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AFETIVIDADE E COGNIÇÃO NOS PROCESSOS


DE ENSINO E APRENDIZAGEM
Natacha Scheffer

Resumo
Nosso objeto de estudo centra-se nas relações subjeti-
vas que ocorrem entre professor e aluno durante os processos
de ensino e aprendizagem, bem como suas repercussões para
estes processos. A partir da análise da construção das relações
subjetivas intra e interpessoais e os fatores envolvidos, bus-
cam-se subsídios para a compreensão dos processos de ensi-
no-aprendizagem e sua importância na vida do sujeito, colo-
cando como foco principal os primeiros anos da vida escolar.
A reflexão apóia-se no referencial produzido pela psicanálise.

Palavras-chave
Afetividade, cognição, ensino, aprendizagem.

Resumen
Nuestro objeto de estúdio se centra em las relaciones
subjetivas que ocurren entre los maestros y los alunnos durante
los procesos de enseñaza y aprendizaje, asi como sus
repercusiones de estos procesos. A partir del análisis de la
construcción de las relaciones subjetivas intra e interpersonales
y de los factores involucrados se buscan subsídios para la
comprensión de los procesos de enseñanza-aprendizaje y su
importância en la vida del sujeto, colocando como foco
principal los primeros años de la vida escolar. La reflexión se
apoya en el referencial producido por el psicoanálisis.

Palabras-chave
Afectividad, cognición, aprendizaje.

Diálogo Canoas n. 11 p. 235 - 248 jul-dez 2007


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Introdução

Discutir as relações existentes entre afetividade e cognição nos processos de


ensino e aprendizagem é nossa proposta neste artigo, bem como compreender a
importância das relações afetivas que se estabelecem entre professor e aluno duran-
te os processos de ensino e aprendizagem e suas repercussões para estes processos.
Analisar a construção das relações interpessoais, os fatores nela envolvidos, buscan-
do subsídios para uma compreensão adequada dos processos relacionais e sua im-
portância na vida do sujeito, tendo como foco principal os primeiros anos da vida
escolar são objetos maiores desta discussão, enfocando a importância das relações
subjetivas que se estabelecem entre professor e aluno durante o processo de aquisi-
ção e construção do conhecimento.

Constituição subjetiva e processos de aprendizagem

Na teoria psicogenética de Henri Wallon (1995), a dimensão afetiva ocupa


um lugar central, quando falamos da construção da pessoa e do conhecimento. As
influências afetivas, que rodeiam a criança desde o berço, exercem uma ação deter-
minante na sua evolução mental.

A afetividade não é apenas uma das dimensões da pessoa, ela perpassa todo
o desenvolvimento humano. No início da vida, afetividade e cognição estão sincre-
ticamente misturadas e quando a diferenciação ocorre, ainda assim a reciprocidade
entre os dois permanece de tal forma que as aquisições de cada uma repercutem
sobre a outra permanentemente.

A história da construção da pessoa é constituída por uma sucessão de mo-


mentos afetivos e cognitivos, integrados. Isso significa que a afetividade depende
das conquistas no plano cognitivo para evoluir, e o cognitivo depende do afetivo.
A construção do Eu é um processo condenado ao inacabamento, ou seja, permane-
ce acontecendo sempre, dentro de cada um. Wallon (1975) chama esse processo de

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“fantasma do outro”. O Eu, ainda frágil, precisa da admiração alheia para continuar
sua construção; a seguir, utiliza o outro, aquele que negou, como modelo para a
ampliação de suas próprias competências.

Para Wallon (apud Galvão, 2000), a afetividade, a inteligência e o ato-motor


são campos funcionais entre os quais se distribui a atividade infantil. No inicio do
desenvolvimento, aparecem sincreticamente misturados e, aos poucos, vão adqui-
rindo independência sem, no entanto, diferenciarem-se na totalidade, pois é a pes-
soa, ela própria, um campo funcional. A teoria walloniana da formação da persona-
lidade nos diz que ao longo do desenvolvimento ocorrem diferenciações entre os
campos funcionais e no interior de cada campo. O estado inicial de consciência é
confuso, no qual o bebê não se percebe como um indivíduo diferenciado do meio.
A distinção entre o eu e o outro ocorrerá de forma gradativa, mais tarde, e Wallon
(apud Galvão, 2000) chamou-o de processo de individuação.

O bebê recém-nascido não iniciou seu processo de individuação, nem ao


menos no plano corporal. Ele não diferencia seu corpo das demais estruturas ao seu
redor. Através de interações, nas quais o bebê estabelece relações com seus movi-
mentos e sensações, é que se inicia a construção do eu-corporal. Esse processo, que
ocorre aproximadamente durante o primeiro ano de vida da criança, marca a dife-
renciação entre o espaço objetivo e o espaço subjetivo. A próxima etapa que, para a
psicanálise seria chamada Estádio do Espelho, para Wallon corresponde à integra-
ção do corpo das sensações ao corpo visual, aquele que é sentido pelo sujeito e visto
pelos outros.

A construção do eu-psíquico é precedida pela construção do eu-corporal e


uma não ocorrerá sem a outra. A personalidade ainda indiferenciada da criança
começa a tomar forma e ela torna-se capaz de separar sua personalidade da família
e das outras pessoas. Nesse estágio, verifica-se um período de crise, no qual a crian-
ça busca a diferenciação entre o eu e o não-eu, ocorrendo, inclusive, muitos confli-
tos interpessoais, em que a criança demonstra uma oposição sistemática a tudo que

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seja diferente do desejo dela. Nesse período, ocorrem as manifestações de ciúme e


tirania. Essa exacerbação tem um propósito, o de destacar, em meio a tantos outros,
o eu. Wallon (1975) chama esse estágio de Personalista, e inicia-se uma nova etapa,
na qual a criança empenha-se em “seduzir” os outros, porque necessita deles para
admirar a si própria. Segundo Galvão (2000, p. 55), “esta aprovação de que ela tem
necessidade é o resíduo da participação que antes lhe misturava ao outro”.

Num próximo momento, a criança inicia a atividade de imitação, imitando


as pessoas que lhe atraem e incorporando suas atitudes, novamente reaproximando-
se do outro. Para Wallon (apud Galvão, 2000, p. 56), “o outro é um parceiro perpé-
tuo do eu na vida psíquica”, e a oposição e aproximação ao outro continuará por
toda vida. Permaneceremos misturando-nos aos outros, mesmo durante a vida adulta.

O papel das emoções no desenvolvimento humano foi estudado por diver-


sos teóricos. Wallon (1995) buscou compreendê-las e apreender sua função. No
início da vida, a emoção é comportamento predominante; ao longo da existência,
ela se faz logo sempre presente, o papel das emoções na relação pedagógica neces-
sita ser compreendido e analisado.

O recém-nascido da espécie humana, ao contrário dos recém-nascidos de


outras espécies, é totalmente dependente do outros para sobreviver. Então, seu pri-
meiro grande feito é conseguir desencadear nos outros reações de ajuda para satis-
fazer suas necessidades. De acordo com as reações do bebê, a estas lhe são atribuí-
dos significados. As pessoas próximas acolhem e interpretam as reações e agem
visando a atender as demandas advindas dessas reações. Desenvolve-se, então, entre
o bebê e o adulto que o cuida, uma intensa comunicação afetiva. Aos poucos,
o bebê passa a ter intencionalidade em suas ações e deixa as reações puramente
espasmódicas no passado, passa a exteriorizar a afetividade. Lembremo-nos do sor-
riso do bebê recém-nascido, que não passava de ato reflexo, e do sorriso do bebê de
6 meses que tem intencionalidade e afetividade expressas.

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As emoções são manifestações da vida afetiva, possuem características pró-


prias e são acompanhadas de manifestações orgânicas, sejam de origem neurovege-
tativas, sejam expressivas. E é justamente a exteriorização das emoções que tem um
caráter epidêmico.

No bebê, os estados afetivos são vividos como manifestações corporais,


mas ao longo do desenvolvimento passam a ter alguma independência desses mes-
mos fatores. Wallon (apud Galvão, 2000, p. 63-64) enfatiza o componente corporal
das emoções, vinculando-as sempre a uma manifestação corporal nos dizendo que:

As emoções podem ser consideradas, sem dúvida, como a origem da consciência, visto que
exprimem e fixam para o próprio sujeito, através do jogo de atitudes determinadas,
certas disposições específicas de sua sensibilidade. Porém, elas só serão o ponto de partida
da consciência pessoal do sujeito por intermédio do grupo, no qual elas começam por
fundi-lo e do qual receberá as fórmulas diferenciadas de ação e os instrumentos intelec-
tuais, sem os quais lhe seria impossível efetuar as distinções e as classificações necessárias
ao conhecimento das coisas e de si mesmo.

No comportamento infantil, fica claramente evidenciado que a emoção é uma


atividade eminentemente social que se nutre do efeito que causa no outro, as reações
frente a manifestações emotivas funcionam como um reforço da mesma. E, em situa-
ções de crise, isso fica ainda mais evidente, quando, sem reações externas, as crises per-
dem sua força. Uma criança que não tem seu desejo atendido e entrega-se a uma crise de
choro, ao perceber-se ignorada, pára de chorar, uma vez que sua emoção não está rece-
bendo o reforço que a faria continuar. O caráter contagioso e epidêmico da emoção é
explicado também pela sua função social, sendo justamente este traço o mais negligen-
ciado, pois pertence a um campo obscuro, nos limites da vida somática e da vida repre-
sentativa. Isso resulta em grave prejuízo para a compreensão dos processos interpesso-
ais, especialmente os que ocorrem entre crianças e adultos. Compreendendo-se a criança
como um ser essencialmente emotivo, e trazendo à sua emoção a tendência forte a se
propagar, resulta que o adulto, no convívio infantil, está exposto ao contágio emocional,
ocorrendo então a produção de uma emoção análoga ou complementar.

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Até o momento abordamos, neste estudo, os aspectos envolvidos no pro-


cesso de constituição subjetiva, amparando-nos na teoria psicanalítica. Fizemos uma
análise de como ocorre a construção do eu, quais os fatores e processos envolvidos.
Consideramos que o processo de constituição subjetiva do sujeito se dá no âmbito
relacional, logo, é fundamental abordarmos os processos de relações interpessoais.

Nosso objeto de estudo é o processo relacional que se dá entre professor e


aluno durante os processos de ensino e aprendizagem, bem como suas repercus-
sões para este processo. Analisando a construção das relações interpessoais, os fato-
res nela envolvidos, buscando subsídios para uma compreensão adequada dos pro-
cessos relacionais e sua importância na vida do sujeito, tendo como foco principal
os primeiros anos da vida escolar.

Objetos maiores desta discussão, a qual se propõe a analisar a importância


das relações subjetivas que se estabelecem entre professor e aluno durante o proces-
so de aquisição e construção do conhecimento.

Aprendizagem sob um olhar psicanalítico

Segundo a teoria psicanalítica de Freud, os seres humanos se orientam pela


linguagem e pela fala, sem dar-se conta de que elas tecem a realidade psíquica dos
sujeitos. A criança não chega isenta à escola, traz em seus pensamentos e emoções a
maneira como foram olhadas e percebidas pelos outros.

Após a construção da função simbólica, a comunicação se beneficia, ocu-


pando um maior espaço. Ela incorpora a linguagem em suas dimensões oral e escri-
ta. Surge, então, a possibilidade de nutrição afetiva por essas vias, que antes estavam
restritas apenas ao toque e à modulação da voz. Ocorre, então, o que se pode cha-
mar de forma cognitiva de vinculação afetiva. Pensar nisso nos leva a refletir sobre
a educação como uma requintada comunicação afetiva, que se estabelece na relação
professor-aluno.

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O fenômeno do afeto ou das emoções adquire no contexto escolar importância


fundamental, pois é no âmbito das relações duais que as emoções desempenham um
papel essencial. Freud nos diz que as emoções são recíprocas. Ao transferir ao outro,
sentimentos que são nossos, nós também os fazemos reagir perante nossas emoções.

Para a teoria psicanalítica, o sujeito se constitui no interior do campo do


Outro, através do qual sobrevém uma série de operações estruturantes que se cha-
mam estádio do espelho e complexo de Édipo. Logo, toda e qualquer produção
humana, subjetiva ou não, só pode ser pensada dentro do campo do Outro. Então,
as aprendizagens são possíveis graças à presença de um outro.

Segundo Lajonquière (2000, p. 183):

O aprender e o viver são como duas faces de uma mesma moeda. Como já tivemos
oportunidade de mostrá-lo, o sujeito vive porque, em última instância, alguém o susten-
ta, isto é, há um outro que o impulsiona permanentemente a continuar vivendo. O outro
o pulsiona e, de certa forma, “enfia” no seu organismo as pulsões para que assim
realizem seu trabalho silencioso de fazer avançar o sujeito sempre um pouco mais.

A passagem pelo complexo de Édipo, um nó de relações em uma monta-


gem que estrutura os limites de nossa própria subjetividade desejante, constitui as
possibilidades epistêmicas do sujeito. Acerca disso, Freud (apud Lajonquière 2000,
p. 231) nos mostra, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci, que: “as possibilidades
epistemológicas de um sujeito encontram-se marcadas a fogo pela particular inscri-
ção no sujeito do paradoxo do saber”.

No momento em que a criança descobre a diferença sexual anatômica e inter-


preta esta descoberta, leva-a a dar-se conta da falta e, por conseguinte, gera uma an-
gústia. A essa angústia Freud (apud Lajonquière, 2000) chamou de “angústia de cas-
tração”. O sujeito descobre a diferença e isso o angustia; produz-se, então, o desejo de
saber. As investigações infantis, inicialmente, são sempre de cunho sexual; a criança
precisa definir seu lugar no mundo e esse lugar está, em primeira instância, relaciona-

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do ao gênero. O lugar sexual que a criança ocupa é, em princípio, situado pelos pais.
A relação existente é a que se refere ao desejo dos mesmos em relação àquele filho.
A criança, por sua vez, em meio ao conflito, pergunta a todo instante sobre o lugar que
desejam que ela ocupe; vemos, então, novamente, o Édipo presente.

Na organização da sexualidade infantil, a criança passa por diversas fases,


nomeada por Freud como fases do desenvolvimento psico-sexual. Entre elas, está a
fase fálica, seu nome advém do termo Falo, que é o significante da falta, e durante a
passagem por esse período, a criança, seja ela menino ou menina, teima que só
existe o pênis como órgão genital. O motor do complexo de castração e da estrutu-
ra da dramática edípica é o Falo.

No caso do menino, ocorre em um primeiro momento a universalidade do


pênis, o único órgão sexual possível para ambos os sexos. Quando se depara com a
diferença sexual anatômica, constrói a premissa de que se ainda não existe o pênis
na menina, ele crescerá. Num segundo momento, as proibições das práticas auto-
eróticas vêm como uma ameaça de castração. A seguir, quando não pode mais enco-
brir a diferença anatômica, na hipótese de que não existe pênis na menina porque
houve a castração, então existe a possibilidade real de perdê-lo. Entretanto, ainda
não consegue elaborar o fato de que a mãe, um ser tão especial, não possui um
pênis. A elucidação desse conflito ocorre quando o menino vê que a mãe pode dar
a luz, e, então, deve haver de fato alguma diferença sexual entre homens e mulheres.
Por fim, o menino aceita a proibição da lei do incesto a fim de preservar seu pênis e
põe fim ao complexo de castração “saindo” do complexo de Édipo.

No caso da menina, ocorre de uma forma diferente a partir do momento


em que, após descobrir que seu clitóris não é um pênis, pois é muito pequeno, ela foi
castrada. A seguir, descobre que esse infortúnio não é só seu, sua própria mãe tam-
bém não o tem; assim, separa-se da mãe e escolhe o pai como objeto de amor,
esperando que ele lhe outorgue, sob a forma de um filho, o pênis. Como não recebe

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do pai aquilo que deseja, ‘sai’ do complexo de castração e inicia o Édipo feminino.
Segundo Lajonquière (2000, p. 214), “a castração é o que regula o desejo ao instituir
uma diferença entre o que se obtém e o que se deseja”.

A pulsão de saber está ligada à investigação sexual infantil e acabará toman-


do um dos três destinos a ela possíveis: limitada à livre atividade da inteligência;
retornar na forma de obsessão investigativa poderosa o suficiente para sexualizar o
pensamento e acentuar as operações intelectuais com o prazer e a angústia dos
processos sexuais; escapar ao recalque sublimando-se em anseio de saber. A civiliza-
ção e suas obras são frutos do destino particular das pulsões.

O grande segredo que gira em torno da sexualidade traz conseqüências no


campo intelectual. Desde muito cedo, as crianças demonstram interesses sobre a
sexualidade, e, os adultos, sejam pais, professores, não promovem os esclarecimen-
tos necessários sobre esse assunto, deixando a criança sem a informação ou, muitas
vezes, apresentando a informação confusa ou errada. A proibição de se interessa-
rem pela sexualidade tem por resultado entravar a curiosidade intelectual da criança,
pois, a teoria psicanalítica considera a problemática sexual como o protótipo do
exercício de outras funções. O exercício da faculdade de pensar está intimamente
ligado ao destino das pulsões parciais.

Outro fator importante no que se refere ao esclarecimento sexual das crian-


ças está ligado às barreiras encarregadas de manter o recalque do próprio educador
que se opõe a reconhecer a existência de uma sexualidade infantil. Logo, os excessos
da repressão na educação são proporcionais à intensidade dos recalques do educa-
dor que, segundo Freud, deveria se submeter a uma análise pessoal.

Dessa forma, a confiança da criança na palavra do adulto a quem recorreu


para obter informações referentes à sexualidade estará definitivamente abalada e,
com ela, a autoridade deste. Então, vemos a origem do recalque, o que na realidade
não se encontra na proibição imposta ao agir, e sim na que é imposta ao dizer.

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No que diz respeito à educação, a censura exercida sobre a palavra constitui


um erro educacional muito grave, pois provocará a formação de sintomas neuróti-
cos através dos quais, a verdade recalcada retornará, comprometendo a indepen-
dência do pensamento, isto é, o exercício da função intelectual.

A respeito disso Millot (1987, p. 45) nos diz que:

Condenada à investigação solitária, a criança se chocará com o enigma, insolúvel para


ela, da natureza ao ato da procriação, por não poder e conhecer a diferença entre os
sexos. Os obstáculos impostos pelos adultos à sua investigação não são os únicos. Tam-
bém a angústia de castração a faz fracassar: reconhecer a ausência de pênis na mulher
equivaleria, para o menino, a ratificar a possibilidade de se ver despojado dele; para a
menina, a renunciar à esperança de adquiri-lo algum dia. No entanto, a ignorância em
que permanece a criança no que diz respeito à existência da vagina, que leva a manter
incólume sua teoria da identidade sexual entre o homem e a mulher, é a responsável, no
fim das contas, pelo fracasso definitivo de seu esforço de pensar. Ora, “essa ruminação e
essa dúvida são, todavia, os protótipos de todo posterior trabalho do pensamento dirigido
à solução de problemas, e o primeiro fracasso, tem para sempre, um efeito paralisante”.

O complexo de Édipo é fato importante na instauração do período de latên-


cia, na transformação das pulsões parciais, no sentido da formação reativa, da subli-
mação e do recalque. Dessa forma, considera-se o complexo de Édipo como o
verdadeiro organizador da evolução libidinal do indivíduo.

Para Freud, as medidas educativas consistem essencialmente em exigir da


criança tolerância a certa dose do desprazer constituído pela renúncia às satisfações
pulsionais imediatas, a fim de obter um outro prazer. O amor como recompensa,
isto é, uma satisfação de ordem sexual. Como indica Freud, em Millot (1987, p. 61),
“não tardamos a constatar que ser amado é uma vantagem à qual podemos, e deve-
mos sacrificar muitas outras”.

Em seu trabalho “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar”, Freud


(1914) mostra-nos que a aquisição de conhecimentos depende estreitamente da re-
lação do aluno com seus professores, que se reduz ao tipo de relação com o pai que

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a criança instaurou à saída do período edípico. Os sentimentos de admiração e de


apego, transferidos do pai ao professor, são acompanhados por sentimentos de
hostilidade outrora dirigidos ao pai por seu papel de desmancha-prazeres na vida
pulsional da criança.

Na relação pedagógica, atuam processos inconscientes do professor e do


aluno, a transferência na relação pedagógica é o processo inconsciente através do
qual o aluno atualiza, na pessoa do professor, o protótipo de uma relação vincular
passada. A reação do professor às manifestações dos sentimentos ambivalentes do
aluno e aos seus desejos depende, sobretudo, de seu próprio desejo inconsciente.
Portanto, a relação professor-aluno é permeada, em grande parte, pela constituição
subjetiva inconsciente do professor e de seu grau de maturidade afetiva.

Segundo a teoria psicanalítica, o professor assume um papel essencial na


construção e apropriação do conhecimento na medida em que ocupa o lugar do
outro, investido da autoridade de professor, educador, exerce influência na forma-
ção da personalidade dos alunos, considerando-se os modelos de relações interpes-
soais já estabelecidos.

Concebendo-se ensino e aprendizagem como processos interativos e dialó-


gicos, uma vez que um não ocorre sem o outro, ensinar e aprender são, em primeira
instância, um processo relacional. Porém, essa relação não é simétrica, mas assimé-
trica, pois se trata da relação de um adulto, investido e reconhecido como autorida-
de pelo outro sujeito, com uma criança, sobre a qual serão projetados ideais e expec-
tativas. O ato de aprender sempre pressupõe uma relação dual, em que se encon-
tram dois sujeitos: aquele que ensina e aquele que aprende. Porém, o sujeito que
ensina somente poderá ocupar esse lugar, se estiver revestido do poder que lhe é
outorgado, enquanto se encontra nessa posição. O que transita na relação dual, não
diz respeito a conteúdos escolares, mas sim às relações afetivas que se estabelecem
entre os sujeitos.

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As aprendizagens acontecem, porque há um adulto que pede ao sujeito que


conheça uma ou outra coisa, e mais, o pedido do adulto põe em jogo a articulação
de uma demanda de incondicionalidade ou de amor e a realização de um desejo.
Porém, responder à demanda do outro não deve acarretar o desaparecimento do
demandado enquanto sujeito de desejo. Quando a escola nega os saberes prévios do
aluno, sua linguagem, seus interesses, ela está negando este sujeito desejante. Sendo
assim, as aprendizagens que se tornam possíveis, porque há um outro que demanda,
podem-se tornar impossíveis se esse pedido for feito inadequadamente. Esse outro
pode ser o professor, que não faz outra coisa senão suportar a função do Outro.
Lajonquière (2000, p. 188) nos diz que, “o sujeito está inserido numa trama desejan-
te: deseja o desejo do Outro e para conseguir agarrá-lo tenta dar com o objeto do
desejo do outro. Para isso, todo sujeito olha onde olha esse outro”.

De fato, é nesse investimento narcísico da criança que consiste um dos danos da


educação: no fato de que ela ocupe um lugar no desejo do educador e dos pais. É como
outro, diferente de si mesmo, que ela é amada e querida pelos pais e pelo educador.
Os pais e educadores, seus desejos e fantasias afetam em alto grau a prática educacional.

Os professores herdaram o resíduo da completiva edípica. Portanto, o es-


sencial do processo educativo transcorre da relação da criança com seus pais. E a
transferência é um índice seguro da não-resolução do complexo de Édipo, como
postulou Freud em 1926, o processo de transferência é a prova de que os adultos
não superaram sua dependência infantil.

Palavras finais

Procuramos abordar questões vinculadas ao nosso objeto de estudo: afetivi-


dade e cognição - as relações subjetivas que se estabelecem entre professor e aluno.
Buscamos uma abordagem integral dos fatores que, a nosso ver, são essenciais para a
compreensão do processo de ensino e aprendizagem sob a ótica da psicanálise.

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Discutir as relações existentes entre afetividade e cognição, compreender


os processos de ensino e aprendizagem sob a ótica da psicanálise, bem como a
importância das relações subjetivas que se estabelecem entre professor e aluno,
para estes processos, tornaram-se aspectos primordiais, quando nos propomos a
pensar na formação de professores. A importância de referenciais teóricos sóli-
dos e consistentes, que contemplem os diversos aspectos envolvidos nos proces-
sos de ensino e aprendizagem, é o cerne sob o qual se sustentam os discursos da
formação.

O conhecimento de como os aspectos subjetivos influenciam a aprendiza-


gem e o ensino deve permear os processos de formação docente, pois, se conside-
rarmos que a aprendizagem se dá na relação, o conhecimento de como se estabele-
cem estas relações e quais seus entraves para os processos, nos fornecem importan-
tes conhecimentos para uma ação docente mais efetiva e qualificada.

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