Você está na página 1de 4

: Janer Cristaldo >> Assim Escrevem os Gaúchos :: http://www.geocities.ws/sitecristaldo/bicho.

html

: Janer Cristaldo >> Assim Escrevem os


Gaúchos ::

::Bicho Tutu

Apparicio Silva Rillo*

- Gurizada alarifa, esta. Parece que nunca viram um velho feio. Dão para espiar de
longe, como lagarto pra camoatim. Vai ver que até estes fedelhos já andam
acreditando nessas mentiras que o povo espalha por ai.

Sei que tem gente que me chama de bandido. Chomico! Pode que ninguém acredite,
mas eu fui homem de coração mole. E foi o que me perdeu - a minha bondade.

Quando meu finado pai me entregou pro Coronel, a um ror de anos, me lembro que
disse: -Respeita o Coronel como se fosse teu pai, guri. Ordem dele é lei, não te
esquece. É Deus no céu e o Coronel na terra.

O Coronel - que nesse tempo era moço - me tomou pra seu capanga. Me deu revólver
bom, adaga de bom corte; a melhor tropilha da fazenda para eu escolher o cavalo que
me agradasse. E eu sempre fui reconhecido aos que me ajudavam. De que modo,
então, me negar quando ordenava um rodeio de laço nuns cajetilhas maragatos? Não
podia me recusar. Me doía aquilo - eu sempre fui um homem de coração molengo -
mas ordem é ordem e eu sempre soube obedecer. E recusar de que jeito, quando me
mandou dar sumiço no doutorzinho do jornal? Claro que tive que fazer o serviço. E
bem feito, que eu nunca fui homem de deixar empreitada pelo meio: foi um tiro só,
atrás da orelha. Na volta, o Coronel louvou: -Serviço de gente branca, guri.-
Recomendou: -Em boca fechada marimbondo não faz casa, não esqueça. - Eu acresci:
-Segredo neste peito caiu morto, Coronel...

Nunca pude ver ninguém sofrer, bicho ou gente. Na revolução eu ficava bombeando
de longe o Azulão e o Talho Feio degolando. Eram uns brutos. Sem jeito, tratavam
como bichos aquela infelizama. Um dia eu não agüentei -pedi a bolada. O Azulão
arreganhou os dentes: - Vai te embora, guri, que teu ofício é outro. Aqui quem degola
sou eu e o Talho Feio.- Mas eu estava decidido: meu coração não suportava ver tanta
maldade. Disse pro negro: -Vocês são uns bandidos, estão degolando como quem
atora um pau. Pelei minha faquinha e pedi por favor que me deixassem degolar um
guri. Eu sempre tive muita pena de guri metido em revolução, longe da mãezinha
deles, passando trabalho. O negro deixou, só pra ver se eu me garantia mesmo. O guri
berrou, tinha chegado a hora dele. Eu disse:-Não te assusta meu filhinho, eu só quero
o teu bem, não posso te ver sofrer. Segurei o bichinho pela melena, calcei o joelho no
lombo dele, enfiei minha faquinha bem no pé do ouvido e puxei num golpe só até a
outra orelha. O guri caiu quietinho, garanto que agradecido por ter morrido sem
penar. Só a perninha dele ainda ficou batendo, tum que titum, enquanto o sangue
escorria grosso e quente.
Dias depois o Coronel me chamou. Me disse: - Tem um bando de maragatos presos
ali no capão. Dá um jeito neles, meu filho. Fui lá. Estava uma escolta cuidando dos
prisioneiros. Boleei a perna do baio-perneira, mandei puxar o primeiro e fiquei

1 of 4 13/12/2019 14:51
: Janer Cristaldo >> Assim Escrevem os Gaúchos :: http://www.geocities.ws/sitecristaldo/bicho.html

afiando a faquinha no cano da bota. Experimentei ela nos pêlos do braço: uma
navalha. O vivente botou a boca no mundo. Eu disse: - Não chora, meu filho, onde já
se viu homem de barba na cara chorar? - O desgraçado se ajoelhou na minha frente: -
Pelo leite que o senhor mamou nos peitos de sua mãezinha, não me mate, mocinho! -
Aí, eu disse: - Que pena, meu filhinho, eu fui criado guaxo...- E era verdade. Nunca
mamei leite de peito materno: minha mãe morreu quando eu nasci. Sei que tem gente
que diz que ela morreu de desgosto, por ter adivinhado o bandido que havia parido.
Quanta maldade neste mundo, mãe de Deus! Mas, como eu ia contando, o maragato
rogava por todos os santos que eu não matasse ele. Sempre tive bom coração, já disse.
Deixei ele amarrado ali perto, para degolar por último. Fui fazendo o serviço nos
outros -uns seis ou sete- pra ele ver que eu trabalhava bem. Quando chegou a vez
dele, afiei de novo a minha faquinha, puxei ele com todo o respeito e degolei com a
canhota. Havia cansado a mão direita, não tinha o treino que peguei depois.

Um capricho que eu tinha era de não sujar minha roupa com o sangue dos inocentes.
Quando se anda em revolução pouco tempo se tem para lavar os trapos. Me lembro
que só uma vez me sujei de sangue. Foi na degola de um castelhano. Cortei dentro de
minha ciência, de orelha a orelha, fundo. Pois o danado ainda deu uma volta inteira,
ficou me olhando com cara de louco, os olhos pra fora dos buracos. Quando me dei
conta foi aquele esguicho que me lavou os braços e a camisa. Fiquei até encabulado.
Não fossem pensar o Azulão e o Talho Feio que eu estava perdendo o traquejo. Mas
eu disse pra eles que castelhano é gente diferente, tem a veia artéria na nuca.
Acreditaram.
Eu era caprichoso, já disse. Outra coisa que eu era: ruim de estômago, se revoltava
fácil. Por isso nunca pude lamber o sangue da faca, como fazia o Talho Feio. O índio
jurava que sangue de negro era doce; então, sempre que fosse preciso degolar um
crioulo o Feio se encarregava.
O Azulão tinha uma mania engraçada: limpava o sangue na bombacha, não era como
eu que tinha uma garra de pelego para limpar a faca. No fim do serviço era aquela
nojeira, o sangue secava e empeçava a feder. O Azulão dizia que o sangue ajudava a
conservar a fazenda, engrossava o pano, nem carecia tirador. Mas com aquela
fedentina eu me revoltava:- Vai lavar esta bombacha, negro relaxado!-Uma vez ele
estava de recavém alumiando ao sol, debruçado numa barranca de arroio, lavando os
panos. Me deu vontade de fazer uma brejeirada. Campiei umas urtigas de mato,
daquelas de folha larga, felpudas, e esfreguei ligeiro e com força no traseiro do negro.
Dia que eu me ri muito. Chamei a gente do meu piquete para ver o Azulão arrastando
as polpas no pedregulho, como guaipeca com lombriga. Sei que depois andou dizendo
que se fosse outro ele carneava. Mas tinha sido brincadeira, caramba, e a gente não ia
brigar por isso. E, depois, eu acho que o negro tinha medo da minha faquinha. Tem
gente que tem medo de faquinha.

Bicho que sempre respeitei foi mulher. Mulher e padre. Padre é meio mulher, usa
vestido.
Uma vez a gente vinha numa escolta pequena, na vanguarda, quando chegamos num
rancherio ali pelo Iguariaçá. Mulher naquela época não dava em touceira. Viviam se
escondendo, mas ali tinha três chinas. Não eram lá essas coisas, mas na campanha
mocotó é lombo. Minha gente boleou a perna e foi se atiçando pro lado das morochas.
O Talho Feio já queria sacar a saia de uma pernuda quando eu gritei, de cima do meu
baio-perneira: - Alto lá, cachorrada! Respeito com as mulher! - Naquele tempo eu já
era meio tenente; galão se ganha é debaixo da fumaça e o Coronel conhecia meu valor
numa peleia. E quem tem posto que se faça obedecer. Gritei, a indiada refugou, eu
acresci: -Ninguém se acampa por aqui; vão tudo pr'aquele capão; o primeiro que
meter o focinho fora eu incendeio os trapos! - Vi que os índios acharam o puchero

2 of 4 13/12/2019 14:51
: Janer Cristaldo >> Assim Escrevem os Gaúchos :: http://www.geocities.ws/sitecristaldo/bicho.html

meio gordo, mas que recurso? Manda quem pode e obedece quem precisa.
Fiquei de dono do terreiro, com dois de minha confiança dando guarda no rancho.
Disse pras chinas, que choravam como umas galinhas, que fossem para o quarto, que
não tinha perigo, que eu cuidava delas. Tranquei a porta por dentro e fui sestear.
Sesta linda, seu! Tratei bem as bichinhas - eu sempre fui muito respeitoso com
mulher. Elas andavam com saudade dos maridos, as pobres, e eu tive pena. Matei as
saudades das três. Uma delas disse que não tinha marido, que era moça, tinha medo.
Pra essa eu falei que então aproveitasse, que a gente casava sem padre mesmo, que
depois da revolução podia ser difícil - perigava morrer tudo quanto era macho.
Quando saía do rancho, pela meia tarde, o Talho Feio vinha chegando, a meia
guampa. Não sei onde o diabo do meu amiguinho havia arranjado cachaça. Resolveu
me afrontar, falando grosso: - Tenente, neste piquete não tem um galo só. Arrede da
porta que eu também tenho esporão!- Arredei, sempre fui um homem bem mandado.
Quando passou por mim enfiei minha faquinha bem por debaixo do sovaco dele, do
lado de montar. Coitadinho do Talho Feio! Não sabia que mulher a gente respeita, até
mesmo em revolução. Fizemos um velório lindo, as três chinas ajudaram a chorar, era
de cortar o coração. Se o céu existe o Talho Feio anda por lá. Homem bom tava ali
mesmo...
Revoluçãozita buena a de 93!

Em 23 já não foi a mesma coisa. Já era então graduado: Capitão. O Coronel tinha me
provisionado à moda dele - eu merecia o galão.
Um dia fui ver a degola de uns prisioneiros. Me deu pena ver o sofrimento daquela
gente, sacrificada na mão de uma récua de brutos que pensam que degolar é matar
porco. Minha faquinha era a mesma de antes - tinha ficado de reserva esses anos
todos, pra quando carecesse. E careceu. Parece que a danadinha me entendeu.
Quando apeei do malacara ela já vinha saindo da bainha, que nem cruzeira da toca
em ponto do meio dia. Cortou sem qualquer ajuda aquela pescoçama toda...
Pena que durou pouco o entrevero. Coisa de poucos meses e se arreglaram, os
meninos. Os homens já não eram os mesmos, cho-égua!
Por voltas de 25 um piá me desacatou numas carreira no Povinho. A mocidade já não
era como no meu tempo; muito alarifa, não respeitava os mais velhos. Dei um laçaço
na cara do guri, com meu trançado de oito. Parece que o menininho não gostou; se
veio pela fumaça, como gato furioso. Até hoje o meu pala tem o furo da bala que
matou o pobrezinho. Quando é que ele ia pensar que eu estava calçando ele - o nagão
escondido por debaixo do pano, pronto pra um quero como negro em baile? Diz que
custou a morrer -eu já não tinha mão firme, acho - mas não deu para conferir porque
o pai dele carregou também. Quase me quebra o braço de um balaço. Atiramos
juntos, mas eu tive mais sorte: meu 44 abriu outro olho no meio da cara dele.
Me descuidei no entrevero e a milicada me cercou. Uma Winchester no peito tem
muita força, se tem! Mas nem me bateu a passarinha - tinha matado brigando. E o
Coronel, eu sabia, ia dar um jeito no processo. Não seria a primeira vez.
Mas, desta vez, não sei por que foi, fui mofando na cadeia, fui mofando, mandei
recado ao Coronel e ele nem água. Parece que andou dizendo que nem me conhecia
bem, que quem aqui faz aqui paga - coisas por este conseguinte. Se há coisa que dói é
a injustiça; nem tanto da Justiça, que por isso mesmo nasceu cega, mas dos homens.
Gastei o não podia, perdi meu campinho, minha ponta de gado, minha tropilha de
éguas. Meu advogado era moço novo e lo acabaram embrulhando. Levei meia dúzia
de anos na cadeia, com o que compreendi que defender o pelego já passava a ser
crime. Cadeia foi feita pra homem e agüentei sem um ai, no meio de uns bandidos
bárbaros. Foi aí que vi que engaiolar passarinho é o maior dos pecados.

Um dia me largaram. Tomei o trem e retornei às quietas, pronto para um ajuste que

3 of 4 13/12/2019 14:51
: Janer Cristaldo >> Assim Escrevem os Gaúchos :: http://www.geocities.ws/sitecristaldo/bicho.html

eu mastigara como um remédio ruim por esses anos todos. Cheguei diferente, barba
crescida, envelhecido e magro. Ninguém me conheceu, que eu percebesse. Quase
matei de susto a china velha que me cuidava o rancho. Pedi que se calasse, revirei o
baú e saí para a noite.
Quando entrei no escritório do Coronel - magrinho que estava, o pobre, mirradinho e
velho de dar pena - me conheceu de pronto: a faquinha na mão falava mais alto que o
meu nome. Não presta deixar um homem morrer de susto, é a maior judiaria. Eu
disse: -Se lembra de mim, Coronel? - Não sou homem de falar muito, falar atrapalha
as mãos. Enfiei minha faquinha bem no pé do ouvido do pobre do Coronel; puxei
devagarzinho até a outra orelha, e nem força careceu fazer; foi mesmo que cortar uma
braça de seda, até o barulhinho foi igual.
Parece mentira, mas saí chorando. O Coronel tinha sido quase um pai para mim.

Bati na marca, me fui pro oco do mundo. Rodei por aí anos e anos. Me arranchei
nesta querência, casei com mulher trabalhadeira e moça, criei filho. Este rancho eu
mesmo construí, neste pedaço de terra que comprei com o meu dinheiro.
Mas as histórias vão surgindo. Erva ruim brota em qualquer parte, e o povo tem
muita imaginação.
Dizem, entre tantas mentiras, que não tiro o pala para disfarçar as armas, sempre à
mão de semear. Tudo falso, como rengueira de cusco. É que depois de velho o frio
castiga, e o palita me ajuda como um sol.
Me contaram - gente que não precisa mentir - que tem mulher embalando criança
com meu nome: - Dorme, menino, sinão o Capitão Pedra te pega...- Ora, já se viu?
Andar servindo de bicho tutu depois de velho. E Capitão Pedra, tem jeito? Logo Pedra
- para um homem de coração molengo como eu. O que aliás me perdeu - minha
bondade.

*Apparicio Silva Rillo nasceu em Porto Alegre, em 1931. Iniciou estudos de Economia
Política na PUC-RS, passando mais tarde a viver em Nhú-Porã, interior de São Borja,
em permanente contato com os costumes gauchescos. Fundador do "Os Angüeras",
grupo amador de arte, de São Borja. Livros publicados: "Domingo no bolicho", teatro,
1957; "Cantigas do tempo velho", poesia, 1959; "Viola de canto largo", poesia, 1966;
"João Gaudério e João Peão, vida e paixão", teatro, 1969; "São Borja, aqui te canto",
poesia, 1970. Tem vários trabalhos inéditos sobre o folclore gaúcho.

Voltar página inicial

4 of 4 13/12/2019 14:51

Você também pode gostar