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TRATADO DA

Renato
FALSIFICAÇÃO

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Ornato

DO PENSAMENTO
TRATADO DA FALSIFICAÇÃO DO PENSAMENTO
© Renato Ornato 2017
© Waf Books 201
TRATADO
DA FALSIFICAÇÃO
DO PENSAMENTO

Renato Ornato

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MMXVII
TRATADO DA FALSIFICAÇÃO DO PENSAMENTO 7

Os cautelosos vivos soem-se acompanhar de um pensam-


ento polivalente, de harmonias estridentes, que não saem
nem da lingua nem dos dentes. Os incautos deixam-se cegar
pelas mirambolantes maravilhas que enchem e ecoam no
céu e na terra, como presas para a persuasão devoradora.

O prazer arma as suas tendas. Aqueles que se deixam tragar


na guerra dos simulacros ignoram do autêntico prazer a in-
decência e o pudor, e a forma como os astros favorecem os
animais que em tudo dissimulam.

Os homens procuram a justiça como uma bomba que de-


fraude os encantamentos.

Mas a vida não passa de má montagem cinematográfica.


Tal como os sonhos e todas as bizarrias psicológicas.
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Ele viu os cedros como uma concisão absoluta, como a


gramática do extase.

E a minha amada era um alvo honesto cheio de floridas


evidências.

E disfarçava na beleza as maneiras violentas que lhe as-


somavam no peito.

Emudecia, como quem tolera o silêncio.

Percepitava-se na contemplação com uma suave sapiência.

Todas as estradas são precepícios.

A vaidade não procura quem a aconselhe. Tudo é vaidade,


sobretudo os deuses, as metafísicas e a fuga das garras
suaves da vaidade. Encontrarás vaidades intelectuais, nam-
oros com o Demiurgo, orgulho no ascetismo.

A verdadeira cognição não precisa de etapas. Vai direito


ao assunto. As etapas podem ser vírgulas ou pontos de ex-
clamação quando o caminho é longo.

Estarás sempre em desvantagem – essa é a tua vantagem.


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O sujeito é um negócio. É o indivíduo enquanto trans-


acção de máscaras sociais. É o movimento das dificuldades
íntimas. É um subterfúgio que procura na encenação dos
gestos uma maneira extravagante.

Se puseres nas palavras as pequenas coisas não darás a en-


tender que a tua ambição procura ter filhos.

A intencionalidade é algo decisivamente selvagem.

As cicatrizes são julgamentos que recaiem sobre os outros.


As feridas desculpam-nos. Mesmo quando não são convi-
centes.

Adiar uma coisa como se a reduzissemos a zero.

Será preferivel emendar ou liquidar?

A dissimulação parece uma diminuição para o vulgo. Trata-


se, no entanto, de providenciar os aumentos, de dar fôlego
à potenciação.

O que escrevo é para arrasar a minha vontade. Mas ela


sabe resistir.

O gosto do público é uma má esperança e uma desastrosa


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consolação.

A nudez mitológica de Adão e Eva é que encena a fraude


– a criatura que se veste é uma simuladora. A pele edénica
é uma máscara. Uma máscara inocente. É só através da
censura sexual que as partes baixas se tornam obscenas.

A descoberta do pudor é apresentada como uma tragédia,


como o nascimento da culpa, mas este texto biblico está
destituído das violências fundadoras e dos rituais de sangue
que lhe seguirão. A culpa surge num ambiente de comédia
brejeira, e será difícil não desculpar criaturas tão naifs que
cometem uma infração tão ligeira quanto o provar um fruto
proíbido (a quem se destinaria tal fruto?). A severidade da
punição é desproporcional, e o Criador também tem a sua
quota-parte de responsabilidade neste argumento de opereta.

A simulação começa na roupa, no vestir, na puritanização.

A simulação institui a pornografia. A diferença entre por-


nografia e fotografia é irrisória. É na pornografia e na foto-
grafia que o Mal se exacerba como hipotética transgressão,
como reedição da culpa, e entrega masoquista à exploração
desse sentimento complexo. O prazer da transgressão é, de
certa forma, um exebicionismo para «Deus», uma espécie
de acusação, uma delirante adulação.
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A confortável neblina da mentira...

Muitos excluem-se da redoma social para se consagrarem às


cadências do romanesco.

As canduras voltam a adocicar os venenos.

Há momentos em que as infelizes contradições se tornam


divinas.

Cada época procura industriosos argumentos. A desordem


proporciona-os.

O significado é uma ponte entre uma opinião maliciosa e


um acolhimento cínico.

As verdades até acabam por ser bonitas quando vistas em


contrapicado.

Mesmo os provérbios chineses pirosos estão cheios de som-


bras e ameaças.

A honestidade é um meio (ou um fim) que justifica as


farsas.

O amigo do carniceiro será um dia pendurado no talho.


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O intelecto procura repouso nas coisas, como quem chega


num dia tempestuso a um lar aconchegante.

A virtude é a força da contemplação, é a manipulação da


atenção.

Os pensamentos nobres têm a sua gravidade, o seu peso


interno, mas gostam de andar em bicos dos pés. Não neces-
sitam de holofotes, porque isso só os tornaria vulneráveis.
Surgem da espuma das ondas divinas, como algo burbul-
hante, arrastando oráculos desfeitos e fósseis de deuses pré-
históricos.

As substâncias têm os seus acidentes. Toda a substância é


acidental, e todos os acidentes se substancializam.

A mutabilidade não é necessáriamente mutilante, mas uma


mutilação é sempre uma mutação.

O pensamento dissimulado age como os amantes tímidos


que amam incondicionalmente: tenta dizer e não dizer;
ousa desmesuradamente, mas não é suficientemente ex-
plícito. Mesmo as entrelinhas que deixa para lêr são de-
masiado ambiguas. Onde é que quer chegar? Quer manter
a aventura em suspenso? Consegue saír da toca das suas
contradicções?
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A elipse faz o desaparecimento geométrico das essências. É


como uma cidade que perdeu o seu centro e que transpira
de explendor nos subúrbios. O que parecia uma irremidável
contracção, um gesto de puro pudor, resolve-se em con-
torcido exibicionismo, num gosto pela complexidade e pela
expansão. A acção essêncial da elipse é a de propulsionar
os efeitos que estavam em potência. A acção secundária é a
de simular um desaparecimento que nunca se chega a dar.
As atenções que dá ao vazio e ao nulo são o pretexto para
recolher os ecos que chegam de todas as partes.

O homem é um abismo nú que gosta de se vestir.

Para nos aproximarmos da nossa humanidade, temos


começar por descascá-la.

A humildade é quase sempre uma estratégia de sublimação.


É Jesus que o proclama quando diz que para se chegar ao
reino dos céus devemos humilhar-nos como os meninos.

A imprudência calculada... a gaffe como uma arte de dar


nas vistas. Há também a falsa imprudência como uma es-
pécie de estilo que serve para desfazer as aparências das
prudências alheias dando um ar de naturalidade e de im-
previsibilidade.
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Pertencemos à lama, mas não sei muito bem porquê.

Os universais procuram refugiar-se nos pormenores.

A beleza demonstra-se como um conjunto de axiomas que


emergem do amor.

Extrair a verdade como uma cárie.

Crisípo foi censurado por descrever as obscenidades sex-


uais entre os deuses. Mas a acção divina é quase sempre
obscena. O inexplícito na acção tem um fundo repugnante.
Ou atraente?

O ornamento, e todo o tipo de adorno, tem uma razão


mais forte que os conceitos, uma vez que emerge da na-
tureza directamente, sem raciocínios fraudulentos. Podemos
dizer que essa razão é táctil, como a atracção amorosa
de uma pele. É pelo estilo que essa racionalidade táctil se
manifesta. Para chegarmos a qualquer conteúdo temos que
escarafunchar muito.

Há um estilo directo, possante, curto, claro, sem rodeios.


É nessa sobriedade estilistica que se fazem os apelos maís
hipócritas. É um estilo doce como uma guerra. Ou rápido
quanto uma revolução.
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O caracol é discreto, não partilha a sua intimidade. Isso


parece-nos òbvio.

A conjugação de contrários torna o pensamento herma-


frodita, mas não o seu pensador.

A impaciência confunde-se por vezes com a imbecilidade.


O que é uma pena! A impaciência é a acção desacautulada
de uma urgência. É a urgência somatizada. A impaciência
faz mais e melhor obra que o labor paciênte, ruminado e
polido. As imperfeições que são fruto da impaciência, assim
como os derivados inacabamentos, agem como uma propen-
são que se mantém fresca com os séculos.

Os séculos de ouro cultivaram com primor o pechisbeque.

É na desatenção que os contornos singulares surgem mais


nítidos.

Ele encontra satisfação na floresta de apelos das obras mais


subterrâneas.

Devorar a natureza é estar com ela. É na degustação dos


seus pastos que ela desvela a sua cruel mecânica.

Tornar o corpo àgil é mais urgente e importante do que


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fazer o exame da consciência ou da inconsciência.

As obras de arte resultam de encenadas orgias entre as


influências.

A civilidade é desdentada.

Uma boa justificação para fazer falsas traduções é o prazer


da «infidelidade conjugal».

Uma má justificação para fazer boas traduções é a da fi-


delidade ao autor, à obra acabada. As obras acabadas estão,
enquanto acabadas, mortas. Necrófilia?

Dar tempo ao tempo é útil para sarar feridas ou deixar-se


morrer, mas é péssimo para convencer alguém.

Temos, logo à partida, de desconfiar da honestidade natu-


ral. A natureza nada tem de honesto. A honestidade a que
nos podemos permitir é aquela em que nos apercebemos
e disfrutamos dos limites do pensamento. Porquê? Porque
os jogos de linguagem, e sobretudo aqueles que usam e
abusam dos fantasmas conceptuais, se apoiam num ingénuo
bluff – o de fazer corresponder as palavras aos actos e às
coisas.
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Ulisses é o heroi que lacrimeja. As suas lágrimas acabam


por se confundir com as lágrimas dos desterrados em Babiló-
nia dos autores dos Salmos. Ulisses chora porque todo o
passado faz com que o presente seja um exílio.

O bem presente também é um exílio, talvez o mais duro.

Os herois épicos preferem a recordação dos males passados.

A amizade é uma correspondência sem cartas. O amor


torna-nos cativos de uma propensão elegiaca.

Os antigos não admitiam que qualquer coisa pudesse gerar


o vazio, mas o vazio é o mais artificial dos produtos nat-
urais.

A ilustração mais fatal da mentira é o silêncio.

Cala-te!... como todos os culpados.

Fecha os lábios, mas move a lingua por dentro.

A vergonha faz-nos engulir muita coisa em seco.

O mundo e a sua variedade são demasiado estreitos para


a amplidão dos nossos ânseios. Mas o anseio não basta.
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Por isso há que rectificar a balbuciante ânsiedade com ac-


tos. Nem que sejam picarescos.

É na voz estridente que o mundo encontra um espelho à


altura da sua equívoca glória.

Muitos andam agarrados às saias e saiotes da fortuna.

Acomodava-se em provérbios cujas pernas estavam partidas.

Amava a outra pátria por causa da estrutura musical do


hino.

O fingimento é uma arte que tenta iludir a mortalidade


com argumentos convincentes.

É preferível morrer a aceitar a morte depressa.

As sombras são monótonas e traiçoeiras? Ou gatos a tren-


tarem sere pardos como a noite?

escuridão é honesta na sua pretensão de ambiguidade e


perigo. As formas do falso são tão quiméricas quanto as
do paladar.

É da verdadeira admiração que nascem as rupturas.


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As rupturas geram amizades.

A corda do fáquir leva a um céu de escorpiões.

Coloca a mão no fogo até que o fogo se queime.

As falácias indicam o caminho para as falésias. Ajudam a


que nos desviemos delas.

A falácia é o felatio da lógica.

Falhei na dignidade, mas não falhei nos objectivos.

A sua concisão era como o baixo continuo – dava alguma


margem de manobra para improvisos.

Abraça a melancolia como um prelúdio de uma alegria


maior.

O céu não tem cura, quanto mais a terra!

O homem livre é o que destruiu a vontade de simular.

A alegria não precisa de ordem para se aguentar nas per-


nas.

Os atributos dos povos a que pertencemos não são os nossos.


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As tempestades do coração desfazem as soberanias mais


consolidadas.

Um exercicio rende melhor graças às suas maneiras mais


arrepiantes.

Há algo de pernicioso nas alegorias que as torna mais fres-


cas e saborosas.

Ele retirava o freio às afeições para que elas carnavalassem.

Sucumbi à deliciosa tirania dos dissimulacros.

A potência só se satisfaz através da polivalência.

Corrigir os juízos é acrescentar-lhes perplexidade.

À lógica platónica do modelo/simulacro deve-se opor uma


gramática de dissimulacros, uma contaminação mimética.
As aparências ou estão em perpétua guerrilha ou em frívolo
carnaval. Não são os modelos que geram as coisas, mas a
interacção de multiplicidades que se dispõe como exércitos.

A simulação é contraceptiva, disfarça a criatividade ga-


rantindo as aparências. A dissimulação é conceptiva, ga-
rante a criatividade disfarçando as aparências.
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As coisas não querem ser vistas tal e qual como são. Daí a
necessidade de máscaras e véus. Não que haja algo de real-
mente arrepiante debaixo das máscaras e dos véus. Antes
pelo contrário. Mas as coisas querem ser vistas «disfarça-
das», para sua protecção, para que não pereçam engolidas
pelas outras coisas. Daí que a contrafacção do pensamento
seja sempre estratégica e teatral.

Deslembro-me incertamente – a memória é um hálito que


não nos abandona, mas que nos enreda com uma distor-
cida cumplicidade. Não se pode simular o passado. Não
o podemos representar nem o identificar com rigor. Não
recordamos, só deslembramos. Desrememoração... Suban-
amnése... A falta de rigor do passado é compensada com as
rigorosas memórias, com as imagens que lhe sobram como
se fossem precisas evidências. Essas precisas evidências são
representações maravilhosas, mas não passam de represen-
tações muito circumstânciais que falsificam a complexidade,
as ambiguidades e a mutabilidade dos acontecimentos. Des-
lembrar é aprofundar a inextricável glória das recordações.
É livrá-las do informe e dar-lhes caprichosos contornos.

Os enigmas procuram ferir a mente com ferros em brasa.

A arte deve ser vista como a porta traseira pela qual


podemos fugir dos dilemas trágicos a que parecemos estar
condenados.
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Escapa-te a toda a solicitude que te quer esmagar ou mes-


gulhar em sangue e lágrimas. Submete-te ao exílio como se
este fosse o Paraíso.

O cadáver disfarça os favores que o tempo e a vida conced-


eram. Ignora-se que o cadáver assinala a maravilha que foi a
vida e o nascimento, e as possibilidades não desperdiçadas.

No célebre discurso de Hamlet a incerteza pesa sobre a


possibilidade da morte não poder ser uma consolação, uma
tranquilização, um puro nada. A dúvida que recai sobre a
morte é mais terrível do que as dúvidas, mais plausíveis,
que nos assaltam na vida.

Há idades que favorecem a gentileza.

Lá encontrarás as côres que te assombram, os vermel-


hos hipnotisantes, o azul consolador, o trágico púrpura, o
açafrão efevrescente como a dança de Shiva Nataraja.

Pedes a beleza mortal, ou o doce tormento, mas o que te


dão são palavrosas batalhas onde a inconstância dos senti-
mentos é salva por uma subterrânea música de harmonias
sem freios.

O grande sofista é òbviamente o demiurgo. Somos


escravos da sua dança criativa. A nossa mão e os nossos
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pensamentos são perlongamentos das suas frenéticas de-


cisões e indecisões. A dissimulação dá-se quer no micro-
cosmo quer no macrocosmo.

A divindade vive do terror de nada ser fiável. É o último


recurso das nossas esperanças. Entregamo-nos a ela como
se quisessemos ser devorados pelo engano dos enganos.

O facto de ele ser versado no bom-gosto não o obrigava a


fixar-se nesse paladar. Porquê? Porque o que ele pretendia
era a variação, mais do que uma ética que lhe caísse no
goto.

É do talento que brotam as mais alegres calamidades.

A sobriedade é um fato pendurado há já muito tempo no


guarda-fatos.

Os epigramas tornam a amizade inquietante.

Para o pensamento viver descansado precisa de uma almo-


fada excelente.

Pode-se mostrar algum desprezo para com a razão, mas


não podemos ser insensíveis a conjunturas e raciocinios que
nos permitam orientar e tomar decisões. A razão é aquilo
que nos permite fazer projecções e projectos – um alicerce
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frágil, enganador, mas imprescindível.

É da impossibilidade do similar, e das analogias profundas,


que faz nascer a convicção de que é o inidentificável (e
não a diferença) que governa a natureza – a dissimulação
no dissemelhante.

Os simulacros parecem-se com lobos de dentes afiados. É


a lógica da comunicação social. A nossa comunicação é
associal ou dissocial?

A voluptuosidade rectifica as especulações.

Uma notícia é apelativa graças ao seu teor de violência.


Procuro extraír o apelo do não-apelo, a frágil crueldade da
não-crueldade.

Qualquer manifesto é um incitamento ao furor... se pos-


sível divino.

O tolo acredita que ele pode ser o artifíce de uma conduta


prudente.

Nem na extremidade há ou haverá eternidade.

Quem aposta no cavalo do inefável não deve abusar das


metáforas dúbias.
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É nos interstícios dessas metáforas dúbias que o inefável é


pilhável!

A ruiva ravina das desordens...

A monstruosidade é o adorno dissimulando o divino. O


divino é o terror. O adorno apazigua-o como um aguaceiro
sobre um incêndio.

Ninguém nasce de si mesmo – somos sincretismos gené-


ticos filtrados por pastiches sociais.

A medida do seu talento é inversamente proporcional à das


suas penas.

Uma opinião superficial é mais maravilhosa do que uma


filosofia com demasiadas profundesas.

A modernidade é a consolação do esquecimento.

A moderação é uma cilada armada pelos inclementes.

Para um pensamento andar sobre rodas precisa de ter bons


pneus.

Ao prazer deve-se juntar um pouco de piri-piri.


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A tentação de ceder à ética do simulacro é a vontade de


participar numa alienação insipida. É nesse género de sopa
que a humanidade está caída.

O amor é o melhor antídoto para o bom-senso.

O amor incendeia a retórica interior.

O terrorismo é o alicerce dos estados.

Deitou fogo a todas as suas convicções e agora nem sequer


encontra as suas cinzas.

Ama o mundo como se este fosse um vaudeville. Era bom


que fosse?

As lágrimas são um cortês convite a suplícios bem maiores.

A sua afeição fazia progressos que me incomodavam.

O mal que o amor esconde acabará por florescer noutras


primaveras.

Um suspirar suave que é inimigo do espetáculo.

A ira move-se com os seus navios ao longo das margens


da ambição.
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Os naufragos da paixão acabam por ser recolhidos por in-


adevertidas criaturas.

Manietar o pudor...

A ira pode render melhor quando estimulada pela vingança.

Os amantes ventilam desejos insatisfeitos.

A mente precisa de tempestades para se regenerar.

O estilo desprezante disfarça a doçura. O romancista que


trata mal as suas adoradas criaturas fá-lo por excessivo
pudor – é a forma dilacerada de dizer que as ama. Mas
também é uma demonstração de inveja. Ele sabe que elas
o abandonarão e que lhe sobreviverão nas perversas mãos
dos inquietos leitores.

Um erro evidente para todos será bem disfarçado se as-


sumido com lata e humor.

O conhecimento é uma bomba retardada.

Pitagoras ensinou-nos a fazer crochet com rigor geomé-


trico.

As palavras ressoam e compõe-se por simpatia, como as


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como as cordas de determinados instrumentos.

Há os conceitos que geram, há os que são primogénitos, e


finalmente os bastardos. Estes pertencem a essa espécie que
escapa às heranças e que não se reconhece nas juridisções.

A lingua coze-se no seu lume e move-se no seu leme.

Há momentos em que os detalhes são mais importantes


que o negócio.

Sem desprazer o teatro do mundo seria de um tédio con-


frangedor. Por isso se buscam os trágicos sofrimentos como
salada de emoções. Mais do que espectador, o homem pro-
cura ser uma besta que age para teatralizar as descargas de
adrenalina e encenar as canalhices do poder.

Há um lado pulha nas mutações e de que não devemos


descurar.

Os deuses organizam a sua autoridade, o seu prestígio e a


sua acção através de proibições demasiado evidentes. Um
verdadeiro deus organizaria a sua teia de poder pelo meio
de regras icogniscíveis.

É difícil escapar quer à hipocrisia da modéstia quer à da


glória. Só na hipocrisia assumida não há excessiva hipocrisia.
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O vento corre a favor das aparências sinistras.

O que me agrada no catolicismo post-tridentino é a mag-


nifica consciência da estrutura hipócrita da igreja (que aca-
ba por ter algo de extraordináriamente salutar) contrastada
com a outra hipocrisia, não-assumida, higienista e tanática
dos protestantismos mais radicais. Há uma militância pela
metáfora, pela carne, pelo rito que é tudo menos «ética»,
mas que é mais ética do que a ética e mais forte que a
lógica de Deus.

A glória vende-se e a excelência corrompe-se. A própria


posteridade, apesar dos carimbos de garantia, é caprichosa.
Se as conjunturas do presente não nos oferecem as mínimas
garantias, porque é que as hão de oferecer as do futuro?

Era um devorador do aplauso devido à sua inconsequente


exaltação.

Poucos são os que buscam excelência e muitos os que se


entretêm a espetar facas. Estas desventuras são banais tal
como a sua constatação. Mas as facadas não se espetam na
excelência, por mais que a consigam ocultar.

Há homens que se enterram nas suas próprias revelações.

Suspeitamos que cada criatura tem uma sabedoria (ou várias)


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que a procura e que se lhe ajusta, e que as sabedorias e


remédios para todos são mais assassinas que os canibais.

Disfarçava as virtudes como quem faz um atalho para si


mesmo.

A necessidade da estrela não é a mesma do camelo.

A maioria das vezes a mais bela das ordens ofende a vista.

Os ornamentos inactivos são ferramentas da espontanei-


dade.

A tirania procura leis para poder respirar.

A opressão não é apenas um jogo de forças social ou


político, mas um estado de ar no peito.

Slogans tristes como suspiros.

Devemos distinguir as injúrias obscuras das injúrias caras-


pálidas.

Os homens saciam-se na desonra e desonram-se na sacie-


dade.

Uma ética decente, por mais vaga que seja, tem que
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alicerçar-se na exclusão do máximo de crueldade.

O reprimido desejo de vingança tornava-o um repugnante


tolerante.

As suas convicções eram opiniões de coreto ou de corista.

Ele precepitava-se no perdão. Literalmente: na impostura.

A dor tem divinas proporções, mas tem que se aguentar.

Á medida que ia perdendo inocência ia ganhando ingenui-


dade.

O que a natureza esconde no coração não se consegue


colocar debaixo de um colchão.

Usa a incerteza como bengala da sabedoria.

O predador tanto caça na selva como no templo.

As obras mais sublimes não têm pudor em mostrar as suas


partes traseiras.

A indignação mutila com garantida rapidez a beleza dos


indignados.
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Os antepassados dissimulam-se na inacessibilidade que lhes


dá o tempo.

Os afectos são organização crescente que nos afecta suave-


mente.

A feliz culpa não chega para desculpar as infelizes descul-


pas.

A pele é um excelente disfarce para uma rameira.

As trevas deviam ser de quatro folhas.

Uma confissão só se absolve pela confiânça na confidência.

Desembaraça-te do teu passado como de uma guerra civil.

Era advogado, não de um diabo, mas de uma tribo deles.

Tinha a essência divina mesmo à sua frente mas era de-


masiado míope para a ver.

Quando o coração se torna transparente a pele fica mais


morena.

Alourava-se nos refugados. Ou na àgua oxigenada? Nem


tudo o que luz é...
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Através da dissimulação remanescem os paraísos.

Mascaramo-nos de libertinos para o prazer de Deus?


Este livro foi
rápidamente paginado
no dia 26 de Maio
de 2017
em caracteres
Secretariado
e com ilustrações retiradas de:

Le imagini de i dei de gli antichi


nelle qvali si contengono gl’idoli,
riti, ceremonie
& altre cose appartenenti
alla religione de gli antichi
de Vincenzo Cartari
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