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INTRODUÇÃO
A intensificação recente do recurso ao pensamento de Louis Dumont em di-
versas searas antropológicas, exemplificada por outros textos componentes
deste volume, sugere a oportunidade e conveniência de um balanço sobre a
complexidade das vias pelas quais se disseminou sua herança nas últimas
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nha de interesse e polêmica precoces que nunca arrefeceram, mesmo que te-
nham assumido novos ares, novos focos e novas interlocuções.
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delo em relação ao qual tal avaliação possa ser realizada” (Robbins, 2004: 292).
Por outro lado, a aplicabilidade da noção de “individualismo”, no sentido
estrito de Dumont, seria motivo de uma complexa discussão empreendida pelo
próprio Robbins (e por seus interlocutores) a respeito do estatuto da “mudança
cultural” em curso na sociedade Urapmin a partir de sua “conversão” a uma
versão do cristianismo. Essa discussão é muito marcada pela ênfase de Robbins
na “descontinuidade cultural”, por oposição ao que considera ser a tendência
dominante na antropologia: a de privilegiar a continuidade cultural subjacente
a todas as situações de mudança (cf. Robbins 2007b: 301). A ênfase na desconti-
nuidade emergente nas conversões ao cristianismo é a fonte mesma da possi-
bilidade de uma antropologia do cristianismo, distinta das descrições etnológi-
cas tipicamente autorreferidas e remetidas à tradição cultural local.
As propostas de Robbins enriqueceram sobremaneira um debate em curso
já há tempos sobre as condições do uso das categorias analíticas de Dumont apli-
cadas a sociedades de pequena escala, melanésias ou não. O próprio Dumont
privilegiou, em seus últimos anos de atividade, um círculo comprometido com
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a via “indianista”
A obra de Dumont sobre a Índia foi uma pedra de toque de todos os desenvol-
vimentos da ciência social indiana desde a publicação do primeiro volume do
Contributions to Indian sociology, em 1956, uma iniciativa sua e de David Pocock.
A interpretação de uma “Índia das castas” aí defendida se contrapunha às aná-
lises de uma “Índia das aldeias” do principal sociólogo indiano, Mysore Nara-
simhachar Srinivas, tendo se desencadeado a partir daí uma fieira de polêmicas
que tenderam a perdurar nas novas gerações, ainda que com novos focos e
ênfases.
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Dumont não se preocupava com a Índia como nação, mas com o tipo de civilização
a ser contrastado com o Ocidente. Neste contexto, seu interesse recaía no sistema
de castas, que traz consigo princípios ideológicos diferentes, se não opostos, aos da
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Porém mesmo nos casos de clara dominância, nenhum valor específico disporá de
todo o campo social para si. Por essa razão, o dinamismo é inerente à vida social. E
é porque muito desse dinamismo é conduzido por lutas entre valores, que as noções
de Dumont de oposição hierárquica, englobamento, e níveis são tão cruciais para nós
antropólogos quando tentamos produzir relatos etnográficos que reflitam adequada-
mente os processos sociais acionados por tal dinamismo (Robbins, 2015: 28).
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Dumont (1986: 2) construiu o conceito de “fato social total” como “um complexo es-
pecífico de uma sociedade (ou tipo de sociedade) particular, que não podemos fazer
coincidir com nenhum outro.” Em outras palavras, isso corresponde primeiramente
a uma ênfase na diferença; os fatos reagem às categorias, teorias, e ideias implícitas
com as quais os abordamos. Trata-se de um experimento comparativo que envolve o
sujeito com seu objeto (ibid.: 199). E, em segundo lugar, o aspecto “total” do fato sig-
nifica que o objetivo não é o de estudar elementos em separado, mas o de comparar
‘totalidades’. “Como encontrar isso [i.e. a totalidade]? Em certo sentido, a sociedade
é a única ‘totalidade’, mas tão complexa que não importa quão escrupulosamente a
reconstruamos, sempre há dúvida quanto ao resultado. Porém, há casos [i.e. fatos so-
ciais totais] em que a consistência se encontra em complexos menos amplos, em que
a ‘totalidade’ pode ser mais facilmente mantida sob consideração” (ibid.: 194) (Iteanu
& Moya, 2015: 117; grifo no original).
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Não estou, com isso, advogando que fujamos de toda noção de “todo”, como se essa
fosse uma categoria visceralmente antiamazônica, mas apenas que cuidemos para
não cair em uma falácia da totalidade mal-colocada. Qualquer cosmologia é, por defi-
nição, total, no sentido de que não pode não pensar tudo o que há, e pensá-lo − a esse
tudo que não é um todo, ou a esse todo que não é uno − segundo um número finito de
pressupostos. Mas daí não se segue que toda cosmologia pensa tudo o que há sob a
categoria da totalidade, isto é, que ponha um Todo como o “correlato objetivo” de sua
própria exaustividade virtual (Viveiros de Castro, 2001: 22).
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designação, por meio dessa categoria, das grandes transformações que carac-
terizaram a emergência da pessoa ocidental moderna, com o frequente coro-
lário de oposição à “sociedade” ou à coletividade, e a contínua promessa de
autonomia e emancipação contraposta à concomitante e constante ameaça de
fragmentação dos vínculos coletivos. Com graus muito diversos de sofisticação
analítica e de compromisso com as evidências empíricas, trata-se essencial-
mente de modelos descritivos empiristas e funcionalistas, seja no registro so-
ciológico, seja no registro histórico. Sem pretensão de exaustividade, podem
ser nomeados François de Singly (com inspiração na obra de Alain Renaut e em
sua distinção entre “independência” e “autonomia” dos “indivíduos”), Charles
Taylor, Raymond Williams, Anthony Giddens, Zigmunt Baumann, Stephen Lukes,
Ulrich Beck (e sua teoria da individualização na “segunda modernidade”), Robert
Bellah, Marcel Gauchet, Ernest Gellner, Crawford B. Macpherson (o proponente
da prestigiosa teoria histórica do “possessive individualism”) ou Alan Macfarlane
(que critica Dumont, do ponto de vista historiográfico, em 1992). Os recentes
trabalhos sobre a “individualização” na China, da lavra de Yunxiang Yan (2009,
2010), seguem sobretudo as propostas funcionalistas de Giddens e de Beck, sem
qualquer menção a Dumont.
A proposta mais restritiva de acepção da noção de “individualismo” cons-
truída por Dumont inspirou numerosos trabalhos voltados para a compreensão
de sociedades ou de grupos específicos dentro das sociedades modernas, em-
bora esse filão tenha enfrentado eventuais restrições ao modo como se afirmou,
por ensejar acusações de reificação tipologizante. 26
Roberto DaMatta (1979), por exemplo, utilizou intensamente o pensa-
mento de Dumont na guinada que caracterizou sua obra a partir de Carnavais,
malandros e heróis, passando dos estudos etnológicos para a interpretação da
sociedade nacional brasileira, em contraste sobretudo com a sociedade esta-
dunidense. Seu uso das categorias “ideologia do individualismo” e “indivíduo”
foi bastante idiossincrático. Em seu trabalho, “indivíduo” é tanto o portador da
“ideologia do individualismo” (característico das sociedades efetivamente “mo-
dernas”) quanto o sujeito social desprovido dos atributos de uma “pessoa” ple-
na, característico do “povo” das sociedades “semitradicionais”. DaMatta (1983:
31) caracterizou a sociedade brasileira por um dilema entre o “individualismo”
e o que chamou de “personalismo”. Este último, equivalente à “hierarquia”,
seria o núcleo da ideologia “relacional” da formação nacional brasileira, carac-
terístico do “mundo da casa”, enquanto o individualismo estaria cantonado no
“mundo da rua”, lugar da desordem carnavalesca − “é assim que, no universo
da casa, todos são pessoas, mas no mundo da rua, todos são, em princípio, in-
divíduos” (DaMatta, 1983: 42). O mundo da ordem jurídico-política impessoal
seria caracterizado por ele como “hierárquico”, num sentido, portanto, mais
próximo do senso comum de “diferenciação social” ou “dominação”, do que do
sentido dumontiano de distribuição diferencial de valor. A presença da ideolo-
o valor dos valores: louis dumont na antropologia contemporânea
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O método de Dumont assume que nenhum valor único pode ser plenamente hegemô-
nico: um valor primordial sempre coexiste com os outros valores que o contradizem.
Mesmo o individualismo sempre se combina com valores holísticos que o contradi-
zem de um modo ou de outro (Dumont 1983: 17-19, 1991: 32-56) (adaptação minha das
referências bibliográficas internas).
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A apresentação, por sumária que possa ser neste contexto, dos tão ricos
fios da tradição dumontiana visa sobretudo tentar dispersar os estereótipos
fáceis que se acumularam a respeito de uma teoria tão desafiadora, orientando
os novos leitores para uma disposição de conhecimento e debate de uma he-
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NOTAS
1 Entre as numerosas apreciações críticas (excetuadas as
indianas, de que trataremos depois) talvez sejam consi-
deradas mais “clássicas” as de F. G. Bailey (1959, apud Pei-
rano, 1991b: 213 – primeira a ser formulada contra o arti-
go original de Dumont & Pocock na Contributions to Indian
Sociology, também de 1959); de MacKim Marriott (com sua
proposta dos “divíduos” na Índia, 1969 e 1976); de Gerald
Berreman (1971); de André Béteille (1986); de Rodney Ne-
edham (contra a noção de hierarquia – 1987); de Alan Ma-
cfarlane (1992 – sobre a histór ia do indiv idualismo). É
peculiar a cr ítica de Lardinois (1995), que explora a in-
f luência juvenil do metafísico René Guénon no destino
intelectual de Dumont; o que deve ser considerado uma
característica muito significativa, mais do que um vício.
2 Revisões mais gerais podem ser encontradas em Galey,
1982, 1984, 1991; Berthoud & Busino, 1984; Duarte 1986a,
2015a; Parkin, 1994, 2003; Toffin, 1999; Stolcke, 2001; Leir-
ner, 2003; Strenski, 2014; entre muitas outras.
3 Todas as citações foram traduzidas para o português [N. E.].
4 Em determinado ponto da entrevista publicada neste nú-
mero de Sociologia & Antropologia, Robbins oferece um qua-
dro informativo precioso do campo em que a antropologia
do cristianismo e o pensamento de Dumont se entrecru-
zam. Naomi Haynes, autora de outro artigo deste volume,
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leira. Como diz DaMatta (2000: 21; itálico meu), seria ne-
cessário: “acentuar uma oposição bem marcada entre a
individualidade, que v ivencia e conceitualiza o colet ivo
como complementar, e o individualismo, que vivencia o afas-
tamento do grupo como um movimento marcado por in-
terioridade e subjetividade”.
29 A dificuldade de acesso aos artigos muito esparsos de Ara-
gão virá a ser superada com a publicação de uma coletânea
organizada por Luis Eduardo Abreu, para a qual escrevi
um prefácio (Duarte, no prelo).
30 Nesses primeiros anos da década de 1980, outros três im-
portantes antropólogos brasileiros se ocuparam do pen-
samento de Dumont em trabalhos específicos. Luís Rober-
to Cardoso de Oliveira (1984) comparou minuciosamente
as leituras da Índia feitas por Max Weber e Dumont; Otá-
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ReferênciaS BIBLIOGRÁFICAs
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5/3, p. 215-233.
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