Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-reitor
Paulo Roberto Volpato Dias
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Conselho Editorial
Bernardo Esteves
Erick Felinto
Glaucio Marafon
Italo Moriconi (presidente)
Ivo Barbieri (membro honorário)
Jane Russo
Lucia Bastos (membro honorário)
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
Imagens do corpo
nas artes, na literatura
e no arquivo
Organização
Ana Chiara
Marcelo Santos
Eliane Vasconcellos
Rio de Janeiro
2015
Copyright © 2015, dos autores.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em
parte, sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da editora.
EdUERJ
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
C822 Corpos diversos : imagens do corpo nas artes, na literatura e
no arquivo / organização Ana Cristina de Rezende Chiara,
Marcelo dos Santos, Eliane Vasconcellos. – Rio de Janeiro :
EdUERJ, 2015.
326 p.
ISBN 978-85-7511-372-1
Apresentação.................................................................................................. 9
Morte, mudança, loucura.......................................................................11
Raúl Antelo
Elementos para uma dermatologia especulativa:
a erótica, a política e a ontologia da pele.........................................47
Hilan Bensusan
Um corpo que vaza: da série Autobiografias
e Autorretratos...............................................................................................59
Ana Chiara
Sem tirar o corpo fora..............................................................................81
Marcia Tiburi
Eros no claustro: sobre o amor freirático na poesia
satírica de Gregório de Matos............................................................ 101
Ana Lúcia M. de Oliveira
Francesca Woodman: fotografia e performatividade................ 119
Ana Bernstein
Arte e ativismo: o projeto fulminante de Nadia
Granados..................................................................................................... 141
André Masseno
A dança da dobra infinita: divagações sobre
o contemporâneo.................................................................................... 157
Ângela Maria Dias
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita.................. 179
Marília Rothier Cardoso
Corpos em carta....................................................................................... 195
Rodrigo Jorge
Arrancar a carne das coisas: canto-imagens servidas à
parede da memória................................................................................. 209
Leonardo Davino de Oliveira
Obra e fragmento: nota sobre os dois corpos no
arquivo de Graça Aranha..................................................................... 223
Marcelo Santos
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo”:
pontas de formas e impasses............................................................... 229
Marcus Alexandre Motta
As artes e o discurso da crise: em torno do
niilismo estético....................................................................................... 247
Evando Nascimento
Entre devaneios, sonhos e delírios:
de Carolina Maria de Jesus a Estamira........................................... 283
Daniele Ribeiro Fortuna
Depoimento do artista Hugo Denizart......................................... 305
Geraldo Motta
Sobre os autores....................................................................................... 315
Apresentação
1
Professor Titular do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universi-
dade Federal de Santa Catarina.
2
“Corpo-coador, corpo-despedaçado e corpo-dissociado formam as três primeiras
dimensões do corpo esquizofrênico” (Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de
Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 90).
3
“Uma obra-prima sempre se move, por definição, à maneira de um fantasma”. (Der-
rida, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova interna-
cional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 35).
12
Por cima de um pequeno teso, que diante dos olhos se lhe oferecia,
ia saltando um homem de penha em penha, e de mata em mata,
com estranha ligeireza. Figurou-se-lhe que ia nu, a barba negra e
espessa, cabelos bastos e revoltos, pés descalços e as pernas sem
Morte, mudança, loucura 15
5
No original, em espanhol: “Por cima de una montañuela que delante de los ojos se le
ofrecía, iba saltando un hombre, de risco en risco y de mata en mata, con estraña lige-
reza. Figurósele que iba desnudo, la barba negra y espesa, los cabellos muchos y rabul-
tados, los pies descalzos y las piernas sin cosa alguna; los muslos cubrían unos calzones,
al parecer, de terciopelo leonado, mas tan hechos pedazos, que por muchas partes se le
descubrían las carnes. Traía la cabeza descubierta; y aunque pasó con la ligereza que se
ha dicho, todas estas menudencias miró y notó el Caballero de la Triste Figura” (I, 23).
6
“A Verdade é informe”.
16
mitée à soi-même, elle dit bien “je” –, mais dans une sorte de
première personne dédoublée (Foucault, 2013, p. 45).12, 13
tão feliz e tão nunca vista imitação. Louco sou, e louco hei de
ser até que me tornes com a resposta de uma carta que por ti
quero enviar à minha Senhora Dulcineia; e se ela vier tal como
lho merece a minha lealdade, acabar-se-ão a minha sandice
e a minha penitência; e se for ao contrário, confirmar-me-ei
12
Em Foucault, o desdobramento ocorre também por meio de uma carta, a que Ar-
taud envia a Jacques Rivière, em 1923, recusando a proposta de publicar suas cartas
como literatura na revista mais prestigiosa da França, a Nouvelle Revue Française,
da qual Rivière era secretário de redação. “Pour quoi mentir”– pergunta-lhe Artaud
numa carta de 25 de maio de 1924. “Pourquoi chercher à mettre sur le plan littéraire
une chose qui est le cri même de la vie”. E com esse grito Foucault procede a realizar
uma montagem temporal, lendo, em contiguidade, o século XVII de Cervantes e a
vanguarda dos anos 1920, com Artaud.
13
“A loucura pode falar, mas sob a condição de que ela se tome a si mesma por objeto.
Isto quer dizer que ela não se abre - em segundo grau, ilimitada a si mesma, ela chega
a dizer ‘eu’ -, mas em uma espécie de primeira pessoa desdobrada.”
14
Em espanhol: “[…] imitar a Roldán, o Orlando, o Rotolando (que todos estos tres
nombres tenía)”.
20
15
Em espanhol: “[…] tan felice y tan no vista imitación. Loco soy, loco he de ser
hasta tanto que tú vuelvas con la respuesta de una carta que contigo pienso enviar a
mi señora Dulcinea; y si fuere tal cual a mi fe se le debe, acabarse ha mi sandez y mi
penitencia; y si fuere al contrario, seré loco de veras, y, siéndolo, no sentiré nada”.
16
Em espanhol: “[…] todo debe de ser cosa de viento y mentira, y todo pastraña,
o patraña, o como lo llamáremos”. Em janeiro de 1934, a revista Espírito novo, de
orientação comunista, resenha o D. Quixote de Pabst, destacando ter o diretor alemão
misturado “até o pathético, o sublime e o ridículo” (L.M.S.,1934, p. 45).
Morte, mudança, loucura 21
19
Retomará a questão em Khôra (Paris, Galilée, 1993) e ao discutir a diferença sexual em
Heidegger quando aponta que “le mot ‘Geschlecht’ se chargera de toute sa richesse poly-
sémique: sexe, genre, famille, souche, race, lignée, génération. Heidegger suivra dans la
langue, à travers des frayages irremplaçables, entendons inaccessibles à une traduction
courante, à travers des voies labyrinthiques, séduisantes, inquiétantes, l’empreinte de
chemins souvent fermés. Encore fermés, ici, par le deux. Deux, cela ne peut compter,
semble-t-il, que des sexes, ce qu’on appelle des sexes”. Mais tarde, Heidegger interpretara
“la décomposition et la désessentialisation (Verwesung)”, como “une certaine corruption
de la figure de l’homme. Il s’agira encore, plus explicitement cette fois, d’une pensée de
‘Geschlecht’ ou du ‘Geschlecht’ ” (Derrida, 1983, p. 577; Apter, 2005, pp. 80-83).
Morte, mudança, loucura 23
verde e viçoso, que era alegria dos olhos. Havia por ali mui-
tas árvores montesinas e algumas plantas e flores que torna-
vam o lugar sobremodo aprazível. Foi este o sítio que para a
sua penitência elegeu o Cavaleiro da Triste Figura. Apenas
o avistou, rompeu em altas exclamações, dizendo como fora
de si: – Este é o lugar, ó céus! Que eu escolho para chorar a
desventura em que vós mesmos me haveis posto. Este é o sí-
tio em que o tributo dos meus olhos há de aumentar as águas
daquele arroio, e meus contínuos e profundos suspiros estre-
mecerão sem descanso as folhas destas árvores selváticas, em
testemunho da pena que o meu coração perseguido padece
(Cervantes Saavedra, 2002, p. 157).22
Ó, vós outros, quem quer que sejais, rústicos deuses, que nesta
desconversável paragem habitais, ouvi as queixas de tão des-
ditoso amante, a quem uma longa ausência e uns fantasiados
22
Em espanhol: “Llegaron, en estas pláticas, al pie de una alta montaña que, casi como
peñón tajado, estaba sola entre otras muchas que la rodeaban. Corría por su falda un
manso arroyuelo, y hacíase por toda su redondez un prado tan verde y vicioso, que
daba contento a los ojos que le miraban. Había por allí muchos árboles silvestres y
algunas plantas y flores, que hacían el lugar apacible. Este sitio escogió el Caballero
de la Triste Figura para hacer su penitencia; y así, en viéndole, comenzó a decir en voz
alta, como si estuviera sin juicio: -Éste es el lugar, ¡oh cielos!, que diputo y escojo para
llorar la desventura en que vosotros mesmos me habéis puesto. Éste es el sitio donde
el humor de mis ojos acrecentará las aguas deste pequeño arroyo, y mis continos y
profundos sospiros moverán a la contina las hojas destos montaraces árboles, en testi-
monio y señal de la pena que mi asendereado corazón padece.”
26
“Retencio
Retencio”” é – respondeu Sancho – que quem está no inferno
nunca mais de lá sai, nem pode; em Vossa Mercê poderá ser às
avessas, ou mau caminheiro serei eu, a não levar esporas com
que esperte o Rocinante. Ponha-me eu a meu salvo em Tobo-
so, e na presença da minha Senhora Dulcineia, que eu lhe direi
tais coisas das necedades e loucuras (que tanto monta uma coi-
sa como outra) que Vossa Mercê tem feito e fica fazendo, que
a porei mais macia que uma luva, ainda que a ache mais dura
que um sobreiro. Com a sua resposta, que há de ser doce como
al que a mi fe se le debe! ¡Oh solitarios árboles, que desde hoy en adelante habéis de
hacer compañía a mi soledad, dad indicio, con el blando movimiento de vuestras
ramas, que no os desagrade mi presencia! ¡Oh tú, escudero mío, agradable compañero
en más prósperos y adversos sucesos, toma bien en la memoria lo que aquí me verás
hacer, para que lo cuentes y recetes a la causa total de todo ello!”
24
Segundo Agamben, “Sull´impossibilità di dire Io. Paradigmi epistemologici e para-
digmi poetici in Furio Jesi”, publicado em Cultura tedesca e mais tarde recolhido em
La potenza del pensiero Saggi e conferenze.
25
Em espanhol: “Quien ha infierno […] nula es retencio”.
28
Deus nos livre, esses amigos fazem letra processada, que nem
Satanás a decifra (Cervantes Saavedra, 2002, pp. 159-160).28
29
Em espanhol: “Toma bien las señas, que yo procuraré no apartarme destos contor-
nos –dijo don Quijote-, y aun tendré cuidado de subirme por estos más altos riscos,
por ver si te descubro cuando vuelvas. Cuanto más, que lo más acertado será, para
que no me yerres y te pierdas, que cortes algunas retamas de las muchas que por aquí
hay y las vayas poniendo de trecho a trecho, hasta salir a lo raso, las cuales te servirán
de mojones y señales para que me halles cuando vuelvas, a imitación del hilo del
laberinto de Perseo.”
30
“The paintings Masson produced during his years in Spain do not directly engage
with the political struggle, but they mark a wholehearted commitment to Spain and
Spanish culture. He read Cervantes, Góngora and other Spanish authors, drew inspi-
ration from bull-fights, from the Spanish towns that he and Rose used to visit on their
journeys on foot and from the countryside” (Ades, 1994, p. 18).
32
33
Em espanhol: “Paróse Sancho Panza a rascar la cabeza para traer a la memoria la
carta, y ya se ponía sobre un pie, y ya sobre otro; unas veces miraba al suelo, otras al
cielo; y, al cabo de haberse roído la mitad de la yema de un dedo, teniendo suspensos
a los que esperaban que ya la dijese, dijo al cabo de grandísimo rato: – Por Dios,
señor licenciado, que los diablos lleven la cosa que de la carta se me acuerda; aunque
en el principio decía: ‘Alta y sobajada señora’. – No diría – dijo el barbero – sobaja-
da, sino sobrehumana o soberana señora. – Así es – dijo Sancho –. Luego, si mal no
me acuerdo, proseguía..., si mal no me acuerdo: ‘el llego y falto de sueño, y el ferido
besa a vuestra merced las manos, ingrata y muy desconocida hermosa’, y no sé qué
decía de salud y de enfermedad que le enviaba, y por aquí iba escurriendo, hasta
que acababa en ‘Vuestro hasta la muerte, el Caballero de la Triste Figura’. No poco
gustaron los dos de ver la buena memoria de Sancho Panza, y alabáronsela mucho, y
le pidieron que dijese la carta otras dos veces, para que ellos, ansimesmo, la tomasen
de memoria para trasladalla a su tiempo. Tornóla a decir Sancho otras tres veces, y
otras tantas volvió a decir otros tres mil disparates.”
Morte, mudança, loucura 35
Em Logique du sens,
sens, Deleuze (1969, p. 107) diz que “corps-
passoire, corps morcelé et corps-dissocié forment les trois premières
dimensions du corps schizophrénique”.35 Morte, mudança e lou-
cura, como manifestações desse corpo-peneira, corpo dissociado
e corpo fragmentado, não precisam ser mencionadas para estarem
presentes porque a questão do corpo é a questão do presente. Com
efeito, a introdução de Don Quijote (2000), a ópera de Cristóbal
Halffter, apoiada em libreto de Andrés Amorós, começa, justamen-
te, com esse mesmo texto que Sancho ouve de uma voz impossível,
porém, há uma ressalva muito relevante: em seu retorno, a música
de Halffter apenas comenta o texto sem que deste, obliterado, se
escute uma única palavra. É preciso dispor de um bom tímpano
para ouvir a imperceptibilidade da percepção. Mais uma vez, como
no Pli selon pli de Pierre Boulez, o texto fantasmagoriza-se, torna-se
espectral, mas, ao mesmo tempo, o silêncio, presente, está prenhe
de ecos, pois ouvimos, de fato, ao longo da ópera, algumas citações
sonaba, de que no poco se admiraron, por parecerles que aquél no era lugar donde
pudiese haber quien tan bien cantase. Porque, aunque suele decirse que por las selvas y
campos se hallan pastores de voces estremadas, más son encarecimientos de poetas que
verdades; y más, cuando advirtieron que lo que oían cantar eran versos, no de rústicos
ganaderos, sino de discretos cortesanos. Y confirmó esta verdad haber sido los versos
que oyeron éstos: ¿Quién menoscaba mis bienes? / Desdenes. / Y ¿quién aumenta mis
duelos? / Los celos. / Y ¿quién prueba mi paciencia? / Ausencia. / De ese modo, en mi
dolencia / ningún remedio se alcanza, / pues me matan la esperanza / desdenes, celos
y ausencia. // ¿Quién me causa este dolor? / Amor. / Y ¿quién mi gloria repugna? /
Fortuna. / Y ¿quién consiente en mi duelo? / El cielo / De ese modo, yo recelo / morir
deste mal estraño, / pues se aumentan en mi daño, / amor, fortuna y el cielo. // ¿Quién
mejorará mi suerte? / La muerte. / Y el bien de amor, ¿quién le alcanza? / Mudanza. /
Y sus males, ¿quién los cura? / Locura. / De ese modo, no es cordura / querer curar la
pasión / cuando los remedios son / muerte, mudanza y locura.”
35
“Corpo-coador, corpo-despedaçado e corpo-dissociado formam as três primeiras
dimensões do corpo esquizofrênico” (Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de
Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 90).
38
36
Por exemplo, as “Queixas de sua mesma verdade”, que começam com o lamento
de que “quer-me mal esta cidade” para concluir que os três inimigos da alma são
“verdade, inveja e temor”.
37
Como em “Eu nem sei se vale a pena”, de Lira paulistana, em que o poeta só cons-
tata, “Miséria, dolo, ferida / Isso é vida?”.
Morte, mudança, loucura 39
38
No original, lemos: “Yendo, pues, desta manera, la noche escura, el escudero ham-
briento y el amo con gana de comer, vieron que por el mesmo camino que iban venían
hacia ellos gran multitud de lumbres, que no parecían sino estrellas que se movían.
Pasmóse Sancho en viéndolas, y don Quijote no las tuvo todas consigo; tiró el uno del
cabestro a su asno, y el otro de las riendas a su rocino, y estuvieron quedos, mirando
atentamente lo que podía ser aquello, y vieron que las lumbres se iban acercando a
ellos, y mientras más se llegaban, mayores parecían; a cuya vista Sancho comenzó
a temblar como un azogado, y los cabellos de la cabeza se le erizaron a don Quijote”.
40
39
“Le fântome de Stalin” foi publicado em Les Temps Modernes, em 1956, e mais tarde
em Situations VII, em 1965.
Morte, mudança, loucura 41
prit (Geist) par le spectre (Gespenst). Mais il veut en finir avec elle,
il estime qu’on le peut, il déclare qu’on le doit. Il croit à l’avenir et
il veut l’affirmer, il l’affirme, il enjoint la révolution. Il déteste tous
les fantômes, les bons et les mauvais, il pense qu’on peut rompre
avec cette fréquentation. C’est comme s’il nous disait, à nous qui
n’en croyons rien: ce que vous croyez appeler subtilement la loi de
l’anachronie, c’est justement anachronique. Cette fatalité pesait
sur les révolutions du passé. Celles qui viennent, à présent et dans
l’avenir [.[.....],
], celles qui s’annoncent dès le XIXe siècle doivent se
détourner du passé, de son Geist comme de son Gespenst. En
somme elles doivent cesser d’hériter. Elles ne doivent même plus
faire ce travail de deuil au cours duquel les vivants entretiennent
et jouent les morts, s’occupent des morts, se laissent entretenir et
occuper et jouer par les morts, les parlent et leur parlent, portent
leur nom et tiennent leur langage. Non, plus de mémoire révo-
lutionnaire, à bas le monument, rideau sur le théâtre d’ombres
et sur l’éloquence funéraire, détruisons le mausolée pour foules
populaires, brisons les masques mortuaires sous cercueil de verre
(Derrida, 1993, pp. 184-185).40
40
“Marx visa frequentemente a cabeça, e o chefe. As figuras do fantasma são primeira-
mente rostos. Trata-se, pois, de máscaras, quando não, desta vez, de elmo e viseira. Mas
entre o espírito e o espectro, entre a tragédia e a comédia, entre a revolução em marcha e
o que a instala na paródia, não há senão a diferença de um tempo entre duas máscaras.
[...] Convém dar mais um passo. Convém pensar no porvir, ou seja, na vida. Ou seja,
na morte. Marx reconhece, certamente, a lei dessa anacronia fatal, e finalmente é talvez
tão quanto nós à contaminação essencial do espírito (Geist) pelo espectro (Gespenst).
Mas ele quer se ver livre dela, avalia que se pode, declara que se deve. Crê no futuro e
quer afirmá-lo; afirma-o, impõe a revolução. Detesta todos os fantasmas, os bons e os
maus, pensa que se pode romper com essa frequentação. É como se nos dissesse, a nós,
que não admitimos: isto que vocês acreditam chamar sutilmente a lei da anacronia está
ultrapassado. Essa fatalidade pesava sobre as revoluções do passado. Estas que estão
vindo, no presente e no porvir [...], estas, que se anunciam desde o século XIX, têm de
42
Referências
Hilan Bensusan1
você pode nos triturar em areia e, ainda assim, nós não deixaremos
você entrar”. Mas dentro da superfície da pedra há a superfície da
areia, a superfície dos grãos, a superfície espaço entre os grãos. Estar
dentro é também estar às voltas com as peles que recobrem, já que
nada pode ser sensível sem ter a sensualidade de uma superfície
que pode ser sentida.
É que, pelo menos no sensível, existir é poder ser encon-
trado. Nada fica no sensível sem poder ser sentido. Nada fica
sem pele já que tudo fica em uma superfície. Fica exposto. Ficar
posto no espaço é ficar exposto, posto para fora, ser afetável.
Existir é estar em uma encruzilhada. É estar à mercê do que
mais existe, já que se existe tendo uma pele, onde se começa e
onde se termina – a encruzilhada dos existentes, a encruzilhada
do que existe. Do que existe também
também.. Porque existir é coexistir.
Ser é estar em companhia (do que mais seja). Existir é estar no
meio das coisas que existem, expostas a ela, como uma pele.
A pele é exposição. É disposição. E é disponibilidade. E é à
disposição. Pela pele, entram os bárbaros, os bacilos, os desejos,
os ventos, os acasos. A substancialidade do sensível é derma-
tológica – é sobre isso que se quer especular. Especular com a
epiderme virada para os estratos subcutâneos, entrelaçada na
endoderme, adentrada no stratum spinosum,
spinosum, membranas aden-
tro. Pelo interior da pele, sem sair da soleira, sem sair da soleira
senão para entrar em outra, já que toda coisa que existe e persis-
te tem fronteiras. Todo indivíduo é também refém de sua pele,
uma vez que existir é coexistir. Convém especular sobre o que
faz parecer que no sensível tudo corre – tudo corre porque tudo
Elementos para uma dermatologia especulativa 49
do sensível. Há, é claro, pele sobre pele, pele sob pele – mas as
aparências não são sustentadas por nada que não seja aparência.
Porque existir é coexistir. Mas sensibilidade, pele, afetação, não
é estar todo aparente. Aquilo que se revela aparece porque se
esconde. E isso é a do caráter dérmico das coisas: elas revelam só
se escondem alguma coisa. E a pele – e não quem a toca – é que
decide o que aparece e o que fica recôndito. Heráclito insiste
que o sensível não é o disponível à nossa sensibilidade, é antes o
que está sensível à disponibilidade (ou, talvez mesmo, sensível à
nossa disponibilidade):
Referências
Ana Chiara1
1
Professora-associada de Literatura Brasileira da UERJ/ Pesquisadora do CNPq/Co-
ordenadora do GEPESq (CNPq) Bioscritas.
60
2
Entrevista ao jornal digital Algo a dizer. “Os vetores jornalísticos deste algo a dizer
– arte, cultura e política – se entrelaçam e se fundem na obra e na vida do músico,
escritor e agitador cultural Zeh Gustavo [...] das resenhas de cinema publicadas no
Algo, em que publicava como Gustavo Dumas, aos poemas de Idade do zero (Escri-
turas, 2005) e A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008); dos sambas do Terreiro
de Breque ao carnaval do Cordão do Prata Preta, Zeh Gustavo mantém voz viva e
atuante a ecoar nas ruas, nas rodas de samba e nas redes sociais.”
Um corpo que vaza 63
Auto(de)flagelo e (dis)solução
O autorretratismo
Quando Eneida Maria de Souza estudou a troca de cor-
respondência de Mário de Andrade com outros modernistas,
buscou nela o modo de constituição do que chamou de “au-
torretratos” pensados como possibilidade de se refletir sobre “a
relação entre arte e vida, produção epistolar e ficcional, proje-
to estético e projeto político” (Souza, 1999, p. 191). A crítica
mineira partiu das considerações de Michel Beaujour (Miroirs
(Miroirs
d´encre,, 1980) acerca do autorretrato para reconstituir, a partir
d´encre
dos relatos confessionais de Mário, particularmente a Henri-
queta Lisboa, os retratos dele realizados por amigos pintores.
Neles, o poeta comentava a projeção de diferentes imagens de
si, de seus aspectos demoníacos ou angelicais. Essas diferentes
feições de Mário convertidas em verdadeiros autorretratos ver-
bais, conforme esclarece Eneida Maria de Souza, são condizen-
tes com o gênero. Ela ressalta: “a metáfora (autorretrato) traduz
a maneira pela qual a imagem se compõe, fragmentariamente e
pelo olhar do outro [...]” (Souza, 1999, p. 193). O processo de
montagem destes autorretratos, segundo a autora, é o da cola-
gem, enfatizando, consequentemente, o caráter construído e ou
ficcional das “figurações de Mário”. Não à toa, o texto de Enei-
da intitula-se “Autoficções de Mário”. A vantagem, apontada
pela crítica mineira, de trabalhar conceitualmente com autorre-
tratos seria a de que estes não se prendem rigorosamente à cro-
nologia autobiográfica, sendo abertos às “reprises”, retomadas e
insistências. O autorretrato configura, até então, gênero aberto
e anfíbio entre o documento e a ficção, trazendo o componente
66
Esta conclusão da paz traz com ela qualquer coisa que se as-
semelha ao primeiro passo para a obtenção deste enigmáti-
co instinto da verdade. Quer dizer que agora está fixado o
que doravante deverá ser “verdade”, o que quer dizer que se
encontrou uma designação das coisas uniformemente váli-
da e obrigatória, e a legislação da linguagem fornece, inclu-
sivamente, as primeiras leis da verdade: porque aqui nasce,
pela primeira vez, o contraste entre a verdade e a mentira”
(Nietzsche, 1984, p. 91).
Referências
Marcia Tiburi1
olhar, mas que não era bem isso, não o olhar com que estáva-
mos habituados. A narrativa é só um traço, não um resumo de
um sentido, não um resumo de coisa alguma. É só um traço
presente. Que não se vendeu, não comprou e não paga por ne-
nhum sentido. A produção de presença está ali, no dançado.
No dansçaber (acho que Thereza usou essa expressão alguma
vez, mas não lembro onde, ou estou simplesmente projetando)
do corpo que fala, anda, pula, faz coisas de todo tipo, aquelas
coisas do dia a dia, brinca, canta, respira, respira, respira. Como
quando se apoiam nas coisas conhecidas e comuns: a chaleira e
a xícara de chá, as roupas (a saia rosa). A materialidade mínima
das coisas compõe a produção da presença. Mas também as
legendas, claramente materiais, escritas a giz, escritas digamos
em nome de um movimento material:
material: “Abraçar/Dançar sem
se mexer/Espirais/Falar o que se pensa/Mover no nível baixo/
Tocar alternado”. Essas legendas escritas na lousa são as partes
da apresentação na forma de uma materialidade escrita em giz.
Uma delicadeza, um traço, um fio. Elas vão dando o caminho
do rito desritualizado que operou ali, um ritual de aproximação
com o cotidiano dançado, quando tudo é acontecimento.
Os bailarinos falam. Em vários momentos, Juliana enun-
cia o “começo” fazendo do começo sempre uma potencialida-
de. “Eu começo”, ou a voz é corpo que dança. A voz que nos
convida, nos ensina, desensina, nos deixa parados. O papel da
voz nos acorda para outros verbos: ouvirdançar é um desses que
me surgem. No tempo em que olhodançar é nossa prática des-
coberta, ouvirdançar torna-se uma novidade efêmera e eterna.
Sem tirar o corpo fora 99
Referências
2
Sobre esse tema, ver os trabalhos de Emanuel Araújo (1997, pp. 257-269), Mário
Rosa (1995, pp. 175-206, especialmente p. 175), Ronaldo Vainfas (2010, pp. 177-
183) e Susan Soeiro (1974, pp. 209-232).
Eros no claustro 103
Referências
Ana Bernstein2
1
Com imagens de Francesca Woodman – Cortesia de George e Betty Woodman.
2
Professora Doutora do Curso de Estética e Teoria do Teatro da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
120
5
Em um trabalho apresentado em 2012 no Simpósio organizado pelo Guggenheim,
o crítico George Baker faz uma interessante análise do uso recorrente do canto na
obra da artista.
126
,1976.
Untitled,1976.
Untitled
Space2 , 1975-78.
128
Francesca Woodman 129
Space2, 1976.
Em Swan song,
song, seu projeto final para a universidade,
Woodman não se contentou apenas em exibir suas fotografias de
acordo com o modelo convencional de exposição fotográfica. Ela
concebeu o trabalho como uma instalação, envolvendo o público
e fazendo com que este o experimentasse sensorialmente, enga-
jando não apenas a visão mas também a audição e a percepção do
espaço. Ela posicionou as fotografias em níveis bastante altos ou
ao rés do chão, privilegiando locais inusitados como os cantos da
galeria, além de incluir um grande espelho apoiado no chão e en-
costado contra a parede. Em uma carta à pintora Edith Schloss,
Woodman descreve a abertura da exposição:
6
Traduzido pela autora deste capítulo, no original: “To more fully understand the
nature of what she was after in her pictures, one must appreciate the tactile nature of
her work – one needs to feel the textures of the surfaces and objects in the pictures
against bare skin. I know this because in many occasions I was immersed in flour or
some other material. And once she covered me with thick slivers of clear, cold jello in
order to ‘outline me in neon’ for a photograph.”
Francesca Woodman 131
Untitled,, 1976.
Untitled
man, 1975-78.
A woman, a mirror, a woman is a mirror for man,
Referências
André Masseno1
1
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Coreógrafo e performer.
142
[...] porém, escrevo também para os homens que não têm von-
tade de proteger, para os que gostariam de proteger mas não
sabem como, para os que não sabem brigar, os que choram
com facilidade, os que não são ambiciosos e tampouco compe-
titivos, para os que não tem pau grande, e não são agressivos,
para os que têm medo, os que são tímidos, vulneráveis, os que
preferem se ocupar com a casa em vez de ir trabalhar, os que
são delicados, calvos, muito pobres para saber como gostar,
para os que gostam de dar o cu, os que não querem que nin-
guém conte com eles, os que à noite têm medo quando estão
sozinhos (Despentes, 2007, p. 10).
2
Cf. o site da artista em http://www.nadiagranados.com/pages/cv.html.
3
Na seção “Exposições individuais” de seu currículo disponível online, informa Nadia
Granados: “La Fulminante. Espaço web. Exibição permanente”. Cf. http://www.na-
diagranados.com/pages/cv.html.
4
Por exemplo, em agosto de 2012, na vidraça da Galeria da Aliança Francesa, em
Bogotá, Nadia Granados apresentou “No basta un pedazo de tierra”, que consiste em
uma videoinstalação e performance. Na mesma cidade, em 13 de março de 2013, foi
apresentado “La Fulminante Cabaret”.
Arte e ativismo 145
5
Grupos armados de extrema direita que, na década de 1970, eram inicialmente
opostos aos grupos guerrilheiros de extrema esquerda. Em seu histórico, as forças
paramilitares tiveram o apoio de fazendeiros e de pequenos industriais até chegar ao
vínculo com alguns representantes da sociedade e do Estado. Estes facilitaram o desvio
de verbas públicas para o financiamento dos grupos paramilitares, já envolvidos com
o narcotráfico e responsáveis por vários massacres e desterritorializações forçadas na
Colômbia. Cabe lembrar que a descoberta do envolvimento de uma grande parcela de
políticos com as forças paramilitares gerou, em 2006, um escândalo nacional cunhado
como parapolítica. A partir daí, o país vem buscando uma desmobilização da ação
destes grupos.
Arte e ativismo 147
8
Cf. LLOPIS, María. El postporno era eso. Barcelona: Melusina, 2010. Disponível em
www.mariallopis.com. Acesso em 13 dez. 2014.
9
Cf. TORRES, Diana J. Pornoterrorismo. Tafalla: Txalaparta, 2011. Disponível em
www.pornoterrorismo.com.
10
Baise-moi (França/2000). Direção: Virginie Despentes. França.
11
Especialmente o filme Otto, or up with dead people (Alemanha-Canadá/2008). Di-
reção: Bruce LaBruce.
12
As músicas do STA! estão disponíveis em https://soundcloud.com/#solangetoaberta.
152
Referências
ra de afectos e perceptos
perceptos,, para que ele vivencie histórias contra a
História, relatos outros, descentrados e desvalorizados, resíduos
contra o esquecimento e as convenções dominantes. Nessa ope-
ração de metamorfoses e ilusionismos, a diretriz aponta para a
“latência antropofágica” de nossa cultura e passa a transfundir
azulejos em corpos, corpos em vísceras, numa crescente misti-
ficação capaz de transformar pinturas em esculturas, esculturas
em relatos, relatos em ambientações grotescas.
Por outro lado, os mais diversos parceiros e eventos de
nossa condição mestiça, absorvidos pela vocação informe e
devoradora da artista, passam a conviver e a interagir de ma-
neira imprevista e inusitada: a catequese, por exemplo, aparece
transtornada em duas cenas canibalescas, em que índios sacri-
ficam o Cristo, em pinturas sobre tela, à maneira de azulejos;
a paisagem da Guanabara, num panorama, à moda do sécu-
lo XVII, aparece com várias edificações oriundas de distintas
épocas da cidade, “em tinta da China sobre papel”. E, por sua
vez, as diversas origens e etnias de nossa miscigenação surgem
apresentadas em múltiplos autorretratos de Varejão travestida
sucessivamente de chinesa, moura, negra e índia.
A antropofagia, entendida como estratégia cultural, pos-
sibilita um diálogo interdisciplinar amplo, na medida em que
incorpora distintas linguagens artísticas – a literatura, o teatro
e as artes plásticas – e as combina com múltiplas áreas de co-
nhecimento: a História, a Antropologia, a Política, a Filosofia,
a Religião, a Psicanálise. Por isso mesmo, a ideia de apropriação
está no cerne do conceito. Visando à reescritura cênica de nossa
A dança da dobra infinita 165
Referências
Referências
Rodrigo Jorge1
4
Manuscrito original (datiloscrito) mantido no Arquivo Mário de Andrade, do Ins-
tituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Unidade de
Corpos em carta 203
5
Manuscrito original (autógrafo) mantido no Arquivo Mário de Andrade, do Ins-
tituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Unidade de
Armazenamento: Correspondência Passiva – Caixa 56 (Sala 1). Código de referência:
MA-C-CPL5417.
Corpos em carta 205
Referências
***
Tem
Quem não tem
Ela tem
Diz que tem
Mas também
Nem precisa dizer
220
And if it is real
Wanna touch
Wanna feel
She can dance
She belongs
She believes
Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
And the taste of each flower is sweet
So why do the say she’s a bad girl
Mãos
Pés e mãos
Contramãos
Sins e nãos
Olhos sãos
De rolar e de ver
Arrancar a carne das coisas 221
Ela veio
Ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
Referências
Marcelo Santos1
1
Professor Adjunto A I da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-
rio).
224
Referências
***
***
***
***
Referências
------. O abutre.
abutre. Lisboa: Presença, 2010.
LACOUE-LABARTHE, Philippe. Philippe. Poetry as experience.
experience. Califórnia:
Stanford University, 1988.
------.. A imitação dos modernos.
------ modernos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
MANN, Thomas. Doutor Fausto. Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000.
PESSOA, Fernando. Obra poética.poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1993.
POE, Edgar A. Ficção completa, poesia e ensaios.
ensaios. Nova Aguilar, 1981.
As artes e o discurso da crise: em torno
do niilismo estético
Evando Nascimento1
O niilismo artístico
O melhor de Enrique Vila-Matas e de Gonçalo Tavares
é o refinamento literário de que se revestem suas invenções.
O pior desses dois autores é o epigonismo de que também se
reveste parte de sua produção. Não por acaso os dois livros
que abordarei (tocando realmente apenas a borda, a beirada,
sem ter espaço de avançar mais) tomam Joyce como ponto
de partida. Há uma espécie de cinismo que consiste em repe-
tir muitas vezes o mesmo, sem dar um passo adiante, num
modo paralisante de emulação. O melhor de ambos é quando
conseguem deslocar o modelo joyciano, rompendo até mesmo
com a ideia de modelo – e, consequentemente, com a ideia de
representação. Neste ponto, gostaria de fazer uma distinção
entre emulação clássica e emulação pós-romântica. Sabemos
que até o século XVIII imperava no Ocidente o procedimento
emulatório, em que se partia da imitação dos antigos, a fim
de aperfeiçoá-los. Já na emulatio latina havia uma ideia de ri-
validade entre o modelo e seu epígono, mas o modelo como
ideal permanecia. Na verdade, cópia e modelo eram movidos
por um mesmo ideal de perfeição que só o exercício contínuo,
dentro de uma linhagem tradicional, poderia levar a alcan-
çar. Sabe-se também que, a partir do fim do século XVIII, o
paradigma emulatório começa a ser abalado em seu princípio
mesmo. Não é que a emulação não seja mais possível; o que se
tornou impossível foi o gesto da emulação clássica de cultuar
os mestres do passado como modelo para alcançar um ide-
al. O diálogo com o passado continuará (basta lembrar cer-
As artes e o discurso da crise 255
Pertence à estirpe cada vez mais rara dos editores cultos, li-
terários. E, comovido, assiste todos os dias ao espetáculo de
como o ramo nobre de seu ofício – os editores que ainda leem
e que sempre foram atraídos pela literatura – vai se extinguin-
do sigilosamente, no começo deste século. Teve problemas há
dois anos, mas soube fechar a tempo a editora que, no fim das
contas, mesmo tendo obtido um notável prestígio, caminhava
com assombrosa obstinação para a falência. Em mais de trinta
anos de trajetória independente, aconteceu de tudo, sucesso,
mas também grandes fracassos. A falta de rumo da etapa final
ele atribui a sua resistência a publicar livros com as histórias
góticas da moda e outras bobagens, e dessa forma esquece par-
te da verdade: que nunca se distinguiu por sua boa gestão eco-
nômica e que, além disso, talvez pudesse ter sido prejudicado
por seu fanatismo desmesurado pela literatura (Vila-Matas,
2011a, p. 11).
Dito de outro modo, por mais grave que seja, talvez por
isso mesmo, esse gênero desvelador que é o apocalíptico não
é sério, pelo menos na pena de autor. Em seguida, comenta
que nossos antepassados tinham a mesma sensação que nós,
de viverem uma situação “terrível”, de declínio da civilização e
iminente fim de mundo. E continua, num discurso indireto li-
vre, reproduzindo os fiapos de pensamento de seu personagem:
Inconcluindo
Nietzsche encerra sua Genealogia da moral demonstrando
como o ideal ascético pôde triunfar, pois deu um sentido ao
animal humano. Embora profundamente niilista, o ideal as-
cético é ainda uma vontade, uma força que se volta contra a
própria vida.
Referências
------. Crítica da razão cínica. Trad. Marco Casanova et al. São Paulo:
Estação Liberdade, 2012.
TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia: melancolia contemporâ-
nea (um itinerário).
itinerário). São Paulo: Leya, 2010.
TRIGO, Luciano. A grande feira: uma reação ao vale-tudo da arte con-
temporânea.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
temporânea
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia.
companhia. Trad. Josely Vianna
Baptista, Maria Carolina de Araújo. São Paulo: Cosac & Naify,
2005.
------. Dublinesca
Dublinesca.. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac &
Naify, 2011a.
------. História abreviada da literatura portátil.
portátil. Trad. Júlio Pimentel
Pinto. São Paulo: Cosac & Naify, 2011b.
WOLFE, Tom. A palavra pintada.pintada. Trad. Lia Wyler. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009.
Entre devaneios, sonhos e delírios: de
Carolina Maria de Jesus a Estamira
2
Aqui não analisaremos Meu estranho diário, pois, nos trechos em que Carolina ainda
vive na favela, não há muitos exemplos de sonhos e devaneios. Nosso foco, portanto,
se limitará a Quarto de despejo.
286
Devaneios e sonhos
No diário de Carolina Maria de Jesus, a escritora revela
seus devaneios e sonhos. Embora eles não sejam reais, fazem
parte da realidade da escritora, na medida em que se transfor-
mam em emoções ao serem relatados em discurso e em que são
capazes de proporcionar a ela um sentimento – ainda que pas-
sageiro – de bem-estar. Para María Zambrano (1978, p. 130):
4
Todos os trechos dos diários de Carolina Maria de Jesus são aqui transcritos fielmen-
te, de acordo com o original.
296
Este trecho, mais uma vez, retrata o desejo por uma vida
melhor e a quebra da atmosfera onírica. Revela ainda uma pre-
ocupação da escritora: a aparência. Carolina gostava de se vestir
bem, mas, como estava sempre andrajosa, era em seus sonhos e
devaneios que aparecia com roupas bonitas.
Entre devaneios, sonhos e delírios 297
5
Esta definição foi retirada do documentário, no momento em que Estamira mostra
um papel assinado por um psiquiatra, que contém este diagnóstico.
Entre devaneios, sonhos e delírios 299
Considerações finais
Carolina Maria de Jesus via beleza no sonho. Ela se con-
siderava uma poetisa e, como tal, seus sonhos eram lindos e
diferentes. Assim, a beleza do sonho e do devaneio podia, por
vezes, substituir a dureza da vida.
Estamira só via a dureza da vida. Em seus delírios, porém,
sentia-se capaz de superar as dificuldades, porque tinha poderes
especiais: como Deus, era onipotente, onipresente e onisciente.
Os sonhos e devaneios de Carolina mostram uma von-
tade de superação e de realização de desejos. Os delírios de Es-
tamira revelam uma necessidade de esquecimento – para ela,
superar já não é possível. Seus discursos são, de fato, a reverbe-
ração foucaultiana da verdade. A verdade de construir castelos
de alvenaria e a verdade de substituir Deus pelo próprio eu.
Referências
Geraldo Motta
(2012).
Sobre os autores
Ana Bernstein
Doutora em Estudos da Performance (New York Uni-
versity), Mestre em História Social da Cultura (PUC-RJ) e
Bacharel em Artes Cênicas (Unirio). É pesquisadora e profes-
sora de História da Arte, Estética e Teoria do Teatro e Estu-
dos da Performance. Tem experiência na área de Artes, com
ênfase em Performance e Teatro, trabalhando principalmente
com os seguintes temas: corpo e arte, teoria da performance,
performance art,
art, estudos de gênero, teoria e crítica teatral. Além
das atividades de pesquisa e ensino, tem trabalhado extensiva-
mente como tradutora de teatro, produtora cultural, curadora
de eventos e festivais e fotógrafa. É autora de A crítica cúmplice
– Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moder-
no. Contato:
no. Contato: ana.bernstein@nyu.edu.
316
Ana Chiara
Doutora em Letras pela PUC-RJ, Professora-associada
de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro desde 1995, dedica-se à pesquisa nos seguintes temas:
corpo, sexualidade, memória, escritas de si. Autora dos livros
Pedro Nava: um homem no limiar (EdUERJ, 2001) e Ensaios de
possessão (irrespiráveis) (Caetés, 2006), organizadora junto com
Fátima Cristina Dias da Rocha dos livros Literatura Brasileira
em foco – volumes 2,3,4 e 5, 5, co-organizadora também do livro
Escritas do corpo (Caetés, 2011), autora de Angela Melim por
Ana Chiara (EdUERJ,2011). Participa do GT ANPOLL de
Literatura Comparada e Coordena o GPESq Vida, arte, lite-
ratura: bioescritas. Bolsista de Produtividade CNPq. Contato:
anac.chiara@gmail.com.
André Masseno
Doutorando em Letras pela Universidade de Zuri-
que. Mestre e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ.
Graduado em Artes Cênicas pela Unirio. Integrante do grupo
de pesquisa Corpo e Experiência, vinculado à UERJ. Há vinte
e três anos vem trabalhando nos segmentos artístico e cultural
nacionais, desenvolvendo projetos nas áreas de teatro, perfor-
mance e dança contemporânea no Brasil e no exterior. Contato:
planob_masseno@yahoo.com.br.
Eliane Vasconcellos
Sua dissertação de mestrado “Sexo e linguagem”, publi-
cada com o título “A mulher na língua do povo”, foi traduzida
na França com o título “La femme dans la langue du peuple
au Brésil”; doutourou-se em Letras na UFRJ, com a tese Entre
a agulha e a caneta: um estudo das personagens de Lima Barreto,
Barreto,
editada pela Lacerda. Fez seu pós-doutorado no Institut de Tex-
tes et Manuscrutis Modernes (ITEM). Dirigiu o Arquivo-Mu-
Sobre os autores 319
Geraldo Motta
Pernambucano, cineasta e mestre em filosofia, foi grande
amigo de Hugo Denizart, com quem desenvolveu alguns en-
saios fotográficos e cinematográficos. O presente texto é mais
uma dessas parcerias.
Hilan Bensusan
Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Bra-
sília (1989), Mestrado pela Universidade de São Paulo (1994)
e doutorado pela University Of Sussex (1999). Atualmente, é
professor adjunto da Universidade de Brasília. Interessa-se por
metafísica, especulação, filosofia do processo e política. Conta-
to: hilantra@gmail.com.
Marcelo Santos
Possui graduação em Letras pela Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro (2003), mestrado em Literatura Brasi-
leira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2006) e
Doutorado em Literatura Comparada, atuando principalmente
nos seguintes temas: literatura, história da literatura e das ar-
tes, cultura, artes plásticas, vida literária e arquivos. É professor
adjunto na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio). Desenvolveu, como pesquisador bolsista do Arqui-
vo-Museu de Literatura Brasileira na Fundação Casa de Rui
Barbosa, pesquisa em arquivos literários, contribuindo para a
revisão historiográfica, a crítica de literatura e de arte moderna
e contemporânea. Contato: m.santos1977@gmail.com.
Marcia Tiburi
Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul (1991), graduação em Artes Plás-
ticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996),
mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (1994) e doutora em Filosofia pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) com ênfase em
Filosofia Contemporânea. É professora da Pós-graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbite-
riana Mackenzie. Temas de interesse: filosofia contemporânea,
filosofia da linguagem, ética, estética, biopolítica e feminismo.
Contato: marciatiburi2011@gmail.com.
Sobre os autores 323
Rodrigo Jorge
Doutorando em Estudos de Literatura (Literatura Com-
parada) pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre
em Letras (Literatura Brasileira e Teorias da Literatura) por esta
mesma instituição e graduado em Artes Cênicas pela Univer-
sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Como
pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, desenvolve o
projeto “Edição da correspondência de Mário de Andrade e Pe-
dro Nava”, sendo responsável pela fixação do texto, a elabora-
ção de notas críticas e a preparação do livro a ser publicado pela
Edusp. Membro dos grupos de pesquisa “Caminhos da Litera-
tura Brasileira” (UFF/CNPq), “Autobiografias e outras formas
de expressão do eu” (UFJF/CNPq) e membro convidado do
GT de Literatura Comparada da ANPOLL. É também pro-
fessor substituto de literatura brasileira na Faculdade de Letras,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato:
rodrigorjrn@gmail.com.
Formato 14 x 21
Tipologia: Adobe Garamond Pro (texto) Nebrasca (títulos)
Papel: Couché Matte 90/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
CTP, impressão e acabamento: Editora Vozes