colete de malha de lã; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanela
Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido
educado com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao Sr. Vilaça! Não tinha
a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as
manhãs, zás, para dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora... E
havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a
pensá-lo... Mas não, parece que era sistema inglês! Deixava-o correr, cair,
O rapaz, sem olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelos cós das flanelas, e
Então o avô, sem se conter, largou a rir, caído para o espaldar da cadeira:
— Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a Brígida! E é verdade, Vilaça, já a faz
favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bom cavaleiro deve ser
observação. Não se podia decerto ter melhor prenda que montar a cavalo com
as regras... Mas ele queria dizer se o Carlinhos já entrava com o seu Fedro, o
malícia — não se deve falar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não
— Ora sirva-se desse fricassé, ande, abade — disse Afonso — que eu sei
de ave, ia murmurando:
basezinha!
luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança
numa língua morta quem foi Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos, e
necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a
de uma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma
que a vossa Excelência, Sr. Afonso da Maia, tem visto mais mundo do que
o neto que palrava inglês com o Brown. Eram decerto feitos de força, uma
história de briga com rapazes que ele lhe estava a contar, animado e jogando
máxima:
— Esta educação faz atletas mas não faz cristãos. Já o tenho dito...
— A cartilha, sim, meu senhor, ainda que a vossa Excelência o diga assim
com esse modo escarnica... A cartilha. Mas já não quero falar da cartilha... Há
outras coisas. E se o digo tantas vezes, Sr. Afonso da Maia, é pelo amor que
tenho ao menino.
jantava na quinta.
O bom homem achava horroroso que naquela idade um tão lindo moço,
crianças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o Ato de Contrição. E que
entristeciam. E o Sr. Afonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora ali estava o
amigo Vilaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o Sr. Afonso da
Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas de uma coisa não o
podia convencer, a ele pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que
— Então que lhe ensinava você, abade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que
se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os
— Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer,
por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que se não deve praticar,
virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por
medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o Reino do
Céu...
estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! E se o Vilaça não está muito
D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da família, e era
noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabelos negros como
sítios.
Quase desde o berço este notável menino revelara um edificante amor por
alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era
Assim na família tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro
cavaleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o boné onde se arqueava com
heroísmo uma rutilante pena de galo; e nada havia mais melancólico que a sua
risadinha muda; depois ficou calado, olhando Afonso, com as mãos nos
achas.
a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava
curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá «que, o Sol é que anda em volta
ordens ao Sol, para onde há de ir e onde há de parar, etc., etc.». E assim lhe
— Em Lisboa?
— Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que
E ficaram calados. Havia anos que entre eles se não pronunciara o nome de
preocupação ardente de Afonso da Maia fora tirar-lhe a filha que ela levara.
Mas a esse tempo ninguém sabia onde Maria se refugiara com o seu príncipe:
nem pela influência das legações, nem pagando regiamente a polícia secreta de
naturezas boémias, quem sabe se não errariam agora pela América, pela Índia,
descoroçoado com aqueles esforços vãos, todo ocupado do neto que crescia
belo e forte ao seu lado, no enternecimento contínuo que ele lhe dava, foi
esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem
Monforte aparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e
aquela criança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...
carteira.
— E está em Paris com o italiano? — perguntou Afonso do fundo
sombrio do aposento.
— Todas estas coisas são muito graves, Sr. Afonso da Maia, e eu não quis
rapaz, que me escrevesse numa carta tudo o que me contou. Assim, temos um
documento. Eu não sei mais do que está escrito. Pode Vossa Excelência ler...
Afonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma história simples, que o
Uma noite, ao sair da Maison d'Or, ele vira a Monforte saltar de um coupé
gás, no trottoir. Foi ela que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar,
falou largamente de si: vivera três anos em Viena de Áustria com Tancredo, e
com o papá que se lhes fora reunir — e que lá continuava decerto como em
marido. Depois tinham estado em Mónaco; e aí, dizia o Alencar, «num drama
duelo. O papá morrera também nesse ano, deixando apenas da sua fortuna
Passara então um tempo em Londres: e daí viera habitar Paris, com Mr. de
abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe era a ele de ora em
gentil Dama das Camélias, é o tipo sublime, o símbolo poético, a quem muito
será perdoado porque muito amaram». E o poeta terminava: «Ela está ainda
pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raízes dos ciprestes. E,
desiludido desta cruel vida, vim pedir ao absinto, no Boulevard, uma hora de
esquecimento.»