Indivíduo e cosmos na
filosofia do Renascimento
Tradução do alemão
JOÃO AZENHA JR.
Martins Fontes
São Paulo 200 I
Esta obra foi p11blicada originalnrellte em alemão com o título
INDll'/DUUM UND KOSMOS /N DER PHILOSOPHIE DER RENAISSANCE
por Wissens<·haftlkhe B11d1gesellschaft. Darm...tatlt.
Publicado por acordo c·om Yalr U11in:rsity Press.
Todos os direitos rese1Tudos.
Copyright© 2001. lfrraria Martins Fontes Editora lida ..
São Paulo. para a p1-esente edição.
I' edição
setembro de 2001
Tradução do alemão
João A:enha J1:
Tradução do grego e do latim
Maria Eduardo Viaro
Revisão gráfica
Célia Regina Camargo
lflian Jenki110
Produção gráfica
Geraldo Aires
Paginação/Fotolitos
�tudio 3 Desem·ofrimellto Editorial
01-3959 CDD-189
l. Nicolau de Cusa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2 . Nicolau de Cusa e a Itália . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
3. Liberdade e necessidade na filosofia do Renasci-
mento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 23
4. A problemática sujeito-obj eto na filosofia do Re-
nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
CARO E VENERADO AMIGO!
ERNST CASSIRER
INTRODUÇÃO
6. Cf. Thode, Franz von Assisi und die A nfànge der Kunst der Re
nqissance in ltalien, Berlim, 1 885.
10 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
ximo, neste caso, não deve induzir a erro : não s e trata aqui,
por exemplo, de se criar um superlativo relacionado a um
comparativo que lhe seja anterior; ao contrário: trata-se an
tes de se estabelecer uma oposição incondicionada a toda e
qualquer comparação possível, a todo e qualquer procedimen
to meramente quantitativo e que opera numa seqüência de
posições graduadas. O máximo não é um conceito de gran
deza, mas um conceito puramente qualitativo: ele é o funda
mento absoluto do ser, assim como o fundamento absoluto do
conhecimento 1 5 • Nenhum procedimento meramente quanti
tativo, nenhuma divisão gradual é capaz de vencer o abismo
que se abre entre este fundamento original do ser e a existên
cia empírica. Toda e qualquer medição, toda e qualquer com-
1 7 . De conjecturis, l , 1 3 .
1 8 . "Portanto, a identidade, que não se desenvolve de modo variado,
desenvolve-se de modo distinto na alteridade e essa mesma variedade se
envolve na unidade da identidade de maneira concordante ( . . . ) De prefe
rência, portanto, toda nossa inteligência consiste da participação da atua
lidade divina na variedade potencial. Poder compreender, com efeito, no
ato, a mesma verdade tal como ela é convém, então, às mentes criadas,
assim como é próprio de Deus, que esse ato tenha participado, em poder,
de várias formas, nas mesmas mentes criadas ( . . . ) Nem é acessível essa su
midade que assim se deve atingir, como se não fosse possível chegar a ela;
nem se deve crer que, uma vez atingida, seja apreendida no ato, mas, antes,
para atingi-la, pode-se sempre, certamente, ir mais próximo, com a mesma,
tal como sempre é, com um restante inatingível." (lbid. )
40 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
20. "Se alguém estivesse no sol, não lhe apareceria a mesma claridade
como para nós: para o corpo do sol, assim observado, portanto, alguém tem
algo como uma terra mais central e algo como uma circunferência brilhante
e, no meio, como uma nuvem aquosa e o ar mais claro ( . . . ) de onde a terra,
se alguém estivesse fora da região do fogo, apareceria na circunferência da
sua região por meio do fogo como uma estrela brilhante, da mesma forma
como a nós, que estamos próximos da região da circunferência do sol, ele
nos parece muito brilhante." De docta ignorantia, I I , 1 2 (foi. 39 s.)
2 1 . Essas ponderações, através das quais Nicolau de Cusa abala a es
trutura do edifício cósmico construído por Aristóteles, encontram-se ex
pressas com toda a clareza e rigor em Platão: "Então", disse eu, "precisa
mos usar toda a gama de brilhos dos céus como modelo para o estudo das
realidades, assim como deveria fazer quem encontrasse diagramas dese
nhados com cuidado especial pelo próprio Dédalo ou algum outro artífice
ou pintor. Alguém entendido de geometria que visse tais desenhos admi
tiria a beleza da obra, mas acharia absurdo examiná-los seriamente na ex
pectativa de encontrar neles a verdade absoluta com relação aos iguais ou
NICOLA U DE CUSA 45
duplos de qualquer outra proporção." "Que outra coisa poderia ser senão
um absurdo?", ele disse. "Você não acha", disse eu, "que alguém que fos
se um astrônomo realmente sentiria da mesma forma quando ele voltasse
seus olhos para os movimentos dos astros?" Ele admitiria que o artista do
céu o elaborou e a tudo que ele contém da melhor maneira possível para
isso; mas quando vem para as proporções do dia e da noite, da relação dos
dois com o mês, do mês com o ano, das outras estrelas com estes, você não
supõe que ele olhará como uma pessoa muito estranha o homem que acre
dita que essas coisas continuarão para sempre sem mudanças ou sem o
menor desvio - embora eles possuam corpos e sejam obj etos visíveis - e
que sua indagação contínua é a realidade dessas coisas?
22. "A figura da terra é, portanto, móvel e esférica e seu movimen
to é circular, mas poderia ser perfeito. E porque o máximo das perfeições,
dos movimentos e das figuras não existe no mundo, como fica evidente
do que já foi dito acima, então não é verdade que a terra seja totalmente
vil ou inferior. . A terra é, de fato, uma estrela nobre, que tem outra lumi-
.
46 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
se possa falar de centro que ao mesmo tempo não se diga mais verdadei
ro e mais preciso. A eqüidistância precisa entre as coisas diversas não é
encontrada fora de Deus, porque somente Ele é a igualdade infinita. Quem,
portanto, é o centro do mundo, a saber, Deus bendito, é o centro da Terra
e de todas as esferas e de todas as coisas que há no mundo, que é ao
mesmo tempo a circunferência infinita de todas as coisas. " De docta igno
rantia, II, foi. 3 8 .
48 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
27. De pacefidei, Cap. XV: "Convém que se ostente, não por meio de
obras, mas por meio da fé, apresentar-se a salvação da alma. De fato, Abraão,
NICOLA U DE CUSA 51
pai da fé e de todos os crentes, dos cristãos, dos árabes e dos judeus, creu
em Deus e foi-lhe feita a justiça: a alma do justo herdará a vida eterna. Uma
vez admitido isso, aquelas variedades de ritos não trarão mais problemas,
de fato foram estabelecidos e recebidos como signos sensíveis da verdade da
fé: os signos, porém, têm a variação, não o significado."
2 8 . De pacejidei, Cap. V I : "Todos aqueles que, um dia, cultuaram
muitos deuses, pressupuseram haver uma divindade. Adoram-na, de fato,
em todos os deuses, assim como o fazem nos que dela participam. De mo
do que se a brancura não existisse não haveria coisas brancas, da mesma
forma, não existindo a divindade, não haveria deuses. Logo, o culto dos deu
ses declara haver a divindade ."
52 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
mental que existe entre Deus, o ser que tudo abarca, o ser
do infinito, e a singularidade última. Cada ser singular e in
dividual está numa relação direta com Deus; está, por assim
dizer, de olhos nos olhos com ele. O verdadeiro sentido do
divino, porém, só se revela quando nosso espírito não se de
tém em uma dessas relações nem em sua mera totalidade,
mas quando as reúne na unidade de uma intuição, de uma vi
sio intellectualis (visão intelectual). Compreendemos, então,
que seria um contra-senso sequer pensarmos no absoluto em
si, sem que tal determinação se processasse a partir de um
"ponto de vista" individual; por outro lado, compreendemos
também que nenhum desses pontos de vista possui a primazia
sobre o outro, pois só a sua totalidade concreta é capaz de nos
proporcionar uma imagem verdadeira do todo. Nesta totali
dade estão contidas todas as visões individuais, reconhecidas
ao mesmo tempo tanto em sua contingência quanto em sua
necessidade. Assim, é natural que não exista para nós uma
concepção de Deus que não sej a condicionada tanto pela na
tureza do "objeto" quanto pela do "sujeito"; que não reúna
em si ao mesmo tempo o visto e o modo e a direção especí
ficos do ver. Cada um só é capaz de ver-se em Deus, assim
como Deus só é capaz de ver-se em si mesmo. Nenhuma ex
pressão quantitativa, nenhuma expressão associada à oposi
ção "parte" e "todo" é suficiente para designar essa relação
de pura integração recíproca. "Teu rosto verdadeiro não co
nhece limitação, não é deste tamanho nem desta qualidade,
nem espacial nem temporal, pois é forma absoluta, é o ros
to de todos os rostos. E ao perceber que Teu rosto é a verda
de e a medida mais adequada de todos os rostos, sou tomado
por um sentimento de admiração. Pois Teu rosto, que é a ver
dade de todos os rostos, não é deste ou daquele tamanho, não
é, portanto, nem mais nem menos, nem é igual a um outro
qualquer, porque é absoluto e está além de toda e qualquer
grandeza. Entendo, assim, ó Senhor, que Teu rosto precede a
NICOLA U DE CUSA 55
36. Sobre Toscanelli, cf. Uzielli, Paolo dai Pozzo Toscanelli. Parti
cularmente característico para a relação de Nicolau de Cusa com Tosca
nelli é o prefácio de sua obra De transmutationibus Geometricis: "mas co
mo tu, incessantemente, desde os anos de nossa juventude e de nossa ado
42. Excitai. , Lib. IX (foi. 639): "e nesta passagem entende-se a me
diação de Cristo, que é a ligação dessa coincidência, ascensão do homem
interior em Deus e de Deus no homem".
43. De docta ignorantia, III, 3: "quanto ao máximo, com o qual coin
cide o mínimo, convirá assim abraçar um sem deixar escapar o outro, mas
abarcar tudo ao mesmo tempo. Por isso, a natureza intermediária, que é o
meio de conexão do inferior e do superior, é a única que é conveniente
mente elevável ao máximo, por meio da potência do máximo Deus infini
to; de fato, ela envolverá em si todas as naturezas: o supremo do inferior
e o ínfimo do superior. Se ela mesma se eleva acima de tudo até a união
com a maximidade, é certo que todas as naturezas e todo o universo atin
giram nela, de todo modo possível, o grau mais alto".
44. "De fato, a natureza humana é a que foi elevada acima de todas
as obras de Deus e pouco abaixo dos anjos, envolvendo a natureza inte
lectual e sensível e encadeando todas as coisas dentro de si, de modo a ser
chamada, de maneira razoável, µtKpÓKocrµoç (mikrókosmos) ou pequeno
universo pelos antigos." (lbid. )
68 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
seu próprio poder. Pois essas ciências foram inventadas e desenvolvidas por
homens ( ... ) Daí também os dez predicados são envolvidos no poder nocional
da alma racional, assim como os cinco universais e todos os outros seres lógi
cos e outros necessários ao conhecimento perfeito, tenham eles ou não uma
existência fora do pensamento, pois sem eles o discernimento e o conheci
mento não podem ser julgados perfeitamente pela alma."
48. "O ano, o mês, as horas são instrumentos de medida do tempo
criados pelos homens. Assim, o tempo, como é a medida do movimento,
é o instrumento da alma que mede. A razão da alma não depende, pois, do
tempo, é a razão da medida do movimento que se chama tempo e depende
da alma racional. É porque a alma racional não é submissa ao tempo, mas
encontra-se de maneira anterior, em relação ao tempo, como a visão em
relação ao olho: embora ninguém veja sem o olho, não tem contudo, a partir
72 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
do olho, aquilo que foi visto porque o olho é órgão da visão. Da mesma
forma, a alma racional, embora não meça o movimento sem o tempo, con
tudo, nem por isso, ela mesma se submeta ao tempo, antes pelo contrário:
serve-se do tempo como instrumento e órgão para se fazerem as distin
ções dos movimentos." (lbid. ) Cf. em especial Idiotae, Lib. I I I , De mente,
Cap. 1 5, foi. 1 7 1 .
49. Kepler faz referência à doutrina do "divino Nicolau de Cusa" (di
vinus mihi Cusanus) já em seu primeiro trabalho Mysterium Cosmo
graphicum (vide Cap. II, Opera I, ed. Frisch, p. 1 22). Cf. também Opera II,
pp. 490 e 595.
50. De conjecturis, I I , 1 4.
NICOLA U DE CUSA 73
mas 1 • Ele pode e até deve afirmar esta forma, esta sua limi
tação, pois somente ao fazê-lo é capaz de, nela, adorar e
amar a Deus; somente nela é capaz de proclamar a pureza
de sua origems2. É como se, com isso, o dogma do pecado
original - tão pouco discutido por Nicolau de Cusa53 - ti
vesse perdido as forças que exerceu sobre todo o pensamen
to e todo o sentimento de vida medievais. Desperta agora,
54. "Deus criou, porém, uma natureza mais participante de sua bon
dade, ou seja, a natureza intelectual, que é a mais semelhante ao criador, pe
lo fato de ter o livre-arbítrio e é como um outro Deus ( . . . ) essa natureza
intelectual é capaz de compreender Deus porque ela é infinita em poder:
ela pode sempre com efeito compreender mais e mais ( . . . ) Nenhuma outra
natureza pode de si mesma se fazer melhor, todas são o que elas são pela
necessidade que as mantém assim como são. Somente a natureza intelec
tual possui em si os princípios pelos quais se pode fazer melhor e assim
mais semelhante a Deus e mais capaz (de compreendê-Lo)." Excitai. , Lib.
V, foi. 498.
NICOLA U DE CUSA 75
5 5 . De ludo globi, Lib. li, foi. 236 s.; cf. a esse respeito Erkenntnis
problem3, I , 5 7 ss.
56. ldiotae, Lib. III, De mente, Cap. 5: "O pensamento é uma viva des
crição da sabedoria eterna e infinita. Mas em nossos pensamentos desde o iní
cio essa vida é semelhante a alguém que dorme até que o espanto, que nasce
das coisas sensíveis, acorda-o e põe-no em movimento. Então, pelo movimen
to de sua vida intelectiva, descrito em si mesmo, ela descobre o que procura."
76 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
57. ldiotae, Lib. I I I , Cap. 7: "A mente é a tal ponto assimilativa que
na visão se assimila com as coisas visíveis e na audição com as coisas au
díveis, no paladar com as coisas gustativas, no olfato com as coisas olfati
vas, no tato com as coisas táteis e no sentido com as coisas sensíveis, na ima
ginação com as coisas imagináveis e na razão com as coisas razoáveis."
58. De conjectur, II, 1 6: "Esse entendimento, porém, em nossa alma,
desce ao sentido por isso, a fim de que o sensível se levante até o enten
dimento. O sensível se eleva até o entendimento a fim de que a inteligên
cia desça até ele: portanto, o entendimento descer ao sensível é dizer que
o sensível se eleve ao entendimento, pois o sensível de fato não é atingi
do pelo sentido da visão com a intenção ausente do vigor da inteligência
( . . . ) O entendimento, porém, que está potencialmente na região intelectual
tem vantagem em ato nas regiões inferiores. Donde vem que ele está em ato
no mundo sensível; de fato, ele apreende, de maneira atual, o visível na vi
são e na audição, o audível ( . . . ) Ele une as diferenças das coisas sentidas
na imaginação, une a variedade das diferenças imaginadas na razão, une a
diferença das razões em sua unidade intelectual mais simples."
59. ldiotae, Lib. III, Cap. 5 (foi. 1 54): "Porque o pensamento é uma es
pécie de semente divina que envolve nocionalmente com seu poder os mo-
NICOLA U DE CUSA 77
<leios de todas as coisas. Então de Deus, a partir de quem ela tem essa força,
dele mesmo recebeu aquilo que foi colocado no mesmo momento numa
terra conveniente onde ela pudesse frutificar e, por ela mesma, desenvol
ver nocionalmente a totalidade das coisas. De outro modo, essa força se
minal lhe teria sido dada em vão, se não se lhe tivesse acrescido a oportu
nidade de irromper para o ato."
60. Cf. em especial a sua carta aos monges de Tegemsee, datada de
1 4 de setembro de 1 45 3 e publicada por Vansteenberghe em A utour de la
docte ignorance (pp. 1 1 3 ss.). Cf. também Defiliatione Dei (foi. 1 25 ) : "A
teologia afirmativa, que diz que todas as coisas vêm do Uno e a negativa,
que nega que todas as coisas venham do mesmo Uno, e a dubitativa, que
nem nega nem afirma, e a disjuntiva, que afirma uma coisa e nega outra,
e a copulativa, que liga afirmativamente os opostos ( . . . ) são uma só teolo
gia ( . . . ) Logo, é preciso que o estudante não negligencie o modo pelo qual
nesta escola do mundo sensível uma só coisa é procurada na variedade dos
modos e que todas as coisas são conhecidas em uma só, uma vez gerado,
porém, de maneira pura, o ensinamento no céu da irueligência."
CAPÍTUL0 2
NICOLAU DE CUSA E A ITÁLIA
7. Études sur Léonard de Vinci, ceux qu 'i/ a lus et ceux qui l 'ont lu.
Seconde série, Paris, 1 909, pp. 99 ss.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 87
22. Cf. esp. De ludo globi, Lib. II (foi. 232): "A alma cria, por sua in
venção, novos instrumentos para discernir e conhecer, como Ptolomeu, o
astrolábio, e Orfeu, a lira, assim como muitos outros. Pois os inventores
não criaram nunca nada por meio de algo exterior, mas antes de seu próprio
pensamento. Desenvolveram, portanto, o que concebiam na matéria sensí
vel ." Cf. também Excitat. , Lib. V, foi. 498 : "Nesta natureza (a intelectual),
Deus quis mostrar melhor as riquezas de sua glória: nós vemos de fato que
o entendimento abraça e assimila todas as coisas e tira de si as artes assimi
ladoras como são a arte do ferreiro ou do pintor." (Cf. p. 69 ss. deste livro . )
23. De conjecturis, l i , p. 1 6 (cf. nota 5 8 , p. 76 deste livro).
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 99
26. "Da mesma forma que Cristo é a verdade cuja figura e significa
do é a pedra, ou seja, a Igreja, logo a pedra é a verdade, cujo significado e
figura é Pedro. Donde claramente resulta que a Igreja está acima de Pedro
como Cristo está acima dele." De concord. Catho/ica, II, 1 8, foi. 738.
27. Para um aprofundamento deste ponto, cf. A. Jaeger, Der Streit des
Kardinals Nikolaus von Cusa mit dem Herzoge Sigmund von Ósterreich, 2
vol . , Innsbruck, 1 86 1 .
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 03
30. Cf. Ficino, Epistolae, Lib. 1 (foi. 644); cf. também L. Galeotti,
Saggio intorno alia vi ta ed agli scritti di Marsilio Ficino . Arch. storico ita
liano, N . S . , T. IX, pp. 33 s.
1 06 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
34. "Em toda a obra de Deus, deve-se estabelecer a conexão das par
tes a fim de que também a obra seja de um único Deus. Deus e o corpo são
extremos na natureza, muito diferentes um do outro. O anjo não une esses
extremos, pois, inteiramente, eleva-se a Deus, negligenciando seu corpo
( . . . ) A qualidade também não con�cta os extremos, pois ela pende para o
corpo, deixa de lado os seres superiores e, abandonando o incorpóreo, tor
na-se corporal. Até aqui tudo é extremo, os seres superiores e inferiores fo
gem e as coincidências, carentes de vínculo. Mas essa tal terceira essência
intercalada existe, de modo que mantenha as regiões superiores sem aban
donar as inferiores ( . . . ) De fato, imóvel, ela também é móvel. De um lado,
ela se acomoda com os seres superiores; de outro, com os seres inferiores.
Se ela se acomoda com os dois, ela procura os dois. É então por isso, com
um tipo de instinto natural, que se eleva até as regiões superiores e desce às
inferiores; subindo, não abandona as inferiores; descendo, ela não deixa as
coisas sublimes. Pois, se ela abandonar umas ou outras, penderá ao outro
extremo e não haverá mais fora dela uma verdadeira união no mundo."
Theologia platonica, Ili, 2, foi. 1 1 9.
1 1Ü INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
porém, a arte não apenas não está fora do ponto de vista reli
gioso, mas, ao contrário, transforma-se num momento do pró
prio processo religioso. Se a redenção é entendida como re
novação da forma do homem e da forma do mundo, ou seja,
como autêntica reformatio39, o foco da vida espiritual de uma
certa forma está no ponto em que a "idéia" ganha corporei
dade, no ponto em que a forma não-sensível, que habita o es
pírito do artista, irrompe para o mundo visível e nele se con
cretiza. Toda a especulação, portanto, está fadada ao erro, se
ativer seus olhos unicamente ao que já possui forma, em
vez de mergulhar no ato fundamental de conferir forma. "Ó
pesquisador das coisas", nos diz Leonardo da Vinci, "não te
gabes do conhecimento sobre as coisas que a natureza pro
duz em seu curso habitual ! Regoj iza-te, ao contrário, por co
nhecer o obj etivo e o fim das coisas que são nascidas do t�u
espírito ! "4º Desta espécie são para ele a ciência e a arte: pois
a ciência é uma segunda criação da natureza, produzida pela
razão, e a arte, uma segunda criação da natureza, produzida
2. Bruno, Spaccio de/la bestia trion.fànte, Dial. II, terza parte; Opere
italiane ( ed. Lagarde, Gõttingen, 1 888), pp. 486 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 25
Vortr. der Bibl. Warburg, ed. por Fritz Saxl, 1 922/23, Parte 1, Leipzig, 1 924,
pp. 71 ss.). As provas e os documentos literários de Doren foram recente
mente complementados por H. R. Patch, The tradition of the Goddess
Fortuna in Medieval Philosophy and Litterature; Smith College Studies
in Modem Languages, j ulho de 1 922.
5 . Poggio, Epistolae, II, 1 95 : "Nada de mais verdadeiro, certamente,
do que o que tu escreveste: nem os astros, nem o curso dos céus podem
perverter e depravar as naturezas eminentes dos homens, fortificadas pelo
estudo das boas artes e pelos costumes excelentes; mas antes que a força
tenha sido adquirida, antes que esses costumes excelentes tivessem sido
adotados, antes que os homens tenham sido fortificados pelos conheci
mentos das artes liberais ( . . . ) eu estimo que os astros e os céus têm mais
papel na formação de nosso espírito que os preceitos e os conselhos dos
homens." Para um aprofundamento da matéria, cf. Ernst Walser, Poggius
Florentins, Leipzig e Berlim, 1 9 1 4, pp. 1 96, 236 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 29
centro de sua obra, Pico nada mais faz do que retomar certos
motivos que o velho humanismo já tratara retoricamente em
inúmeras variações. O próprio tratado De dignitate et excel
lentia hominis, escrito por Giannozzo Manetti por volta do ano
de 1 452, já havia sido estruturado segundo o mesmo esquema
formal e intelectual que Pico segue para construir seu discurso.
Ele opõe ao mundo natural, entendido como o mundo do que
meramente é, o mundo intelectual do vir-a-ser, o mundo da
cultura. Somente no interior deste último é que o espírito do
homem encontra sua morada; nele o homem dá provas de sua
dignidade e liberdade: "Tudo o que discernimos é nosso, ou se
ja, é humano, por ser produzido pelos homens: todas as casas,
todas as fortalezas, todas as vilas, enfim, todos os edificios da
terra. Nossas são as pinturas, as esculturas, as artes, as ciên
cias, as ( . . . ) sabedorias. Nossas são ( . . . ) todas as invenções, to
das as diversas línguas e os diversos literários, e, quanto mais
e mais pensarmos sobre seus usos, tanto mais fortemente
somos levados a admirar e a ficar estupefatos."2º Se estas pa
lavras de Manetti, em sua essência, remontam ao ideário es
tóico da Antiguidade, o discurso de Pico, por outro lado, vem
acrescentar um elemento novo. Com efeito, todo o seu ponto
de vista está marcado por aquela transformação característi
ca do motivo do microcosmos, que havia se processado em
Nicolau de Cusa e, depois dele, em Ficino (cf. pp. 1 07 ss.
deste livro). Somente através disto é que seu discurso ultra
passa as fronteiras de uma brilhante peça de oratória. O pa
thos retórico da obra encerra, ao mesmo tempo, um pathos
intelectual especificamente moderno. A dignidade do homem
não pode residir no seu ser; não pode residir no ponto que lhe
foi conferido de uma vez para sempre na estrutura cósmica.
Se o sistema hierárquico divide o mundo em degraus e atri
bui a cada ser um desses degraus como o lugar que lhe cabe no
universo, então essa concepção fundamental ignora o senti
do e o problema da liberdade humana. Pois este problema está
na inversão da relação que costumamos estabelecer entre o
ser e o agir. No mundo das coisas, pode ser que seja válida a
velha máxima escolástica segundo a qual operari sequitur
esse; a natureza e a peculiaridade do mundo do homem, po
rém, decorrem do fato de que, nele, vale o princípio contrário:
não é o ser que prescreve de uma vez por todas uma direção
determinada e definitiva para o tipo de criação, mas é a dire
ção original da criação que determina e fixa o ser. O ser do
homem decorre do seu agir: e este agir não se manifesta uni
camente na energia da vontade, mas compreende a totalidade
de suas forças criadoras. Com efeito, cada ação genuinamen
te criadora engloba em si mais do que um mero agir sobre o
mundo; ela pressupõe que o agente da ação sej a diferente do
que sofre a ação, que o sujeito da ação seja diferente do seu
obj eto e a ele se oponha de forma consciente. Tal oposição,
por sua vez, não é um processo único que se encerra com um
resultado determinado, mas algo que tem de ser empreendi
do sem cessar. O ser do homem, assim como seu valor, depen
dem desse processo de constante retomada; por conseguinte,
não podem ser definidos e determinados como algo estático,
mas como algo dinâmico. É bem verdade que podemos as
cender até ao ponto mais alto possível na escala hierárquica
dos seres, que podemos alçar às inteligências celestiais, e mes
mo à origem divina de todo o ser; mas enquanto nos detivermos
em qualquer um dos degraus desta escala, não encontrare
mos nele o valor específico da liberdade. Num sistema hie
rárquico rígido, este valor não pode aparecer de outra forma,
1 42 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
22. Nicolau de Cusa, De conject11ris, II, 14 ( cf. pp. 67 ss. deste livro).
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 47
Após este retorno, porém, ela não mais se encontra sob a mes
ma forma que tinha quando iniciou sua jornada. Uma vez ope
rada no homem a primeira ruptura, uma vez saído da simpli
cidade de seu estado original, nunca mais o homem poderá
retornar a essa simplicidade indivisa. Ele precisa atravessar
o oposto para depois, suplantando-o, encontrar a verdadeira
unidade de seu ser; aquela unidade que não exclui a diferen
ça, mas que a impõe e exige. Pois no ser simples como tal
não reside força alguma: ele só se torna verdadeiramente fe
cundo ao se diferenciar e se dividir em si mesmo e ao resta
belecer, para além desta divisão, a sua unidade27• No desen
volvimento e na expressão deste pensamento, Bovillus segue
claramente a interpretação especulativa de Nicolau de Cusa
para a doutrina da trindade. À semelhança de Nicolau de
Cusa, Bovillus coloca toda a sua ênfase no fato de que a ver
dadeira unidade tripartida não deve ser entendida de forma
estática, mas dinâmica; que ela não deve ser entendida como
três "naturezas" meramente justapostas numa substância sim
ples em si, mas como a unidade do contínuo de uma evolução,
que conduz da mera "possibilidade" à "realidade", da "po
tencialidade" à "atualização" plena e completa. Da transfe
rência dessa concepção básica de Deus para o homem pode-se
concluir que a verdadeira realidade do homem somente se con-
la, o homem não mais aparece como parte do todo, mas como
olho e espelho deste todo: e um espelho que não recebe de fo
ra a imagem das coisas, mas que, ao contrário, as forma e cons
titui no interior de si mesmo33.
3 5 . "A guerra não foi sem motivo: vós haveis combatido bem, am
bos: tu, cujo sofrimento te leva a te revoltar, e tu, cujo ataque do camponês
te leva a dizer a verdade. Portanto, a ti, camponês, as honras ! A ti, morte, a
vitória!" Cit. de Der Ackermann aus Bohmen, ed. por Bernt e Burdach,
Berlim, 1 9 1 7 ( Vom Mittelalter zur R�formation. Forschungen zur Gesch. der
deutschen Bildung III, 1 ), Cap. XXXIII, p. 8 5 .
1 58 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
36. "Anjo, demônio, duende, feiticeira, todos esses espíritos são pro
dutos da necessidade divina: o homem, de todas as obras de Deus, é a mais
respeitável, a mais hábil e a mais livre." Cit. de Ackermann aus Biihmen,
Cap. XXV, p. 58; cf. o comentário de Burdach na p. 323 .
3 7 . Burdach, op. cit. , p. 3 1 5 .
3 8 . Nicolau de Cusa, De dato patris luminum, Cap. 1 (Opera, foi. 284
s.); cf. Cap. 1, nota 52, deste livro.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 59
40. Boccaccio, De genealogia Deorum, Lib. IV, Cap. IV: "Os que são
produzidos pela natureza são rudes e ignorantes, ou melhor, se não forem
instruídos, são bestas lamacentas e agrestes. Por isso surge o segundo Pro
meteu, a saber, o homem sábio que, tomando-os como pedras, recriou-os,
por assim dizer, instrui-os e forma-os e, com suas demonstrações, faz civis
a partir de homens naturais, notáveis pelos costumes, pela ciência e pela
virtude, de modo que é evidente que a natureza produziu uns e o ensinamen
to reformou outros."
4 1 . Ficino, Theologia platonica XIII, 3 , foi. 295. A tensão que persiste
no conceito de humanitas de Ficino manifesta-se, entre outras coisas, tam
bém na explicação que ele oferece para a palavra; às vezes, brincando com a
etimologia à moda da Idade Média, ele a compõe com humus (homo dicitur
ab humo, Epistolae, I, foi. 64 1 ) , ao passo que, em outras passagens, ele con
testa expressamente uma tal derivação: "atenção para não desprezar a hu
manidade a ponto de crê-la nascida da terra. A humanidade é uma ninfa de
corpo maravilhoso, de origem celeste, nascida do éter, amada por Deus,
mais que qualquer outra" (Epistolae, Lib. V, foi. 805). Aqui também se
revela com clareza a oposição que já tinha adquirido expressão artística no
LIBERDADE E NECESSIDADE 161
iguais: qual deles ganhou do outro aquilo que faz com que se
pareçam? Nenhum dos dois. Por que, então, nos dizemos fi
lhos de Júpiter e da Lua, se estamos para com eles como um
gêmeo está para o outro?" Se se quisesse interpretar aqui a
relação de semelhança à luz de uma relação causal, o ponto
central de tal relação teria de ser deslocado do ser "exterior"
para o "interior", do ser das coisas para o ser da "alma". As
sim, seria mais acertado indagar o que Marte tem do homem,
do que o que o homem tem de Marte: "pois o homem é mais do
que Marte e outros planetas"63 . Podemos reconhecer aqui,
uma vez mais, como um tema novo e fundamentalmente es
tranho se infiltra no fechado e bem estruturado círculo do pen
samento naturalista da astrologia. ief tipo de observação pura
mente causal transforma-se no tipo de observação teleológica;
e através dela, todas as determinações sobre a relação entre
microcosmos e macrocosmos, ainda que preservem o mes
mo conteúdo, ganham agora um traço distintivo de certa forma
diferente. Ao tema do destino da astrologia opõe-se também
aqui a autoconsciência ética do homem. Na própria estrutu
ração externa da medicina e da filosofia da natureza de Pa
racelso manifesta-se esta mescla singular. Em Buch Para
granum, obra que apresenta as "quatro columnae" da terapêu
tica, Paracelso arrola, ao lado das três colunas da Filosofia,
da Astronomia e da Alquimia, também a da Virtus: "que a
quarta coluna seja a da virtude e que ela permaneça com o
médico até sua morte, pois ela encerra e mantém as outras três
colunas"64. O pensamento do microcosmos - na acepção que
lhe tinha conferido a filosofia do Renascimento - não apenas
70. Joh. Piei Mirandulae, Conc/usiones DCCCC; cf. Opera, foi. 63 ss.,
1 07 ss.
7 1 . Ft. Boll, Sternglaube und Sterndeutung, 2� ed., Leipzig, 1 9 1 9, p. 50.
1 92 INDIVIDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
72. Pico della Mirandola, ln astro/agiam libri XII, Lib. III, Cap. 27,
foi. 5 1 9.
73. Pico, ln astro/agiam, Lib. 1 (foi. 4 1 5 ) .
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 93
nos oferece aqui não parece ser outra coisa senão uma teoria
da filosofia da natureza, tal como a encontramos mais tarde
na obra de Telesio ou de Patrizzi. Mas se consideramos o con
texto no qual surge essa teoria, reconhecemos que nela existe
muito mais do que à primeira vista se nos revela: o que é des
coberto e comprovado aqui não é menor do que o conceito de
vera causa, ao qual recorrem Kepler e Newton e sobre o qual
eles embasam sua concepção básica da indução. O próprio
contexto histórico imediato parece comprovar tal relação, pois
desde o seu primeiro tratado metodológico, desde sua apolo
gia a Tycho, Kepler se refere a Pico e à sua refutação da as
trologia. Toda e qualquer causa que possamos forjar de forma
puramente conceptual para explicar um fenômeno da natu
reza não é "verdadeira" : para se tornar verdadeira, é preciso
que ela possa ser verificada e comprovada através da obser
vação e da medição. Ainda que Pico não consiga enunciar um
tal princípio com a mesma clareza com que o fizeram os fun
dadores da ciência natural exata, tal princípio é empregado por
ele em toda a sua obra como um critério imanente. Com a aju
da deste princípio, Pico é um dos primeiros a se voltar contra
a suposição de que certos lugares possuem forças que lhe são
inerentes. O lugar é uma determinação geométrica e ideal, e
não fisica e real, donde não ser possível partirem dele efeitos
fisicos concretos75. E aquilo que a astrologia se engana ao
tomar como real e a lhe conferir forças efetivas não é ape
nas ideal, mas também puramente fictício. As linhas que o
e, freqüentemente, até o povo sem cultura sabe o que fará, não pelos astros,
mas pela própria atmosfera ( . . . ) Por isso eles se enganam raramente, julgan
do a atmosfera pela atmosfera, assim como os médicos julgam o doente pelo
doente, ou seja, pelos princípios próprios e não, como fazem os astrólogos,
pelos mais distantes e mais comuns do universo, a saber, o que é pior, pe
las ficções fabulosas."
7 5 . /n astro/. , Lib. VI, Cap. 3 , foi. 5 84 s.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 95
76. ln astro!. , Lib. IV, Cap. 1 2, foi. 543 : "O céu não pode, de fato,
signi ficar coisas inferiores, se ele não está na medida onde uma causa indi
ca seu efeito por que os que, convencidos pela razão, reconhecem que um ser
1 96 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
não é uma causa, mas sustentam que ele é um signo, desconhecendo seu
próprio julgamento."
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 97
77. ln astro/. , Lib. III, Cap. 27, foi. 5 1 7 ss.: "Tu admiras em Aristó
teles a ciência acabada das coisas naturais e eu admiro tanto quanto tu. A
causa é o céu, dizes, e a constelação sob a qual ele nasceu; não aceito, ao
menos não com uma razão tão divulgada, que os muitos nascidos sob o
mesmo astro não foram outros Aristóteles, mas antes porque ( . . . ) há causas
próximas, próprias e particulares a esse mesmo Aristóteles, às quais nós
referimos o seu sucesso singular, causas que estão além do céu, sob o qual,
como se por uma causa universal, nascem tanto os filósofos quanto os por
cos da Beócia. Antes, em todo caso ( . . . ) ele foi dotado de uma alma boa, que
não provinha do céu, se é verdade que o espírito seja imortal e incorpóreo,
o que demonstrei eu mesmo e que os astrólogos não negam. Depois foi do
tado de um corpo agradável para acompanhar uma tal alma, e isso, não pe
lo céu, como se isso fosse uma causa comum, mas por seus pais. Ele esco
lheu filosofar. Isso que é também a obra dos principios que nós dissemos, a
saber de espírito e do corpo e de sua livre escolha; ele progrediu em filosofia,
o que é o fruto de um propósito bem acabado e de sua habilidade ( . . . ) mas
ele progrediu ainda mais que seus contemporâneos e que seus discípulos.
Ele não era dotado de uma estrela melhor, mas de um gênio melhor; o gê
nio não vem do astro, se é verdade que é incorpóreo, mas de Deus, como o
corpo vem do pai, não do céu ( . . . ) Por quanto ao que toca realmente ao pro
blema que é principalmente tratado aqui, eu nego que algum homem sobre a
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 99
terra se tome ou pareça tão grande a ponto de merecer o céu como autor.
Pois as maravilhas do espírito (como dissemos), a saber, a fortuna e o cor
po, são maiores que o céu; de qualquer forma são as maiores de todas, compa
radas ao céu, e são depreendidas como as menores."
78. /n astro/. , Lib. IV, Cap. 4, foi. 5 3 1 .
200 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
79. Kepler, De ste/la nova in pede Serpentarii ( 1 606), Cap. XII (Ope
ra, ed. Frisch, li, 656 s .): "No que toca à astrologia, reconheço de fato, le
vado por um certo entusiasmo fora da razão, que aquele homem (Fabrício)
sucumbe em algum lugar à autoridade dos antigos e ao desejo das predições,
onde os dois motivos convergem. Na verdade ele cometeu essas coisas em
comum com uma imensa horda de sábios. Unicamente por esse nome me
rece a permissão. Por que rosnas, delicado filósofo, se a filha tola, a qual se
parece contigo, sustenta e alimenta com suas futilidades a mãe muito sábia
e pobre?"
80. Cf. Kepler, Discurs von der grojJen Conjunction und allerlei Va
ticiniis über das J 623. Jahr, Opera VII, 697 ss.; cf. esp. VII, 706 s.
LIBERDADE E NECESSIDADE 20 1
82. Bruno, Lo spaccio dei/a bestia trionfante; Opere ital. , ed. Lagar
de, p. 4 1 2 .
LIBERDADE E NECESSIDA DE 203
3 . Cusa, Jdiotae, Lib. III, "De mente", Cap. 1 2 , foi. 1 67 s.: "Da mesma
forma, de fato, que a visão de teu olho não poderia ser a visão de nenhum
outro, seria ela separada de teu olho e juntada ao olho dum outro, porque não
mais a sua proporção que se encontra no teu olho pode ser o discernimento
que está na visão dum outro. Assim, nem o discernimento que está no teu
olho poderia ser discernimento na visão do outro. Da mesma forma, não mais
a intelecção desse discernimento saberia ser a intelecção do discernimento
de outro. Por isso eu julgo tudo de fato possível que haja um intelecto único
em todos os homens."
.1 PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 217
9. Ficino, Theologia platonica, Lib. XVI, Cap. 7, foi. 382. Este mo
mento decisivo da teoria do amor de Ficino é convenientemente ressaltado
por Saitta em Lafilosofia di Marsilio Ficino. Messina, 1 923, pp. 2 1 7 ss. Mas
nesse particular, como em muitos outros pontos, Saitta superestimou con
sideravelmente a originalidade de Ficino em frente a Nicolau de Cusa: "O que
diferencia Ficino dos filósofos precedentes, compreendendo Nicolau de
Cusa", escreve ele, "é a intuição agitada de amor como extensão absoluta,
infinita de liberdade ( . . . ) A verdadeira mística se fixa na absoluta indistin
ção ou indiferença enquanto o pensamento de Ficino respira na atmosfera sã
da liberdade como diferenciação contínua." ( Op. cit. , p. 256.) Mas é justamen
te no interior desta "atmosfera de liberdade" que se circunscreve o conceito
de criação e o conceito de amor divino de Nicolau de Cusa. Cf. , por ex., De
beryllo, Cap. XXII I , foi. 2 7 5 : "A todo modo de ser satisfaz superabundan
temente o primeiro princípio uno e triplo: convém que ele seja absoluto e
acima de tudo, porque não é um princípio contraído, como a natureza que
opera por necessidade, mas que é o princípio de sua própria natureza. É as
sim sobrenatural, livre, criando tudo por sua própria vontade ( ... ) É o que Pla
tão ignorava tanto quanto Aristóteles: manifestamente eles creram de fato
um e outro que o entendimento criador fazia todas as coisas pela necessidade
de sua natureza e de lá veio todo o erro. Pois se ele não opera evidentemen
te por acidente, como o fogo por meio do calor ( ... ) (por nenhum acidente pode
ocorrer na sua simplicidade) e parece então agir por essência. Não age, po
rém, por isso, como por natureza, ou seja, como um instrumento necessitado
por uma ordenação superior, mas pela livre vontade, que é sua essência."
222 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
ele numa unidade: cognitio nihil est aliud, quam Coitio quae
dam cum suo cognobiJil 1 (a consciência não é outra coisa senão
um acoplamento com o cognoscível). Mas a doutrina de Eros,
sob a forma renovada que lhe conferiu Ficino, exerceu sobre
a concepção do Renascimento acerca da essência e do sentido
da arte uma influência mais poderosa e profunda do que sobre
a doutrina do conhecimento . A paixão com que muitos dos
grandes artistas do Renascimento se apegam à doutrina espe
culativa da Academia de Florença revela que, para eles, ela
significava bem mais do que mera especulação . Nela, esses
artistas não viam apenas uma teoria do cosmos que vinha ao
encontro de sua própria visão; eram sobretudo os segredos
de sua própria criação que eles ali viam revelados e interpre
tados. A enigmática natureza dupla do artista - sua entrega ao
mundo das aparências sensíveis, de um lado, e sua luta inces
sante por superá-lo e sobrepuj á-lo, de outro - parecia entendi
da agora e, através de tal entendimento, verdadeiramente j us
tificada. A teodicéia do mundo, que Ficino havia traçado em sua
doutrina de Eros, transformara-se, ao mesmo tempo, em teodi
céia da arte. Pois, assim como Eros, também é próprio do ar
tista unir e relacionar tudo o que está separado ou que se opõe;
buscar no "visível" o "invisível'', no "sensível" o "inteligível".
Se é verdade que sua visão e sua criação são determinadas
pela referência à forma pura, também é verdade que ele só
obtém verdadeiramente essa forma pura quando consegue rea
lizá-la na matéria. Mais do que qualquer outro, é o artista que
sente mais profundamente essa tensão, essa oposição polar
dos elementos do ser; ao mesmo tempo, porém, ele se enten
de e se sente como seu mediador. Neste ponto está o cerne de
toda harmonia estética, mas também a eterna insatisfação ine-
como seu substrato tisico real -, tais forças geram toda a di
versidade do acontecer. Tal diversidade, por outro lado, justa
mente por remeter a esta tríade de princípios, é reconhecida
ao mesmo tempo como unidade suj eita a leis rígidas. A per
cepção sensível, porém, é meio básico decisivo desse conhe
cimento proclamado por Telesio ao longo de toda a sua obra.
Ela deve preceder todo o trabalho do intelecto, toda ordena
ção e comparação racionais dos fatos isolados, pois só ela é
capaz de estabelecer o contato entre "sujeito" e "obj eto", en
tre conhecimento e realidade . Tanto o sistema da natureza
quanto o sistema do conhecimento de Telesio entendem esse
contato num sentido absolutamente literal. Toda compreensão
racional de um objeto pressupõe o contato com ele através dos
sentidos, pois não há outra forma de tomarmos consciência
de um obj eto, senão sofrendo a ação que tal objeto exerce so
bre nós; senão à medida que tal obj eto se nos penetra através
dessa ação . O que chamamos de "espírito" é uma substância
móvel, determinada e modificada nessa sua dinâmica por in
fluências externas; aqui, cada percepção sensível representa
um tipo específico dessas modificações. O que difere é o tipo
de propagação do impulso inicial, que é co-determinado pela
natureza do meio que serve de suporte a essa propagação. Nas
sensações visuais, as forças do calor e do frio são transporta
das por meio da luz; nas sensações auditivas, pelo ar que tam
bém serve de veículo às sensações olfativas. Mas visto que
toda essa propagação indireta deve culminar num contato di
reto, o tato transforma-se para Telesio no sentido de todos os
sentidos. Mesmo as funções mentais "superiores" são redutí
veis a ele, em última análise; todo o nosso pensar e todo o nos
so raciocínio também representam um "tatear à distância". Isso
porque o ato de deduzir racionalmente não consiste de outra
coisa, senão do fato de o espírito não apenas receber as im
pressões vindas de fora, as modificações do frio e do calor,
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 24 1
20. Telesio, De rerum natura juxta propria principia; cf. esp. Lib. VIII,
Caps. 3 e 1 1 . Ed. de Nápoles, 1 5 87, foi. 3 1 4 s., 326 s.
242 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
26. Joh. Baptista Porta, Magiae natura/is lihri viginti, Lib. l, Cap. 2 .
2 7 . Campanella, De sensu rerum e t magia, ed. Tob. Adami, Frankfurt,
1 620, Lib. IV, Cap. 1, p. 260: "O muito esforçado Porta tentou por duas ve
zes ( . . . ) reviver essa ciência, mas somente de uma maneira histórica, não
extraindo causa alguma de suas proposições (eu ouvi dizer porém que ten
do visto este meu livro, ele mesmo elabora uma magia racional )."
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 247
30. Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo. Ed. Na
zionale VII, pp. 1 29 s.
3 1 . The Literary Works ofLeonardo da Vinci, ed. por Jean Paul Richter,
2 vol . , Londres, 1 883, n? 1 1 57 .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO
na, ego de terra creata sum, /ex vero de mente divina (Nós
tratamos de coisas temporais, o Direito de coisas eternas; eu
sou criada da terra, o Direito vem da mente divina). As leis
são "mais necessárias do que a medicina", e tanto isso é ver
dade que elas provêm de Deus33. Agora, porém, eram criados
um novo conceito e uma nova norma de necessidade, que não
mais dependem da elevação e da dignidade do objeto do saber,
e si nl'da forma do saber, da qualidade específica da certeza.
Esta certezza (certeza) transforma-se no único e verdadeiro
fundamentum divisionis ( fundamento da divisão). E com is
so, a matemática transforma-se no foco do conhecimento, pois
só há certeza onde se pode aplicar uma das ciências matemá-
39. "Foge dos preceitos dos especuladores, pois suas razões não são
confirmadas pela experiência." (Ravaisson-Mollien, B foi. 14 v.)
40. Codex A tlanticus, foi. 1 1 9'.
4 1 . Sobre as pesquisas de Leonardo no âmbito da mecânica cf. , além
dos trabalhos fundamentais de Duhem, a obra mais recente de lvor B . Hart,
The mechanica/ investigations ofL. da Vinci, Londres, 1 92 5 .
1 l'ROBLEMÁT/CA SUJEITO-OBJETO 255
42. Richter, n? 1 1 3 3 .
4 3 . " A natureza é governada pela razão da sua lei que nela vive de
maneira infusa." ( Ravaisson-Mollien, e foi. 23 V. )
256 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
mecânica, óptica
�
e geometria; que "abstração" e "visão" coa-
tuem nele de forma indissolúvel48• Mas é justamente a essa
atuação conj unta que a sua pesquisa deve os seus resultados
mais importantes. O próprio Leonardo explicou que primei
ramente observou como pintor a contração e a dilatação das
pupilas de acordo com a incidência de luz, para só depois tra
tá-las como teórico49• Dessa forma, a visão de natureza de Leo
nardo comprova-se, sob todos os seus aspectos, como um pon
to de transição metodologicamente necessário: a "visão" ar
tística foi quem primeiro conquistou à abstração científica o
seu direito e preparou-lhe, assim, o terreno. A "imaginação
exata" do artista Leonardo está tão além das ondulações caó
ticas do sentimento subjetivo, na qual todas as formas amea
çam submergir numa unidade indiferenciada, quanto, de outra
parte, opõe-se a todas as distinções meramente conceituais e
abstratas e se atém com todas as suas forças à realidade visí
vel. É na visão mesma, e não sob ou sobre ela, que se descobre
a verdadeira necessidade obj etiva. E com isso, a necessidade
ganha um novo sentido e um novo tom. Se até então a necessi
dade, como regnum naturae (reino da natureza), opunha-se
ao reino da liberdade e do espírito, agora ela se transforma em
selo do próprio espírito. "Ó maravilhosa necessidade", escre
ve Leonardo, "Tu obrigas com suprema razão todos os efei
tos a participarem de suas causas, e cada ação natural a Ti obe
dece sem demora, segundo uma lei sublime e irrevogável
( . . . ) Quem poderia explicar essa maravilha que eleva a razão
do homem à visão de Deus? ( . . . ) Ó instrumento poderoso da
natureza artificiosa, a Ti te foi concedido obedecer à lei que
52. Para um aprofundamento dessa questão, cf. Karl VoBler, Die phi
lasaphischen Grundlagen zum "süften neuen Stil " des Guida Guinicelli,
Guida Cavalcanti und Dante A lighieri. Heidelberg, 1 904.
53. Valla, De valuptate, Lib. 1 , Cap. X; Opera, foi. 907.
54. Ernst Walser, Studien zur Weltanschauung der Renaissance, p. 1 2 .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 263
5 5 . Leon Battista Alberti, Trattato de/la pittura, Lib. III (ed. Janitschek,
Viena, 1 877, p. 1 5 1 ) : "Mas para não perder esforço e fadiga, fugir-se-á des
se hábito de alguns tolos que, presunçosos de seu gênio sem ter nenhum
modelo de natureza a seguir com os olhos ou com o pensamento, esfor
çam-se por adquirir deles mesmos os elogios por pintar. Eles não aprendem
a bem pintar, mas se acostumam com seus erros. Fugi dos talentos inexpe
rientes, dessa idéia de beleza que os espíritos mais treinados mal conseguem
discernir."
264 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
57. Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mmulo, 1, Ed. Naz.
VII, 1 29.
266 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
58. Goethe, Maximen und Reflexionen, ed. por Max Hecker, n? 1 346.
59. Erwin Panofsky, Jdea, Ein Beitrag zur Begr!ff.çgeschichte der iilte
ren Kunstheorie (Studien der Bibl. Warburg, ed. por Fritz Saxl, V). Leipzig,
1 924, p. 29.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 267
60. Codex A tlanticus, foi. 1 4 1 ' (cf. edição de M. Herzfeld, pp. 1 3 7 s.).
6 1 . Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo. Ed. Naz.
VII, 1 83 : "Posso bem vos ensinar coisas que não são nem verdadeiras nem
falsas; mas as coisas verdadeiras, ou seja, as necessárias, ou seja, as que
não podem ser de outra forma, ou todo espírito mediano ou sabe-os por si
só ou é possível que os saiba um dia."
268 INDIVIDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
Mirandola e por Erasmo, e, por outro, por Cortese e Bembo - nunca se che
gou a uma delimitação clara e precisa dos princípios; contudo, a filosofia
do Renascimento já antecipa essa formulação precisa que depois, através da
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 269
'\.
63. Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo, Ed.
Naz. VII. 1 1 8 .
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 27 1
68. "Se é verdade que a magia seja a mesma coisa que a sabedoria, é
com o título justo que se quis chamar essa prática de ciência natural que pres
supõe um conhecimento exato e absoluto de todas as coisas da natureza e que
é como o ápice e fastígio de toda filosofia, do nome próprio e particular de
magia, isto é, de sabedoria, como se diz a Cidade por Roma, o Poeta por Vir
gílio, o Filósofo por Aristóteles." Pico della Mirandola, Apologia (Opera,
foi. 1 70).
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 277
70. Para maiores detalhes a esse respeito, vide minha conferência Ei
dos und Eidolon. Das Problem des Schõnen und der Kunst in Platons Dia
logen. Vortrãge der Bibliothek Warburg, 1 922/23, I, pp. 1 ss.
7 1 . Platão, República, 523 A ss. ; cf. Nicolau de Cusa, Idiota, Lib. III, 4.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 279
72. Cusa, De conjecturis II, 1 6 (para uma visão de conjunto, cf. pp. 72
ss. deste livro).
280 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
80. Cf. Duhem, Études sur léonard de Vinci, seconde série, I I , 82 ss.
288 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
do ora por um, ora por outro corpo. O que chamamos de es
paço não é evidentemente nem a matéria de que se compõe o
corpo nem o corpo mesmo. De fato, em ambos os casos tra
ta-se daquilo que é contido, enquanto n o conceito de espaço
pensamos muito mais naquilo que contém. Este último, por
sua vez, também não deve ser entendido como os limites do
corpo, ou como sua forma, pois a fo rma do corpo acompa
nha-o em seus movimentos, de sorte que, se a víssemos co
mo expressão do espaço, o corpo não se movimentaria no es
paço, mas com o espaço. Assim, o espaço só pode ser deter
minado como os limites do continente em relação ao contido.
O local de cada corpo em particular é c aracterizado pelo li
mite interno do corpo mais próximo que o contém; quanto ao
espaço como um todo, este deve ser concebido como os limi
tes das esferas celestiais mais periféricas83. Nesse sentido, é
evidente que os limites mesmos devem ser entendidos como
linhas geométricas, e não como algo material. Não obstante, po
rém, a totalidade dessas determinações geométricas parece-se
mais com um simples agregado do que com um sistema. Com
efeito, o 'tÓ 7tOÇ KOt\Óç [tópos koin ós ] , o espaço "comum'',
de modo algum deve ser interpretado aqui como a condição
para se estabelecerem os espaços particulares; a relação do
espaço comum para com os espaços particulares, considera
dos estes como os que contêm o sensível, é análoga à que existe
entre os espaços particulares e os corpos. Cada lugar em parti
cular, cada tõwç 'tÓ7tOÇ [ídios tópos ], envolve o corpo específi
co que ele abarca como se fosse uma casca. E nessas sobrepo
sições, nesse envolver sucessivo, o espaço "comum" nada mais
significa do que a última casca, a mais externa de todas, além
da qual não pode existir nem espaço nem corpo. Pois o con
ceito de "espaço vazio" não possui qualquer sentido no siste-
87. Cf. por exemplo 8. Wieleitner, Die Geburt der modernen Ma
thematik. Historisches und Grundsiitzliches /: Die analytische Geometrie.
Karlsruhe, 1 924, pp. 36 ss.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 303