborada em desenho e,
então, eu queria estabelecer os caminhos para chegar a tal imagem diante de uma plateia.
Essa imagem seria a performance ao vivo. Precisava, assim, coreografar um percurso para
construir, diante do público, a imagem final desejada.
488
487
Registro de detalhe da composição de Proxim(a)idade (2013); Woman good enough to eat (1997) do
coletivo The Icelandic Love Corporation. Imagem obtida em: http://www.ilc.is/ILC/ILC/index.html
(consulta realizada em 01/04/2013).
224
Porém, depois, acabei por resolver a performance como uma espécie de funeral,
onde os observadores pudessem conversar, beber e comer, enquanto contemplavam meu
corpo no espaço. Queria que todos relacionassem o presente imediato daquele momento,
durante o qual toda a comida estava fresca e suculenta, ao momento posterior da sua
previsível transformação em não mais do que ninhos de moscas e de vermes. Com o
granulado ao redor e sobre o meu corpo, eu pretendia insinuar essa ideia. Para auxiliar a
ação, escrevi um texto similar ao que elaborei para a performance Dismorfofobia,
mantendo a sua forma de expressão esquizofrênica; gravei ainda um áudio com minha voz
alterada, o qual permaneceu em loop com agourentas palavras e frases, carregadas de um
tom sombrio e com entonação blasé. No texto, narro alguns pensamentos que me vinham
de acordo com cada idade. Misturo os tempos e embaralho o que corresponderia a uma
descrição linear de cada idade que tive.
No áudio tentei não imprimir nenhuma emoção na minha voz ao dizer tais
expressões e elocuções. Usei, ainda, a canção “Parabéns a você” (cantada por mim) de
forma tão desacelerada que acabou por virar um ruído em “tom espacial”, para
complementar o texto que é repetido por três árduas horas. Digo “árduas”, porque, devido
ao meu grau de ansiedade e agitação, sabia o quanto sofreria debaixo daquele simbólico
casulo, de onde ressurgiria com a minha nova idade.
Claro, a minha quase inação era exaustiva, pois eu tinha quase todos os membros
do corpo presos, exceto a cabeça, que por sua vez estava abarrotada de bolo brigadeiro e
confeitos coloridos. Nenhum poro estava desobstruído. Só tinha as narinas livres para eu
absorver e expelir ar. Se abrisse a boca, poderia engasgar com fragmentos de confeitos.
Tive mesmo que manter a máxima concentração durante todo o tempo da ação, em que
movia meus músculos quase que por espasmo, mas que eram imediatamente reprimidos
pelo embrulho que os cobria.
Considerei o horário do meu nascimento (20h do Brasil, ou seja, 0h em Portugal)
como momento propício para dar fim a minha performance; então, das 20 às 23h, eu
permaneci instalado e, das 23h até 0h, saí do alvéolo que construí sobre meu corpo no
488
Desenhos de estudo feitos por mim durante o processo de criação da performance.
225
camarim e, finalmente, somente na virada do dia 20 para o 21 é que soltei os balões no
espaço e botei um ponto final na performance.
A ação foi repetida durante o Performance Platform Lublin na Galeria Labirynt na
Polônia como um ritual estético em outubro de dois mil e treze. Enquanto realizava a ação,
durante o próprio ato, sofri influência a partir do estímulo recebido da audiência e acabei
por alterar a forma como concluiria a ação; fui gradativamente aumentando a
movimentação do meu corpo até que, por fim, consegui escapar do casulo de fitas para
caminhar em direção à rua, onde soltei os balões. Fiz isso sem ajuda de assistentes e sem
passar por uma limpeza no camarim longe dos olhos dos espectadores. Acho que falhei,
porque tornei lúdico o que deveria ser mórbido conceitualmente diante dos olhos do
observador. O público deveria só ver a imagem do meu corpo preso às fitas e aos balões
para deduzir um desfecho real: os balões murchariam e não me fariam ascender.
Essa mesma forma – resolvida durante a própria ação no evento da Polônia – foi
repetida na apresentação feita no SESC Campinas em novembro de dois mil e treze
durante a exposição Moda e Religiosidade em Registros Corporais. É pertinente
mencionar que esta ação, por me manter quase completamente imobilizado por muito
tempo, chega a me causar certo pânico. O ápice desse pânico ocorreu na Polônia, situação
que me fez fugir do lugar expositivo e escapar do olhar da audiência.
Ressalto que, na primeira apresentação, ainda como rito de passagem, resisti
bravamente, mas sofri muito durante as três longas horas que enfrentei.
Em Campinas, interior de São Paulo, eu aguentei sem agonia e sem medo. Não sei
se foi por ter me habituado com o tempo da (in)ação ou se foi por saber que o fim do
aflitivo planejamento era algo muito libertador, ou ainda, se foi porque estava sendo
“velado” num território mais familiar, no estado de São Paulo. Creio que sim, porque em
São José do Rio Preto, na instituição do SESC, eu fui assistido pela família e, lá, mantive-
me ainda mais sereno. Nessa ocasião, encerrei a performance completamente nu quando
me livrei das fitas que me envolviam, dos doces que grudavam na minha pele e dos trinta e
um balões de gás hélio que foram soltos no próprio espaço fechado. Apesar do frio intenso
da cidade de Curitiba, procedi da mesma forma que em Rio Preto. Foi durante o p.ARTE
do mês de maio de 2014, um mês antes completar trinta e dois e dar continuidade à série
226
que me comprometi a nunca mais deixar de fazer dos meus aniversários ritos de passagem
artísticos partilhados com a audiência como ritual transformado em arte.
“A vida comum provocava em mim uma sensação de vazio. Inconscientemente, eu
procurava sempre a excitação para me sentir mais viva”489, declarou Christiane F. em Eu,
Christiane F., A Vida Apesar de Tudo. Essa afirmação faz pleno sentido nas minhas ações
de aniversário, através das quais, refletindo sobre a minha morte, eu estabeleço uma
ruptura com a entediante vida ordinária, fazendo dela própria uma pronunciação romântica
em que a morbidez pode ser também poesia e, assim, com a certeza do meu falecimento,
eu acabo por me sentir ainda mais vivo.
Para o meu trigésimo segundo aniversário, criei uma ação intitulada por Reverso
(2014) em que tenho como base o texto O Corpo Utópico de Michel Foucault, levando em
conta que é durante o prazer carnal, durante a experiência da dor, do contato com a morte e
da atorrepresentação e diante do nosso próprio reflexo que nos damos conta da nossa
matéria real e aniquilamos a ideia de um corpo inventado. Tal referência adveio
naturalmente da primeira criação (da performance Proxim(a)idade), a qual marca o início
desta nova série para a qual pretendo me empenhar até o fim da minha vida.
Texto performático:
Faço dois anos. Enfeites. Alimentos meigos, fascínio. Vermes nos doces. Meigos,
ternos, carinhosos. Fiz vinte e cinco. “Feliz aniversário”. Roupas novas. Sábio como aos
quatorze anos. Caixas, laços, caixões. Presente. Relógio. Acender velas. Ascender. Subir.
Pareço ter vinte e nove. Elevar-se. Transcender. Pele jovem. Passado. Máscara. Púbere.
Estou com sete anos. Ausência da necessidade do espelho: completo um ano de vida.
Truques de maquilagem. Maquiagem. Chocolate granulado. Espelho. Amava ter doze
anos. Completo trinta e um. Complexo. Abstruso, complicado, difícil, cabeludo, careca.
Tenho todos os anos. Tenho todos espelhos. Tenho quinze anos. Sou unicamente o
espelho. Tenho vinte e dois anos de idade. Não tenho pêlos. Trinta. Transformação.
Desacelerar a idade. Estou com vinte e sete. Doces os vermes. Experiente como aos treze
anos. Modelo. Padrão. Fiz vinte anos. Juventude. Rugas camufladas. Tenho excesso de
489
F. Christiane. Eu, Christiane F., A Vida apesar de Tudo, p. 51.
227
pelo. Vinte e um anos. Mascaradas, peles disfarçadas... deram-me vinte anos... encobertas,
coloridas. O relógio não para. Vinte e todos. Vivi oito anos. Chama. Sopro. Estouro. Terei
dezenove anos. Idoso. Fiz dezesseis anos. Odeio o espelho: doente aos três anos de idade.
Próxima idade. Produtos para retoques. Pintura. Dissimulação. Vinte e três anos.
Nutrimentos de formigas. Iscas de doces minhocas. Afetuosos, humanos, afáveis
“Parabéns”. Vestes impecáveis. Vivo há nove anos. Caixotes. Completei vinte e quatro
anos de vida. Laçarotes, papeis rasgados. Mesa decorada. Urna. Caixão. Saudável. Pareço
ter dez anos. Sarcófago. Presentes. Atual. Medidor de tempo. Arder. Inflamar.
Transcender. Faces ocultas. Ascender. Pele jovem. Velório. Passado. Elevar-se.
Impossibilidade. Adolescente. Ausência da necessidade do espelho: completo vinte e seis
anos de vida. Próxima idade. Invenções de pinturas sobre a pele. Maquilagem.
Autoimagem. Completo vinte e oito. Entrelaçado. Podre. Tinha dezessete anos. Flores.
Tenho todos os anos de vida que me foram dados. Nego espelhos. Permaneço. Tenho
dezoito anos de idade. Esqueço a idade. Deslembro. Proximidade. Tenho quatro anos.
Arquétipo. Doença. Protótipo. Juventude. Desapareço. Deformidades camufladas. Subir
para onde? Queria ter onze anos. Mascaradas verdades, peles encobertas. O relógio não
para. Esconderijo. Exterioridade. Explosão. Caminho. Natureza morta. Vinte e seis.
(Texto é repetido por 3 horas)
Trajetória:
O trabalho compõe a exposição Moda e Religião em Registos Corporais,
apresentada em Junho de 2013 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e da
Arquitectura) na cidade de Guimarães em Portugal, no interior do estado de São Paulo, no
SESC Campinas em novembro de 2013 e no SESC Rio Preto em abril de 2014.
Performance selecionada para o Performance Platform Lublin – Festival de
performance promovido pela Galeria Labirynt. Lublin, Polônia, em Outubro de 2013.
Performance incluída também na programação do festival de performance p.ARTE que
acontece mensalmente na cidade de Curitiba-PR (Brasil). Em Janeiro de 2015, a
performance foi convidada pelo diretor artístico Tiago Guedes para pontuar o início da sua
228
nova gestão do teatro Rivoli na cidade do Porto. Nesse mesmo ano, a ação foi mostrada, ao
vivo, nos SESCs Santana, Santos e Ipiranga.
Como videoperformance e instalação, Proxim(a)idade foi exibida na Associação
Cultural Zoom na cidade de Barcelos em Portugal no dia 14 de dezembro de 2013, durante
o Performance em Encontro no SESC Campinas em junho de 2015 e, ainda, na exposição
coletiva no Cemitério do Peixe – Morte e Magia nas Artes Visuais, com curadoria de
Francilins, em Conceição do mato Dentro em Minas Gerais.
229
2.6. Projeto performativo 6: Atendo ao Molde.
490
Sinopse:
Gerúndio do verbo ater e presente do indicativo do verbo atender. Eu comprometo-
me com um molde: considero esse padrão e tento fixá-lo no meu corpo. Um processo
árduo, doloroso, que pressupõe uma transformação da minha silhueta corporal sob forma
de queimaduras. Pareço abster da forma natural das minhas mãos para tentar “vestir” um
par de luvas que se formaria de maneira penosa, mas que se desvanece facilmente devido a
fragilidade do material. O processo de me adornar com as luvas advindas das velas denota,
igualmente, a longa oração de um fiel que segura as chamas da sua inflamada súplica que
culmina na autoflagelação. O “Senhor” ordena e o fiel obedece, atende, diz “amém”, assim
como o subordinado à Moda. Tanto a Moda quanto deus escapam das mãos e ferem como
o líquido quente da parafina, que registra a impossibilidade de um encontro concreto com o
ideal almejado, demonstram o eterno devir de um sujeito escravizado em sua busca.
Descrição:
Permaneço durante o tempo de permanência de dois grupos de estreitas velas
acesas sobre as minhas mãos. Conservo-me o mais estático que consigo (o que é
praticamente impossível). O objetivo é moldar uma espécie de par de “luvas” em mim,
mas o líquido quente não fixa ao meu corpo e apenas queima as minhas duas mãos. O
490
Frame captado a partir da videoperformance.
230
registro em vídeo é exageradamente acelerado e apresentado como videoperformance. A
movimentação da ação quando vista em seu tempo integral de uma hora é completamente
sutil, mas, quando é exageradamente acelerada, sugere uma espécie de possessão, devido à
oscilação energética que meu corpo passa a ter.
Ficha técnica:
Concepção/Performer: Tales Frey
Assistência: Paulo Aureliano da Mata
Duração da ação: cerca de 1 hora
Duração do vídeo: 01:03
Formato digital: Full HD
Realização: Cia.Excessos
Porto / Portugal, 2013
Materiais:
20 velas brancas.
Ambientação:
Estúdio de gravação de vídeo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do
Porto. Este foi o ambiente ideal para contrastar com as cores utilizadas nos elementos da
ação, já que pude compor um ambiente todo escuro e, assim, os signos do trabalho são: o
meu corpo e as velas.
Referências:
Com relação ao material utilizado e à ideia de dor implícita no ato, a performance
acaba por fazer referência ao trabalho The presence of the world in me (part II) do
brasileiro Marcus Vinícius, o qual se queima com um grupo de velas a derramar cera
quente sobre a sua face. O trabalho acaba por aludir também ao The Conditioning (1973)
de Gina Pane, performance que foi refeita por Marina Abramović na série Seven Easy
Pieces (2005), no Guggenheim Museum em Nova York em 2005.
231
491
Processo:
Inicialmente, havia pensado em me posicionar de frente para a câmera e segurar
uma vela acesa sobre cada mão. Arrisquei executar a ação em minha própria casa e, então,
percebi que o número de velas deveria ser superior para resultar em uma forma que se
assemelhasse a um par de luvas após o derretimento todo das mesmas, ou seja, com
somente duas velas, não era possível concretizar o que eu pretendia. Realizei, assim, na
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto a ação e o registro em vídeo da
performance com doze velas.
492
491
Marina Abramović em The Conditioning de Gina Pane, ação realizada no Seven Easy Pieces (2005) no
Guggenheim Museum em Nova York em 2005. Frame do vídeo adquirido no site http://www.ubu.com
(consulta realizada em 01/04/2013).
492
Queimadura em consequência do derretimento das velas. Estas imagens foram realizada três dias depois
da gravação do vídeo.
232
Somente durante a concretização do trabalho é que percebi que o líquido não
parava nas minhas mãos e escorria como cachoeira sobre o praticável em que estava
alojado. Percebi, nesse imprevisto, uma metáfora dos sujeitos que buscam um encontro
com um ser ou com algo divino ou com a Moda e se deparam com a impossibilidade de
concretizarem tal desejo.
Trajetória:
O trabalho compõe a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais,
apresentada em Junho de 2013 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e da
Arquitetura) na cidade de Guimarães em Portugal, bem como no Brasil nos seguintes
espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas unidades da instituição localizadas no
interior do estado de São Paulo).
Foi mostrado, ainda, em Burgos, na Espanha, dentro da exposição Brasil: Ficiones,
com curadoria de Laurem Crossetti, em janeiro e fevereiro de 2016. Na exposição Brasil:
Ficções, ocorrida no Armazém do Chá na cidade do Porto, em Portugal, durante o mês de
abril de 2015. E, ainda, em maio e junho, na exposição (Tra)vestir um Fa(c)to, da
Cia.Excessos, com curadoria de José Maia, ocorrida no Espaço Mira, Porto, Portugal.
233
2.7. Projeto performativo 7: Beija-se
493
Sinopse/Conceito:
O ser humano pode ser concretizado como uma fusão dos traços genéticos herdados
de seus pais. Normalmente, ou melhor, conforme determina a moral religiosa, esse humano
deve ser advindo da união matrimonial sóbria, casta, pura e, num contexto científico, deve
ser procedente de uma união entre seres de sexos opostos. O beijo proposto nesta ação
questiona os impedimentos da igreja que dizem respeito à relação homoafetiva e parodia a
ciência quando exibe um terceiro ser, oriundo de uma relação que não está limitada a
condição homo ou heteroafetiva e tampouco aos comportamentos heteronormativos.
Este trabalho procura manter a imagem “pecaminosa”, “ilícita”, “inconveniente”,
ou ainda, “ilegítima” que a igreja obviamente atribuiria a um homem barbudo, trajado com
um look associado a um(a) virginal noivo(a) de branco e que está à disposição de homens e
mulheres de qualquer gênero, por trás de um vidro disfarçado de espelho, o qual remete às
vitrines tão desejadas da contemporaneidade e também ao próprio espelho como objeto
essencial no dia a dia de uma sociedade escrava da aparência.
493
Frame obtido a partir do registro do vídeo da performance.
234
Descrição:
Beija-se é uma ação em que o performer (travestido de noiva) está a beijar um vidro
durante uma hora. O vidro possui duas superfícies distintas: uma transparente, lado que o
performer está a beijar, e outra espelhada, lado em que há o título da ação escrito em batom
vermelho, objeto que permanece no local à disposição do observador, o qual pode também
ser participante da performance e beijar a sua própria imagem diante do espelho e, com
isso, inevitavelmente, acaba por beijar o performer intermediado pelo vidro.
Ficha técnica:
Concepção / Performer: Tales Frey
Registro fotográfico e audiovisual: Luis Filipe Santos e Paulo Aureliano da Mata
Colaboração: Daniel Pires e Lizi Menezes
Realização: Cia. Excessos
Materiais:
1 superfície de vidro;
1 traje de noiva;
1 batom;
1 cordão preto;
1 metro de papel tipo Insulfilm.
Ambientação:
Esta performance não decreta uma ambientação específica, embora, a primeira
realização deste trabalho tenha ocorrido em uma festa dedicada ao público LGBTQI, sob
uma espécie de “cabaré queer”, ou ainda, um “mini-festival de cultura queer”494, dentro de
um evento intitulado por Pussy Faggot!, o qual ocorreu no Espaço de Intervenção Cultural
Maus Hábitos na cidade do Porto em Portugal no dia 04 de Maio de 2012.
O conceito da festa foi elaborado pelo criador artístico e produtor Earl Dax no
clube Delancey Lounge no Brooklyn em Nova Iorque.
494
AFFREIXO, Rodrigo. Revista Time Out Porto. Maio de 2012.
235
Abrangendo artes performativas, spoken word, dança, drag, música ao
vivo, DJs e videoarte, Pussy Faggot! é ferozmente contemporânea, ao
mesmo tempo que remete para a cena lendária do East Village dos anos 80
e 90, quando a arte, a moda, a performance e a club culture colidiram.495
496
Referências:
Decisivamente, cá está impresso um referencial aos meus próprios trabalhos
desenvolvidos na Companhia Excessos; em Beija-se, há uma nítida conexão imagética e
temática com O Outro Beijo no Asfalto, O Beijo, O Beijo II e Reciprocidade Desalmada,
pois todas estas ações apresentam o indivíduo vestindo um traje não correspondente ao que
lhe é socialmente imposto para que haja a sua coerência exemplar no que diz respeito ao
495
DAX, Earl. Revista Time Out Porto. Maio de 2012.
496
Registro fotográfico feito por Paulo Aureliano da Mata para a performance Beija-se de Tales Frey. A
performance foi realizada na festa Pussy Faggot! no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos na
cidade do Porto em Portugal em Maio de 2012. Este registro demonstra a fusão das imagens dos corpos
de dois indivíduos distintos através do auxílio do vidro espelhado: o performer e o participante.
236
seu sexo biológico e a sua representação na sociedade, ou seja, todas ações expõem o
indivíduo oposto ao da conduta heteronormativa.
O jogo do espelho presente em Reciprocidade Desalmada acaba por ser
transportado e redefinido para a performance Beija-se, a qual incorpora o reflexo – no qual
está estampada a idêntica imagem de um sujeito que se posiciona diante do espelho –, e
propõe a fusão da imagem desse mesmo sujeito que se contempla e se beija com o sujeito
(o performer) que está além do reflexo, ou seja, do outro lado da superfície espelhada.
Surge, com isso, a concretização imagética de um terceiro sujeito quando estes dois se
relacionam intermediados pelo vidro.
Em Reciprocidade Desalmada, procurei estabelecer um elo entre “ele e ela”, entre
“ela e ela”, entre “ele e ele”, rompendo tabus com relação ao papel social do indivíduo
quanto ao seu gênero quando este mesmo sujeito é apresentado sob um caráter múltiplo
através do ato de beijar a própria imagem convencionalmente subvertida.497
Em Beija-se, o observador desatento pode, em princípio, buscar apenas um beijo
sobre a sua própria imagem refletida no espelho, mas, então, ao aproximar-se do seu
próprio reflexo para concretizar esse ato, perceberá que está a beijar um outro indivíduo
além do seu próprio reflexo. O elo da ação Reciprocidade Desalmada, que propicia
inúmeras combinações afetivas (ele e ele, ela e ela, ele e ela), mantém-se em Beija-se.
Ainda, igualmente a ação Reciprocidade Desalmada, que naturalmente transporta o
mito de Narciso para um novo contexto, trago à tona mais uma vez esse personagem, não
mantendo-o unicamente à ideia da adoração da própria imagem, mas sim da compreensão
da complexidade de um indivíduo multifacetado, preenchido por instintos e desejos
variados.
Este trabalho pertence à série Beijos da Companhia Excessos, que teve origem com
a performance O Beijo, realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) no Rio
de Janeiro, sem a autorização desta instituição, durante a exposição Erótica: os Sentidos da
Arte. A performance consistia em um beijo de trinta minutos seguidos no saguão do
497
Descrição/sinopse do trabalho Reciprocidade Desalmada (2010) da Cia. Excessos, que pode conferido em
www.ciaexcessos.com.br
Também, deixei a disposição, o texto conceito desse trabalho juntamente com críticas e materiais que
envolvam a ação junto dos anexos.
237
CCBB, sendo que eu permanecia com saia e demais indumentos tidos por femininos,
enquanto Cristine Ágape vestia-se com trajes taxados por masculinos. Para quem
observada aquele beijo ininterrupto, provavelmente emergia a dúvida: “aquilo consiste
numa performance ou numa interessante surpresa do acaso?”.
Após o falecimento precoce da minha fiel parceira de performance, Cristine Ágape,
convidei Larissa Câmara para experimentar uma outra proposta desse mesmo beijo, que foi
realizado dentro de um evento fechado, numa festa noturna na Lapa, bairro da região
central do Rio de Janeiro, onde optei por assumir a performance e não deixar mais a dúvida
no observador. Eu me vesti, então, com um vestido de casamento e Larissa com um fato de
casamento. Assumimos o beijo escultural sobre um palco instalado na pista de dança.
A seguir, em 2009, elaborei e realizei O Outro Beijo no Asfalto em Portugal, na rua
dos Clérigos da cidade do Porto. Orientei meu marido, que vestiu-se com um vestido de
casamento, e a performer Berenice Isabel, que vestiu-se com um fato de casamento. Pedi
para que os dois se beijassem por trinta minutos naquela rua do centro histórico do Porto e,
assim, o resultado foi surpreendente, pois havia imensa reação relativamente ao que estava
a ocorrer. Registrei a ação com fotos e vídeo e coloquei o título que faz alusão ao texto
dramático O Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues, pois nessa obra referenciada, a
imprensa carioca mostra-se impiedosa e totalmente preconceituosa quando discute um
beijo entre dois homens. Nesse caso, exponho um beijo heterossexual, mas que carrega a
conotação gay, que impressiona o público portuense e desperta o estranhamento quase (ou
completamente) generalizado.
Voltando à ação Beija-se, relato uma grande coincidência relativamente ao
momento em que me deparei com a divulgação de um importante evento artístico
britânico, a Liverpool Biennial de 2012, ao ver uma performance extremamente similar a
esta aqui proposta, em que Jiří Kovanda coloca-se por detrás de um vidro para ser beijado
sob o intermédio deste objeto. Ele estava sem um traje que codificasse alguma ideia
parecida com a minha, mas permitia-se ser beijado por homens e mulheres nessa condição
descrita. Não se trata de um plágio obviamente e tampouco de uma referência dele com
relação ao meu trabalho e nem o contrário, é apenas mais uma interessante coincidência
temática e formal tão possível de acontecer na prática artística. Kissing Through The Glass
238
– a performance de Kovanda ocorrida na bienal inglesa de arte contemporânea desse
referido ano – é de 2007, ou seja, foi realizada mais ou menos cinco anos antes da minha,
mas que se faz perene ainda hoje e a prova disso vem com relação à opção curatorial em
escolher esse trabalho para integrar uma importante bienal de arte. Isso me fez acreditar
ainda mais no potencial temático e, também, na própria ritualização desse meu trabalho.
498
Processo:
Após ter sido convidado para elaborar uma performance para o evento Pussy
Faggot! no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, havia pensado em realizar a
performance Reciprocidade Desalmada (2010), mas optei por então criar algo novo e que
dialogasse com a temática da festa que se baseava em um “cabaré queer”, ao mesmo tempo
que pudesse atender a minha vontade de trabalhar a temática da Moda e religiosidade.
498
Da esquerda para a direita, de cima para baixo: O Beijo, realizado sem autorização no CCBB do Rio de
Janeiro em 2006 (Foto de Hugus Félix). O Beijo II no Casarão Cultural dos Arcos no Rio de Janeiro em
2007 (Foto de Leandro Baumgratz). O Outro Beijo no Asfalto em Ouro Preto em 2011 (Foto de Alber
Centurion). Reciprocidade Desalmada no evento Alma da Rua na cidade do Porto em 2010 (Foto de
Suianni Macedo). Todos estes registros destas performances fazem parte da exposição Beija-me da
Cia.Excessos.
239
Rodeando o Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, vi uma espécie de
vitrine, onde pensei em me posicionar para exibir algum modelo de vestuário, “mas qual?”
e “por quê?”, perguntei a mim. Então, percorreu-me estar travestido de noiva, tal qual a
que casa-se numa igreja católica, de branco, pura, virginal, mas bebendo vinho, de barba,
imaculada no traje, mas sexualizada em sua carne, em sua essência.
Pensei ainda em como concretizar a deformação ou marca corporal e, então, o
registro em vídeo e fotografia veio em minha mente como solução para eternizar a fusão de
rostos que iriam colar no vidro para estabelecer um beijo comigo. Queria que as pessoas
buscassem a própria imagem na superfície espelhada e, depois, encontrassem a minha,
como se estivessem a adorar a própria imagem, com suas roupas e crenças, adorando ao
mesmo tempo algo posto numa vitrine, mas que nem podiam enxergar; como se buscassem
simplesmente por verem-se naquilo que estaria à mostra. Via nisso a junção da ideia
contida na Moda e na crença cega dos adeptos dela, bem como nas suas transformações
quando entregam-se ao que está determinado na vitrine. Meu rosto fundido no rosto do
espectador/participante era uma metáfora dessa ideia, bem como o adorno do batom que
manchava o espelho e carimbava cada relação estabelecida, enumerando quantos
transeuntes desejavam uma mesma coisa (uma ideia que narrava o desejo pela própria
imagem e, ao mesmo tempo, algo que estivesse naquela vitrine).
Para conseguir isso, colei uma superfície espelhada (insulfilm) em um dos lados do
vidro. Então, como resultado, acabei por perceber que, para o “cabaré queer”, eu cumpria
a ação sexualizada em que realizava meu prazer secreto de me sentir beijado pelos
transeuntes da festa, estando eu, em meu vestido de “pessoa virtuosa no dia de seu
casamento” e, do outro lado, qualquer homem ou mulher, os quais só detectariam a minha
presença e meu gênero se entrassem no espaço pela porta que ficava ao lado da montra.
Além de atender ao pedido dos organizadores do evento, acabei satisfeito por
conseguir juntar os signos que eu precisava na elaboração desta performance.
240
Trajetória:
A performance foi apresentada no evento Pussy Faggot! no Espaço de Intervenção
Cultural Maus Hábitos na cidade do Porto, Portugal, no dia 04 de Maio de 2012.
A segunda experiência foi realizada em âmbito do Colóquio Estudos Feministas: o
Futuro do Passado, organizado pelo programa de doutoramento em Estudos Feministas da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Fotografias e um vídeo da ação foram mostrados na exposição Beija-me, mostra
individual da Cia. Excessos, realizada na sede da Secretaria Municipal de Cultura de
Catanduva, na Estação Cultura, de 05 a 13 de Março de 2013 em Catanduva, estado de São
Paulo, Brasil. A exposição foi realizada pelo VI Festival de Formas Poéticas e pela
Dell’Arte Associação Cultural, com apoio do Governo do Estado de São Paulo e da
Secretaria de Estado da Cultura – Programa de Ação Cultural 2012 (PROAC). A exposição
Beija-me foi mostrada também no SESC Ribeirão Preto no interior de São Paulo.
O trabalho compõe a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais,
apresentada em Junho de 2013 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e da
Arquitetura) na cidade de Guimarães em Portugal, bem como no Brasil nos seguintes
espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas unidades da instituição localizadas no
interior do estado de São Paulo).
Também, este trabalho foi convidado para ser apresentado, ao vivo, no Museu Julio
Dinis em Ovar durante a exposição Sob Trajes e Gozos, da Cia. Excessos, em abril de
2016. O trabalho foi exibido como vídeo na exposição Em Estado de Guerra, no Teatro
Acadêmico de Gil Vicente, em Coimbra, entre janeiro e fevereiro de 2016.
241
2.8. Projeto performativo 8: Por um Fio
499
Sinopse:
Alusão a insignificância da vida terrena (se é que existe outra para além desta) e à
efemeridade da beleza, o vídeo procura desfigurar as formas humanas, expondo um hábito
corriqueiro de vaidade de maneira bizarra e nada convencional, tornando mulheres comuns
em figuras míticas, etéreas, celestiais, ao mesmo tempo em que há a constante afirmação
dos seus inevitáveis desfechos. Os corpos femininos expostos habitam um terreno repleto
de árvores e folhas, sob a finalidade de exibir um ambiente favorável para a recombinação
de suas próprias matérias com o solo em que estão sobrepostos. Perturbação inconsciente,
corpos fundem-se num plano onírico, explicitando a obsessão pela temática mórbida, que
faz referência, inclusive, aos motivos “vanitas” na arte, através da exposição de alguns
quilos de restos de cabelos humanos diluídos em folhas secas.
Descrição:
Propus atitudes formais estranhas de pentear e moldar os cabelos para que minha
sobrinha e minhas irmãs executassem (totalizando três figuras femininas), ao mesmo
tempo que meus dois sobrinhos participassem de alguma forma (um a ilustrar um possível
responsável pelas imagens oníricas e outro para criar uma trilha sonora para o vídeo). Vítor
499
Imagem registrada durante a filmagem deste trabalho sob minha coordenação. Registro fotográfico de
Paulo Aureliano da Mata.
242
Dias de Moraes executa um baixo elétrico que soma-se ao som de uma tesoura executado
por mim como instrumento musical (objeto que não é mostrado no vídeo, mas apenas
sugerido através do áudio). Trata-se de uma recomposição imagética a partir de um sonho
que tive, que acabou por ter base fundamental na performance art, bem como nos
mecanismos processuais do Surrealismo, talvez porque esses identificadores habitavam
meu inconsciente na fatídica noite em que construí tais representações. A lógica para ser
exposta nesse trabalho é naturalmente confusa, mas tem sua válida coesão, a qual não pode
ser nivelada à narrativa exigida como “verdade absoluta” tão existente nos momentos em
que estamos acordados. O resultado foi um vídeo feito a partir de sobreposições de
imagens de ações executadas em um ambiente para ser filmado sem espectadores. Além do
vídeo, há seis fotografias analógicas (utilizadas como estudo processual) que se
apresentam também como objeto artístico, que incorporam alguns dos restos de cabelos da
ação, bem como palavras escritas com caneta hidrocor para eu estudar um título apropriado
para este trabalho.
Ficha técnica:
Direção, concepção e câmera: Tales Frey
Assistência de direção e registro fotográfico: Paulo Aureliano da Mata
Performers: Ana Carolina Frey, Fernanda Dias de Moraes, Yan Cardoso, Paola
Frey e Vítor Dias de Moraes
Música: Tales Frey e Vítor Dias de Moraes
Produção Executiva: Paulo Aureliano da Mata
Produção de objetos: Ana Carolina Frey
Realização: Cia. Excessos
Duração: 3’41”
Formato original: analógico (Super 8)
Formato para exibição: digital HD (mov)
Catanduva, São Paulo / Brasil, 2012
243
Materiais:
Utilizei, para esta ação, um volume farto de restos de cabelos. Três escovas de
pentear cabelos, um cartucho EKTACHROME 100D (Kodak color), uma câmera Super 8,
câmera fotográfica digital Canon, câmera analógica Polaroid, filme fotográfico colorido
para Polaroid, caneta hidrocor de cor preta, três camisolas de dormir femininas de
coloração clara, um baixo como instrumento musical de base para o vídeo, duas camisas
masculinas claras, duas gravatas de laço e uma tesoura para ser usada com instrumento
musical.
Ambientação:
A ambientação escolhida foi a mesma do sonho que me ocorreu: o quintal da casa
da minha irmã Paola Frey. Nesse ambiente de terra fértil, com árvores e plantas diversas, o
chão fica forrado de folhas que envelhecem e secam sob o clima quente da cidade de
Catanduva – SP, Brasil. As folhas mortas, naquele chão, contrapõem a vida tão impressa
nas verdes folhas daquela paisagem do interior de São Paulo, que é o recinto dos
tradicionais encontros da minha família em almoços de domingo. O círculo familiar é a
base do sonho que tive na noite em que encontrei pela primeira vez minha tia a usar peruca
por conta de uma quimioterapia como tratamento de um câncer. Foi o lamento pela doença
dela que me fez construir imagens tão simbólicas num plano inconsciente, por isso não tive
dúvidas quanto a escolha do local.
Referências:
Certas composições visuais de Audrey Flack sempre me veem à tona quando penso
em motes ligados à beleza e a sua transitoriedade, bem como à vida e a sua brevidade.
Tanto em Queen (1975-76) como em Wheel of Fortune (1977-78), a artista busca afirmar
essas noções numa exposição do universo feminino juntamente com as obsessões contidas
nele pelos recursos do embelezamento como forma de camuflar a derradeira condição
humana. O relógio e o confronto do retrato da jovem com a idosa ou com o esqueleto
evidenciam a delicada durabilidade da vida e a associação desses recursos com a imagem
do espelho; os elementos de maquilagem denotam o incômodo gerado a partir desta
244
consciência com relação a aparência, ou seja, com os reflexos naturais gerados no corpo, e
com as suas fatais transformações. A morbidez das frutas, da flor e da vela parecem fazer
alusão à tentativa de colorir a verdade: a anunciação do fim.
500
501
500
Da esquerda para a direita: Queen (1975-76) e Wheel of Fortune (1977-78). Ambas composições são da
artista Audrey Flack. Imagens obtidas em http://www.audreyflack.com/AF/index.php (consulta realizada
em 07/10/2012).
501
Da esquerda para a direita: Untitled (from the Fetish Series), 1977; Nañigo Burial (photo of original
performance), 1976; Untitled (Silueta Series, Iowa), 1977. Imagens obtidas em
http://avion.egloos.com/2703877 (consulta realizada em 07/10/2012).
245
Ainda, o gesto de pentear alucinadamente os cabelos, naturalmente, aciona da nossa
memória à obra Art must be beautiful, Artist must be beautiful de Marina Abramović,
embora em Por um Fio não haja nenhuma violência no ato. Ao contrário de Marina
Abramović, no meu trabalho, proponho um gesto extremamente calmo, equilibrado.
Processo:
Oriunda de uma perturbação noturna, a narrativa poderia dar corpo a uma forma
qualquer de expressão artística: uma performance, um vídeo, um ensaio fotográfico, etc.
Optei por juntar todas essas expressões. Fiz registros analógicos (tão efêmeros quanto a
vida em sua durabilidade) e pedi colaboração do meu parceiro de vida e trabalho, Paulo
Aureliano da Mata, para registrar todo o processo com uma câmera digital enquanto eu
fazia os registros analógicos.
Fiz um estudo sobre o título mais apropriado para atribuir ao trabalho sobre
fotografias analógicas realizadas no período da gravação da videoperformance. Deslizando
a caneta sobre cinco fotos, cheguei a conclusão de que o nome seria “Por um Fio”, então
escrevi o título no espaço vazio esverdeado da sexta fotografia (foto Polaroid que falhou e
não gerou nenhuma imagem perceptível). O conjunto é parte do processo, mas pode
também ser apresentado como uma obra autônoma, embora eu opte apenas pelo registro
digital de uma única imagem e pelo próprio vídeo captado em Super 8 e transferido para
HD (mov).
Com uma grande quantidade de restos de cabelos juntados em salões de
cabeleireiros, expus minhas duas irmãs e seus respectivos filhos como figuras centrais
desse trabalho, o qual serve como um registro de um sonho que tive após meu primeiro
encontro com minha tia depois dela ter descoberto estar sofrendo de um câncer.
Este encontro decorreu no momento em que ela já estava tratando da doença e
sofrendo as inevitáveis consequências da quimioterapia. Eu a vi retirar a peruca que usava
e, pela primeira vez na vida, observei sua feição sem cabelos. Refleti (em sonho), então
sobre as alterações implícitas no seu corpo por conta da doença, sobre a vaidade e o apego
com a beleza, além da busca pela religiosidade, num momento de fraqueza e desespero,
quando a morte (destino inevitável) se anunciava de alguma forma.
246
O cabelo, haste fibrosa formada por células mortas, é o que melhor traduz a
morbidez que pretendia imprimir nesse trabalho, além de fazer referência direta aos
resultados corporais devido ao tratamento da quimioterapia. Os queratinócitos (a única
parte viva do fio de cabelo) encontra-se no bulbo, ou seja, já na derme do couro cabeludo,
portanto o que está exposto para fora dele é célula morta.
502
502
Estudo sobre Polaroids para elaboração do título do vídeo.
247
O que rendeu desse processo foi um vídeo e um ensaio fotográfico em recurso
digital e analógico (Polaroide). Lembrei-me da expressão “por um triz”, ou ainda, “por um
fio”, o que fazia completo sentido quando estava justamente falando de algo tão tênue
como o singelo fio que divide a vida da morte. Tão frágil quanto um fio capilar. Em
pesquisa sobre a palavra “triz”, soube que esta possivelmente originou-se da palavra grega
“thrichos”, que significa cabelo. Além da sonoridade desta palavra grega ser similar a
palavra “triz”, explica o historiador Rainer Sousa, que há possibilidade da expressão “por
um fio” ter sido gerada a partir da seguinte situação:
Trajetória:
O vídeo foi realizado em Catanduva, estado de São Paulo (Brasil) em 16 de
Setembro de 2012. Esse trabalho compôs a exposição Moda e Religiosidade em Registos
Corporais, apresentada em Junho de 2013 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e
da Arquitetura) na cidade de Guimarães em Portugal, bem como no Brasil nos seguintes
503
SOUSA, Rainer. Por um triz. Texto disponível em: http://www.brasilescola.com/curiosidades/por-um-
triz.htm (consulta realizada em 06/10/2012).
248
espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas unidades da instituição localizadas no
interior do estado de São Paulo).
Este trabalho foi apresentado também na galeria de arte contemporânea Barracão
Maravilha na cidade do Rio de Janeiro em maio de 2014 como obra integrante da
performance-instalação-exposição Orexia. Também, foi mostrado durante o Videada 05 no
espaço El Galpon, em Lima, Peru, em 2013.
249
2.9. Projeto performativo 9: Aliança
504
Sinopse:
Aliança, palavra que se refere a um adorno usado em matrimônios, carrega em si o
significado da própria junção do casal, podendo significar união, casamento, além da sua
simples acepção para definir um tipo específico de anel. A performance/instalação é um
ritual de casamento no sentido estrito. É uma performance artística, um ritual pseudo-
religioso e um ritual estético, sendo, nos termos de Schechner, um ritual liminar e
liminóide. É vida e arte ao mesmo tempo.
Descrição:
No dia 13 de Março de 2013, no último dia da exposição Beija-me, iniciei meu
ritual de casamento com Paulo Aureliano da Mata, meu parceiro de arte e vida.
Concluímos a nossa cerimônia no dia 15 do mesmo mês, portanto, a performance foi
realizada em duas etapas. Do casamento (contrato sancionado pelo Estado) adveio a
504
Silhueta concebida com crisântemos. Ao lado direito, percebe-se o meu corpo e, do outro lado, o corpo do
Paulo. Para a construção desta forma, permanecemos parados por uns vinte minutos nos beijando e
Nathália Mello marcou a exterioridade de nossos corpos que permaneciam estáticos em tal posição
estabelecida. Nos levantamos cuidadosamente e preenchemos o espaço interno com as flores.
250
poética visual proposta por nós em uma obra que tem as nossas assinaturas, ou seja, é neste
caso um trabalho coautoral. Com essa obra, buscamos imprimir o amor em detrimento da
exclusão ou do preconceito, afirmando a diversidade em detrimento do convencionalismo
fortemente concentrado em muitos meios religiosos e, também, nos meios mais triviais.
A performance/instalação aconteceu em uma sala de exposição vazia, que foi sendo
preenchida por flores pelos espectadores505 e por marcas de beijos de batom por nós
performers. Além da silhueta que desenhamos com flores à tarde, antes da abertura da
exposição, com a colaboração da artista Nathália Mello, a nossa ação consistia unicamente
em registrar carimbos de beijos com nossas bocas pintadas por batons de cores intensas
(batons que duram 24h nos lábios). De um lado, iniciei a construção de colunas de beijos
que correspondiam a minha altura, onde construía uma espécie de pintura com meus lábios
que marcavam diversos beijos (um ao lado do outro). Paulo, de um outro lado da sala, fez a
mesma ação até que, preenchendo de beijos todo o espaço, nos encontramos num
determinado ponto. No encontro, beijamos a mesma superfície, carimbando um beijo sobre
o outro em tonalidades mais avermelhadas que as anteriores sob auxílios de novos batons.
Por fim, demos um beijo do tipo “selinho” e partimos para casa dos meus pais de mãos
dadas.
A performance ocorreu uma única vez, com potente eficácia ritualística506, já que
transformou o nosso estado civil para sempre. De "solteiros", passamos para a situação de
"casados". Nem se quisermos, podemos voltar à primeira condição, pois se dermos fim ao
nosso casamento, seremos "divorciados", "viúvos", mas jamais “solteiros” outra vez.
O batom – que permaneceu nos nossos lábios por um pouco mais de 24 horas – e a
marca da fricção na ponta do nosso nariz – que encostava todo o tempo na superfície dos
módulos brancos que delimitavam a sala da performance dentro da nossa exposição –
marcaram o elemento transitório entre a ação que consideramos a nossa “festa de
casamento” (acontecimento público) para o evento do registro no cartório (anunciado no
diário oficial do jornal local). A regra geral de um casamento foi reestabelecida: a festa foi
505
Os espectadores eram avisados desde o primeiro dia da exposição, 05 de Março de 2013, para levarem tais
elementos. O aviso colado na sala dizia: “Traga-nos flores e faça parte integrante do nosso ritual de
performance-casamento que acontecerá exatamente neste local”.
506
Cf. SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIÉRO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard
Schechner, p. 81.
251
o episódio da performance que aconteceu antes do evento no cartório. Usamos jeans e
camisetas pretas da grife Der Metropol com detalhes em estampa de flores sobre o tecido
branco: composição que reafirmava a relação entre a morte e a vida, sendo o traje de luto
representado através do tecido preto, enquanto a casualidade do elemento jeans era
conjugado com retalhos brancos e flores dos mesmos tons que os beijos marcados sobre a
parede antes de sofrerem o processo de secagem.
No dia da assinatura do contrato de casamento, vesti uma camisa da Der Metropol
feita com o mesmo tecido dos detalhes estampados de flores, prevascendo a cor branca em
detrimento do preto fúnebre. Paulo vestiu t-shirt da marca Adidas desenhada por Jeremy
Scott, estampada de ursinhos de pelúcia sobre fundo branco. Ambos eram trajes
convenientes para cada um sem necessariamente carregarem signos relacionados ao
trabalho artístico; foram escolhas pessoais de forma espontânea, mas que justamente por
isso, carregaram determinadas simbologias inerentes às nossas micropolíticas que
sublinhavam informações presentes no próprio trabalho.
Todos os trajes utilizados desde o princípio do ritual na galeria até o desfecho no
cartório foram utilizados pela primeira vez para as tais situações.
507
507
De cima para baixo, da esquerda para a direita. Paulo a conceber a parede estampada de beijos; Tales a
executar a ação de Aliança; detalhe da parede estampada de beijos; Carlos Alexandre e Lucas Alves em
colaboração na performance como garçons crossdressers; detalhe das bocas e narizes manchados pelo
batom de longa duração e esfolados pela fricção causada pelos beijos; detalhe do nariz do Paulo no dia 15
de Março.
252
508
508
Certidão de casamento obtida no dia 15 de Março de 2013 no Cartório de Registro Civil de Catanduva.
253
Ao fundo de uma das paredes, deixei desde o primeiro dia da exposição Beija-me,
um vídeo “em loop” com fotos em tonalidades avermelhadas, que eram trocadas de 1 em 1
segundo, as quais exibiam sobreposições de imagens de cicatrizes e tatuagens minhas e do
Paulo e também de partes avulsas dos nossos corpos, estabelecendo uma fusão dos nossos
estigmas, das nossas dores, das nossas vivências e memórias, formando um novo corpo,
um corpo em comunhão.
509
509
Instalação com projeção de vídeo feito a partir de fotos (com filtro de cor vermelha) de tatuagens e
cicatrizes dos performers.
254
Ficha técnica:
Concepção: Cia.Excessos
Performers: Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey
Duração da ação: 2 horas
Garçons crossdressers: Carlos Alexandre e Lucas Alves
Registros fotográficos: Cris Anovazzi, Nathália Mello, Paola Frey e Vanja Poty
Registros em vídeo: Rafael Back
Realização: Cia. Excessos, junto da Dell’Arte Associação Cultural, com apoio do
Governo do Estado de São Paulo, da Secretaria de Estado da Cultura – Programa de
Ação Cultural 2012 (PROAC).
Materiais:
Flores (crisântemos);
11 Batons (que duram 24 horas nos lábios);
2 Calças Jeans;
2 camisetas pretas com detalhes floridos (Der Metropol);
2 vestidos de noiva para os garçons;
1 vídeo com 40 imagens estáticas trocadas a cada 1 segundo.
Ambientação:
Tratando-se de um evento extraordinário como o nosso próprio casamento, julguei
ser de suma importância que o meu matrimônio fosse realizado na cidade de Catanduva,
estado de São Paulo, onde nasci e fui formado, onde quase toda a minha família reside.
Além disso, num momento em que um Pastor evangélico, deputado federal, presidia, em
meu país natal, a Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e,
negando uma política supostamente laica, pregava o ódio contra homossexuais e negros em
seu discurso, eu assumi a urgência de agitar o lugar comum nessa sociedade,
transformando meu casamento em composição performática de conteúdo politizado com
crítica aos regimes de normalização, não sendo apenas uma defesa dos direitos
homossexuais.
255
O sentimento de fé descomedida, de fanatismo religioso que condena a liberdade do
sujeito tem crescido de forma atemorizante no Brasil, sendo desenfreadamente introduzido
no meio político pelos devotos de sentimentos religiosos extrapolados.
A performance, parte mais ousada do meu ritual de casamento, foi realizada na
Estação Cultura, ambiente dedicado às artes que há na sede da Secretaria Municipal de
Cultura de Catanduva (Antiga estação de trem da cidade). Concidentemente, há, bem em
frente ao recinto, uma Igreja Evangélica Assembleia de Deus.
Telefonemas de religiosos fervorosos, de preconceituosos sem religião, entre vários
outros que se posicionavam contra o evento marcavam o impedimento para que a
performance Aliança não fosse realizada na sede da Secretaria Municipal de Cultura da
minha dócil cidade. Em vão, pois grande volume de pessoas da área da cultura da cidade
colaborava para que o evento fosse indefectível.
Referências:
A primeira referência visual que me servi foi o trabalho de Ana Mendieta em que a
artista deita-se em meio a várias flores e marca o seu corpo naquele espaço. A respeito do
recurso visual de desenhar silhuetas corporais no trabalho de Mendieta, eu me apoiei para
elaborar uma série de invenções, por meio das quais eu queria abordar o signo da morte em
ocorrências tão repletas de vida.
Feita a ação, debrucei-me na pesquisa sobre outros trabalhos que pudessem
dialogar de alguma forma com o meu, então, esbarrei no Kiss off, de Vito Acconci, além de
perceber, nesse novo trabalho, a projeção da própria série de beijos que concebi
anteriormente junto da Cia. Excessos, conjunto de performances composto por O Beijo, O
Beijo II, Reciprocidade Desalmada, O Outro Beijo no Asfalto, Beija-se e, finalmente,
Aliança.
Kiss off, por ser um homem a usar o batom (artigo tido por feminino) para carimbar
beijos em alguma superfície dialoga com Aliança. O gesto narcisista da obra de Acconci
gera, como objeto, um corpo masculino repleto de beijos (os quais são pressupostos terem
vindo de lábios femininos), enquanto Aliança origina um espaço repleto de marcas de
beijos (igualmente calculados como marcas corporais femininas).
256
Engraçado é que concebi Aliança já depois de iniciada a exposição Beija-me. A
ideia inicial (sepultar com flores o meu corpo junto com o corpo do Paulo) foi
transformada na véspera da apresentação da performance que marcou o encerramento da
mostra da Cia. Excessos. Tenho impressão de que o que me motivou a fazer a série toda de
beijos tenha sido a reflexão sobre a morte da minha parceira performática Christine Ágape,
que estava exposta na sala ao lado da que faríamos a ação em uma imagem fotográfica a
beijar-me na primeira versão que motivou toda essa série. Cogito que o conjunto de beijos,
na sua plenitude, tenha partido disso, pois refleti sobre a condição efêmera da junção dos
lábios, algo que dura pouco, mas que, ao mesmo tempo, pela longa duração dos beijos nas
performances que víamos ali, parecia interminável. O “para sempre”, o “eterno”, sempre
foi um tema de reflexão para mim, ainda que de forma inconsciente, dentro de uma
transposição da ficção para um contexto real, numa linha tênue, impulsionando a arte para
a vida e vice-versa.
No que diz respeito à afirmação da diversidade e das diferenças com relação a
sexualidade e gênero de cada indivíduo, a performance (assim como a exposição) acabava
por se harmonizar com o discurso da Teoria Queer, que tem base nos ideais feministas e
LGBT. Coincidentemente, semanas depois da nossa ação, uma série de beijos entre artistas
do mesmo sexo serviu de estratégia para chamar a atenção da mídia a favor da eliminação
do pastor evangélico Marcos Feliciano da presidência da Comissão dos Direitos Humanos
e Minorias da Câmara dos Deputados no Brasil, por exemplo, o beijo entre as atrizes
Fernanda Montenegro e Camila Amado durante a 7ª edição do APTR (Associação dos
Produtores de Teatro do Rio).
Na capa da revista norte-americana Time, o protesto da imagem de beijos entre
duas pessoas do mesmo sexo (duas versões) veio acompanhado da seguinte frase: “The
Supreme Court hasn’t made up its mind – but America has”, evidenciando (ou cogitando)
que a opinião da maioria é a favor do casamento gay, que, na altura, só era reconhecido em
legislações estaduais nos EUA.
Na França, embora o casamento gay já fosse reconhecido na altura, centenas de
milhares de pessoas protestavam, no início de 2013, contra a união entre pessoas do
257
mesmo sexo, principalmente por ter sido aprovada no país a adoção de crianças entre
casais homossexuais.
A criação da performance Aliança arrisca um ritual particular, talvez porque a
homossexualidade seja repelida pela maior parte das religiões; “o Islamismo, o Judaísmo
ortodoxo e muitas igrejas protestantes fundamentalistas são homofóbicas”510.
511
512
510
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIÉRO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p. 85.
511
Da esquerda para a direita: Capa da Revista Time com duas versões; Beijo entre Camila Amado e
Fernanda Montenegro no Rio de Janeiro. Imagens obtidas, respectivamente em:
http://www.time.com/time/ e em http://migre.me/dVG9t (consulta realizada em 31/03/2013).
512
Da esquerda para a direita: Kiss Off (1971), de Vito Acconci. Imagem obtida em:
http://www.gallery.ca/en/see/collections/artwork.php?mkey=9049 (consulta realizada em 31/03/2013).
Emotion in Motion de Nezaket Ekici. Frame obtido a partir do vídeo da ação, que está disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=RSeSZ9JTDjI (consulta realizada em 20/04/2013).
258
montada em uma galeria (sofá, cadeira, tapete, chão, janela, vasos, paredes, teto, etc.) –
motivou que eu e Paulo construíssemos um enorme corredor de marcas de beijos em
quatro paredes de uma sala de exposição até obtermos o nosso tumultuado encontro
registrado em beijos mais intensos de coloração em tom vermelho vivo que se diferenciava
dos anteriores beijos em tons menos ardentes, fechando, nesse encontro, a aliança.
Processo:
Para esta performance, tomei a frase “até que a morte nos separe” como ponto de
partida e, então, procurei marcar elementos que simbolizassem a condição material da
vida, mas também a crença em algo maior, em algo metafísico, transcendental, que
ultrapassasse a condição terrena, que fosse eterno. O que me conduziu ao casamento,
afinal, foi justamente a crença em um amor “para sempre”, em um amor “inacabável”.
Refletindo sobre isso, percebi que valeria a pena conjecturar sobre a condição temporária e
permanente de uma união amorosa como arte.
Ao mesmo tempo, gostaria de abordar a Moda e a religiosidade de alguma forma
como duas ideias que estão decisivamente presentes em um ritual de casamento, bem como
queria posicionar a ação como prática que marcasse o fim da exposição Beija-me, ou seja,
como um trabalho que finalizasse a série de beijos da Cia. Excessos. Além disso, gostaria
de usar marcas corporais que timbrassem o caráter transformador desse ritual, tal qual a
marca de aliança gerada nos dedos de quem a usa por tempo prolongado.
A primeira ideia, para concretizar a minha necessidade de abordar a marca
corporal, foi registrar meu corpo e o corpo do Paulo em fotografias com filtro vermelho de
cor, onde nossas cicatrizes e tatuagens se misturassem em um vídeo que ficasse a repetir a
série de fotos de maneira alucinadamente rápida a ponto de fundir as nossas imagens,
misturando nossos corpos, fundindo as nossas identidades. Esse vídeo – primeira
experiência realizada como um teaser para anunciar a performance – ficou exposto na sala
vazia desde o primeiro dia da exposição juntamente com a legenda da performance que
ocorreria ali no último dia. É válido ressaltar que a ideia inicial desse vídeo, na verdade,
era para a performance (De)reter-se (que acabou por se tornar fotoperformance) e,
avaliando o potencial semiológico da ação sem o vídeo, optei por não mais utilizá-lo como
259
parte integrante daquela composição e, então o transformei e o absorvi para compor
Aliança.
Deixei um aviso para que os espectadores levassem flores para nós ao invés de
presentes e, no último dia, construímos uma silhueta com nossos corpos, como se
estivéssemos nos beijando naquela representação. A ideia era que as flores também se
fundissem à medida que os espectadores fossem levando outras além das que ali estavam e
que desfizessem a representação dos nossos corpos que estavam ali de forma tão clara;
queríamos a total integração dos elementos que fossem surgindo com os nossos corpos e
com a instalação criada. Até aqui, consegui, de certa forma, reunir signos que agrupassem
tanto a ideia de efêmero/eterno, de vida/morte como a de marcas e transformações
corporais e, ainda, da própria noção de religiosidade quando proponho uma alegoria
mórbida para louvar a vida a dois. Afirmei em um trecho do texto-release da exposição:
“beijos em circunstancias excepcionais assinalam o que pertence à condição de transitório,
mas, ao mesmo tempo, convocam o que é inacabável, juram o que é perpétuo”513.
Ainda com relação a marca corporal, acabei por chegar na ideia do beijo com
batom na superfície branca das paredes do espaço e, para confirmar a tarefa, calhou de eu
me deparar com um tipo de batom que dura 24 horas na pele (metáfora sobre a eficácia
transformadora desse ritual), o que não permitiria um vácuo entre a ação performativa na
galeria e o casamento no cartório, pois ficaríamos marcados até, ao menos, a manhã do dia
15, data em que assinaríamos o documento que mudaria o nosso estado civil.
O batom, elemento de maquiagem, artefato embelezador, já imprime em si a ideia
atrelada ao universo da Moda. Optamos, ainda, por trajes concebidos pelo estilista
brasileiro Mario Francisco da Der Metropol, sendo duas camisetas pretas com aplicações
de recortes de tecido branco com estampa de flores. O traje era composto pelo preto
fúnebre e por flores, composição que reafirmava a relação entre morte e vida.
Trajetória:
O trabalho foi realizado na finalização da exposição Beija-me, mostra individual da
Cia.Excessos realizada na sede da Secretaria Municipal de Cultura de Catanduva, na
513
Folder da exposição está disposto nos anexos da tese.
260
Estação Cultura, de 05 a 13 de Março de 2013, em Catanduva, estado de São Paulo, Brasil.
A exposição como atividade vinculada ao VI Festival de Formas Poéticas e pela Dell’Arte
Associação Cultural, com apoio do Governo do Estado de São Paulo e da Secretaria de
Estado da Cultura – Programa de Ação Cultural 2012 (PROAC). A exposição Beija-me foi
apresentada também na unidade do SESC Ribeirão Preto no interior de São Paulo.
O trabalho compõe a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais,
apresentada em Junho de 2013 no CAAA (Centro para os Assuntos da Arte e da
Arquitetura) na cidade de Guimarães em Portugal, bem como no Brasil nos seguintes
espaços: SESC Rio Preto e SESC Campinas (ambas unidades da instituição localizadas no
interior do estado de São Paulo).
Também, este trabalho foi exibido como vídeo na exposição Em Estado de Guerra,
no Teatro Acadêmico de Gil Vicente, em Coimbra, entre janeiro e fevereiro de 2016.
261
CONSIDERAÇÕES FINAIS
262
A diretriz tumultuada talvez evidencie o quanto pode ser caótico um processo de
criação artística: contido numa forma contemporânea de arte, este confirma o estilo
fragmentado, desordenado e extremamente estilhaçado para ficar enjaulado numa moldura
fixa e que não representaria bem o espelho despedaçado que hoje vemos a nossa frente.
“Com pedaços de mim, eu monto um ser atônito”; a pujança poética nessas curtas palavras
de Manoel de Barros em seu Livro sobre Nada talvez dê conta de traduzir o nosso tempo e
o que somos perante ele. Em um tempo enviesado, somos cacos. E, impreterivelmente,
carregamos essa impossibilidade de uma identidade una e de um discurso completamente
coeso e mais tradicional como o aristotélico jeito de contar histórias com princípio, meio e
fim. Assumo, portanto, ser passível de soar atrapalhado, de ter me repetido inúmeras vezes
ou de ter sobreposto contextos e até de gerar contradições, mas o esforço não faltou para
que eu realizasse o contrário disso, para que eu construísse uma obra clara, coerente,
fluida, atual, convincente e legítima em sua essência, em relação articulada com o processo
de criação, a dinâmica da investigação e a identidade do seu autor.
Reconheço certo tom mordaz e insolente do meu trabalho prático, bem como de
todo conteúdo teórico gerado para que houvesse contexto e propósito na sua concretização.
Talvez por eu ser um “pseudo-ateu” (não sei se posso me rotular como um completo ateu
ou simplesmente como alguém que não crê em deus), o domínio nos assuntos
correspondentes à religiosidade acabaram por ser menores do que os mais mundanos e
mais voltados para à imagem; não tive nem sequer uma educação religiosa. Fui batizado,
mas não fiz catecismo. Sou fruto do meu meio, oriundo da geração do culto a essa referida
imagem, embora eu perceba os problemas imbricados nesse contexto que pertenço e, por
isso, procuro também o criticar, ao mesmo tempo que recrimino a falta de liberdade de um
sujeito que se molda para a sua crença religiosa sem estabelecer filtros. A Moda é tão cruel
e impiedosa quanto uma religião castradora. Faço ressalva às religiões que não recriminam
a liberdade do indivíduo, caso existam. Estigmatizo, em meu discurso – por hora
extremamente venenoso –, os cruzamentos negativos que existem entre a Moda e
religiosidade. Escravos que se movem como um “rebanho” são alvo de apontamentos que
revelam o quanto essas duas forças são nefastas para adeptos cegos em suas crenças, o
263
quanto embrutecem a humanidade quando seguidas à risca e sem escrúpulos. Tentei
explicitar essa ideia de fa(c)to514.
Artistas da performance, da fotografia, da música, artistas conceituais, artistas de
diferentes áreas foram mencionados e serviram de base para reflexão sobre a temática
escolhida e, sobretudo, a propósito do mundo que me rodeia. Da análise, iniciada na
proximidade entre ritual e performance, bem como na própria recente história desse gênero
artístico, procurei destacar exemplos de artistas fulcrais em suas conexões entre a arte da
performance e a condição de ritualização, bem como a Moda e a religiosidade em
comunhão nos registros corporais. Flávio de Carvalho, Duchamp, Hayley Newman e Orlan
são alguns exemplos que destaco como os que investiram na temática abordada ao menos
em parte significativa de suas obras. O assunto, obviamente, não se manteve limitado aos
registros como “lesões” sobre a pele, mas sim em sua configuração mais ampla e mais
metafórica, que não exclui nem essas que aparecem em formas de “feridas” ornamentais.
Tanto a Moda como a religião impõem condutas, princípios a serem seguidos,
podendo esses procedimentos aparecerem impressos diretamente “no” corpo do sujeito e
não apenas “sobre” o seu corpo. As santas medievais que jejuavam como forma de
autopunição do corpo para garantirem a salvação de suas almas são exemplos tão concretos
como as modelos anoréxicas que pairam sobre as principais passarelas dos desfiles de
Moda na atualidade. Práticas artísticas subversivas retomam alusões bíblicas e/ou
católicas, como, por exemplo, Flávio de Carvalho, Duchamp, Andy Warhol e Ulay quando
vestem roupas e acessórios tidos como apropriados ao corpo da mulher dentro da nossa
cultura heterocentrada, ou ainda, Eleanor Antin e Ana Mendieta com adornos considerados
masculinos sobre seus corpos; também Hannah Wilke e Şükran Moral, quando troçam da
ideologia patriarcal do cristianismo em algumas de suas composições, contrariando um
sistema social ultrapassado. Todas(os) essas(es) artistas satirizam a norma estabelecida em
discursos que se formam sobre os seus próprios corpos. O corpo é o ponto de onde
expande a reflexão dessa tese-projeto; o corpo, mas também o ritual (artístico, religioso ou
514
O trocadilho talvez só caiba no país em que formatei o trabalho, ou seja, em Portugal. No Brasil, fato quer
dizer “coisa realizada”, “acontecimento”, o mesmo que “facto” em Portugal. Fato, em Portugal, quer
dizer “traje”.
264
secular), que permitem circulação simbólica e social, bem como considerações sobre a
Moda e/ou a religiosidade.
O que advém para a formatação da poética visual proposta está exposto nas páginas
que antecedem a sua apresentação. Inicia-se do ritual mais primitivo para desembocar na
cultura de massa, nos adeptos da Moda, nos que moldam seus corpos com auxílio de dietas
ou de cirurgias plásticas seguindo um padrão ou, inversamente, aqueles que rejeitam seus
corpos naturais quando reinventam-se sob o uso de piercings e tatuagens na tentativa de
obterem uma singularidade no meio de uma massa homogeneizada.
O processo de criação artística veio justamente tentar captar, como uma antena, os
acontecimentos que definem o mundo atual e suas bases dentro de um objeto de pesquisa,
como uma forma de refletir o tema abordado e devolvê-lo ao mundo em expressões que
demonstrem pensamentos críticos capazes de gerar semelhantes pensamentos mais
analistas. Semelhantes e não iguais. Por isso o trabalho é totalmente calcado na arte atual,
com suas características múltiplas, não enraizadas numa forma única e numa exclusiva
lógica precisa. A performance pode ser a expressão artística que melhor propicia o que
pretendi, pois abarca diferentes procedimentos e permite a pluralidade (notem que recorri à
fotoperformance e à videoperformance: duas expressões originadas a partir da
performance). A palavra também pode impedir que diferentes interpretações advenham de
um mesmo veículo de comunicação, portanto a imagem parece resolver melhor essa falta
de flexibilidade do logos com relação ao figural. Embora me apoie justamente em palavras
para ponderar essa questão que envolve semiologia, é a arte da performance que estabeleço
como o veículo mais apropriado (de dentro das artes performativas) para melhor ajustar o
que pretendi alcançar com as minhas indagações, que não necessariamente determinaram
alguma resposta concreta. Este trabalho prático-teórico é originado precisamente de uma
relação mútua e necessária entre a produção de ensaios e as criações artísticas.
Já exposta a obra, bem como o seu processo na sua forma mais escancarada, foi
necessário fechar uma cortina, mas já sabendo que posso reabri-la a qualquer momento. O
ponto final foi dado aqui, mas isso não implica na atroz finalização de um assunto
infindável. É como um espetáculo que estreia e merece ser discutido para corrigirmos os
deslizes e fazermos emergir os acertos futuros, como forma de analisarmos o que foi
265
apresentado, dando, assim, impulso e estímulo novo de reflexão para haver continuidade
ao que foi criado inicialmente. Para que haja a segunda, a terceira, a milésima apresentação
e que não seja repetida como na primeira, na segunda ou em qualquer vez que foi
mostrada. Para valer, tem que sofrer acréscimos, tem que somar ideias, incitar novas
sinapses e dar fluxos ao pensamento, não deixá-lo adormecer. Não é válido apresentar uma
obra tida por resolvida e trancada em sua rígida e imutável concepção; tem que ser uma
obra viva de arte, tem que ter arte e vida, pois o contrário disso nem morte é; é ausência de
vida.
266
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GAGA, Lady. Alejandro (2010).
Videoclipe disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=niqrrmev4mA
(consulta realizada em 27/05/2013).
VIOLLA, Bill. Entrevista feita por Marcello Dantas. Processing the Signal (Nova
York, 1989). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=6MZ4U41PSuo
(consulta realizada em 22/07/2013).
292
ANEXOS
293
1. Entrevistas
1.1. Diálogos com Amelia Jones: avaliações sobre identidade, body art e
documentação de ações performativas
Performatus – Revista virtual.
Julho de 2013. ISSN: 2316 – 8102. Ano 1. Nº 5.
O interesse pelo uso do termo body art, pelas performances queer e pela
argumentação sobre a documentação de práticas efêmeras desenvolvidas com o uso do
corpo como suporte foi o que me conduziu à realização de uma entrevista com a autora
norte-americana Amelia Jones, que, inclusive, estará na primeira edição do Festival
Performatus em São Paulo no próximo ano.
A body art, (ou simplesmente arte do corpo), deve ser compreendida como uma
vertente da arte contemporânea em oposição ao mercado tangível das artes. O corpo é o
principal meio de expressão e, por isso, sua relação se dá de forma quase intrínseca à arte
da performance515. Na body art é onde encontramos as intervenções artísticas realizadas
sobre o corpo de forma mais violenta: tatuagens, ferimentos, escarificações, etc.
Também, na body art, podemos considerar as manifestações e os gestos menos
agressivos (e, nem por isso, menos intensos), onde o corpo serve de suporte para rituais
não associados à dor e à tortura, sendo o “travestimento”, por exemplo, um tipo de body
art que se concretiza enquanto uma simples inversão de códigos relacionados aos gêneros
impressos sobre o corpo de um indivíduo. Como fundamento a exemplo desse tipo de body
art, podemos destacar Flávio de Carvalho no Brasil, além de nomes internacionais tais
como Andy Warhol (Altered Image Series), Duchamp (Rrose Sélavy), Ulay (série de
515
O que caracteriza a diferença entre a performance e a body art é que a segunda definição está restrita a
uma manifestação de arte que tem o corpo como principal suporte da criação artística.
294
polaroides intitulada por Transformations), entre outros. O Outro Beijo no Asfalto, O Beijo
(versão original e segunda versão), Beija-se, Reciprocidade Desalmada e Vende-se:
aceita-se cartão de débito são expressões artísticas, por meio das quais eu exponho a
minha identidade volátil e a minha própria persistente sexualidade e, então, problematizo
as noções de gênero na sociedade em que vivo. Posso chamar essas expressões de body
art? Creio que sim, afinal, “a body art é uma crítica pelo corpo das condições de
existência”516.
A autora Amelia Jones, por exemplo, acaba por se debruçar sobre os temas que
envolvem esse tipo de obra, principalmente as que abrangem o corpo em todas as suas
particularidades: sexuais, étnicas, entre outras. Historiadora da arte, crítica e curadora,
Jones tem pesquisa aprofundada em práticas antirracistas, em história feminista, teoria
queer, arte dos séculos XX e XXI, incluindo performance, body art, cinema, vídeo e
instalação.
Considerando a pertinência das linhas de pesquisa da autora e, também, das artes do
corpo, optei por entrevistar a autora Amelia Jones, que tem visão atualizada para
argumentar tanto sobre os trabalhos artísticos voltados para o corpo do artista (sobretudo a
body art) quanto aos motes que discutem a Queer Theory na contemporaneidade e de
forma global. Também, a documentação palpável de ações performativas presentes em
museus (cada vez mais em voga na arte contemporânea) é objeto de dedicação teórica da
autora.
516
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, p. 44.
295
Semana de História da Arte da Universidade do Porto em 2012, em um debate
depois da apresentação, um professor dessa instituição, em tom de
superioridade, disse a uma curadora do extinto festival de performance da
cidade do Porto, diante de amplo público, que esse tipo de assunto já está
“ultrapassado”. O que você pensa disso?
Eu penso que esse professor está completamente equivocado. Você pode ler Seeing
Differently para ver como eu elaboro um agressivo argumento contra aqueles que
afirmam que somos "pós-identidade" - que estão além dessas considerações acerca
da identidade (que isso já é "ultrapassado"). A maioria simplesmente erige, como
pode alguém fazer tal afirmação, quando todos os outros artigos em cada programa
de jornal, blog ou notícia no mundo gira em torno de suposições sobre as
presumidas "identidades" das pessoas envolvidas, ou gira em torno de explícitas
discussões sobre questões de identificação, muitas vezes relacionadas com o
517
A expressão original é "straight white feminist".
296
nacionalismo e a filiação religiosa (artigos sobre o papel das mulheres no local de
trabalho, sobre o véu, sobre o "fundamentalismo islâmico", como interpretado pelo
Ocidente, cerca de 1%, etc.)? Ou quando o valor de qualquer produto cultural
(especialmente quando vistos como "alta arte") gira em torno da identidade
assumida de seu "autor"? Outra refutação muito simples de tal “claptrap” 518
simplista: você pode apontar para os estupros e assassinatos horríveis e violações
que ocorrem com base na "identificação" do sujeito violentado. Há milhões de
exemplos como esse ao redor do mundo que ocorrem, infelizmente, todos os dias.
Um que eu cito no meu livro, e de que vocês provavelmente já sabem, é o
assassinato pela polícia de Londres, de um imigrante brasileiro em Londres, Juan
de Menezes, que foi erroneamente identificado como um "terrorista árabe" após os
atentados de julho 2005; ele foi perseguido e assassinado a sangue frio em um
vagão do metrô. Como eu disse, existem milhões de outros exemplos de pessoas
maltratadas ou mortas em função de seus sentidos "identitários" (por exemplo,
homens e mulheres percebidos como gays são perseguidos, violados e mortos todos
os dias – posso dar o exemplo do procedimento feito na África do Sul, consistindo
numa "violência corretiva" por homens contra mulheres vistas como lésbicas, ou
ainda, outro exemplo, um homem gay que foi simplesmente assassinado em Nova
York por um valentão homofóbico no último fim de semana). Os negros (homens
em particular) nos EUA e no Reino Unido são rotineiramente perseguidos por
causa da discriminação racial.
Em Seeing Differently, defendo fortemente que não somos, portanto, "algo além"
de identidade de forma alguma, mas sim que temos de encontrar maneiras mais
sofisticadas para teorizar e entender como funciona a identificação (como um
processo que é intersubjetivo). Eu forneço modelos possíveis para esta teorização.
É de extrema importância política que nos recusemos a alegações de que somos
“algo além” de identidade ou que nós já "ultrapassamos" a necessidade de tais
518
Nota da própria autora Amelia Jones: essa é uma palavra em inglês para expressar desprezo para "o que
você diria que é frívolo e errado".
297
discussões. Dito isto, os artistas (e os teóricos e historiadores, etc.) estão
encontrando maneiras novas e mais complexas de articulação sobre como funciona
a identificação. Dependendo da localização e das histórias de racismo, das
diferenças de classe, do sexismo, assim como das histórias de direitos civis na área
em questão, estes irão variar. Para os americanos e canadenses, desgastados por
décadas de retórica de "auto-realização" por parte dos movimentos baseados na
identidade, há uma forte necessidade de ser mais complexo e sutil em explorar
como trabalho de identificação - e ainda os EUA e o Canadá já têm muitas leis anti-
discriminação e políticas para que possamos ser mais sutis na criação de novos
modelos. Para os países que não têm movimentos de política de identidade
funcional ou onde esses movimentos não conseguiram títulos legais para proteger
aqueles que são percebidos como "outros" e, portanto, são vulneráveis (como
queers na África do Sul) ainda podem necessitar da proclamação da identidade
singular (em outros termos, para formar coalizões para articular imagens positivas
da identidade "gay" ou "lésbica" como uma qualidade mais estática) a fim de fazer
reivindicações políticas. Mas, em alguns lugares, indivíduos e grupos oprimidos
podem ainda precisar “propor” identidades como se estas pudessem ser corrigidas.
É assim que a mudança pode ter primeiro lugar - por meio de reivindicações de
coalizão.
298
Pois bem, atualmente, não considerando as últimas décadas do século XX,
quais artistas da body/performance e video art merecem destaque dentro da
temática queer? E por quê?
AMELIA JONES - Claro que eu imaginei que você concordaria com a minha
refutação com relação a esse professor - é por isso que eu estava tão direta e
contundente! Quanto a performances queer, no momento presente, estou
trabalhando, justamente, em um livro sobre a performance dessa vertente. O livro
será palco de uma análise historiográfica do aumento simultâneo da teoria da
performance e identificações queer no período pós Segunda Guerra Mundial no
Reino Unido e nos EUA (a partir da noção de história como "performance" no
trabalho do historiador britânico RG Collingwood, através do aumento de teorias
linguísticas de performance no trabalho de JL Austin, para o desenvolvimento
dessas ideias nas obras filosóficas de Jacques Derrida e, por meio de teoria queer
feminista de Judith Butler). Este enquadramento historiográfico me permite teorizar
o que se conecta com a performatividade queer. Após essa introdução, eu pretendo
abordar, em capítulos separados do trabalho, cada um dos seguintes artistas (eu
acho). Para seus propósitos, estou acompanhando cada um com uma breve
descrição de como / por que eu acredito na performance queer ou em artistas queer:
[NOTA: esses artistas são todos norte-americanos, exceto Franko B; existem outros
vários que eu poderia escolher, mas eu acho que, com esse projeto, vou me
concentrar em artistas norte-americanos):
299
arrisca [transforma em queer] o corpo como um local de identificação de gênero
nacional / racial / étnico / sexual; o grupo expõe (questiona) continuamente
identificações estereotipadas, mas também – e mais importante – demonstra a
maneira pela qual a raça / etnia são elas próprias sempre identificações sexualizadas
e a forma em que a sexualidade e gênero são sempre já atravessados.
Susan Silton: também usa novas mídias, incluindo avatares, internet e fotografia
digital para interrogar a ligação entre "expressão" e "ego", que está na base de
nossas crenças sobre a arte; a subjetividade queer de Silton é complexa e
multifacetada e se apresenta aos espectadores / ouvintes de uma forma relacional.
Heather Cassils: usa um corpo construído / artístico que cruza "body work" e "art
work”; usa seu corpo para executar performances, fazendo, de tal forma, com que
os espectadores se tornem os canais, através dos quais a "imagem" é produzida
(conferir Becoming an Image), bem como a implantação de seu corpo para explorar
projetos de body art feministas do passado em relação a uma política queer
(conferir Cut).
300
modos de representação através da qual os corpos são expostos nos mundos da
moda e da arte e, assim, questiona as maneiras em que o corpo exibido pode estar
sempre "à venda" (confira I Miss You).
Outros artistas que podem ser aqui listados: William Pope.L; Tina Takemoto;
George Chakravarthy; Qasim Riza Shaheen; Della Grace Volcano.
TALES FREY – No seu livro Body art: performing the subject, há uma
explicitação de como o termo body art substitui o que muitos teóricos preferem
chamar de performance art. Percebo que você se refere às ações que se
extinguem no ato. Mas muitos artistas dos anos 60 e 70, embora fizessem ações
para não serem repetidas, filmavam ou fotografavam tais ações. Esses
materiais, que inclusive são comercializados, não podem funcionar como
“comissuras” das ações, conforme analisa Kristine Stiles? Gostaria que
respondesse isso, mas que, juntamente, refletisse sobre a contradição existente
entre o objetivo inicial da arte conceitual e a não produção de algo vendável e
a atual comercialização de resquícios de ações supostamente “anticomerciais”
de outrora.
301
Quanto à questão da documentação, que é o foco do meu livro, coeditado com
Adrian Heathfield, Perform Repeat Record: Live Art in History. É uma enorme
contradição, é claro, que os documentos de performances "efêmeras", ou obras de
body art a partir dos anos 1960 e 1970 sejam vendidos no mercado. Dito isto, a
situação é muito complicada. É frequente o caso de o artista não receber nenhum
dinheiro de tais vendas (por exemplo, Carolee Schneemann, que não detém direitos
autorais sobre a maioria das imagens que os colegas ou visitantes tomaram de seus
primeiros trabalhos e, então, o fotógrafo pode vendê-las para obter lucro e ela não
pode fazer nada a respeito disso).
Eu acho que os artistas anteriores são muito mais pensativos sobre como usar os
documentos que restam dos seus trabalhos. Os problemas vêm mais com artistas
mais jovens, que pertencem a uma geração mais cínica e orientada para explorar a
sede do mercado de arte global para "performance" nos dias de hoje. Não estou
criticando todos os artistas que vendem performance como arte nos dias de hoje (de
Abramović a Tino Sehgal), mas eu acho que eles são muito menos críticos desse
mercado - em parte porque há um reconhecimento generalizado de que não
podemos escapar do fluxo de capital! Dito isso, eu respeito a maioria dos artistas
que tentam examinar esse enorme problema com bastante seriedade, usando modos
de documentação para explorar como esse "fluxo" trabalha, o que é deixado de fora
do benefício a partir dele, etc. Nao Bustamante é um grande exemplo – ela explora
formas tais como "Reality TV" e torna você mais consciente de como a base é, e
como é impossível para as práticas verdadeiramente radicais se beneficiarem de
suas formas.
Eu poderia falar muito mais sobre essa questão, mas sob a intenção de concluir
ainda hoje a conversa, acho melhor parar por aqui.
302
1931, ele atravessou uma procissão de Corpus Christi, em sentido contrário,
na cidade de São Paulo, sem tirar da cabeça um chapéu verde de veludo. Essa
experiência do artista despertou a ira dos fiéis que participavam do evento,
que, tomados pelo ódio, queriam linchar o artista Flávio de Carvalho. O
trabalho dele, sempre carregado de ironia, normalmente, tem o indumento
como força motriz da ação. Em 1955, ele desfilou pelas ruas usando uma saia
com uma blusa de manga bufante. Essa segunda ação consistia numa crítica
aos trajes copiados da Europa para um país de clima quente como o Brasil.
Tendo essa informação, não poderíamos pensar a história da performance
relacionando alguns casos isolados que vão para além das vanguardas
artísticas europeias e das experiências advindas do Black Mountain College
nos EUA? Resumidamente, como você montaria uma história da performance
queer mundial? Claro, considerando a performance como um gênero que se
desenvolveu a partir do século XX, pois, caso contrário, teríamos de escrever
um livro para responder esta pergunta, não?
303
como não é aconselhável para os anglófonos, os estudiosos Euro-americanos saírem
valsando ao redor do mundo como pesquisadores (ou, realmente, "turistas
culturais") - nós nunca iríamos compreender as complexidades dessas culturas.
Estou falando sério sobre me dizer mais sobre Flávio de Carvalho - onde posso
encontrar informações em francês ou Inglês? Infelizmente eu não sei Português, um
pouco de espanhol, mas não o suficiente.
304
mas é uma pena que não podemos ter uma linguagem que não esteja profundamente
ligada ao colonialismo para nos comunicarmos com o mundo.
305
1.2. “Prêt-à-Médiatiser” em cinco perguntas e incontáveis reflexões
Performatus – Revista virtual
Novembro de 2012. ISSN: 2316 – 8102. Ano 1. Nº 1.
Com apenas cinco perguntas, a entrevista feita com a artista britânica Christine
Ellison rendeu uma série de reflexões sobre o corpo, a moda e a arte contemporânea a
partir de uma expansão de um dos seus trabalhos de performance: Prêt-à-Médiatiser. Esta
performance integrou a programação do evento Rapid Pulse International Performance
Art Festival, ocorrido em Chicago, na Defibrillator Gallery, em Junho de 2012.
A entrevistada, Christine Ellison, apresenta-se como Polly Fibre na ficha técnica de suas
performances. Centrada na cultura pós-digital, a artista não esconde o seu interesse na
cultura fetichista com a tecnologia e compromete-se com entusiasmo pela temática nas
suas construções nada convencionais em clubes, galerias e festivais alternativos.
CHRISTINE ELLISON: O trabalho brinca com o que pode ser perdido ou obtido
através da documentação mediada da performance. Na performance ao vivo há,
certamente, uma intensidade e uma potência e, também, uma tensão - um
nervosismo entre o público que espera que o evento corresponda às expectativas.
Eles estão aguardando a entrega de uma experiência antecipada que corre o risco de
306
fracassar ou, pelo menos, falhar. Você pode argumentar que tudo o que acontece ao
vivo é a única maneira que poderia ser e, portanto, não há fracasso, porque o risco
ao vivo e, portanto, também as consequências deste risco são essenciais para que
seja um evento ao vivo. Com o documento filmado, é possível manipular a
perspectiva de espectadores de uma forma que não é possível com o evento ao vivo.
Ele pode ser muito mais indulgente.
Prêt-à-Médiatiser é um trabalho estabelecido em torno destas expectativas e
perguntas. A performance tem esse senso de vivacidade, com intensidade e
potência, mas há elementos que são desajeitados e atrapalhados. Com o filme, a
tensão ao vivo e a excitação imediata estão perdidas, mas, por outro lado, alguns
dos detalhes se destacam e se tornam visualmente mais emocionantes através da
edição. Uma performance filmada cumpre sempre duas coisas, que dependem de
uma audiência ao vivo (no que diz respeito à vivacidade) e que é sujeito a uma
perspectiva mediada parcial (por meio de pós-produção). Prêt-à-Médiatiser foi
criada com essas duas coisas em mente e não é, portanto, totalmente realizada em
qualquer contexto - cada etapa depende da outra para concretizar a sua finalidade.
Estou muito envolvida com a ideia de que a performance (como toda outra forma
de arte) vive em muitas plataformas e não apenas no local de exposição. Vemos
muitos trabalhos, primeiramente, em websites ou em revistas e isso afeta a forma
como interpretamos estes mesmos trabalhos e, eu gostaria de frisar que isso afeta
até mesmo a nossa experiência de arte. É praticamente impossível ignorar todas as
versões mediadas de um trabalho (se é através da escrita, da documentação, do
material promocional, de críticas, entrevistas) e apenas experimentá-lo como um
evento. Isto tornou-se um aspecto exigente de produção artística.
307
pouco duradouro. Existe mesmo este tom crítico sobre a impossibilidade de se
manter por muito tempo “na moda”?
308
das pessoas da minha comunidade começassem a usar roupas que cobrissem
somente a frente dos seus corpos (roupas bidimensionais), ou eu teria de pisar na
linha ou, então, reagir contra elas. É sempre uma escolha, mas é a maneira como
respondemos a essas escolhas e a indústria, por sua vez, cria histórias tão
complicadas – curtas histórias, como você diz, que estão continuamente mudando.
Os alimentos básicos da moda não mudam muito, mas a sutilezas de cada
temporada move-se rapidamente, moldando um discurso fugaz de significantes
culturais. Algumas coisas são esquecidas e algumas coisas são mantidas e
retrabalhadas e talvez todas são distorcidas através dos olhos da história - que é,
logicamente, mediada.
309
para destacar os elementos da cerimônia e desenhar sobre eles como pontuação
sonora – dentro de tudo isso deve haver uma tensão entre o sentimento de
interrupção e de intenção estética. E sim, há algum senso de hierarquia na maneira
como estas construções são erguidas – os músicos, que são essencialmente parte da
equipe de produção, controlam os cliques sonoros, a imprensa cria interrupções
espontâneas que o público ao vivo pode ecoar e, em seguida, é interessante como
você aponta que o espectador do vídeo é, então, por trás de tudo isso, uma outra
camada para ver o evento através de outra lente, mas sem qualquer capacidade de
interagir / contribuir. Eu não tenho certeza se ele é o menos favorecido, mas talvez
seja o menos envolvido e o mais ditado.
310
tornam exageradas sobre o corpo e, ao mesmo tempo, não o esquecem
completamente. Assim, deve haver um novo sentido do lugar do corpo no espaço
teatral.
311
A presença – de seres humanos obstruídas pelas formas e sons e falta a identidade
individual – sugere uma ausência, enquanto a sedutora e confiante encenação da
construção sugere algum tipo de ordem natural. São esses paradoxos do ritual e da
vida que eu espero que Prêt-à-Médiatiser o convide para contemplar.
312
1.3. Moda e Religião com impulsos de construção de uma nova identidade
Na minha cidade natal, Catanduva – São Paulo, tenho um amigo de mesma idade,
mesma sexualidade e quase o mesmo nome (somos diferenciados por um “h”). Thales é
designer de moda, trabalhou em teatro e, hoje, tem sua própria loja, onde vende roupas
para evangélicos e, para fazer isso, incorpora uma faceta de “bom fiel”, como se fosse
absolutamente comprometido com a mesma religião dos consumidores do produto que ele
expõe. Faz isso como estratégia de venda. Vive o seu personagem (oposto de si em muitos
aspectos) para realizar seu trabalho.
313
Thales Abreu - Moda é algo tão sobrenatural que consegue dizer e comunicar
além das palavras e da escrita, afinal de contas, as vestimentas comunicam em
linguagem universal. Moda expressa até quando não há expressão, quando a moda
cobre um corpo sem expressão, ela ainda assim expressa em suas infinitas matizes,
do nada ao tudo. Moda é algo absurdamente expressivo, mais que a própria voz,
mais que o próprio movimento, mais que o próprio semblante exalando emoções
internas, moda exala emoções subconscientes, exala pensamentos intraduzíveis em
palavras, moda expressa infinitamente mais, amplamente mais que qualquer
expressão humana.
E não é que o humano busca expressar-se diariamente e eternamente? A expressão
humana é quase involuntária, é algo como respirar sem ter que pensar no
movimento da respiração para que ela aconteça. E como o ser humano é o ser
mais complexo em suas emoções diárias, em suas capacidades físicas, em suas
sensações táteis, nada mais obvio que ele tentar algo a mais, buscar o além, se
entregar a expressar sentimentos e pensamentos que ficam além do racional, então
o ser humano começa a inventar moda.
Não me refiro ao ato de se vestir como proteção, mas sim ao ato de se vestir como
expressão. Expressão de sensações, emoções, vida pulsante em nossas veias
humanas e principalmente valores que damos ao outro, que damos ao ambiente
quando queremos deixar claro nossas opiniões e principalmente a nós mesmos,
valores estes que se transformam em comunicação visual e se chegar mais perto
podemos até sentir comunicação tátil.
Moda fala, moda avisa, moda dá a dica, moda expõe. Moda diária entrega teus
pensamentos quando ela é feita de forma subconsciente, quando alguém se veste de
maneira alinhada ou desalinhada já ficam expostas visualmente características
psicológicas deste humano vestido. Quando essa mesma moda é feita de forma
consciente, ela expõe as vontades e dizeres psicológicos deste mesmo humano
vestido. Moda muitas vezes enquadra em determinados padrões, em determinados
rótulos e em grupos sociais. Alias, todos os grupos sociais se utilizam da moda
para demonstrar de antemão o grupo pertencente.
314
Hoje, existe uma corrente das pessoas que preferem menos tecidos e mais corpos
expostos contra a corrente das pessoas que preferem mais tecidos e menos corpos
expostos vindo de suas próprias crenças religiosas. No mundo contemporâneo, um
ambiente extremamente rico em variações de vestimentas para determinar grupos
pertencentes e crenças psicológicas é o ambiente religioso, já que o ser humano é
tão amplo em seus credos, nada mais natural que suas opções de vestimentas
também serem. E é aí que eu entro com meu trabalho de vendas e o produto
oferecido é: moda feminina para mulheres cristãs.
O olhar para a moda vem cobrindo o Brasil a pouco mais de 10 anos e é claro que
essa corrente chegaria a todos os grupos sociais, inclusive aos grupos religiosos.
Um grupo que está em ascensão é o da igreja evangélica e a moda não poderia
deixar de acompanhar isso, já que algumas características de vestimentas são
seguidas como doutrina, até mesmo para deixar claro a qual igreja pertence.
Algumas igrejas determinam as vestimentas com saias e cabelos longos, outras
com vestimentas de manga longa mesmo sob um calor absurdo, outras determinam
que, ao sentar-se, a mulher não pode expor os joelhos fazendo com que as saias
tenham a barra na altura das canelas e assim por diante. Eu encaro tudo isso como
maneiras de mandar mensagens através das vestimentas e acho isso formidável,
gostando ou não, ainda vivemos num mundo onde o primeiro julgamento é visual.
O mercado de mulheres cristãs é amplo, hoje minhas consumidoras estão
distribuídas nas religiões: evangélica, católica e testemunhas de Jeová. E cada
grupo se comporta de uma determinada maneira dentro e fora da igreja. Mas um
comportamento é universal entre elas, que é o comportamento comedido.
Característica que não existe na minha personalidade pois eu falo, canto e encanto
com textos de técnicas de vendas expressos vocalmente e corporalmente. Porém
não posso usar essas ferramentas porque essas consumidoras seguem um
comportamento social menos expansivo e mais comedido, contraído e tranquilo.
Algumas falam tão baixo que eu tenho vontade de gritar bem alto: O QUE?????
Mas me mantenho em postura amena e é nisso que sinto mudanças corporais em
mim devido ao ato de vendas para público religioso.
315
Postura “amena” significa que mantenho-me em movimentos clássicos e formais,
como trabalho em uma loja pequena com atendimento quase vip, recebo as clientes
na porta cumprimentando-as com um aperto de mão e um largo sorriso, mantenho
minha coluna ereta e espero a reação das clientes, poucas cumprimentam com um
beijinho no rosto. Testemunhas de Jeová possuem algumas regras
comportamentais dentro do próprio salão do reino que é como se chama a
“igreja” delas, não se cumprimenta ninguém de beijinho no rosto, apenas aperto
de mão. Então, como não há o inclinar-se para o beijinho no rosto a postura
mantém-se ereta e rígida exalando respeito a todo custo, como se cada pessoa
tivesse um campo magnético em volta de si bloqueando qualquer aproximação.
Coloco meu corpo em movimentos serenos e respeitosos sempre mantendo uma
distancia da cliente, pois ainda existe uma cultura de submissão feminina dentro da
igreja, já presenciei algumas clientes com o rosto todo ruborizado por estar sendo
atendidas por um homem. Outras nem ligam.
Minhas próprias vestimentas trazem esses movimentos mais contidos ao meu
corpo, o traje social por si só me coloca em postura de elegância e mantenho-me
assim como se estivesse dentro de uma caixa, sempre com um semblante simpático
e acolhedor, mas minha sensação interna é essa de encaixotado. Quando termina o
expediente, é como se eu saísse de dentro da forma e pudesse bater asas e voar
livremente.
316
2. Críticas sobre os meus trabalhos artísticos condizentes ao doutoramento
2.1. Imagem e Dessemelhança
Ano 1 | Nº 3 | Mar 2013
ISSN 2316-8102
por Dinah Cesare
Tales Frey (Cia. Excessos), Re-banho. Performance na cidade do Porto, Portugal, Outubro de 2011.
Fotografia de Suianni Cordeiro Macedo
Intercessores
Mudança do lugar de quem olha – consequência de assistir uma performance
capturada por dispositivos. Entramos no âmbito que afirma as possibilidades das imagens.
O pensamento a respeito das noções e experiências da imagem que surgiram na imbricação
entre as linguagens e manifestações artísticas das artes contemporâneas necessita, por si só,
de uma visada que procure por derivações. Para Deleuze e Guattari o papel da filosofia é o
de criar conceitos. Eles consideram ter criado pelo menos um de fundamental importância
– o de Ritornelo. O Ritornelo é um problema relacionado ao território, referente às
entradas e saídas do território. Então isso nos leva à compreensão de uma nova pretensão
317
do conceito de desterritorialização: é que não há território sem vetor de saída, e não há
saída do território sem, ao mesmo tempo, um esforço de territorialização. As imagens da
videoperformance interessam, sobretudo, por seu aspecto de partilha, de disponibilidade no
mundo e por sua conjugação entre olhar e imaginação. Em Re-banho existe um
desconforto experimentado com a rememoração do vivido no espaço topológico da cidade
– reside uma espécie de edificação mítica que instaura um campo de batalha. Uma batalha
contra a paralisia que o mito e seu regime de crença fortalecem.
Impressões da imagem
A primeira visão que o vídeo nos dá é de cima. Performers, baldes e uma
sonoridade de respiração. Se neste momento estamos claramente em um lugar de
observador, outras tomadas nos colocam juntos aos performers – a câmera como
personagem que escolhe os ângulos de visão. Acompanhamos o percurso realizado na rua
quase como testemunhas. Este movimento insinua um apagamento do primeiro, mas juntos
na montagem faz pensar na ideia inversa – talvez estejamos sempre sendo vigiados, mas
ironicamente, por nós mesmos. A ação que testemunhamos se volta e nos olha. Muitas
vezes, querendo ou não, nos vemos investidos em ajuizamentos.
A sonoridade da respiração imediatamente se mistura ao som urbano. John Cage
disse em uma entrevista que quando escuta música parece, para ele, que alguém está
falando, como se escutasse alguém falando sobre seus sentimentos ou sobre suas ideias de
relacionamentos. Mas, quando escuta o som do trânsito tem a sensação de que o som está
em ação. É como uma atividade do som que ele adora. Realizar a apropriação da ideia da
atividade do som urbano em Re-banho tem o caráter de fazer surgir certos questionamentos
que misturam a cidade e o corpo que age. O que é espaço externo? A cidade ou o corpo, na
medida em que os dois viram agentes? Não estaríamos processando uma interioridade da
cidade? Se o desejo máximo da subjetividade é o de adquirir uma insistente
individualidade, a ação privada do banho realizada em espaço público empreende um
movimento que refuta o natural. E se este é um modo, no mínimo, pelo qual designamos
alguma coisa por arte – contraponto ao natural –, dá-se um embaraço no ajuizamento, tanto
do que seria o natural, como do que seria o construído. Assim, nossa noção mesma de
318
subjetividade fica desterritorializada, derivando entre essas polaridades. Nossa sorte será
encontrar um ponto de fuga. Talvez, a fuga possível seja se voltar para a realidade e
investigar seu caráter de construção.
Re-banho focaliza o corpo alegorizado, quase como uma montagem de ícones. O
vídeo faz o trabalho de recorte dos corpos-como-ícones diante da igreja. Na visão frontal,
com os performers de costas, ela se mostra com força de monumento. As variações das
imagens que nos chegam não impedem a afirmação de alguns motivos iconográficos que
se repetem e, assim afirmados, tomam a feição de um evento histórico. À igreja é atribuído
um valor de testemunho que, pelo menos em alguma medida, depende da atividade mental
de uma época. Então vemos duas épocas em um confronto materializado no corpo –
estatuária de Aleijadinho que aponta criticamente para o que a criou. Por meio da ação do
performers em se banhar vestidos, esfregando o corpo com água e sabão por baixo das
roupas severas, cria-se uma espécie de escritura. Talvez, uma nova escritura, uma liturgia
avessada que transforma a função da água. Ela não limpa, não acalma, mas quase que
escarna os corpos. Neste sentido, a imagem é simultaneamente texto. Um texto escrito
pela fricção que coloca em xeque aquilo que consideramos nossa identidade: legado de
autodestruição.
O (re)-fazer que acontece na exibição da videoperformance, menos confere
eternidade ao presente específico da ação, do que instala novas atualizações. Se o peso do
testemunho tradicional se perde com a imagem reproduzida, a atualização do fenômeno
parece se aproximar do que Walter Benjamin ressaltou a respeito das possibilidades da
reprodução técnica de “colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio
original. Ela pode, principalmente, aproximar o indivíduo da obra.”
Outras implicações do corpo em Re-banho sugerem um modo de se relacionar com
a questão divina da imagem assimétrica que origina o homem. Como nos diz Viviane
Matesco em um texto esclarecedor, o pecado original introduz a dessemelhança de uma
imagem decaída. A semelhança cristã, por mais que não se repita muito isso por aí, está
pautada numa hierarquia, pois fixa uma cópia que se assemelha ao seu modelo, mas o
inverso não é possível. A relação modelar do corpo cristão é com uma imagem, assim,
319
existe uma necessidade imposta de mediação. Então, o que parece ser escrito pela imagem
é a dessemelhança, que deixa de ser um tema e inclui o outro na ação.
A formulação básica do “coeficiente artístico” de Marcel Duchamp é que a obra de
arte se abre no espaço do receptor, na temporalidade que vai detectar uma intensividade na
obra. A arte que comumente chamamos de contemporânea, mais do que querer estabelecer
lugares idealizados, procura por modos de convivência no espaço público em meio a nossa
atualidade de experiências fragmentárias. O lugar do corpo inscrito na dessemelhança de
Re-banho se refaz de uma teleologia que o fundamenta.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. (p.168) “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”.
In: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura.
Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MATESCO, Viviane. Corpo Imagem e Representação. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
320
2.2. Sobre ‘Dismorfofobia’: Conversa com Tales Frey
por Rita Xavier Monteiro
Mais Crítica – Seminário de Formação para Críticos de Artes Performativas
4 de Março de 2013
Foi nos Maus Hábitos no Porto, que Tales Frey nos interpelou, um a um (e eu tinha
a rifa número 1), à entrada da salinha onde decorreu a performance. A voz meiga
perguntava, em tom complacente, como se fosse fácil: – Quanto mede? Qual é o seu peso?
Quer conferir? Uma balança, de fita métrica em riste e marcador na mão direita para
calcular e registar as informações de cada um dos espetadores. – Não é preciso… -Vou
confiar. – respondia. Houve quem conferisse, houve também quem ficcionasse.
Na sua pesquisa e experimentação artística, Tales Frey diz-se movido pelo
hibridismo artístico, apresentando propostas que se movimentam por entre as modalidades
do teatro, videoarte, performance, videoperformance e fotografia.
Com Paulo Aureliano da Mata, ambos brasileiros que vivem e trabalham em Portugal,
funda em 2008 a Companhia Excessos, desenvolvendo essa ponte de criativa entre os dois
lados do atlântico.
Em Dismorfofobia, inserida no projeto Tômbola Show, comissariado por Marta
Bernardes, as rifas vendidas prometiam a celebração de uma beleza sorteada.
A performance fala-nos de como o império colorido das estrelas de cinema, as misses, as
manequins, o star-system e a sociedade de mediação sensacionalista tomou o território de
todos os nossos desejos, numa obediência solitária a um jogo de mercado: o de
experimentar o corpo e a vida.
Num processo de fragmentação e desconstrução que irrompe também da fusão das
modalidades artísticas, Tales pensa os corpos inadaptados e inadequados para
problematizar a autorrepresentação na arte e na construção da identidade.
Diante de telas e espelhos distorcidos, num esforço do eu descobrir-se a si próprio,
Dismorfofobia é a metáfora especular de um Narciso enganado pelo seu reflexo.
321
Rita Xavier Monteiro – Durante a performance, pensei em Le Breton quando
diz que na contemporaneidade o espaço que separa o homem do seu corpo se
estendeu. Tens vindo a trabalhar a consciência identitária e de corpo próprio na
sua relação com padrões culturais e sociais. Enquanto performer interessa-te,
sobretudo, o questionamento da sociedade atual?
Tales Frey – Nas figurações artísticas que tenho proposto, sejam elas
concretizadas através de uma performance, de uma série fotográfica, de uma
videoarte, de um espetáculo híbrido, ou o que for, eu tenho sim me dedicado às
questões presentes no meu cotidiano, portanto abordo como tema, fatalmente, a
sociedade atual.
Dismorfofobia, por exemplo, é uma performance na qual eu reúno um punhado de
discursos oriundos dos variados meios que temos contato diariamente. Retirei da
minha caixa de e-mail alguns “spams” que emergem com seus chamarizes
“milagrosos”, como por exemplo “perca 10 quilos em uma semana”, ou ainda,
“aumente o tamanho do seu pênis”. Receitas de dietas, promoções em aplicações
de silicone, de implantes corporais diversos, aplicações de botox, etc. Isso revela
uma sociedade pouco confortável com a forma natural dos corpos que a
preenchem, uma sociedade formada por sujeitos que estão insatisfeitos com as suas
próprias imagens. Essas propagandas evidenciam o quanto o sujeito atual está
preocupado com a autoimagem e como o mercado funciona com relação a isso.
Vejo corpos que podem literalmente ir buscar determinadas modificações através
da compra (em até 10 vezes no cartão e sem juros).
Engraçado notar essa busca incessante por uma individualidade, por uma
construção de uma exclusividade e, ao mesmo tempo, por uma reprodução de um
determinado ideal (ideia que pressupõe réplica), o que acaba por ser contraditório.
Isso tudo está explícito em Dismorfofobia. Modelos de beleza são ditados pelo
universo mediático e seguidos à risca pela sociedade atual, escrava dos corpos
magros e de todo padrão que lhe garanta uma maior aceitação social. Tenho
procurado subverter essas ideias nos meus trabalhos e me esforçado para que elas
322
surtam algum efeito nos espectadores/participantes/receptores que estão presentes
nas exibições das minhas criações.
323
exatamente na pose que eles se encontravam na imagem apresentada. O resultado
foi o de uma figura geométrica, pois eu incluí o vestuário dos referenciais no
recorte dessas formas espelhadas. A altura de cada espelho correspondeu à altura
de cada um dos performers. Propus, daí, que os cinco artistas (que colaboraram
como performers nesse trabalho), desfilassem por trás de uma tela branca de
forma mecânica, projetando então sombras de corpos estranhos, quase robóticos,
pós-humanos, timbrados em cores vibrantes pelo auxílio da combinação RGB de
iluminação.
Na peça, o público permaneceu entre duas telas, quase não tinha contato direto
com os performers da ação, sendo uma tela a que foi descrita e, a outra, uma tela
transparente com a projeção de um vídeo em que arrumo o cabelo de forma
frenética durante 7 minutos. Eu, no plano ao vivo, tento fixar a imagem em
movimento, construo uma nova imagem enquanto destruo a imagem antiga do
vídeo, cujo instrumento para tal feitio é a mesma tinta que tinge cada fio de cabelo
meu antes de dar início à ação.
Nas duas telas, ao contrário das telas de cinema, de televisão, das imensas
superfícies de outdoors, procurei expor corpos deformados, transfigurados, que
eram distorcidos sob o áudio que continha a narrativa textual. A minha voz a
narrar também foi apresentada de forma adulterada. Nada era natural e isso
coincide com as imagens bidimensionais que nos servem como referenciais.
O “ritual de passagem” que estabeleci na entrada era justamente para expor a
dificuldade que cada indivíduo tem ao falar de dados concretos que formam sua
aparência. O peso, a altura, enfim as medidas corporais parecem ser tabu, mesmo
estando ali, diante de nossos olhos, imagens corporais que naturalmente
correspondem a tais medidas, que, inclusive, já são previstas. Mesmo assim, havia
quem mentisse altura e peso e que não se rendia a conferência na balança e na fita
métrica que ali despus. É a ideia do corpo perfeito que faz existir essa neurose
generalizada. Neurose que foi impiedosamente (embora de forma sutil) explanada
antes de iniciar a peça. Queria que os espectadores percebessem alguma mudança
entre o antes da ação e o depois da ação. Queria que o espetáculo funcionasse com
324
o poder de eficácia de um ritual que conjetura transformação.
Rita Xavier Monteiro – De um lado, o desfile de corpos por trás de uma tela,
exibindo roupagens geométricas e sorrisos forçados. Do outro, estás tu e um
vídeo onde te autorretratas. Inicias então essa “fixação da imagem em
movimento” por meio da mancha da tinta negra. Como se traçasses a tua própria
existência e a diluísses, ao mesmo tempo, numa figura humana sem nome. O
público está no meio. Existem duas faces da mesma realidade: a do artista e do
mundo mediático que o rodeia. Queres esclarecer um pouco melhor esta relação?
Tales Frey – Há realmente o choque das duas faces da mesma realidade, sendo
que a do artista está sustentada pela função de revelar, de se manifestar, de
ironizar, de formar opinião a respeito de algo e, de outro lado, a desse mundo
mediático que você se refere, mundo que exerce fascínio, que quer persuadir, que
quer encantar, cativar, atrair, conquistar adeptos.
Enquanto artista, a minha relação é a de intermediar, sob a função de mediador
entre uma face e a outra, sendo que funciono como receptor das mesmas
informações que todos os demais sujeitos, mas tenho um especial papel que é o de
fazer pensar sobre o que absorvemos. Assim faz o artista, o sociólogo, o
antropólogo, o filósofo e todos que tenham que refletir sobre condutas humanas e
relações sociais.
Tales Frey – Há tempos que queria expor esta série de vídeos intitulada por
Videopolaroid, onde reuni sete vídeos em que revelo a ação anterior à da imagem
fotográfica, ou seja, todo espaço percorrido no local escolhido, as propostas de
325
poses e todo processo de criação até a imagem estática. Comecei esse trabalho em
2009 em Buenos Aires.
Por ser um trabalho apoiado na contraposição do analógico e digital, os vídeos
tem um tom caseiro, pois são feitos com câmeras digitais, as quais produzem
imagens com excesso de pixel, algo que não me incomoda minimamente e que
dialoga muito bem com a ideia proposta, penso eu.
Faço, nessa concepção, a junção da imagem em movimento e da imagem imóvel,
um registro em vídeo do registro fotográfico (um registro do registro). Faço, nesse
trabalho, prevalecer a pilhéria, o deboche e exploro situações infames, mas
também um universo trash e sombrio. É um trabalho bem-humorado e, talvez, um
dos mais leves nesse aspecto com relação a todos os outros que criei até hoje.
326
2.3. A Proxim(a)idade de Tales Frey da Cia. Excessos
Efemeridade versus Eternidade:
Ode aos Vermes e aos Confeitos de Chocolate
Revista Idança
Rio de Janeiro, 10 de Julho de 2013.
por Thais Nepomuceno
519
SCHECHNER, Richard. Apud. LIGIERO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner,
p.58.
327
Em Proxi(a)idade, cumpriu a passagem dos seus trinta anos de idade para os trinta e um,
como se seu corpo, horas antes de ressurgir com a idade nova, ocupasse uma espécie de
casulo para, posteriormente, renascer, ressurgir, voltar ao meio depois da passagem
transformadora.
Tales estava maquiado com uma pasta sobrecarregada de chocolate no rosto,
ornada por granulados coloridos e outros doces igualmente avivados. Seu corpo estava
enrolado em sua totalidade com fitas de múltiplas cores, como uma múmia. Do centro do
seu corpo, na altura do umbigo, divergiam trinta e uma fitas que sustentavam equivalentes
números de balões a gás. O corpo permanecia quase imóvel (respirações intensas e
espasmos eram repetidos) sobre um palco italiano iluminado por três refletores pares. Um
foco, com a precisão de um refletor elipsoidal, delimitava uma mesa farta de guloseimas
que permanecia fora do palco, onde o público podia interagir. Um áudio permanecia em
loop, narrando, em palavras desconexas (quase esquizofrênicas), um vínculo existente
entre o dia em que comemoramos mais um dia de vida, ao mesmo tempo que lamentamos
a aproximação do nosso derradeiro fim.
A imagem festiva se perdia na funesta quando víamos o corpo responsável pelo
evento em uma situação como se estivesse mumificado, ladeado por uma mesa que, ao
invés do clássico chá, café e bolachas de um funeral, estavam os doces e sucos de um
aniversário de criança. Víamos um velório ao mesmo tempo que enxergávamos uma
animada festa infantil, sem bebidas entorpecentes, pois o excesso de cores e de açúcar já
estabelece tal torpor, já destrói o limite entre ação e espectador. Alguns comiam os doces
que enfeitavam o corpo do artista, como o beijo derradeiro no defunto ou como o dedo que
fura o bolo da festa antes dele ser servido.
A performance-ritual era, igualmente, performance-instalação, portanto, apesar do
palco italiano e das cadeiras na plateia, o público podia subir no palco e sair e retornar à
sala quando bem entendessem. A “inação” durou quase três horas e, provavelmente, exigiu
um exagerado preparo físico do performer, que sem fazer quase nenhum movimento com o
corpo, quase incólume, conduziu-o a completa exaustão, que percebemos em outros
trabalhos da Cia. Excessos, tais como em Re-banho (2010), Beija-se (2012), Atendo ao
Molde (2013), Aliança (2013), que podiam ser contemplados em vídeo e fotografia do lado
328
de fora da sala da performance, ou seja, em uma das salas de exposição do CAAA, onde
também estavam as seguintes obras: (De)reter-se (2013), Sede Vós (2013), Faceless (2011)
e Romance Violentado (2011).
Intercedidos por uma mídia obsessiva pela beleza e juventude, escravizados,
deduzimos que os correspondentes sinais do nosso derradeiro fim, da nossa natural
decomposição, podem (ou ainda, devem) ser mascarados, disfarçados por debaixo de
grosseiras maquiagens, dissimulados pelo auxílio das cirurgias plásticas, quando deviam
ser simplesmente aceitos, pois, como sabemos, não somos eternos e, dia a dia, adquirimos
sinais de tal efemeridade da vida. Talvez, através da simbologia dos balões que fariam a
alma do performer levitar, subir, ascender, transcender, ele, ceticamente, queira nos
demonstrar que os balões, na verdade, são frágeis demais e estouram antes de nos
moverem para qualquer outro lugar, provando o laconismo da vida e o natural
apodrecimento da matéria, motivo que faz o ser humano, por medo, alimentar a sua
repugnância com relação a sua condição natural para não encarar o fato de não ser eterno.
329
2.4. Impressões de quem esteve próxima: um relato das reflexões suscitadas pela
performance Proxim(a)idade, de Tales Frey
Livro Cia. Excessos Vol. 1
por Ana Cristina Joaquim
Tales Frey (Cia. Excessos), Proxim(a)idade. Performance na cidade do Porto, Portugal, janeiro de 2015.
Fotografia de Ana Cristina Joaquim
Quão próximos estamos da morte? A quantos passos e conforme que velocidade ela
caminha em nossa direção? Varia a velocidade? À distancia de um despenhadeiro? De um
país longínquo ou de um avião que sobrevoa o atlântico no trajeto LIX-GRU? À distância
do hospital mais próximo coberto pelo plano de saúde que mensalmente nos previne de
males tais?
Da proximidade ou da vizinhança em relação à morte só é possível dizer de duas
maneiras: ou em retrospecto, isto é, por meio da distância que nos empurra, segundo a
segundo (com horas, dias, meses e anos mensuráveis), para mais longe do dia do nosso
nascimento; ou em prospecto simbólico – e nesse sentido é que nos inquieta o título
escolhido por Tales Frey para a performance elaborada em ocasião do seu trigésimo
primeiro aniversário: Proxim(a)idade, e inquieta justamente por tornar evidente a
proximidade progressiva da morte a cada próxima idade completada. É de tempo que se
trata, portanto. Se digo prospecto, o termo ecoa temporal: a morte, não estando no passado
330
nem no presente, só pode estar no futuro. Mais além, se digo simbólico, o digo por
acreditar que apenas simbolicamente é que podemo-nos situar mais ou menos próximos da
morte, pois não é a morte uma ideia vaga e fugidia, da qual só temos notícia pela via
negativa? Experiência da ausência: o outro que já não está. A morte é símbolo – afirmo –
e assim o é sempre que tivermos em vista a vida como alvo, o medo como foco, a dúvida
como permanência, o corpo como limite.
Convém, enfim, tomar como eixo este que é presença & existência (no presente,
claro, único tempo que nos resta...): o corpo, ele mesmo eixo de qualquer ação
performática. Conforme as palavras do performer Tales Frey: “uso meu corpo como campo
simbólico para converter signos que marcam o ritual de passagem do meu aniversário em
anúncios da proximidade com a minha morte.”. Com a finalidade de se “transformar em
uma espécie de múmia, com a forma de um defunto”, o performer concebe o ato como
“uma espécie de funeral, em que os observadores pudessem conversar, beber e comer,
enquanto contemplassem meu [seu] corpo quase inerte no espaço”: daí a proxim(a)idade,
pela qual a morte se apresenta ao público.
Tales Frey permanece deitado por três horas, com o corpo quase todo enrolado em
fitas coloridas (com a exceção da cabeça que está coberta por confeitos, cremes de bolo,
granulados e balas de goma coloridas) e preso a balões de hélio pela cintura, na altura do
umbigo, “como se quisesse fazê-lo [o corpo] ascender”. Novamente os signos se
confundem, num procedimento que dilui o jogo de oposições: do corpo-bolo ao corpo-
múmia, das cores diversas (celebração da vida) à imobilidade (sintoma de mortificação); os
balões coloridos – característicos das festas de aniversário em que se comemoram o
nascimento – são o elo de maior impacto visual entre vida e morte, já que apontam para o
céu, destino mítico do espírito destituído de corpo... Acontece, entretanto, uma inversão de
maior importância, que recoloca o corpo no centro da questão vida/morte: a simbologia
implicada nos balões torneando a cintura, incidem propriamente sobre o corpo, de modo
que não se trata do espírito em ascensão, mas do corpo mesmo, matéria ascendente
carregada pelos balões em número coincidente com a idade do performer.
Algumas palavras ainda, palavras, aliás, com que somos embalados no decorrer da
performance: em off, a voz de Tales Frey levemente distorcida para o grave, repetindo, por
331
3 horas seguidas, fragmentos de lembranças de aniversários precedentes em mescla com
reflexões sobre a morte. Ouvimos: “Vermes nos doces”... “Acender velas. Ascender.
Subir”... “Tenho todos os anos. tenho todos espelhos”... “Urna. Caixão. Saudável”...
“Natureza morta”..., etc., etc., etc.
Trata-se mesmo de uma identidade (vide a figura do espelho) que se persegue no
entretempo entre vida e morte, com as duas palavras a ressoar repetidas nas figurações
imagéticas ali propostas, como uma espécie de redemoinho cronológico em que o ponto de
princípio é também o ponto de chegada.
Venham ver a morte encarnada, está ao alcance dos olhos, da escuta, do toque, do
olfato (odor adocicado, sedutor...) e, por que não?, do paladar: aproximem-se!
Ana Cristina Joaquim é Bacharel em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu (SP,
2007), Licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (SP, 2009), Mestre em
Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (SP, 2011) e atualmente desenvolve
uma pesquisa de doutorado no Programa de Literatura portuguesa da Universidade de
São Paulo.
332
2.5. O Encontro Amoroso de Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey em
“Aliança”: Performance, Ritual e Respeito à Diversidade
Revista eletrônica Performatus
Ano 1 | Nº 4 | Maio 2013
ISSN 2316-8102
* Este texto foi apresentado oralmente no I Encontro sobre Gênero, Diversidade
Sexual e Performance do Pantanal. O evento, promovido pela Universidade
Estadual do Mato Grosso do Sul, ocorreu entre 18, 19 e 20 de janeiro de 2014 na
Pousada Central em Piraputanga-MS.
por Vanja Poty e Gustavo Rosa Fontes
Cia. Excessos, Aliança. Performance apresentada no último dia da exposição “Beija-me” no IV Festival de Formas Poéticas na cidade de
Catanduva, São Paulo, Brasil. Março de 2013. Fotografia de Nathália Mello
333
tocar os lábios. Percebemos, no projeto poético do coletivo, o desejo de deslocamento do
eu em direção ao outro pela afetividade e, ao mesmo tempo, pelo questionamento de
dinâmicas sociais viciadas acerca de gênero, sexualidade e orientação sexual.
O beijo, neste caso, é o caminho para a união amorosa. Os artistas Paulo Aureliano
da Mata e Tales Frey casaram-se em março deste ano e elaboraram o próprio ritual. A ação
proposta consistiu em beijar as paredes brancas de uma sala de exposição com batons de
longa duração, formando colunas. Cada um dos performers iniciou o trajeto de um lado da
galeria, encontrando-se em um único beijo antes de partirem de mãos dadas.
Em paralelo, um vídeo exibia sucessivamente as diversas marcas, cicatrizes e
tatuagens presentes nos corpos dos artistas. Ademais, uma silhueta de amantes feita com
crisântemos ocupava a sala, bem como flores trazidas pelo público. Garçons vestidos de
noiva serviam bem-casados e beijinhos.
No Brasil, o direito ao casamento igualitário ainda não foi plenamente consagrado.
No entanto, e felizmente, vemos um processo desencadeado a partir da decisão do
Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, dando novos contornos à questão. Ficaram
reconhecidos de modo definitivo os efeitos da União Estável para os casais homoafetivos,
e, assim, a conversão desta ao casamento. Por consequência, seguiram-se daí diversos
pedidos judiciais para dita conversão, de muitos casais que esperavam por tal mudança
jurídica para finalmente concretizarem a sua relação plenamente, atribuindo-lhe todos os
efeitos que o casamento gera – desde a possibilidade de adoção do nome do cônjuge até
questões patrimoniais, previdenciárias e sucessórias.
334
Há que se ter coragem de ousar para ultrapassar os tabus que rondam o tema da
homossexualidade, pois é chegada a hora de romper o preconceito que persegue as
entidades familiares homoafetivas. Para isso é indispensável o enfrentamento de
uma cultura ainda apegada a um conceito sacralizado de família. Não é ignorando
cer-tos fatos, deixando determinadas situações em descoberto do manto da
juridicidade, que se faz justiça. Esta é a forma mais cruel de gerar injustiças e
fomentar a discriminação (DIAS, 2011, p. 263).
335
demarcados, corroboram para o entendimento e a elaboração de novas categorias sociais
ou identidades. Para entender o processo de mudança, os artistas se colocam em estado de
vulnerabilidade, realizando ações repetitivas que induzem ao transe psicofísico. A
preparação da performance também colabora para este desprendimento de si. Podemos
identificar no discurso de Tales Frey (2013) alguns dos elementos levantados por
Scherchner, tais como: a escolha de roupas novas, a elaboração de ações especiais e o
diálogo com tradições [2].
A performance ocorreu uma única vez, com potente eficácia ritualística, já que
transformou o nosso estado civil para sempre. De “solteiros”, passamos para a
situação de “casados”. Nem se quisermos, podemos voltar a primeira condição,
pois se dermos fim ao nosso casamento seremos “divorciados”, “viúvos”, mas
jamais “solteiros” outra vez (FREY, 2013, p.2).
336
necessidade de construir uma comunidade é incentivada pelo ritual. E se os rituais
oficiais não satisfazem, ou são rituais notórios e exclusivos, novos rituais serão
inventados, ou alguns, mais antigos, adaptados, para encontrar o sentido que
necessitam (SCHERCHNER, 2012, p.84).
Cia. Excessos, Aliança. Performance apresentada no último dia da exposição “Beija-me” no IV Festival de Formas Poéticas na cidade de
Catanduva, São Paulo, Brasil. Março de 2013. Fotografia de Nathália Mello.
337
Scherchner recorda ainda que o ritual fomenta a solidariedade no grupo em um
sentimento de communitas espontânea. A experiência de “camaradagem ritual” é gerada
pelo diálogo ocorrido em um espaço-tempo sagrado e de festa, transportando
temporariamente os fruidores da obra de arte. Diferentemente de outras obras, os
performers são aqui transformados – e não transportados – devido ao caráter liminar da
ação. Dessa forma, Aliança pode ser considerada uma performance de transformação,
cujos transportadores são os artistas nubentes. Estes alteram as dinâmicas dos indivíduos
presentes, metamorfoseando-os em uma comunidade.
Eleonora Fabião (2008) investiga o poder da performance em “turbinar a relação do
cidadão com a polis”, pois o sujeito em contato com a intervenção abrupta de seu cotidiano
é obrigado a tomar posições. Para a pesquisadora, performers são “complicadores
culturais” que, ao suspender categorias classificatórias na arte, criam zonas de desconforto
e reflexão. Neste sentido, a pequena cidade de Catanduva foi obrigada a posicionar-se
acerca da união dos artistas.
Frey (op. cit.) relata que, antes da ação performática, os artistas tiveram que lidar
com manifestações preconceituosas e mesmo, de ódio – com base religiosa ou não – contra
o evento. Ao mesmo tempo, contou com apoio de pessoas relacionadas à cultura na cidade.
Podemos notar neste contexto um embate entre o uso do espaço público (Secretaria
Municipal da Cultura) e a posição religiosa e moral de determinados indivíduos.
É interessante compreender a questão sob o ponto de vista da autonomia moral do
indivíduo (cf. FONTES, 2013). Em primeiro lugar, à lei não cabe determinar certos
aspectos da moralidade ou imoralidade, notadamente em questões de moral sexual
envolvendo adultos. Em segundo, é pertinente se considerar o caráter eventualmente
religioso da norma: a dicotomia liberdade de religião/laicidade do Estado impede que esta
338
veicule regras baseadas unicamente na ética religiosa. Em terceiro, a noção de liberdade
individual vai de encontro à interferência do Estado em questões individuais, a não ser que
haja prejuízo para terceiros. Por último, ainda que seja possível afirmar que o direito
veicule preceitos morais, isso não deveria ocorrer em relação a temas controversos, em que
não haja uma verdade moral ou em que ela seja difícil de estabelecer (id., p. 75).
Sob este ponto de vista, o preconceito, ou a vontade de impor uma moral religiosa
em relação à performance, não somente vai de encontro ao direito ao casamento
igualitário, recém conquistado – ainda sob reservas na maioria dos Estados – mas também
à própria liberdade: de opinião; de religião; artística. Não cabe à esfera pública a decisão
sobre o conteúdo da arte, ainda que realizada no espaço público.
O caráter liminar da obra extrapola os limites da própria arte, acarretando numa
consequência jurídica: a alteração do estado civil dos performers-nubentes. É claro que o
processo somente foi concluído após o ato do juiz de paz, oficializando a união do casal
em cartório; entretanto, não foi este que os uniu de fato. Aliança o fizera antes: para os
artistas, foi este ritual que gerou o vínculo que se perfaz em casamento.
Programas ou ações performativas criam corpos alterados que afetam e são
afetados. Aliança propõe a fusão de dois corpos que buscam caminhos diferenciados para
representar a si mesmos, por meio de um ritual de integração de suas histórias, de suas
cicatrizes, memórias e experiências – vide a projeção de imagens de fragmentos das
marcas físicas dos artistas. Renato Cohen (2011) liga a performance à live art por sua
aproximação direta com a vida: nesta linguagem, o real não é mais representado tal como
no teatro, e sim reelaborado no deslocamento de signos de seus habitats naturais – tal como
no ready-made de Marcel Duchamp – criando cacos entre as noções de arte e não arte.
Elabora-se então uma tensão dialética entre a ritualização do cotidiano e a
desmistificação das hierarquias cristalizadas na arte. Ao mesmo tempo, o movimento
performático busca a vida (daí muitas vezes a sua irrepetibilidade) e rejeita o naturalismo
em um processo de experimentação de fronteiras entre as linguagens cênica e visual.
Cohen aproxima a performance do princípio do prazer freudiano em oposição ao princípio
da realidade, caracterizado pelo adiamento da gratificação: portanto, ela liberta o ser de
suas prisões condicionantes e de seus lugares comuns impostos pelo sistema, ainda que
339
com a organização de uma mensagem elaborada.
Por fim, o caráter contratual do casamento, não é suficiente para representar este
instituto: o casamento está vinculado ao sagrado, como em Aliança. Não o sagrado de um
deus, uma divindade; mas o valor cultural do sagrado. E é justamente esta a importância da
extensão deste direito a todos – independentemente do gênero e sexo dos nubentes: o amor
entre eles é suficiente para atingir aquela benção. Roland Barthes (2003) evoca a imagem
do coração para pensar o órgão do corpo representante do encontro amoroso. É ele que
causa encantamentos em nosso imaginário e que, em sua inquietude, é objeto de doação.
Ele é o que temos a oferecer, e o que acreditamos entregar para alguém em uma união. Seu
fluxo e ritmo não podem ser impedidos pelas amarras de uma fatia conservadora da
sociedade.
Notas
[1] Após a apresentação, os performers passaram mais de vinte e quatro horas com as
marcas de batom no rosto.
[2] Vale lembrar que flores, bem-casados, roupas e ações rituais fazem parte da tradição do
casamento em nossa cultura.
Bibliografia
BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.
DIAS, Maria Berenice. Rumo a um novo ramo do Direito. In: Maria Berenice Dias. (Org.).
Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.
249-263.
FABIÃO, Eleonora. Performance e Teatro: Poéticas Políticas na Cena Contemporânea.
Revista Sala Preta (USP), volume 08, nº01, 2008.
FONTES, Paulo G. Guedes. Limites do direito diante da autonomia moral do indivíduo: os
riscos do máximo ético. Revista do Tribunal Federal da 3ª Região, Ano XXIV, n. 116. São
Paulo: jan./mar. 2013, pp. 69-82.
340
FREY, Tales. Aliança. Cia. Excessos, 2013. Acessado em: 16/04/2013. Disponível em:
<http://www.ciaexcessos.com.br/performances/alianca>.
JUNG. Carl Gustav. O Espírito na Arte e na Ciência. São Paulo: Vozes, 1991.
SCHERCHNER, Richard. Ritual. In: LIGIÉRO, Zeca (org.) Performance e Antropologia
de Richard Scherchner. Rio de Janeiro: MauadX, 2012, pp. 49-89.
341
3. Críticas sobre outros trabalhos meus mencionados na tese
3.1. Com Amor, é proposto Guerra à Intolerância
Arte-Ref – Revista eletrônica com foco na arte contemporânea
Janeiro de 2015
por Julia Pelison
Imagem de “O Outro Beijo no Asfalto”, de Tales Frey (Cia.Excessos) que está também em exposição na
unidade do SESC Ribeirão Preto. Rapid Pulse Performance Art Festival. Chicago, 2012.
342
casos, o elo entre os lábios expõe uma relação que questiona normas vigentes mesmo
quando trata-se de um beijo heterossexual.
Com “O Beijo” (2006), “O Beijo II” (2007), “O Outro Beijo no Asfalto” (2009),
“Reciprocidade Desalmada” (2010), “Beija-se” (2012), “Aliança” (2013) e “Romance
Violentado” (2010), a heteronormatividade, a chamada “heterossexualidade compulsória”
e o heterossexismo são postos em xeque.
Lidar com a diferença é incomensurável e a Cia. Excessos procura harmonizar a
relação entre os subalternizados e os hegemônicos através das situações conflitantes
criadas, propondo que enxerguemos no Outro, nós mesmos, sugerindo a aceitação de uma
perspectiva não normalizadora.
Foi em 2006, depois de um ato de censura por parte do Centro Cultural do Banco
do Brasil, ao retirar uma obra de Márcia X. da exposição “Erótica: Os Sentidos da Arte”,
que Tales Frey e Cristine Ágape resolveram se beijar por trinta minutos ininterruptos no
foyer do CCBB com seus trajes convencionalmente trocados segundo uma lógica binária e,
assim, surgiu a performance “O Beijo”, que depois foi desdobrada em “O Beijo II” para,
posteriormente, originar a ação “O Outro Beijo no Asfalto”, a qual extrapola as barreiras
institucionais para consignar a primeira intervenção pública realizada pela companhia e,
também, a forte parceria entre Tales Frey e Paulo Aureliano da Mata, bem como a
oficialização da Cia.Excessos.
Com estas ações, Tales, junto da Cia. Excessos, prova que a sociedade reage com
menos tolerância e compreensão com relação ao rompimento das normas ou convenções
de gênero do que com relação à orientação sexual em si [1]. Já com “Reciprocidade
Desalmada” e com “Beija-se”, a estratégia é analisar o narcisismo tão presente na nossa
atualidade e a nossa incansável relação com o espelho, bem como os tantos elos possíveis:
ela e ele, ela e ela, ele e ele, entre outros tantos possíveis elos que rompem os limitadores
preceitos já ultrapassados.
“Aliança”, um ritual de casamento que se inicia numa galeria de arte e termina num
cartório, é o desfecho desta série e o timbrar de uma relação que envolve o amor íntegro e
uma fundamentada parceria artística que busca perseverar, fixar e persistir como uma
tatuagem, tal qual a registrada na “body art” Romance Violentado de Paulo Aureliano da
343
Mata e que foi coerentemente incorporada a esta exposição. Beija-me, embora reúna
resquícios de eventos inicialmente concebidos para serem vistos ao vivo, transportam o
teor despertado na experiência da vivência para uma viva análise documental.
Nota:
[1] Cf. MISKOLCI, Richard. “Teoria Queer: Um Aprendizado pelas Diferenças”, p. 41.
344
3.2. O Pequeno (e Excessivo) Espaço do Beijo
Revista eletrônica Performatus
Ano 3 | Nº 13 | Jan 2015
ISSN 2316-8102
por Andre Masseno
O beijo – um espaço de tempo onde dois corpos se encontram pelo toque de suas
bocas. As línguas produzindo um curto-circuito, entrelaçando duas carnes, duas
subjetividades. No instante do beijo, abre-se outro espaço-tempo, quando então, e quase
que instantaneamente, os olhos se fecham para entrar em si e no ser beijado/beijante,
instaurando o tempo e a vivência de um pacto mútuo, ainda que momentâneo. O tempo do
beijo pode ser o dispendioso transborde de uma entrega, o fortalecimento de uma aliança
ou o início de uma possibilidade de intimidade com o outro.
Talvez devido a todos esses motivos o beijo possua entre nós um vasto rastro
cultural, ou então, por outro lado, aqueles motivos já sejam resultantes desse rastro, já que
a ação do beijo sempre fora abordado no âmbito da arte e da indústria cultural: o beijo
sinuoso de Rodin e o beijo-abraço de Klimt; o beijo standard dos tempos áureos de
Hollywood; o beijo não contido em alguns filmes de sexo explícito; Marilyn beijando com
a voz sussurrada ao cantarolar a canção “Kiss”; a língua-serpente do vocalista da banda de
Rock Kiss; o beijo bíblico de Judas. Um rastro infindável que vem à tona em minha
lembrança ao escrever este ensaio, que se trata de uma tentativa de beijar os lábios da arte
e de seus agentes. Para falar sobre o beijo, eu preciso ir até o lugar do simples, é preciso
fechar os olhos para, no silêncio, sentir a chegada da boca do outro. Sentir o roçar de sua
boca na minha e, no tempo de um beijo interminável, deixar sair o sopro do outro contido
em mim no instante daquele toque entre línguas, saliva e ar. E aqui neste ensaio eu busco
beijar algumas ações da Cia. Excessos onde o beijo surge como estratégia para a
visibilidade de expressões e identidades de gênero situadas fora do escopo
heteronormativo. Ações que se munem de determinados dispositivos de representação e
345
reiteração da heteronormatividade – tais como a paridade heterossexual e a indumentária
matrimonial, por exemplo – para então subvertê-las, apontando-as como elementos de uma
construção discursiva e performativa de papéis e expressões de gênero de cunho
hegemônico e moral.
Tales Frey (Cia. Excessos) e Cristine Ágape, O Beijo. Performance realizada no Rio de Janeiro, Brasil.
Março de 2006. Fotografia de Hugus Félix
A primeira ação da Cia. Excessos em que o ato de beijar surge como temática e
estratégia artística acontece em 2006, com O Beijo. A ação ocorreu paralelamente à
exposição Erótica – Os Sentidos da Arte, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no
Rio de Janeiro. Naquele período (em que a obra Desenhando com Terços, da artista carioca
Márcia X., fora censurada pela direção do CCBB [1]), Tales Frey e Cristine Ágape, no
foyer do centro cultural, beijam-se durante trinta minutos ininterruptos. Tales Frey está
vestindo minissaia e Cristine usa boné e calça que remetem ao vestir-se de um menino. A
ação pretendia ser invisível, como uma infiltração à revelia da curadoria e do centro
cultural, sem a necessidade de sua autorização. O público do centro cultural parece ou
346
finge não se importar com o beijo e tampouco com o modo de se vestir do par – talvez
porque, ao ocuparem o foyer da instituição, os observadores achassem que a ação fazia
parte de um evento promovido pelo centro cultural. Talvez porque naquele espaço não
poderia haver qualquer ação que não fosse previamente artística e “autorizada”, ou por
causa das condições vigentes – em que um centro cultural é um espaço público, porém
protegido por suas convenções institucionais –, o gesto não provocou o devido alarde, já
que as peculiaridades típicas de um centro cultural (espaço expositivo e de observação de
manifestações e de produções artístico-culturais) acabam por encaixar qualquer ação que
ocorra dentro de seu espaço físico como evento digno de relevância. Nesse contexto,
qualquer ação perturbadora termina por ficar “emoldurada”, “categorizável”, mesmo que
seja uma ação que não pretenda produzir objetos materiais.
Cabe ressaltar que nem todas as sexualidades são públicas ou privadas da mesma
maneira. O beijo, o abraço ou o caminhar de mãos dadas entre pessoas do mesmo sexo em
público provoca repúdio a ponto de gerar violência, enquanto pessoas de sexos opostos,
fazendo as mesmas coisas, se tornam invisíveis e até mesmo são apoiadas em suas ações
(cf. WARNER, 2005, p. 24). O Beijo problematiza essa lógica da invisibilidade do gesto
afetivo em público entre pessoas que não são do mesmo sexo: embora trate-se de um
“homem” e uma “mulher” se beijando – uma situação dada como “natural” dentro de uma
sociedade heteronormativa –, a temporalidade da ação de beijar aliada à vestimenta –
“homem” com “trajes de mulher” e “mulher” com “trajes de homem” – desloca o espaço
invisível e autorizado da expressão afetiva entre sexos opostos, ainda que o público
circundante disfarce o seu desconforto ao evitar olhar diretamente para o par que se beija.
Nesse beijo, a ação põe em xeque a invisibilidade e a naturalização acordadas pela
sociedade a fim de evidenciar, de forma enviesada, a desautorização do gesto afetivo entre
os pares gay e lésbico, que se encontram representados na ação justamente pela ausência
do beijo entre iguais, caracterizado pela sua falta de representatividade na esfera pública.
Por outro lado, não há como não deixar de remeter O Beijo de Tales e Cristine à estratégia
do “beijaço”, promovida por gays e lésbicas contra a discriminação de suas sexualidades e
identidades de gênero, tendo o beijo entre iguais no espaço público como forma de protesto
e reivindicação de cidadania.
347
Tales Frey (Cia. Excessos), O Beijo 2. Performance realizada no Rio de Janeiro, Brasil. Março de 2007.
Fotografia de Leandro Baumgratz
348
vestido de noiva o performer Tales Frey (e mais adiante Paulo Aureliano da Mata, que irá
participar de algumas ações subsequentes, como veremos mais adiante) evidencia a
indumentária como emblema do discurso falocêntrico católico-cristão, que recai sobre a
fisicalidade da mulher como corpo casto e virgem guardado para o corpo do pretendente.
Além disso, a ação de O Beijo também dialoga com os procedimentos artísticos de Márcia
X. no que tange à exploração de uma temporalidade esgarçada ao ponto da exaustão física,
“até o fim do espaço, do material ou do tempo”, como a própria Márcia X. afirmara sobre
as suas performances [2]. Nesse beijo exaustivo, a todo momento e ao mesmo tempo sendo
terminado e retomado, abre-se um espaço para uma corporeidade em trânsito, corporeidade
em-transe, em suma, uma transa entre os corpos que se beijam e o espaço circundante. E
também não deixa de ser um beijo-transe da Cia. Excessos no transborde dos
procedimentos artísticos de Márcia X., com suas problematizações das questões de gênero
e erotismo dentro do campo da arte e de suas instituições.
Tales Frey (Cia. Excessos), O Outro Beijo no Asfalto. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal.
Janeiro de 2009. Fotografia de Tales Frey
349
A partir de 2009, as ações subsequentes elaboradas em torno do beijo e da
problemática acerca das representações de gênero ultrapassam o território nacional e
passam a habitar o espaço público da rua. O Outro Beijo no Asfalto (2009), por exemplo,
evoca e parece ser uma resposta suplementar ao título do texto teatral O Beijo no Asfalto,
de Nelson Rodrigues [3]. A performance acontece na cidade do Porto, em Portugal, com a
participação de Paulo Aureliano da Mata e Berenice Isabel como o par de noivos. Dessa
vez, a ação instaura-se no terreno citadino, no meio de uma calçada com um grande
movimento de passantes, que ora ignoram a ação ou então demonstram uma ligeira
surpresa – visível pela desaceleração dos passos enquanto seus olhares paralisados mantêm
suas cabeças voltadas para o par que se beija, para súbita e sutilmente disfarçarem a
surpresa, agindo como se nada tivesse acontecido ao retomarem o ritmo que havia no
caminhar antes de notarem a presença dos performers. O Outro Beijo no Asfalto marca a
passagem de Tales Frey para ações que já não seriam necessariamente performadas por ele
(em algumas tendo a presença de Paulo Aureliano da Mata na operação “homem vestido
de noiva”) ou que seriam executadas por ele sozinho ou por mais de dois agentes,
deslocando a ideia de paridade entre performers. Além disso, outros materiais
despontariam como “pares em potencial”, como batom vermelho, espelhos e
vidraças/vitrines. Surgem portanto outros pares possíveis – performer e espelho; performer
e imagem do performer; performer e batom – e até mesmo outras combinatórias de trios e
duos: perfomer e batom e vidraça/vitrine; performer, batom e observador, performer e
observador, e assim sucessivamente.
Em Reciprocidade Desalmada (2010), a ação do beijar avança para outras
possibilidades de intervenção nas ruas da cidade do Porto e aponta novas combinações de
paridades possíveis. Vestido de noiva, Tales Frey divide a ação com mais quatro artistas
mulheres que trajam roupas masculinas: Berenice Isabel, Joana Lleys, Lizi Menezes e
Paula Guedes. Elas e ele não se beijam entre si, mas beijam sim os espelhos instalados
especialmente para cada performer nas fachadas de alguns prédios da rua do Almada.
Durante sessenta minutos, cada qual beija seu espelho e portanto a sua própria imagem. Do
beijo entre o par, a ação se deslocara para o beijo na própria imagem, intermediada pelo
espelho, um objeto que rebate a imagem da/do performer, que faz par consigo mesmo. O
350
espelho retorna para a/o performer a sua identidade e expressão de gênero a qual ela/ele
beija. Dupla camada do beijo, em que a/o performer beija a si mesmo e o seu corpo em
performance pública, através de seus trajes, de outras representações de gênero. Beija a si
mesmo e beija a outra/o outro que se desprende de sua ação e imagem refletida. O espelho
abre possibilidades de si ao infinito, que o beijar contínuo da imagem de si e da outra/do
outro no espelho (que também evoca o “em si mesmo”) parece constantemente reativar.
Tales Frey (Cia. Excessos), Reciprocidade Desalmada. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal.
Julho de 2010. Fotografia de Lívia Novaes
351
Frey beija e deixa a marca de sua ação sobre a superfície transparente da vidraça/vitrine.
Através da cor avermelhada do batom que se desprende de sua boca colada à
vidraça/vitrine, Tales Frey convida o público, que está do outro lado da vidraça/vitrine, a
ser o participante primordial para a completude de sua ação. A plateia é assumida como o
novo par. Ao utilizar o batom para demarcar o formato de sua boca na vidraça/vitrine, o
performer convida o observador para encontrar a sua boca do outro lado da superfície
transparente daquele objeto. Um contato intermediado, em que a vidraça/vitrine/vidro
ressalta a aparente separação entre o Outro e o Mesmo. A vidraça/vitrine/vidro torna-se
aparato detonador de uma possível participação que ao mesmo tempo parece assinalar
certa segurança aos participantes do beijo – pois entre o toque dos dois lábios há a
superfície envidraçada –, mas que suscita questões pertencentes ao outro lado da suposta
“segurança”: se não tivesse a superfície transparente e envidraçada como (aparente) espaço
delimitador das diferenças, haveria o beijo entre os agentes? Sem aquela superfície estaria
o observador imune à textura cremosa do batom, que assinaria o contato de sua boca com a
do performer?
Tales Frey (Cia. Excessos), Beija-se. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Maio de 2012.
Fotografia de Paulo Aureliano da Mata
352
A repetição do ato de beijar de Tales Frey torna-se uma história que permanece
presente através de cada marca de batom deixada na superfície transparente da
vidraça/vitrine. Ato de beijar que também evidencia a solidão do performer em busca do
outro, convidando a si mesmo a beijar o estrangeiro, isto é, aquilo que lhe foge e ao mesmo
tempo o constitui.
Tales Frey (Cia. Excessos), The Other Asphalt Kiss. Performance realizada na cidade do Chicago, Estados
Unidos da América. Junho de 2012. Fotografia de Tales Frey
353
promovem uma transgressão que se experiencia não teoricamente, mas como ato físico e
violador dos construtos profundos do sexo e do gênero disseminados no e pelo espaço
heteronormativo [4]. Através dessas ações, vislumbra-se também a retomada da importante
e relevante discussão acerca das possibilidades da dimensão performativa da arte de gerar e
mudar a realidade. Tudo a partir de um beijo na rua, vindo lento e aparentemente sem
muito alarde, tal como o beijo na ação The Other Asphalt Kiss (2012), este duplo norte-
americano da ação de 2009 no Porto – um beijo ao longo do dia, da manhã até o início do
cair da noite. Um beijo que não quer ficar longe da luz do dia, que recusa ficar restrito ao
espaço (passível de guetização) da noite. Um beijo que deseja perdurar, afirmando-se ética
e politicamente no espaço público.
Tales Frey (Cia. Excessos), The Other Asphalt Kiss. Performance realizada na cidade do Chicago, Estados
Unidos da América. Junho de 2012. Fotografia de Tales Frey
354
Notas:
[1] "Desenhando com Terços" (2000-2003) trata-se de uma performance-instalação
com duração de três a seis horas aproximadamente, em que Márcia X., vestida de
camisola branca, desenha pênis no chão através do uso de terços católicos. Da
performance-instalação efetuada em julho de 2000 na Casa de Petrópolis/RJ (com
uso de 600 terços e duração de seis horas) resultou no ensaio fotográfico que fora
censurado na dita exposição coletiva no CCBB em 2006, citada no correr deste
artigo.
[2] Cf. a página da artista disponível em:
<http://www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=3&sText=26>. Acessado em: 02
jan. 2015.
[3] Publicada em 1960, a peça teatral "O Beijo no Asfalto – Tragédia Carioca em
Três Atos" tem como eixo central a personagem Arandir e seu gesto misericordioso
de atender ao pedido de um homem moribundo atropelado por um ônibus, que lhe
roga como último desejo um beijo na boca em praça pública. Arandir vira alvo de
um repórter sensacionalista, que deturpa o acontecimento ao retratar o seu gesto de
realização do desejo de um moribundo como a ação de um criminoso que empurrou
o suposto amante para debaixo do ônibus para depois beijá-lo. Tal notícia gera um
escândalo social, modificando a vida de Arandir e de sua família.
[4] Devo esta conclusão a uma leitura pessoal dos escritos de Michael Warner a
respeito da problemática das expressões afetivas nos âmbitos público e privado, e
da capacidade transgressora deste último na esfera social. Cf. WARNER, 2005, p.
24.
Referências:
Obras artísticas
O Beijo
Ano: 2006.
Concepção: Tales Frey e Cristine Ágape.
Performers: Tales Frey e Cristine Ágape.
355
Local: Foyer do Centro Cultural Banco do Brasil/ RJ.
Câmera: Hugus Félix.
Duração da ação: 30 min.
Duração do registro em vídeo: 2min 02seg.
Disponível em: <http://vimeo.com/16889882>
Acessado em: 02 jan. 2015.
O Beijo 2
Ano: 2007.
Concepção: Tales Frey e Cristine Ágape.
Performers: Larissa Câmara e Tales Frey.
Local: Rio de Janeiro.
Câmera: Leandro Baumgratz.
Duração da performance: 30 min.
Duração do registro em vídeo: 04min 21seg.
Disponível em: <https://vimeo.com/16890084>
Acessado em: 02 jan. 2015
Reciprocidade Desalmada
356
Ano: 2010.
Concepção: Tales Frey.
Performers: Berenice Isabel, Joana Lleys, Lizi Menezes, Paula Guedes e Tales
Frey.
Local: Cidade do Porto/Portugal.
Fotos e vídeo: Lívia Novaes e Suianni Macedo.
Duração da performance: 60 min.
Duração do registro em vídeo: 04min 13seg.
Disponível em: <https://vimeo.com/16935584>
Acessado em: 02 jan. 2015
Beija-se
Ano: 2012.
Concepção e Performance: Tales Frey.
Local: Cidade do Porto/Portugal.
Câmera: Luís Filipe Santos e Paulo Aureliano da Mata.
Duração da performance: 60 min.
Duração do registro em vídeo: 04min 03seg.
Disponível em: <https://vimeo.com/44426567>
Acessado em: 02 jan. 2015
357
Acessado em: 02 jan. 2015
Bibliografia:
FREY, Tales. Discursos críticos através da poética visual de Márcia X. Jundiaí:
Paco Editorial, 2013.
HARTMANN, Dorothea von. How to do things with art. Zurique e Dijon: JRP
Ringier; Les Presses du Réel, 2010.
OLIVEIRA, Paola Lins. “Desenhando com terços” no espaço público: relações
entre religião e arte a partir de uma controvérsia. Ciencias Sociales y Religión/
Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, set. 2011, pp. 145-75.
______. Circulação, usos sociais e sentidos sagrados dos terços católicos.
Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 12, 2009, pp. 82-115.
PERLONGHER, Néstor. Lamê. Campinas: Editora UNICAMP, 1994.
PITTS-TAYLOR, Victoria. Cultural Encyclopedia of the Body. 2 vols. Westport:
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SUTHERLAND, Juan Pablo. Nación marica: prácticas culturales y crítica
activista. Chile: Ripio Ediciones, 2009.
WARNER, Michael. Publics and counterpublics. New York: Zone Books, 2005.
358
3.3. Avessamentos
Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais
Março de 2009
ISSN 1983-0300
por Dinah Cesare
359
fisicalidade masculina. O ator é alto e magro como o ideal de beleza feminina. As roupas,
tanto o terno quanto o figurino feminino, são de cortes e motivos antigos, o que parece
sinalizar que a questão de gêneros não é uma ocorrência contemporânea, ou seja, discutem
a temporalidade, nosso modo de estar no tempo. Se a performance por característica
possibilita ao espectador ter acesso ao mundo da arte em uma interrupção impensada em
seu cotidiano, aqui nossa concepção cultural toma, ao menos, um golpe bem-humorado.
Mas o curioso é que nem nos damos conta de que realmente, ao contrário da peça de
Nelson, o beijo é entre um homem e uma mulher. Talvez isso queira dizer que
continuamos os mesmos sendo diferentes: lucidez sutil do trabalho que quase passa
despercebida. Porém, a placa de contramão que surge na esquina quando o casal
desaparece sinaliza a vigência de uma não aceitação e a contravenção do ato.
A gravação da performance realizada em preto e branco me fez lembrar da foto de
Robert Doisneau que mostra um casal se beijando em uma rua de Paris em meio aos
transeuntes. A referida fotografia é do ano de 1950 e durante muito tempo se pensou que
fosse um instantâneo casual, porém, ao sabermos de que se trata de uma pose elaborada
pelo fotógrafo, ela parece evocar a felicidade e a promessa fictícia dos anos após a
Segunda Grande Guerra. Os elementos ficcionais da performance da Cia Excessos, a
gravação que deixa à mostra pessoas fotografando e filmando com seus celulares, nos
sugere que a discussão da sexualidade possui diversos planos entre o que conquistamos em
termos de direito e a fogueira na qual nos deixamos arder.
360
3.4. Orexia: um Coeso Sentido num Amálgama
Revista Artlyst
Maio de 2014
por Julia Pelison
No começo, tudo toava como uma sequência de gestos insanos num lugar que
chegava quase a ser aterrorizante devido ao comportamento do performer, que transmitia
aspectos de um psicopata nas suas movimentações um tanto suspeitas, pois segurava uma
faca grande de cozinha e circulava pelo espaço expositivo, cumprimentando os
observadores que lá chegavam, trocando informações com eles de forma trivial, mas
sempre com essa faca na mão. Tales Frey não abandonava esse objeto em nenhum
momento, ao contrário, agarrava o mesmo com energia, mantendo constantemente um tom
que oscilava ora ares infantis ora patológicos.
361
Tales Frey (Cia.Excessos). Performance-instalação Orexia.
Registro de Nathália Mello. Rio de Janeiro, 2014.
362
Estava, assim, instaurada uma ambientação sombria, apesar do espaço ser
completamente claro, com paredes brancas, assim como os televisores, as cadeiras, a mesa,
enfim, quase tudo com a mesma matiz cândida hospitalar, quando não, com gradações
negras, atribuindo uma paleta precisa de cor, que não vacilava e que marcava extremos,
contrastes intensos.
363
idealizados no plano inconsciente, além de outros cinco que foram incorporados (quatro do
próprio artista e um de Paulo Aureliano da Mata).
Certamente, o inconsciente apresenta ideias desconexas, confusas, misturadas e,
Tales assume isso no conceito de sua obra, mas observa que encontra coesão no meio
desse caos, no meio dessa desordem. Na instalação esquizofrênica, entre bancos de
diferentes formas, há uma unidade de cor; entre imagens aparentemente desarmônicas nas
formas, investidas e cores, percebemos harmonia temática, que, de forma geral, envolve a
efemeridade da matéria e a negação do falecimento por via da sua reintegração em outras
através da recombinação, embora víssemos de um lado um vídeo mais poético, lúdico e de
outro um mais trash ou extremamente violento.
Uma fração do inconsciente do artista estava ali, discursando de forma contrária a
uma lógica heteronormativa, falocêntrica, sendo abordagens que vemos em muitos outros
trabalhos da Cia.Excessos, ou seja, também, há parte de Paulo Aureliano da Mata naquela
inconsciência partilhada de Tales. E se observarmos, esse duo de artistas sempre funde
tudo que faz mesmo, seja na arte ou na vida. Vimos isso na exposição Moda e
Religiosidade em Registros Corporais, vimos isso em Beija-me (que foi finalizada com o
casamento no sentido estrito dos dois artistas) e vemos aqui também com Orexia. Nunca
há um sozinho, são sempre os dois; é sempre em parceria/companhia.
364
Orexia, performance-instalação que começa de forma sombria, densa, em tom de
pesadelo, termina de maneira festiva, com feijoada, cachaça, cerveja e conversa fiada,
papo-sério ou qualquer diálogo que espontaneamente ocorre numa festa ou jantar para
muitos amigos e/ou desconhecidos que se aglomeram num mesmo recinto artístico. O
arremate da ação é formado num grupo aturdido, embriagado, alcoolizado não só pelo
literal ato de ingerir o que foi ali servido, mas pelo torpor ocasionado pelos vídeos e pela
performance, que notavelmente propiciaram uma experiência única e extraordinariamente
desprovida daqueles clichês maçantes da arte contemporânea, abrigados por tantas galerias
e museus que temem o risco.
365
3.5. O Despir-se de Tales Frey em busca de um objeto de ensaio
Revista eletrônica Performatus
Ano 1 | Nº 2 | Jan 2013
ISSN 2316-8102
por Nathália Mello
O texto presente reivindica um detalhamento sobre o que está entre Tales Frey e
aquele que o percebe artista em Vende-se: aceita-se cartão de débito. A imagem do
performer está cada vez mais disfarçada por roupas cotidianas e movimentos reproduzidos,
copiados, repetidos, tais quais os movimentos dos corpos ordinários. Jerome Bel, Xavier
Le Roy [1], por exemplo, são artistas da Dança que observam a banalidade do cotidiano,
abstraem gestos, ações e movimentos de sua percepção e, por fim, apresentam sua análise
para um público que veste tal qual o corpo que apresenta a pesquisa no palco. Através de
uma exploração do estado de exposição proposto por Tales Frey, pontuo características e
366
qualidades de temperamento que atravessam o corpo daquele que lida com a arte.
O corpo do performer na performance Vende-se é um corpo rancoroso e é um corpo
que atua sob a pressão do sistema econômico que exige posicionamento delimitado de
identidade e gênero. As escolhas pré-definidas de territórios servem a uma proposta
comercial: vende-se o que tem forma para aquele que é fôrma. Um bom consumidor é
aquele que sabe o que quer, um bom artista é aquele que conhece bem o seu conceito, um
bom filho é aquele que tem uma carreira promissora, direta e contínua. O ‘bem’ é elemento
do progresso que é, por sua vez, como podemos sentir na pele, hoje, a própria destruição
inerente ao humano. Caminhamos para o momento máximo do despir-se completo: a
morte.
A atividade artística propõe alternativas à economia oficial; temos um exemplo
corrente: o financiamento coletivo (crowdfunding) que enquadra em um processo de venda
do efêmero, do que é amorfo. O financiamento coletivo é uma alternativa ao sistema
brasileiro de editais que retoma o mecenato. Há uma enorme flexibilidade, nas bordas
dessa definição, porque o financiamento coletivo propõe recompensas ao patrocinador de
convivência e trocas de experiências. É, portanto, diferente do formato de apoio, edital ou
patrocínio privado que demandam uma contrapartida social que muitas vezes se resume em
marketing, publicidade e des-serviço social. A performance de Tales é um deboche –
característica explorada pelo artista há mais de 10 anos – que ironiza a condição marginal
daquele que pratica arte. Maldição da humanidade, trágico eterno, romântico ainda, o
artista é a borda da saia, é a silhueta do continente, é todo ele somente pele e fronteira. No
caso de Frey, o palco é sua própria pele, maior órgão do corpo humano ou ainda a segunda
pele que é a convenção social, a identidade visual.
Como vender o que é mutável, o abjeto? O salão social espanta-se com a exibição
do estado performático que Tales Frey demarca atravessando imagens representativas de
consumo, marginalidade das calçadas, alternativismo, poder e vulnerabilidade, paradoxo
recorrente em performances solo. Um bigodão, vestidos, meia arrastão são elementos
representativos de gêneros diversos que produzem a expressão “jovem-senhor-feminino”.
Estas são características relevantes na construção da figura que usa a linguagem verbal e
plástica para comunicar confrontos entre trabalho intelectual e labor quase escravo do
367
artista. O artista assume essa estranha posição de trabalhar, muitas vezes através de
elementos como a repetição, a movimentação mecânica, o vazio corporal (características
observadas em trabalhadores em situações fordistas, como Rudolph Laban avaliou na sua
pesquisa sobre o gráfico dos esforços em fábricas inglesas [2]), sem valorar o seu produto.
O paradoxo pode surgir da impossibilidade de considerar o trabalho, muitas vezes efêmero,
produto em si, como muito se discutiu a partir da expressão pop de Andy Warhol. Nicolas
Bourriaud aponta que:
368
contextual do Festival Alma da Rua, no qual a performance se situa. Aderbal conta que o
Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, grupo de referência formativa do teatro
brasileiro, finalmente atribui força à sua prática quando o grupo é expulso, em 1971, do
teatro Gláucio Gil, o qual ocupava consistentemente. A expulsão provoca micro-macro
revoluções, segundo a exposição do próprio Aderbal, na ocasião do Fórum – Centro de
Demolição e Construção do Espetáculo promovido pelo Complexo Duplo no seu projeto
de Ocupação do Teatro Gláucio Gil em Copacabana, no dia 15 de abril de 2012. Uma
última relação em favor do estudo de comparação entre um projeto artístico histórico, de
Aderbal, e outro contemporâneo, de Frey – ambos são presenças inesquecíveis do curso de
graduação em Direção Teatral da Universidade Federal do Rio de Janeiro – é o fato de que
Aderbal enfatiza o teatro como a arte da fogueira. Daí a ideia de trabalhar a imagem da
ruína, da demolição, inspirada pelo construtivismo. Frey, enfatiza a efemeridade da sua
performance por somente vender suas roupas através do procedimento de débito, uma
assinatura momentânea, um compromisso que se esvai, um escambo cultural do qual
lembramos e negociação a partir da qual inventamos memória.
369
É interessante observar que na trajetória de Tales Frey e de seu companheiro Paulo
Aureliano da Mata, fundadores da Cia. Excessos, a documentação torna-se o objeto de
análise, divulgação e produto em ocasiões de mostras de vídeo, por exemplo. Há uma
recorrência em registrar atos repentinos de duração continuada através de uma perspectiva
de um observador parcialmente escondido, sem identidade, não tal como um voyeur, mas
como alguém que foi surpreendido por aquele evento. Em Outro Beijo no Asfalto, por
exemplo, observamos através de um ângulo distante e superior, quase como filmado de
uma grua, o registro de vídeo da performance. Sinto-me uma observadora debruçada na
janela do um escritório imaginário, com o trabalho interrompido por uma cena, que como
em Vende-se, me empurra a refletir e questionar versões da realidade cotidiana a partir do
vestuário em confronto com as imagens tradicionais de gênero.
370
um saia preta, marca o que já é um hífen, sua pele. Outros objetos cobrem a figura do
performer. Essa figura, através desse trabalho de exposição, fala de um Estado – território
poético de Frey – comum aos que vivem do discurso marginal da arte; o discurso
performático é um discurso permeável.
Notas
[1] Disponível em: http://www.xavierleroy.com/ (consultado em 08 de Outubro de 2012)
[2] NEWLOVE, J.; DALBY, J. Laban for All, Nick Hern Books, Londres, 2005.
[3] BOURRIAUD, Nicolas. Postproduction: Culture as Screenplay: How Art Reprograms the World. New
York: Lukas & Sternberg, 2002.
371
3.6. Todo o amor que houver nessa vida
Revista eletrônica Performatus
Ano 1 | Nº 1 | Nov 2012
ISSN 2316-8102
por Raphael Fonseca
Cia. Excessos, O Beijo. Performance não convidada para a exposição “Erótica – Os Sentidos da Arte” no
CCBB-RJ no Rio de Janeiro, Brasil. Março de 2006. Fotografia de Hugus Félix
372
Santo Agostinho discorre sobre as formas geométricas em “Sobre a potencialidade da
alma”:
Quanto à figura mais excelente, não duvidará que seja aquela cujo
perímetro está equidistante do centro de tal maneira que qualquer ponto da
superfície dista igualmente do centro, sem ângulos que impeçam a
igualdade, de cujos centros podemos traçar linhas iguais para qualquer dos
limites da figura. [2]
373
nome aponta, tratava-se originalmente de um abrigo (panteão), ou melhor, um templo para
todos os deuses do Olimpo. No século VI, devido às diversas mudanças proporcionadas
pela criação e disseminação do cristianismo, o espaço foi rebatizado para Igreja de Santa
Maria e Todos-os-Santos; o protagonismo, portanto, foi dado à mãe de Jesus e a todos os
seguidores que se martirizaram pela propagação de seu nome. Para o filósofo neoplatônico
Plotino (século III), Deus era o Uno e poderia ser representado pela luz – este grande raio
luminoso pode ser fruído nos dias atuais dentro do Pantheon devido a uma esfera que fica
ao centro da cúpula e emociona os turistas cristãos com suas máquinas fotográficas. Deus
ainda pode ser luz.
Em uma noite de 2006, iluminados por luz artificial, mas ao centro de um modelo
arquitetônico que um dia foi alvo para a luz divina, a Cia. Excessos realizou uma
performance. Dois corpos pousaram sobre o coração do foyer do CCBB-RJ e sustentaram
um beijo por meia hora. O ato afetivo que por si chamava a atenção pela centralidade
espacial tinha um dado que saltava aos olhos: após constatar a diferença de alturas entre os
indivíduos e considerar que o mais alto seria um homem e o mais baixo uma mulher
(suspeita que se confirmava após um olhar mais detido), se percebia que uma curta saia
xadrez era um elemento fora do conjunto.
Tales Frey estava vestido com um top amarelo e saia, ao passo que Cristine Ágape
portava uma calça cargo e um gorro. Não se tratava, portanto, de afeto homossexual, mas
um beijo heterossexual que se apresentava como um rápido desconcerto. Imagino que a
reação do público que fazia fila para o teatro e que aparece ao fundo deste beijo no registro
existente seja a mesma de quando mostro este trabalho aos meus alunos. Em primeiro lugar
ouço algo como “Meu Deus, um homem e um travesti se beijando” e, segundos depois,
alguém diz “Não, é um homem vestido de mulher”. Os pelos nas pernas são percebidos e
freiam uma primeira reação preconceituosa do espectador. Dessa exclamação brota uma
interrogação: “Por que eles estão vestidos desse modo? Por que não estão ‘normais’?”.
Este parece o ponto que a Cia. Excessos também deseja perguntar: o que é o
“normal”? O que é “ser normal”? O que é uma roupa “apropriada” ao seu gênero? Mais do
que isso, como se constroem os gêneros? Há espaço para essa discussão e para limites tão
claros em uma cultura visual contemporânea que já coroou Madonna, David Bowie e Lady
374
Gaga, e que cada vez mais questiona o próprio conceito de ambiguidade?
Realizar esse gesto artístico no centro do CCBB-RJ é como gritar em praça pública.
O “templo da cultura” foi tomado e todos os passantes esbarrarão com um ato artístico de
meia hora. Muitos sequer saberão que aquilo ali era arte, mas isso não é o mais relevante;
importa saber que estes muitos também não apagarão essa cena (nojenta para alguns,
heroica para outros) de suas memórias. O pobre Platão é colocado contra a parede: sobre o
seu perfeito círculo, algo que choca sua afirmação de que “o semelhante é infinitamente
mais belo que o dissemelhante”.
Ao levar em consideração a própria história da conceituação religiosa em torno do
círculo e, além disso, da utilização da rotunda como elemento formal da arquitetura
religiosa, podemos interpretar este ato da Cia. Excessos como uma profanação – efêmera e
singela, assim como a presilha colocada no cabelo do performer que convida nossa olhar
para o seu rosto e para a presença de seu bigode. Esse dado profano é ampliado quando se
toma conhecimento que este trabalho foi realizado enquanto estava em cartaz a exposição
“Erótica – sentidos da arte”, onde um trabalho de outra performer, Márcia X, foi
censurado. O registro de um de seus trabalhos mais famosos, “Desenhando com terços”,
em que a artista fazia o contorno de falos através da linearidade destes objetos sacros,
ocupando o chão de uma sala, foi retirado do evento devido à pressão de autoridades
católicas do Rio de Janeiro. Mal eles sabiam que outra ação, não emoldurada, de curta
duração, mas que terá longa vida devido ao registro audiovisual e acesso público devido à
Internet, foi realizada logo abaixo, no térreo da instituição, sem necessidade de mediação
ou de elevador, fora das salas que permeiam as imagens com o estatuto da arte.
Se o Pantheon era um templo para todos os deuses, a Cia. Excessos realiza uma
construção de imagem diversa com corpos e a lembrança proporcionada pelo vídeo. Sai a
figura de “Deus” e entra o protagonismo do beijo. O panteão se metamorfoseia em
“panamor” e é erguido outro monumento a toda a forma de amor, a todos os amantes que
já trocaram fluídos na História. Homens e mulheres, mulheres e homens, homens e
homens, mulheres e mulheres ou, mais do que isso, humanos com humanos. Um viva e a
esperança de dias melhores para, como diria Cazuza, “todo amor que houver nessa vida”.
375
Notas
[1] PLATÃO. Timeu-Crítias. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011. Pág. 102.
[2] AGOSTINHO, Santo. Sobre a Potencialidade da Alma (De Quantitate Animae). Trad. de Aloysio Jansen
de Faria. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005. Pág. 58.
376
3.7. O dobro-nada de ‘Reciprocidade Desalmada’
Livro: Cia Excessos Vol. 01
Será lançado pela Paco Editorial do Brasil em 2014
Artigo escrito por André Luiz Rodrigues Bezerra e Chrystine Pereira da Silva
377
(Berenice Isabel, Joana Lleys, Lizi Menezes e Paula Guedes) vestidas com roupas
socialmente reconhecidas como trajes masculinos, e o único homem nesta ação (Tales
Frey) usando um vestido de noiva, paramentado com véu, colar e sapatos de salto alto.
Figura 1 – Reciprocidade Desalmada. Cia. Excessos (2010). Porto – Portugal.
Reconfigurar a imagem do próprio corpo através deste objeto refletor, este objeto
que nos dá a dimensão de quem somos e nos institui como sujeito na percepção de nossa
individualidade na psicanálise lacaniana. Esses corpos, aparentemente “invertidos” no
modo de se trajar, discutem outro olhar sobre essa individualidade, tornando-a uma
dividualidade.
Conceito proposto por Maria Beatriz de Medeiros (2008) e o Grupo de Pesquisa
Corpos Informáticos, o divíduo configura-se por esse grau de subjetividade não orientado a
partir de um isolamento da unidade que caracteriza o indivíduo, mas uma subjetividade
aberta e processual, em performance, que se divide, se parte, se fragmenta, por estar aberto
ao encontro, não somente com outro corpo, mas com outros espaços, outros objetos, outros
comportamentos.
Divíduos, os performers da Cia. Excessos no espaço da rua a beijarem seu reflexo
apresentam outros espaços indiciais de compreensão daquela subjetividade que acaricia a
sua própria imagem enquanto a decompõe e fragmenta em distintas possibilidades de
378
sentido e leitura. Da mesma maneira como jogam com os elementos de composição de
suas imagens, (trans)vestindo520 a escolha de roupas que abrem outra possibilidade de
leitura daquele corpo, a ação de Reciprocidade Desalmada questiona a própria situação de
conceituação, ou classificação do corpo, e faz isso criando entradas e buracos na imagem
da superfície que o espelho plano projeta.
Ao acionar essa operação se aproximam da proposta de Gianluca Cuozzo (2007) ao
refletir sobre a literatura de Paul Auster. Cuozzo coloca: “Toda definição, por assim dizer,
é o dobro (linguístico, escritural) da coisa, não obstante também o seu nada; o nome, com
efeito, duplica a coisa (de fato vanificando-a) como um espelho, sem poder nunca captar o
sentido” (CUOZZO, 2007: 5).
Assim, ao pensarmos na imagem e no corpo das mulheres e homem envolvidos
nessa performance, entramos num espaço de divisão também verificado no próprio
discurso de gênero que projetaram, questionando as definições socialmente aplicadas a
leitura desses corpos através de sua aparência, e implicando na incapacidade delas de
captura da ambiência múltipla presente no desejo e subjetividade desse corpo.
Ao mesmo tempo esta performance brincou com a ideia da definição como dobro,
isto é, infere através dos modos como estes corpos se vestem e se mostram em sua
superfície a presença múltipla dessa auto-imagem, desse trajar que é a emergência de um
desejo manifesto e exposto sobre a própria pele.
Nesse sentido, Reciprocidade Desalmada de fato nos sugere uma rebelião dos
corpos, dos objetos, das coisas contra suas próprias imagens, parafraseando Cuozzo, ou
ainda, contra as palavras vazias da escritura do desejo e experiência desse corpo que
tentam de alguma forma comportá-lo.
520
No sentido de uma transvaloração, metáfora que se repitará em nosso texto. A transvaloração de todos os
valores é talvez um dos maiores projetos da filosofia nietzschiana, apresentada como princípio que em
sua base apresenta uma visão do homem com base no seu corpo e sua experiência, retirando o campo do
ideal moral do espaço da vida, e agenciando um plano para além do bem e do mal como valores fixos e
sagrados (postos em separados, não questionáveis). A transvaloração de todos os valores, em nossa leitura
do filósofo alemão, mais do quê intentar gerar um homem produto, ou seja um homem além de todos os
valores, pronto, encontrado, insinua um esforço de Friedrich Nietzsche (1995; 2006) na colocação desse
homem como processo, não existe transvaloração absoluta, senão esta mesma assumiria uma forma
moral, existe um processo de contínua investigação e questionamento daquilo que aparentemente nos é
dado como natural ou certo desde o corpo, no corpo e com o corpo.
379
Assim esta performance projetou com sua ocorrência uma falência mítica da
procura narcísica do prazer na própria imagem, tal qual se projeta sobre a superfície
refletora, através dos beijos que apontaram a procura desses corpos por uma outra imagem,
para além do dobro-nada da imagem oferecida pelo espelho. Uma performance que como
carícia investigou o traçado de outras travessias da própria imagem, desviando-a daquilo
que é dado de imediato pela luz refletida, e procurando potências de outras formas de vida
nesse corpo.
Figura 2 – Reciprocidade Desalmada. Cia. Excessos (2010). Porto – Portugal.
Ao propor que o objeto mediador dessa relação seja o próprio espelho essa ação da
Cia. Excessos traz outras prospectivas também para aquele que observa e assiste à ação,
enfatizando a noção de que ao olharmos a realidade estamos olhando a nós mesmos, ou
seja, nosso olhar dos objetos, corpos, ambiências do mundo, é nosso porque imprime
aquilo que somos, vivemos e experienciamos na superfície e contornos do que vemos. Ao
vermos o mundo, vemos a nós mesmos vendo o mundo, ao vermos o corpo do outro o
contaminamos com o nosso próprio.
Essa possibilidade de leitura presente em Reciprocidade Desalmada parece nos
trazer também a potência de um pavor do escritor argentino Jorge Luís Borges, que temia
380
os espelhos por considerá-los uma ameaça à realidade e a aquilo que se sabe de si. Longe
de ser um temor que denota valor positivo a uma realidade fixa e dada, o pavor de Borges
se anuncia diante do estar perdido de si como individualidade, e simultaneamente a beira
de um eu dividido, desviado na direção de uma desconhecida subjetividade.
O temor ao qual nos referimos é aquele do estar à beira do abismo, o abismo de
todas as possibilidades do que podemos vir a ser. Esse temor de divergência da realidade
tal qual é na direção de outros pontos, zonas de mutação em permanente movimento, é ao
mesmo tempo o sintoma dessa potência de uma transformação que acontece e se faz
presente na performance da Cia. Excessos.
Isso também se pode afirmar em Reciprocidade Desalmada, a extensão do tempo
de encontro e carícia entre o corpo e essa imagem abismal, que é tudo o que se pode ser e
também nada, que é eu e o outro, não é a extensão de uma única mudança, mas de uma
divisão em contínua progressão. Um divíduo que não cessa de se dividir e em cada
encontro entre esse eu-corpo e eu-imagem cria um distinto fragmento, outro ponto de
referência e de mutação através do qual é possível ler aquele corpo. O corpo no curso dessa
uma hora de performance não permanece o mesmo, e sua ação imprime essa outra
presença transformada sobre a imagem que devolve o espelho.
Essa realidade do espelho tão presente no nosso mundo na contemporaneidade, nas
vitrines de lojas, nos shoppings, inclusive nos aparelhos eletrônicos como celulares e
tablets (os chamados black mirrors), parece advir de um princípio foucaultiano de
constante vigilância e afirmação desse corpo no espaço de consumo, não apenas do
consumo de mercadorias, mas o consumo de si mesmo, de sua própria imagem.
A superfície do espelho aparece nessa linha de pensamento como produto e
produtora de uma vigilância do sujeito com relação à imagem do seu corpo como ele vê
em atrito com outra imagem afirmada segundo um paradigma de construção da
propaganda e mídias, uma imagem branca, magra, (hetero)sexualizada e sorridente
(PHELAN, 1993).
Nesse ponto, não se trata daquilo que se vê, mas do que é tido como virtualmente
invisível, naturalizado e entranhado, a ação que está contida no que vemos: o modo como
nos vemos. Essa ação de performance, a de encontrar em si uma brecha entre o que é
381
visível e naturalizado, e aquilo que não se vê, é mais uma das passagens encontradas em
Reciprocidade Desalmada. Essa ação complexa se revolve na performance destes corpos
que defronte ao espelho não investigam apenas aquilo que são, mas também o modo como
optam por ver o que são.
Assim, na imagem caleidoscópica (CUOZZO, 2007) – fragmentada, multiplicada,
dividida – do performer diante do espelho se confrontam a presença e imagem do corpo, o
olhar como espaço de projeção do eu, e as ações contidas nesse olhar que nos fazem ver o
mundo como vemos, tudo isto nesse processo abismal de perder-se de si em direção de um
vir a ser.
A recíproca do espelho não é verdadeira, e a verdade num sentido filosófico perde
sua posição como valor, como espaço metafísico de unicidade, transvalora-se num
processo de cisões e fragmentações de um divíduo. A recíproca do espelho, dobro-nada das
leituras postas na superfície do corpo dos performers se desmonta e diverge de si mesma,
se divide em várias realidades e linhas dessa presença inquieta e movente do corpo.
REFERÊNCIAS
AQUINO, F.; MEDEIROS, M. B. Parafernálias: Composição Urbana e web arte
iterativa. Revista Polêmica, v. 22, n. 1, 2008.
CUOZZO, G. ‘O Dobro ou Nada’ – o mundo caleidoscópico de Paul Auster. Cadernos do
LINCC, v.1, n.1, 2007.
NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Sousa. 9. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PHELAN, P. Unmarked: the Politics of Performance. Londres-New York: Routledge,
1993.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade II - O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1984.
382
3.8. Velaturas
Livro: Cia Excessos Vol. 01
Será lançado pela Paco Editorial do Brasil em 2014
Por Júlio Minervino
As imagens aqui apresentadas, fotográficas de evidente clareza, nos fazem refletir sobre a
escolha do autor. Desvelar ou esconder? Eis a questão mais evidente que nos coloca em
xeque no excitante jogo de sedução e significações dessas imagens. Optou o autor por
esconder aquela que para nós , meros humanos, é a região corporal mais importante e
carregada de caráter identificatório, tanto físico quanto psíquico e transmissor dos códigos
de comunicação com o mundo que aí está: o rosto, frontispício que se antecede e se
apresenta em primeira instância aos olhos do outro; que a nós se assemelha.
Um rosto específico, que aqui não se revela ou dele pouco se vê para propositalmente, criar
expectativa e excitar o desejo de conhecer sua identidade. Tal como um clown que
levemente abre a cortina e expõe parte do seu rosto, duas hipóteses nessa atitude se
apresentam: seria para ver a quantidade de pessoas na platéia ou excitá-las, indicando que
o espetáculo estaria para começar? Há uma intenção a priori em aferir a audiência, mas, na
segunda, uma intenção velada em seduzir as pessoas cuja aparição por um átimo de
segundo, altera o estado de contemplativo para transformá-lo em estado de excitação.
De fato, como no mito da Caverna de Platão, conhecer é ter a consciência da existência,
tanto do mundo quanto de estarmos nele.
Ao construir essas imagens, Tales “centra o foco” nesse ponto de tensão psicológica que se
aloja no limite entre o saber e o não saber para, com habilidade, instigar o olhar daqueles
que as contemplam. Provocar o incômodo da curiosidade, o desejo de ter consciência da
identidade daquela(s) que se esconde por trás de uma velatura de cabelos. Não por acaso,
se apropriou de modêlos femininos mas acreditamos que o mesmo efeito se daria se
fossem escolhidos modelos masculinos. Na verdade, o que mudaria seria o objeto, não o
sujeito.
Mas por que omitir intencionalmente o caráter de identificação nesse trabalho?
383
Passamos, a partir dessa pergunta, a pensar sobre o espírito da época (zeitgeist) em que
vivemos, de questões político-econômicas e dos resultados socio-culturais de uma
dominação globalizante.
Notamos que as estratégias de dominação dos mercados adotadas pelos países
imperialistas têm, como princípio, a desestruturação das culturas locais e sua substituição
por códigos culturais impostos por meios de comunicação e marketing agressivos e
sistemáticos.
O resultado dessa deletéria investida é a destruição da identidade das culturas locais e a
imposição de um padrão cultural global que incida sobre o comportamento, em especial, da
juventude para formatar novos consumidores. Talvez, nessa hipótese, esteja o ponto
fulcral, diluído em instâncias subjetivas, a opção de Tales, em sua série Faceless, ao velar
aquilo que nos individualiza, isto é, a “máscara” congênita.
384
3.9. A Palavra sobre a Palavra: em Vias de Materialização
Revista eletrônica Performatus
Ano 1 | Nº 4 | Mai 2013
ISSN 2316-8102
por Ana Cristina Joaquim
Muito já se disse sobre a palavra e a palavra, sobre a palavra como sua própria
referência, sobre a rede de palavras que se definem única & exclusivamente na relação
entre si (palavras em relação a palavras). O mundo das palavras, por fim decretado
universo autônomo, como o lugar em que habitamos & nos (re)fazemos, nós, seres
(cristãos?) fundados pela palavra: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus,
e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por
meio dele" (João 1:1-3).
Muito já se disse. E as teorias da linguagem mais recentes, já de forma laica, o
atestam: seja no desenvolvimento da ciência dos signos, na esteira de Saussure, seja no
desenvolvimento da hermenêutica moderna, na esteira de Paul Ricoeur. Na ordem do dia
estão os inúmeros discursos que rompem com aquilo que se denomina a ilusão da
referencialidade, isto é: tornou-se obsoleta a velha crença na teoria de que a necessidade da
palavra se justificaria devido a sua função de ‘apontar o dedo’ para o mundo da matéria,
das coisas tangíveis. Sabe-se, por exemplo, que os esquimós têm um gama enorme de
palavras para diferenciar as diversas tonalidades daquela cor que, na maior parte das
línguas latinas & germânicas, é única: o branco. Este exemplo torna evidente o fato de que
uma língua (um idioma) é sempre um recorte sobre o mundo, & este mundo, por sua vez,
só pode ser lido com base nas determinações que cada língua oferece. Ora, seguindo esta
linha de raciocínio, nada dizemos sobre o mundo de fato, mas apenas dizemos sobre o
mundo que criamos – e o criamos mediante as palavras, imersos nas palavras, que
adquirem autonomia neste contexto teórico.
Arnaldo Antunes, assim como os demais poetas circunscritos no movimento
literário concretista, é, sem dúvida, um dos arautos deste ponto de vista, o que se torna
bastante evidente em Momento I, mote para Um livro de cabeceira ou meu cérebro na
385
página doze, videoarte concebido, dirigido & editado pelo artista Tales Frey, com Paulo da
Mata & Tânia Dinis no elenco.
Dando um salto em relação ao que dissemos há pouco sobre as recentes teorias da
linguagem, com ênfase para o aspecto da autonomia linguística (salto dado pela própria
concepção de Tales Frey no videoarte em questão, como mostraremos a seguir)
poderíamos pensar – levando às últimas consequências a concepção da palavra autônoma –
na palavra matéria, na palavra corpo, na palavra encarnada. É o que parece por em
evidência o videoarte de Tales Frey: não apenas as palavras são pronunciadas por dois
corpos visualmente expressivos (o masculino e o feminino, a portuguesa e o brasileiro – só
para citar o jogo de oposições aqui presente), como as palavras são elas mesmas corpos, &
aqui reside a inovação: pestana, cílio, colo, anca, rabo, bunda, panturrilha, nariz, joelho,
testa, língua, cotovelo, peito... & por aí vai o inventário das partes deste corpo, feito em
palavras de ‘dois idiomas portugueses’ (em que pesem as polêmicas a este repeito...!). Não
só: também o corpo em silêncio, os corpos mudos, sem língua idiomática qualquer.
Ao fim, os corpos em silêncio resultantes da materialidade das palavras: a sugestão
da escuta na leitura dos lábios/palavras: PALAVRAS, PA-LA-VRAS, palavras
encarnadas. Os performers são o veículo das palavras neste momento final do vídeo, são
como atores que interpretam (encarnam) as próprias palavras & o são em silêncio, assim
como a palavra que prescinde do ruído & se encerra na sua própria corporeidade.
386
3.10. Lama para Limpar a Alma
Revista Aplauso Brasil
28 de Dezembro de 2009
por Milton Ferreira Verderi
Artaud quando usa o termo “crueldade” fala da crueldade metafísica. O teatro da
crueldade a que se referiu, é uma maneira de fazer uma crítica sobre a cultura do
espetáculo. Artaud fala sempre de um teatro que não se confina num palco, mas que pode
se realizar numa conferência, por exemplo, e que pode se metamorfosear em qualquer
situação.
Trata-se de reelaborar o pensamento e quebrar uma linguagem formal.
Normalmente o discurso está sempre armado e falta a confrontação com o interno,
onde o pensamento titubeia. Há uma crueldade nesse pensamento, na confrontação com o
nascimento da linguagem.
Nasce de uma atitude interior e de uma experiência também ligada ao interno. E é
isso que vai transformar o que Artaud chama de vida. Uma atitude de desarmamento, uma
maneira de se lançar ao desconhecido.
Artaud vai negar a ideia de cultura enquanto produção, de consumo. Para ele, a
cultura é uma questão social mais urgente. Assim, o artista fala a partir da dor de existir.
Uma dor de fundo, este é o impulso metafísico. Crueldade e interrupção: com o
automatizado, com o discurso pronto.
O interromper para abrir-se para outro espaço. Mas antes do analisar, do
racionalizar.
Crueldade de Artaud: contra a cultura analgésica “Traje de Banho Para Sujar”,
apresentado no dia 28 de novembro na cidade de Catanduva, segue a linha artaudiana do
princípio ao fim, com toques de Pina Bausch e elementos musicais onde temos s impressão
de estarmos dentro de uma apresentação de composições de John Cage.
O etéreo, o mundano, a vaidade, a falta da vaidade, o desespero, a primeira
menstruação, a perda da virgindade ( com prazer ou não) é discutida de uma forma intensa,
onde vemos o poder do feminino, Gaia, explícita, numa nudez arrebatadora e condenadora.
387
A encenação de Tales Frey, junto com o Galpão 6 e Cia Excessos, aponta o dedo na
nossa cara, mostrando o que nós homens e mulheres, fazemos com o feminino interno e
externo. Sim, o feminino está incluso em todos os seres. Isto é fato mostrado e confirmado
nesta belíssima apresentação!
Uma encenação nada pretensiosa, sem exageros cênicos, e com um grande e
necessário exagero de mensagens explícitas ou implícitas, que só enxerga quem “é cego as
avessas” como Caetano já disse.
Uma encenação de primeiro mundo, onde tudo se comunica sem palavras,
provando que o teatro é uma língua universal!
Um espetáculo para ser apresentado e reverenciado em qualquer festival
internacional do mundo, onde tenham curadores de bom gosto. É a cultura das sensações
(do imaginário, do sensível), não da cultura erudita. Mas um teatro que vai do sensorial ao
intuitivo. Não é um teatro físico, apenas.
388
3.11. BarkingDogs
Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais
Março de 2009
ISSN 1983-0300
por Juliana Pinho
No princípio não era o Verbo. No princípio era o ecrã de televisão parado, com um
conjunto de riscos coloridos em contagem para a abertura da emissão. No nosso princípio,
no princípio de uma sociedade sem grandes princípios, a televisão marca o ritmo dos
acontecimentos. Mas não nos fiquemos por aqui pois também no princípio o autor e ator se
apresenta: ele é Tales Frey a interpretar Tales Frey. Mas não é por habitar essa
personagem, como numa consubstanciação, que se torna mais fácil para Tales interpretar
Tales. O autor principia com os avisos iniciais – 5 avisos, bem explicados, como bem
aberta está a sua mão – tal como numa liturgia. Aqui, este Te Deum é para glória de Tales
Frey, que durante a sua performance alcança o estado quase virginal (como podemos ver
quando se despe, qual Adão antes do pecado).
Após os avisos, ditados de cima de um banco, como o clero no púlpito, Tales começa por
nos mostrar cada um dos cinco episódios, intercalando-os com uma pequena coreografia
389
que tem muito em comum com a de Jan Fabre (My movements are alonelike street dogs),
mas que, aplicada como introdutória para cada um dos episódios, tem algo também de
obsessivo compulsivo, algo de extremamente doentio. Aos poucos percebemos que Tales
se vai transformando num exemplar canino. E porquê o cão? O cão está presente em todos
os episódios. Ele atinge o grau de Adão, mas logo em seguida entra na zona
diametralmente oposta à do Homem na escala da evolução. O cão é a posição que ele
ocupa do outro lado da escala. Já nas histórias que conta, todas relacionadas com cães –
autobiográficas ou não – Tales Frey passa de uma posição de comiseração e carinho para
com os diferentes cães que as habitam, para uma atitude impiedosa.
Quando nu, Tales-cão que não esquece a sua origem humana, corre a vestir-se, mas
demasiado tarde, já que incorpora parte da natureza canina. Não se choca por isso com a
passagem, vezes sem conta, do célebre episódio de Um cão andaluz de Buñuel. No
espetáculo Espasmos Caninos que teve lugar no Porto, no dia 25 de março no Tômbola
Show, realizado no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, o público não pareceu
particularmente incomodado com a imagem do corte de olho que o filme tornou célebre.
Note-se que este olho não era, no filme, um olho humano. Era o olho de um animal. E
neste processo de transformação, que passa pelo dono do cão (Tales Frey) vestir e calçar a
pele do cão, apercebemo-nos da referência concreta a Deleuze. O público passa então a
entreter e alimentar este cão com um alimento-objeto que o agora cão tenta acumular e
transportar como um cão treinado. Acontece porém que os cães treinados, quando aliciados
com dois objetos, não tentam devolvê-los ao mesmo tempo, numa só viagem. Mas este cão
que ainda é homem, que vive as duas naturezas, tenta fazê-lo em vão. Num último estertor,
e numa alusão ao Último Tango em Paris, opta por tentar transportar o objeto dentro das
calças. Note-se que os objetos em questão são pacotes de manteiga.
Na apresentação que teve lugar no Porto, a interação com o público foi constante e por
vezes até desarmante já que o público riu quando das histórias mais pungentes de cães
mortos. Estaremos nós, como Tales Frey, em transformação canina? Se sim, uma nova
liturgia se irá erguer: a liturgia que nos permite amar um animal como se fosse da nossa
natureza, mas nos enclausura numa espécie de amor incondicional que não obtemos dos
outros.
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4. Complementos das nove práticas performativas
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Parte de trás da brochura dedicada à Igreja de Santo Ildefonso.
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5. Materiais gráficos, cartas, notas na mídia, entre outras informações sobre as nove
práticas performativas
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Carta de aceitação da obra Re-banho por parte do MAC-USP:
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Carta-convite da presidência da Performance Art Foundation para participar no festival
Performance Platform Lublin 2013, na Polônia no mês de Outubro de 2013, com a obra
Proxim(a)idade:
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Página do catálogo com a programação de janeiro a março de 2015 do Teatro Municipal
Rivoli da cidade do Porto:
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Carta do CAAA para confirmar acolhimento da exposição em que expus todos trabalhos
elaborados nesta tese-projeto:
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Informações presentes no site do CAAA durante o período da exposição:
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Imagem do folder da entrada do CAAA durante o mês de Junho, período em que ocorreu a
exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais:
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Divulgação na mídia sobre a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais:
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Divulgação na mídia sobre a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais:
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Divulgação na mídia sobre a exposição Moda e Religiosidade em Registos Corporais:
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Material gráfico da exposição Beija-me:
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Divulgação na mídia sobre a exposição Beija-me:
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Divulgação na mídia sobre a exposição Beija-me:
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6. Trabalhos acionados para integrar a exposição dos nove projetos
performativos
6.1. Romance Violentado
Essa performance ocorreu no estúdio Para Sempre Tattoos na cidade do Porto em Portugal
no ano de 2011.
Preparação
Instruo um desenhista para criar uma fonte para a tatuagem “Romance Violentado”.
Depois, eu levo esse desenho ao tatuador.
Performance
Indico um local no meu braço direito ao tatuador para tatuar o título do trabalho e, em
seguida, me deito para ser marcado.
Nesta performance, eu faço uma alusão as marcas externas, como as tatuagens que
pretensamente fazem os “sujeitos enamorados” para demonstrar o amor, e internas, como a
dor do abandono gerada nesses indivíduos marcados. Também, essa ação liga-se
alegoricamente à novela Na colônia penal de Franz Kafka, na qual o resultado de escrever
no corpo fundamenta uma noção de ensinamento forçado de liberdade, a partir da
afirmação de um único sujeito com sua própria história (manchada de sangue).
O sociólogo polaco Zygmunt Bauman afirma que “quando se esquia sobre gelo fino, a
salvação está na velocidade” e “tende-se a buscar a desforra na quantidade” de
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relacionamentos efêmeros. Com essa afirmação, podemos dizer que a sincronia das marcas
externas e internas desse meu trabalho, me remete aos valores comuns que foram
pervertidos nas relações através da chegada das redes sociais (Orkut, Facebook, Twitter
etc.).
Ao terminar a tatuagem, eu me ausento do estúdio.
Ficha Técnica
Concepção e Performer: Paulo Aureliano da Mata
Som e vídeo: Tales Frey
Participação Especial: César Figueiredo – Para Sempre Tattoos (Porto / Portugal)
Fotografias: Daniel Polari
Fonte da tatuagem: Miguel Ambrizzi
Realização: Cia. Excessos
Porto, Portugal 2011.
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6.2 Faceless
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7. DVD com registros dos trabalhos desenvolvidos na tese-projeto
Além dos links que dão acesso ao conteúdo dos nove trabalhos construídos em
âmbito desta tese-projeto, todos eles podem ser visualizados através deste DVD que segue
na contracapa. As criações estão distribuídas na seguinte sequência:
1- Re-banho https://vimeo.com/30463043
2- Dismorfofobia https://vimeo.com/52476365
2.1- Dismorfofobia: Variante I https://vimeo.com/95617178
3- Sede Vós https://vimeo.com/67185994
4- (De)reter-se http://ciaexcessos.com.br/tales-frey/trabalhos/derreter-se/
5- Proxim(a)idade https://vimeo.com/72240545
6- Atendo ao Molde https://vimeo.com/67314636
7- Beija-se https://vimeo.com/44426567
8- Por um Fio https://vimeo.com/56336436
9- Aliança http://ciaexcessos.com.br/tales-frey/trabalhos/alianca/
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