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Ciência & Saúde Coletiva, 14(4):1307-1312, 2009


Barker G. Homens na linha de fogo: juventude, homens jovens. Esse cenário poderia provocar
masculinidade e exclusão social. Rio de Janeiro: uma grande bomba explosiva e, no entanto, ain-
7Letras; 2008. 256 p. da assim, há, de forma inegável e expressiva,
homens que resistem à adesão a um script espe-
Elaine Ferreira do Nascimento rado, de ser violento ou pouco propositivo.
Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo De fato é isso o que Gary nos põe a pensar;
Cruz existem muito mais homens que não praticam
violência do que o contrário e/ou mesmo assim
Gary Barker é psicólogo e doutor em psicologia do a literatura de um modo geral não tem se ocu-
desenvolvimento infanto juvenil pela Loyola Uni- pado deles.
versity. Foi durante longo período diretor do Ins- Logo no início do texto, Gary apresenta como
tituo PROMUNDO e hoje ocupa o cargo de dire- será a estrutura; para além disso, nos informa
tor de gênero, violência e direitos da SRW. Vem se que dará um tom muito pessoal e não poderia
debruçando há mais de duas décadas em pesqui- ser de outra forma, uma vez que apresenta o
sas que têm gerado ações interventivas para e com livro a partir de suas próprias experiências de
homens jovens, sendo um dos principais atores como se constitui em ser e estar no mundo como
sociais em promover a visibilidade dos homens homem e em exercer a sua masculinidade.
jovens para além de potenciais autores de violência Muito além de ser uma obra acadêmica, e
contra a mulher e outros homens considerados não existe nenhuma preocupação com essa for-
inferiores. ma na pesquisa realizada pelo autor, apesar do
O objetivo do seu trabalho de campo, que po- rigor metodológico empregado no decorrer do
demos chamar de experiências e vivências que vem processo, Gary busca uma forma muito subjeti-
colhendo ao longo de praticamente dez anos, é va e paradoxalmente objetiva de nos brindar com
apresentar um conjunto de pesquisas que envol- sua visão de homem, branco, de classe média
vem situações de homens jovens, em contextos a alta norte-americana e, portanto, privilegiada,
princípio distintos, porém nem tanto, pois o eixo mas com uma imensa sensibilidade de compre-
estruturante é sempre o mesmo e pode ser visto ender o mundo para muito mais do que se espe-
como um elemento comum e aglutinador entre ra de um homem que figura na hierarquia soci-
esses homens de diversas partes do mundo. Os oestrutural como “dominador”.
campos da pesquisa foram Rio de Janeiro, Chica- Para sustentar tal argumento, o autor orga-
go, Caribe e algumas cidades de países da África niza o livro em dez capítulos e mais um apêndice
Subsaariana. Os elementos comuns foram mas- que se ocupa da parte metodológica de todas as
culinidade, juventude e raça/etnia, atravessadas pela pesquisas, com detalhes etnográficos riquíssimos.
questão de desigualdade de classe. O capítulo I descreve, a partir de dados de
Gary busca refletir, a partir de uma série de diversos estudos e pesquisas, articulados com di-
questões que coloca ao mesmo tempo para si e álogos que o próprio autor entabula, um con-
para seus interlocutores e interlocutoras, ou seja, junto de questões estruturais que tem posto tra-
nós, que apesar da existência de múltiplas mascu- dicionalmente os homens, em particular os ho-
linidades, de um modo geral, a literatura tem qua- mens jovens, em situações extremas de vulnera-
se que exclusivamente dado espaço ou explorado bilidade e risco social. Ainda nesse capítulo, é apre-
as facetas “negativas” das masculinidades. sentada a escolha do objeto de investigação: por
O exercício que o autor faz é bastante interes- que os homens jovens? Nesse processo, conju-
sante, pois apresenta um contexto em que várias gam-se três dimensões que ao mesmo tempo são
características consideradas como pertença da relacionais e estruturais: gênero (com recorte na
masculinidade podem ser vistas como um proces- masculinidade) e associado a juventude, classe
so naturalizado e se, por acaso, os homens não (num contexto que discute exclusão social e aces-
conseguem exercê-la, podem ser vistos como fra- so à saúde) e raça/etnia (ser negro ou, dependen-
gilizados e desmoralizados. Essas características se do da etnia a que pertence, tende a agregar uma
relacionam a questões étnicas/raciais e desigualda- maior vulnerabilidade nas sociedades estudadas).
de de classe, gerando menos poder para um deter- O argumento central do capítulo é claramente
minado grupo de homens. exposto pelo autor “[...] promover versões de
Nessa perspectiva, ser negro e pobre são variá- masculinidade baseadas no respeito, na não-vio-
veis que podem ser consideradas de menor valia, o lência e em uma ética do cuidado em lugar de
que pode acarretar um conjunto de situações des- uma ética da violência e da dominação” (p. 24).
favoráveis a muitos homens, em particular, aos O capítulo II situa quem é o homem que está
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Resenhas Book Reviews

por trás da escrita e, para tal revelação, Gary se as visões dos jovens estão inseridas num contexto
apresenta de forma totalmente exposta; possivel- ainda pouco favorável para mudanças das relações
mente, não poderia ser de uma outra forma. Faz entre homens e mulheres; porém, existem jovens
questão de se colocar na primeira pessoa, de com- que tendem a questionar essas desigualdades e que
partilhar experiência de forja de sua masculinida- acham que os homens não devem ter mais poder
de e, portanto, seus medos em romper com os do que as mulheres. Outra discussão apontada nesse
scripts, suas expectativas em não ser rejeitado e a capítulo pelos jovens é de que as meninas das co-
sua coragem em poder superar o que estava colo- munidades pouco valorizam os rapazes se eles não
cado como hegemônico e só pode fazer isso ao são pertencentes aos grupos de gangues ou do trá-
deslocar ou relativizar os sujeitos que se encon- fico, pois eles terão menos dinheiro e poder nos
tram no lugar de dominadores, não justificando, espaços em que residem.
obviamente, mas sempre problematizando que as O capítulo IX é trabalhado de forma muito
armadilhas podem ser vias de mãos duplas. singular; aqui será discutida a questão do exercício
Do terceiro ao sétimo capítulos, são apresen- da paternidade. O autor dá, como sempre, voz aos
tados cenários que têm como recorte principal- jovens, buscando estabelecer uma análise e inter-
mente as discussões de classe, raça/etnia, passan- pretação dos processos das relações mais ocasio-
do por situações de sociabilidade masculina, em nais até as mais regulares e de longa duração. Como
que a violência (relação com gangues, tráficos e acontece esse processo, como esses jovens apren-
milícias) aparece fortemente num contexto em que dem a lidar com a paternidade e de que forma esta
há uma quase que total ausência do Estado em relação com seus filhos promove mudanças signi-
ofertar políticas públicas. Os homens jovens e ne- ficativas na vida desses jovens. São apresentadas
gros são invisíveis para o Estado, residem em loca- várias histórias de como foi fundamental ser pai
lidades, comunidades, bairros, territórios geográ- na juventude para que outras posturas, mais posi-
ficos sem nenhum ou pouquíssimo investimento tivas, pudessem ser adotadas por esses jovens, ou
estatal, mas assim como o restante da população, seja, o que a literatura diz em relação à paternidade
são contribuintes e isso não significa nenhuma di- precoce, Gary põe em cheque.
ferença. A rede socioassistencial nesses espaços será E, por fim, o capítulo X é a conclusão do autor
mínima; desta feita, o acesso e permanência nas sobre a trajetória desse processo etnográfico. De
escolas públicas serão sempre de muita dificulda- acordo com Gary, um dos principais desafios a se-
de, um sistema de educação que não consegue di- rem superados é o reconhecimento de que o pro-
alogar com esses jovens. Por sua vez, tanto a renda cesso de socialização dos homens e das mulheres
quanto a capacidade de uma inserção melhor no tende a colocar armadilhas para a humanidade
mercado formal de trabalho será ínfima. Com todo como um todo, como ele mesmo afirma [...] jovens
esse cenário desfavorável, os homens jovens do demais estão morrendo para se tornarem homens –
estudo apresentam uma outra inserção de ser e morrendo por efeito da violência, da aids, de aciden-
estar no mundo, diferente de exercer a violência tes de carro e de outras causas que têm pouco a ver
como a única possibilidade de expressão. com questões genéticas e biológicas e muito a ver com
Então, será a partir de um conjunto de relatos a maneira pela qual eles são socializados (p. 201).
e experiências compartilhadas desses jovens que Gary defende com fervor que é preciso acredi-
outras histórias são contadas, apresentando um tar na capacidade de mudança dos homens e das
universo que pouco tem sido explorado. mulheres em nossa sociedade. Assim, Homens na
O capítulo VIII relata as experiências de relacio- linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão
namentos sexuais em tempos de aids e das relações social é um trabalho que fala muito da vida, do
de desigualdade de gênero. Discute muito a presen- potencial de gerar produtos positivos e de que nós,
ça da tensão e conflito das relações entre homens e homens e mulheres, somos capazes de realizar tal
mulheres jovens e, em particular, na cidade do Rio feito, está em nós essa possibilidade. Um exercício
de Janeiro, os jovens apontam não terem exemplos necessário é se implicar e não aceitar o que “pode”
positivos dessas relações dos seus ambientes fami- parecer natural, é questionar e acreditar em outros
liares e mesmo do espaço mais amplo em que são processos de sociabilidade de ser e estar no mundo.
socializados, tendo por muitas vezes crescido em É uma obra que toca, pois fala do que é humano,
contextos de violência doméstica ou sido testemu- do que é complexo e do que é fundamental para
nha ocular da violência que suas mães sofriam por construirmos outras perspectivas de masculinida-
parte de seus pais ou padrastos ou mesmo vítimas des e também de feminilidades em nosso cotidiano.
dessas violências. Muito foi problematizado pelo Portanto, se faz um livro imperdível que nos toca e
autor acerca das desigualdades de gênero, em que nos emociona da primeira a última página.

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