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Ernst Cassirer

Indivíduo e cosmos na
filosofia do Renascimento

Tradução do alemão
JOÃO AZENHA JR.

Tradução do grego e do latim


MARIO EDUARDO VIARO

Martins Fontes
São Paulo 200 I
Esta obra foi p11blicada originalnrellte em alemão com o título
INDll'/DUUM UND KOSMOS /N DER PHILOSOPHIE DER RENAISSANCE
por Wissens<·haftlkhe B11d1gesellschaft. Darm...tatlt.
Publicado por acordo c·om Yalr U11in:rsity Press.
Todos os direitos rese1Tudos.
Copyright© 2001. lfrraria Martins Fontes Editora lida ..
São Paulo. para a p1-esente edição.

I' edição
setembro de 2001

Tradução do alemão
João A:enha J1:
Tradução do grego e do latim
Maria Eduardo Viaro
Revisão gráfica
Célia Regina Camargo
lflian Jenki110
Produção gráfica
Geraldo Aires
Paginação/Fotolitos
�tudio 3 Desem·ofrimellto Editorial

Dados lntemadonais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cassirer. Ernst, 1874-1945.


Indivíduo e cosmos na filosofia do Renascimenlo / Emsl Cas­
sirer ; tradução do alemão João Azenha Jr. ; tradução do grego e do
latim Mario Eduardo Viaro. - São Paulo : Manins Fontes. 2001. -
(Coleção tópicos)

Título original: lndividuum und Kosmos in der Philosophie der


Renaissance.
Bibliografia.
ISBN 85-336-1474-8

1. Conhecimenlo - Teoria - His1ória 2. Cosmologia - História


3. Filosofia renascentista 4. Individualismo - História 5. Livre-arbí­
trio e determinismo - História 6. Nicolau, de Cusa, Cardeal, 1401-
1464 l. Título. li. Série.

01-3959 CDD-189

lodices para catálogo sistemático:


1. Filosofia renascentista 189
2. Renascimento : Filosofia 189
A
A. Warburg,
pelo seu 60? aniversário

Aos 13 de junho de 1926


ÍNDICE

Introdução . .. . . . . .. . . .. . . . .... . . . . ... . .... . ... . . . . . . . . . . . . . . ... . . . .... . . . ..... 3

l. Nicolau de Cusa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2 . Nicolau de Cusa e a Itália . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
3. Liberdade e necessidade na filosofia do Renasci-
mento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 23
4. A problemática sujeito-obj eto na filosofia do Re-
nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
CARO E VENERADO AMIGO!

A obra que ora passo às suas mãos por ocasião de seu


60? aniversário deveria ser originariamente a expressão pu­
ramente pessoal de minha sincera amizade e admiração pe­
lo senhor. Mas este trabalho não teria sido possível não ti­
vesse eu podido desfrutar do constante estímulo e incentivo
daquela comunidade de estudiosos, que tem em sua Biblio­
teca o seu centro intelectual. Por esta razão, hoje já não posso
falar somente em meu nome, mas em nome de toda a comu­
nidade de estudiosos; em nome de todos os que, há muito,
têm no senhor o seu líder na pesquisa da história da evolução
das idéias. Num trabalho silencioso e perseverante, a Biblio­
teca de Warburg há três décadas tem procurado colocar à dis­
posição de estudiosos o material necessário à pesquisa da his­
tória da evolução das idéias e da ciência da cultura. Ao mes­
mo tempo, porém, ela fez mais do que isso: com afinco rara­
mente visto, ela nos colocou diante das máximas que devem
nortear essa pesquisa. Em sua constituição e em sua estrutu­
ra intelectual, a Biblioteca Warburg incorporou o pensamento
da unidade e da união metodológica de todas as áreas e de
todas as tendências da história da evolução das idéias. Hoje,
2 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

quando a Biblioteca entra numa nova fase de seu desenvol­


vimento, quando - com a fundação de sua nova sede - ela
amplia o seu espectro de atuação, possamos nós, seus cola­
boradores, expressar publicamente o quanto ela significa pa­
ra nós e o quanto nós lhe somos gratos. Esperamos e sabemos
que, paralelamente às novas tarefas que a Biblioteca terá daqui
para a frente, a antiga tradição de nossa comunidade de ami­
gos e de colaboradores não cairá no esquecimento, e que o
laço pessoal e intelectual, que nos manteve unidos até agora,
haverá de se estreitar ainda mais no futuro. Que o instrumen­
to de pesquisa sobre a história da evolução das idéias, que o
senhor criou com sua Biblioteca, ainda continue por muito
tempo nos desafiando com novas perguntas e que o senhor
mesmo continue nos indicando, como tem feito até agora, os
caminhos para chegarmos às respostas.

Hamburgo, aos 13 de j unho de 1926.

ERNST CASSIRER
INTRODUÇÃO

A premissa de Hegel, segundo a qual a filosofia de uma


época reúne em si a consciência e a essência espiritual de to­
da uma conj untura; que nela - entendida como foco natural,
como conceito que se conhece a si mesmo - se espelha esse
todo multifacetado, parece não se verificar para a filosofia
dos primórdios do Renascimento. A nova vida que se instau­
ra por volta da virada dos sécs. XIII e XIV em todos os do­
mínios do espírito, que cresce com vigor cada vez maior na
poesia e nas artes plásticas, na vida política e na realidade
histórica e que, ao mesmo tempo, se reconhece e se sente, de
forma cada vez mais consciente, como renovação espiritual,
parece não encontrar no pensamento da época, ao menos no
início, qualquer expressão ou ressonância. Com efeito, este
pensamento de forma alguma está associado às formas gené­
ricas dessa filosofia, mesmo em alguns aspectos pontuais em
que ele começa a se libertar das conquistas da filosofia es­
colástica. O ataque que Petrarca ousa empreender contra a
Escolástica em sua obra De sui ipsius et multorum ignoran­
tia nada mais é do que o testemunho do poder ainda intacto
com que essa mesma filosofia domina o tempo. De fato, o
4 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

princípio que Petrarca opõe à Escolástica e à doutrina de Aris­


tóteles não possui, ele próprio, nem uma origem nem um
conteúdo filosóficos. O que se contrapõe aqui à Escolástica
não é um novo método de pensamento, mas sim o novo ideal
cultural da "eloqüência". Desse momento em diante, Aristó­
teles não deve e não pode mais ser visto pura e simplesmen­
te como o mestre do saber, como o representante da "cultu­
ra", pois seus escritos, ao menos da forma como nos têm
chegado, não mostram "o menor traço do bem-falar". Não é
contra o conteúdo dos escritos de Aristóteles, mas contra o
seu estilo que se volta a crítica humanista. E, aos poucos, es­
sa crítica acaba por suprimir sua própria premissa. Pois quan­
to mais se alarga o círculo do conhecimento humanista, e
quanto mais refinados e precisos se tomam seus instrumen­
tos científicos, tanto mais a imagem do Aristóteles escolás­
tico empalidece ante à imagem do verdadeiro Aristóteles,
obtida a partir das fontes mesmas. O próprio Aristóteles -
assim sentencia Leonardo Bruni, o primeiro tradutor da Po­
lítica e da Ética a Nicômaco - não reconheceria seus livros
depois da transformação que sofreram por obra da Escolás­
tica, do mesmo modo que Acteão não foi reconhecido por
seus próprios cachorros, depois de ter sido transformado em
cervo 1 • Com esta sentença, o novo movimento intelectual do
Humanismo selou a paz com Aristóteles. O postulado da apro­
priação lingüístico-espiritual de Aristóteles conquista o lugar
da luta contra ele. Os problemas que disto resultaram, porém,
foram mais de natureza filológica do que filosófica. Passa-se
a discutir zelosamente se o conceito aristotélico de t'àycx�õv
[t'agathón] (o bom) deveria ser reproduzido, tal como ocor-

1 . Leonardi Aretini Libellus de disputationum usu ( 1 40 1 ), p. 25; cf.


Georg Voigt, Die Wiederbelebung des klass. Altertums2, II, p. 1 69, e Fioren­
tino, li risorgimentofilosofico nel Quattrocento, Nápoles, 1 885, pp. 1 83 s .
INTRODUÇÃO 5

rera na tradução de Leonardo Bruni, pela expressão summum


bonum ou pela expressão bonum ipsum. Humanistas os mais
célebres, como Filelfo, Angelo Poliziano e outros, engajam-se
na discussão sobre a forma de grafar o conceito aristotélico
de entelechie - se entelechia ou endelechia e sobre as dife­
-

rentes possibilidades de interpretação que disto resultam2•


Mas mesmo fora do estreito círculo do Humanismo, mesmo
entre aqueles que, na nova aliança que a filosofia celebra com
a filologia, reconhecem a primazia da primeira em relação à
segunda, nada ocorre na própria filosofia que signifique uma
verdadeira renovação metodológica. A disputa pela prima­
zia da doutrina de Platão ou de Aristóteles, tal como é em­
preendida na segunda metade do séc. XV, em momento al­
gum se aprofunda a ponto de atingir o âmago dos princípios
últimos. O critério, sobre cuja aplicação as duas partes adver­
sárias estão de acordo, reside, também neste caso, nas premis­
sas religiosas e nas escolhas dogmáticas; está além, portanto,
do âmbito sistemático-filosófico. Assim, em última análise,
também essa disputa permanece infértil para a história do
pensamento: a distinção rigorosa entre o conteúdo e o prin­
cípio fundamental efetivo das doutrinas platônica e aristoté­
lica não demora a ceder lugar ao postulado e à tentativa de
reuni-las num amálgama sincrético. E justamente a Acade­
mia de Florença, que se considera a guardiã do verdadeiro
legado de Platão, é a que mais longe vai nessa tentativa. Ao
lado de Ficino, figura aqui Pico della Mirandola - o "Prin­
ceps Concordiae", como era chamado por seus amigos -,
para quem a meta principal de toda a atividade do pensa­
mento deveria ser a unificação e a reconciliação da Escolás­
tica com o Platonismo. Não como trânsfuga, mas como ex-

2 . Para um aprofundamento dessa questão, vide o capítulo "L'uma­


nismo nella filosofia". ln: Fiorentino, op. cit., pp. 1 84 ss.
6 INDIVÍDUO E CW.MOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

plorador - estas são suas próprias palavras numa carta a Er­


molao Barbaro - é que ele teria chegado à Academia de
Florença. E desse seu trabalho de exploração resulta a cons­
tatação de que Aristóteles e Platão, por mais que pareçam
se opor nas palavras, concordam plenamente quanto a ques­
tões de fundo3. Numa tal tentativa de síntese, os dois grandes
sistemas filosóficos acabam por perder seus próprios con­
tornos e se diluem na zona nebulosa de uma única revelação
primordial filosófico-cristã, a cujo testemunho Marcilio Fi­
cino invoca Moisés e Platão, Zoroastro e Hermes Trismegis­
to, Orfeu e Pitágoras, Virgílio e Plotino4• Ao que tudo indi­
ca, portanto, a força espiritual motriz da época - o esforço
engendrado no sentido de precisar as formas, delimitar os con­
tornos, especificar e individualizar - parece não ter surtido
seus efeitos justamente na filosofia, ou então ter sido parali­
sada em seu impulso inicial.
A partir daí, talvez se possa entender que o historiador
da cultura, cuja visão de conjunto tem por base formas indi­
viduais, singularmente marcadas e de contornos precisos,
sinta-se impelido a desconsiderar os documentos filosóficos
da época que pareçam não satisfazer essas condições. Jacob
Burckhardt, pelo menos, no grandioso panorama que traçou

3. "Passei recentemente de Aristóteles à Academia, mas, na verda­


de, como explorador, não como um trânsfuga ( . . . ) Parece-me, porém (direi
a ti, Ermolao, o que sinto), que são reconhecíveis em Platão duas coisas:
a famosa faculdade homérica de proferir um discurso que se eleva tanto
acima da prosa quanto dos sentidos, se alguém os observa mais profunda­
mente, em comunhão total com Aristóteles. De modo que, se vês as pala­
vras, em nada discordam mais, se vês as coisas, em nada concordam
mais." Joann. Piei Mirandu/ae Opera, Basiléia s/a, 1, pp. 368 s. Sobre os
estudos escolásticos de Pico vide a mesma obra a pp. 3 5 1 s.
4. Cf. Ficino, Cartas. ln: Opera, Basiléia, s/a, pp. 866 e 87 1 ; cf. esp.
Ficino, De christiana re/igione, Cap. XXII (Opera, p. 2 5 ) .
INTRODUÇÃO 7

sobre a cultura do Renascimento, não concedeu à filosofia do


Renascimento um único lugar em sua obra. Burckhardt não
considera a filosofia sequer como um momento singular no
conjunto do movimento de idéias, quanto menos no sentido
hegeliano de "foco natural", de "espírito substancial da épo­
ca". Poder-se-ia tentar resolver essa contradição com a obser­
vação de que no conflito que se estabelece entre o pesquisa­
dor da história e o filósofo da história a decisão necessaria­
mente recai em prol do primeiro; que toda construção espe­
culativa tem de resignar-se diante dos fatos simples e neles
reconhecer seus limites. Uma trivialidade metodológica des­
sa natureza, porém, não é capaz sequer de compreender essa
contradição, o que dirá de resolvê-la. O rastreamento de suas
raízes mostra que Burckhardt, ao mesmo tempo que elimi­
na a filosofia do Renascimento do escopo de suas conside­
rações, adota implicitamente uma outra limitação, que está
necessariamente associada à primeira. O caráter escolástico,
justamente, de que esta filosofia ainda parece estar totalmen­
te revestida, implica o fato de ainda não ser possível traçar
uma linha divisória nítida e clara entre o pensamento filosó­
fico e o movimento das idéias religiosas. Em sua essência, a
filosofia do Quattrocento é e continua sendo uma teologia,
e exatamente nas obras mais significativas e mais bem sucedi­
das que produziu. Todo o seu conteúdo se concentra em três
grandes problemas: Deus, liberdade e imortalidade. É em tor­
no deles que gravita, na Escola de Pádua, o embate de idéias
entre "alexandristas" e "averroístas"; também são eles que
constituem o núcleo de todas as especulações do círculo pla­
tônico de Florença. Em seu monumemtal quadro-resumo dos
usos e costumes e da religião do Renascimento, Burckhardt,
ao que tudo indica de forma absolutamente consciente, resol­
veu não levar em conta tais testemunhos. É possível que ele
os tenha interpretado como a continuidade por inércia de uma
tradição no fundo já morta, como obras teóricas epígonas e
8 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

marginais, sem qualquer relação viva com as forças religio­


sas verdadeiramente motrizes da época. A fim de ser coe­
rente com sua visão global, ele tinha de tentar entender essas
forças não em enunciados teóricos, não em proposições filo­
sóficas sobre a religião, mas na ação imediata do homem, em
sua posição prática diante do mundo e da realidade espiritual e
moral. Aqui, porém, é pertinente perguntar se essa divisão es­
tanque entre a "teoria" e a "prática" do religioso corresponde
de fato à realidade, ou se ela não seria muito mais uma obra
do filósofo Burckhardt. Afinal, não é próprio do "espírito do
Renascimento", tal como assinalou o próprio Burckhardt, o
fato de tal divisão não existir? O fato de ambos os momen­
tos, aqui divorciados na visão do historiador da cultura, se re­
fletirem um no outro, se sobreporem um ao outro na vida real
da época? Nesse contexto, toda a ingenuidade da fé não se­
ria ao mesmo tempo dogmática, assim como, inversamente,
todo o dogmatismo teórico não seria também absolutamente
ingênuo, à medida que acolhe, sem restrições, componentes
os mais heterogêneos da "crença" e da "superstição"? Com
efeito, também é sobre este ponto que se tem concentrado a
crítica que os progressos da pesquisa empírica vem endere­
çando à obra fundamental de Burckhardt. A história da arte, a
história política, a história geral das idéias parecem apontar
aqui para o mesmo caminho. Contrariamente à concepção e
à exposição de Burckhardt, as fronteiras cronológicas e temá­
ticas entre o Renascimento e a Idade Média começaram a se
deslocar cada vez mais5• Podemos deixar de lado, aqui, a tese

5. Sobre este processo, que não podemos acompanhar aqui em cada


um de seus estágios, indico especialmente as obras fundamentais de Kon­
rad Burdach, Vom Mittelalter zur Re.formation: Forschungen zur Ges­
chichte der deutschen Bildung, Berlim, 1 9 1 2; também de Burdach, cf.
Deutsche Renaissance2, Berlim, 1 9 1 8, e R�/ormation, Renaissance, Hu­
manismus, Berlim, 1 9 1 8.
INTRODUÇÃO 9

de Henry Thode, segundo a qual o início do Renascimento


artístico na Itália remontaria aos primórdios do séc. XIII e
Francisco de Assis seria visto ao mesmo tempo como o res­
ponsável por um novo ideal de devoção e como desbravador
do movimento artístico que alcançou o seu apogeu na pintura
e na poesia do séc. XV. A tese de Thode, na forma como ele
a concebeu, quase não encontra hoje em dia um representan­
te e um defensor nos meios científicos6• Uma coisa, porém,
parece evidente: a oposição entre o "homem medieval" e o
"homem do Renascimento" ameaça se liquefazer e se volati­
zar à medida que se tenta verificá-la in concreto, quanto
mais avança a pesquisa biográfica isolada de artistas, pen­
sadores, eruditos e estadistas do Renascimento. Recentemen­
te, um experiente pesquisador dessa matéria sentenciou: "Se
tentarmos estudar de modo puramente indutivo a vida e o
pensamento de personalidades exponenciais do Quattrocen­
to - um Coluccio Salutati, por exemplo, ou Poggio Braccio­
lini, Leonardo Bruni, Lorenzo Valia, Lorenzo o Magnífico
ou então Luigi Pulei -, constataremos que, de um modo
geral, as características tradicionalmente estabelecidas - ' in­
dividualismo' e ' paganismo', ' sensualismo' e 'ceticismo' -
curiosamente não se verificam justamente para a personali­
dade estudada. Se, de outra parte, tentarmos entender tais
características em sua estreita relação com a vida da perso­
nalidade a ser retratada e, sobretudo, a partir da vasta cor­
rente que caracteriza a época como um todo, o resultado, de
um modo geral, é que elas ganham uma outra aparência. E
quando reunimos os resultados da pesquisa indutiva, vemos
que, pouco a pouco, começa a se formar um novo quadro do
Renascimento, não menos marcado por um misto de devo-

6. Cf. Thode, Franz von Assisi und die A nfànge der Kunst der Re­
nqissance in ltalien, Berlim, 1 885.
10 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ção e incredulidade, bem e mal, anseio pela redenção divi­


na e prazer mundano, mas infinitamente mais complexo."7 A
história da filosofia deveria fazer suas essas considerações
e dar ouvidos à advertência nelas contida. Do mesmo modo
como nunca deve renunciar ao esforço por chegar à genera­
lidade, ao universal, ela também deve estar sempre imbuída
do pensamento de que apenas o aprofundamento no traço dis­
tintivo concreto, nas menores sutilezas do detalhe histórico,
é capaz de estabelecer e de garantir a verdadeira generalida­
de. O que se postula é a generalidade de um ponto de vista sis­
temático, de uma orientação sistemática que, contudo, em ne­
nhum ponto coincide com a generalização a que se chega por
conceitos de gênero meramente empíricos, empregados pa­
ra a periodização da história e para a cômoda delimitação de
suas épocas. É para esse objetivo que se voltam as conside­
rações que se seguem. Elas não pretendem adentrar o debate,
tal como empreendido atualmente na escritura política da his­
tória, na história da literatura e da arte8, em tomo ao conteúdo
e à legitimidade do Renascimento e da Idade Média como
"conceitos de relação históricos". Nossas considerações atêm­
se muito mais ao interior da história dos problemas filosófi­
cos e buscam obter, a partir dessa perspectiva, uma resposta

7. Ernst Walser, Studien zur Weltanschauung der Renaissance, Ba­


siléia, 1 920, pp. 5 s.
8. Sobre a história da origem deste debate e de seu estágio atual con­
sulte-se, além dos já citados escritos de Konrad Burdach, especialmente a
obra de Walter Goetz Renaissance und Antike (Histor. Zeitschr. , vol. 1 1 3 ,
p . 237 ss.), Renaissance und Mittelalter (Histor. Zeitschr. vol. 98, pp. 3 0 ss.),
bem como o abundante material contido na obra de Karl Borinski Die
Weltwiedergeburtsidee in den neueren Zeiten !. Der Streit um die Renais­
sance und die Entstehungsgeschichte der historischen Beziehungsbegri.ffe
Renaissance und Mittelalter (Sitzungsberichte der Bayer. Akad. d. Wis­
senscha. , Philos.-phi lol. Klasse, 1 9 1 9).
INTRODUÇÃO 11

para a questão de saber se, e em que medida, o movimento


das idéias dos sécs. XV e XV I forma uma unidade fechada
em si mesma, a despeito de toda a diversidade de sua proble­
mática e de toda a divergência das soluções encontradas para
ela. Em se conseguindo mostrar essa unidade, em se conse­
guindo relacionar a pontos centrais sistemáticos e bem deter­
minados a profusão de perguntas que a filosofia do Renasci­
mento nos coloca, fica resolvida por si mesma a questão em
torno da relação que a atividade de reflexão teórica do Re­
nascimento guarda com as outras forças vitais que determi­
nam o seu conteúdo espiritual. E o resultado disso será o fa­
to de que também aqui a atividade de pensar não se opõe
como um elemento isolado e extravagante à totalidade do mo­
vimento espiritual e às forças que a geram e impulsionam, nem
as segue como algo puramente abstrato, como mera sombra,
mas que tal atividade se insere nesse todo e sobre ele tam­
bém age de forma produtiva e determinante. Ela não é apenas
uma parte que se une a outras partes, mas representa esse mes­
mo todo e lhe confere expressão conceituai e simbólica. As
páginas seguintes se ocuparão da discussão sobre o modo co­
mo a nova vida universal a que visa o Renascimento conduz à
exigência de um novo universo do pensamento, e de que mo­
do essa vida nele se reflete e só nele se encontra a si mesma
em toda a sua plenitude.
CAPÍTULO 1
NICOLAU DE CUSA

Todo estudo que tenha por objetivo conceber a filosofia


do Renascimento como uma unidade sistemática tem de ne­
cessariamente tomar como ponto de partida a doutrina de
Nicolau de Cusa. Com efeito, de todas as tendências e aspi­
rações filosóficas do Quattrocento, essa doutrina é a única
que satisfaz a premissa de Hegel, isto é, a única que repre­
senta um "foco natural" para o qual convergem e no qual se
concentram raios os mais heterogêneos. Nicolau de Cusa é
o único pensador que concebe a totalidade dos problemas fun­
damentais da época a partir de um só princípio metodológico
e que, graças a este princípio, consegue se assenhorar deles.
Sua reflexão abrange ainda, de acordo com o ideal medieval
da totalidade, o conjunto formado pelo cosmos espiritual e
fisico, e não se detém diante de particularidades. Ele é um teó­
logo especulativo, da mesma forma como também é um ma­
temático especulativo; a paleta de suas áreas de estudo abran­
ge problemas de estática e teoria geral do movimento, história
eclesiástica, história política, história do direito e história ge­
ral das idéias. Mas ainda que tenha transitado por todos esses
14 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

domínios como erudito e pesquisador, e ainda que tenha en­


riquecido quase todos com seus trabalhos, Nicolau de Cusa
sempre conseguiu manter afastado o perigo da especialização
e da dispersão. Com efeito, tudo o que Nicolau de Cusa to­
ma por tema e elabora não apenas se insere num quadro inte­
lectual geral, não apenas se une a outros esforços para formar
uma unidade ulterior, como também nada mais é, desde o iní­
cio, do que o desdobramento e a interpretação de um pensa­
mento central e fundamental, por ele desenvolvido em seu pri­
meiro escrito filosófico, De docta ignorantia. A oposição en­
tre comp/icatio e explicatio - a oposição de que Nicolau de
Cusa se vale para elucidar a relação de Deus para com o mun­
do, assim como a relação do mundo para com o espírito huma­
no - pode ser aplicada, portanto, à sua própria doutrina que,
igualmente, germina e se desenvolve progressivamente a
partir de um único núcleo de pensamento e que, neste pro­
cesso, absorve toda a substância e toda a problemática do
saber da época.
Para o próprio Nicolau de Cusa, o princípio sobre o qual
se baseia sua filosofia se lhe revela como uma nova verda­
de fundamental, a que ele não chega por conclusões silogís­
ticas, mas que o toma de assalto como uma visão repentina
e com toda a força de uma intuição poderosa. Ele próprio des­
creveu como este princípio se lhe foi revelado - como um
"presente divino" - durante a travessia de Constantinopla 1 • Se

1 . De docta ignorantia, III, 1 2 : "Recebe agora, ó pai que deve ser


temido, aquilo que já há muito desejei atingir pelos variados caminhos do
ensino, mas que não pude até que, no mar, ao voltar à Grécia (creio que
por meio de um dom superior, vindo do pai das luzes, donde provém tudo
de bom que nos é conhecido), fui conduzido para isso, para que eu com­
preendesse as coisas incompreensíveis, de maneira incompreensível, na
douta ignorância, pela transcendência das verdades incorruptíveis huma­
namente cognoscíveis."
NICOLA U DE CUSA 15

tentarmos exprimir de forma abstrata o conteúdo desse prin­


cípio, se tentarmos determinar sistematicamente e relacionar
historicamente aquilo que para o próprio Nicolau de Cusa é
algo incomparável e único, corremos o risco de não com­
preender a originalidade e a profundidade do novo pensamen­
to. De fato, o conceito de docta ignorantia e a doutrina da
coincidência dos opostos, que se constrói a partir dele, pare­
cem não fazer outra coisa senão renovar as idéias que perten­
ciam ao universo fechado da mística medieval. Em várias pas­
sagens, o próprio Nicolau de Cusa refere-se às fontes dessa
mística, particularmente aos escritos de Eckhardt e do Pseudo­
Dionísio. Assim, parece difícil, senão impossível, traçar aqui
uma linha divisória bem definida. Se o verdadeiro núcleo da
obra de Nicolau de Cusa consistisse da idéia de que Deus, de
que o ser absoluto, estivesse além de qualquer possibilidade
da determinação positiva, de que só pudesse ser designado
por predicados negativos e só pudesse ser concebido nesse ato
de passagem, de transcendência de todas as medidas, propor­
ções e comparações finitas, se assim fosse, não se poderia
falar aqui de um novo caminho, de um objetivo essencialmen­
te novo. Pois ainda que essa nova direção da teologia "místi­
ca", em sua essência mais profunda, se oponha à Escolástica,
este conflito constitui um traço característico do quadro inte­
lectual geral da própria Escolástica. Há muito tempo, os repre­
sentantes exponenciais da Escolástica já tinham se apropriado
da doutrina do Pseudo-Areopagita: não apenas Johannes Sco­
tus Erigena se refere aos seus estudos, mas também Alberto
Magno e Tomás de Aquino reservam a eles alguns comen­
tários, assegurando-lhes, assim, um lugar bem definido no sis­
tema de vida e de pensamento da Idade Média. Não era por
essa via, portanto, que o sistema poderia ser abalado: o velho
pensamento precisava no mínimo ser cunhado novamente;
precisava, de certa forma, ganhar uma nova marca, se quises­
se ultrapassar suas próprias fronteiras.
16 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Para se saber do que consistia essa nova marca, primei­


ramente é preciso ter presente a estrutura geral da produção
literária e intelectual do Areopagita. O título de seus escritos
já aponta para esta estrutura, já indica a posição que esses
escritos ocupam no conjunto da visão básica medieval de
Deus e do mundo. É o problema da hierarquia que se nos
apresenta aqui, pela primeira vez, em todo o seu rigor, em to­
da a sua extensão metafisica, em suas premissas e em suas
multifacetadas transformações. Além do tratado sobre os no­
mes divinos TIEpi 'ÔEÍcov6voµfrccov [Peri theíon onomáton]
(Sobre os nomes dos deuses) são particularmente os escri­
tos sobre a hierarquia celeste e a hierarquia da igrej a TIEpi
'tf\ç; oupavíaç; 'IEpapxíaç;, 7tEpi iftç; EKKÀllcrtacmKl'iç; 'IE­
papxíaç; [Peri tês ouranías Hierarkhías, peri tês ekklesias­
tikês Hierarkhías] (Sobre a hierarquia celeste e sobre a hie­
rarquia eclesiástica) que exerceram maior influência sobre
toda a posteridade. A importância desses estudos está no fa­
to de que neles, pela primeira vez, se encontram e passam a
se desenvolver conjuntamente as duas forças, os dois temas
espirituais básicos, sobre os quais repousa a fé e a ciência
da Idade Média; neles se opera, portanto, a verdadeira fusão
sincrética da doutrina cristã da salvação com a especulação
helenística. O que esta especulação, mais particularmente o
neoplatonismo, ofereceu ao cristianismo foi principalmente
o conceito e a imagem geral do universo escalonado. O mun­
do se divide em mundo inferior e mundo superior, em mundo
sensível e mundo inteligível, que não apenas se opõem, mas
cuj a essência consiste justamente de sua negação mútua, de
sua oposição polar. Por sobre esse abismo de negação que se
abre entre ambos, porém, estende-se um vínculo espiritual.
De um pólo a outro, das alturas do supra-ser e do supra-uno,
do reino da forma absoluta até a matéria, entendida como o
grau absoluto do informe, estende-se uma via contínua de me­
diação. Por meio dela, o infinito passa a finito; e é também
por meio dela que o finito volta a ser infinito. Todo o pro-
NICOLA U DE CUSA 17

cesso da redenção está encerrado aqui : é por ele que o Deus


se faz homem, assim como o homem se faz Deus. Para tan­
to, sempre resta um "entre" a ser superado, um meio divisor
que não se pode transpor de um salto, mas sim passo a pas­
so, numa seqüência suj eita a leis rigorosas. Essa escada que
leva das alturas do mundo celestial ao mundo terrestre, e des­
te novamente para aquele, é sistematicamente descrita e re­
presentada nos escritos de Dionísio, o Areopagita. Entre Deus
e o homem encontra-se o mundo das inteligências puras e
das forças celestiais puras; tal mundo subdivide-se em três
círculos que, por sua vez, novamente se subdividem em ou­
tros três. Ao primeiro círculo pertencem os serafins, os que­
rubins e os tronos; ao segundo, as dominações, as virtudes e
as potestades; ao terceiro, o principado, os arcanj os e os an­
jos. Assim, todos os seres partem da irradiação divina em
graus determinados e nela novamente se encontram e se re­
colhem. Do mesmo modo como todos os raios de um círculo
partem do centro, Deus é ponto de partida e de destino de to­
das as coisas; e assim como no círculo a distância entre os
raios diminui à medida que eles se aproximam do centro, a
união dos seres prevalece sobre sua separação quanto me­
nos distantes eles se encontram do centro comum, fonte pri­
mordial do ser e da vida. Tal visão encerra também a justifi­
cativa, a verdadeira teodicéia da ordem �clesiástica, pois esta,
em sua essência, também não é outra coisa senão a cópia per­
feita da ordem espiritual e cósmica: a hierarquia eclesiástica
reflete a celestial e se conscientiza, neste reflexo, de sua pró­
pria e inviolável necessidade. A cosmologia medieval e a fé
medieval, a noção da ordem do mundo e a noção da ordem
moral e religiosa da salvação confluem para uma única visão
fundamental, para uma imagem extremamente significativa
e da mais elevada coerência interna.
Nicolau de Cusa nunca contestou essa imagem; ele pa­
rece mesmo tomá-Ia como pressuposto de toda a sua obra
18 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

especulativa, particularmente nos primeiros escritos. Não obs­


tante, as primeiras considerações de De docta ignorantia dei­
xam entrever um pensamento que aponta para uma orienta­
ção intelectual inteiramente nova. Também neste caso, o pon­
to de partida é a oposição entre o ser do absoluto e o ser
do empiricamente condicionado, do infinito e do finito. Tal
oposição, contudo, não mais é colocada de forma simples­
mente dogmática, mas deve ser compreendida em toda a sua
profundidade, deve ser entendida a partir das condições do
conhecimento humano. Esta atitude diante do problema do co­
nhecimento caracteriza Nicolau de Cusa como o primeiro pen­
sador modemo2. Seu primeiro trabalho consiste em um ques­
tionamento que ele se faz não apenas sobre Deus, mas também
sobre a possibilidade de se conhecer Deus. E no que respei­
ta a essa questão fundamental, não lhe satisfaz nenhuma das
respostas que tinham sido dadas até então pela filosofia e pe­
la teologia especulativa. Nenhuma delas é capaz de se susten­
tar do momento em que se tem consciência do simples concei­
to do conhecimento e dos pressupostos que nele estão con­
tidos. Todo conhecimento pressupõe uma comparação que,
por sua vez, nada mais é do que uma medição, se analisada
mais detalhadamente. Mas para se medirem um ao outro e
um pelo outro dois conteúdos quaisquer, a primeira condição
que se impõe como premissa indispensável para esse proces­
so é a da homogeneidade. Eles têm de ser relacionados a uma

2 . Para um aprofundamento dessa questão, cf. o meu trabalho Das


Erkenntnisproblem3, l, pp. 2 1 ss., ao qual me reporto para o que se segue.
Pesquisas as mais recentes e as mais penetrantes sobre a doutrina de Ni­
colau de Cusa confirmam essa relação entre a sua doutrina de Deus e a sua
doutrina do conhecimento. "La clef de voíite du systeme philosophique de
Nicolas de Cues", sentenciou Vansteenberghe (Le cardinal Nicolas de Cues,
Paris, 1 920, p. 279), "et en cela il est bien modeme, est sa théorie de la
connaissance."
NICOLA U DE CVSA 19

mesma unidade de medida; devem ser concebidos como per­


tencentes a uma mesma ordem de grandeza. Mas justamente
essa condição não se satisfaz, quando a meta e o objeto do co­
nhecimento passam de uma realidade finita, condicionada,
singular, para um objeto absoluto. Este último, por sua pró­
pria essência e definição, está além de toda e qualquer pos­
sibilidade de comparação e de medição e, portanto, além de
toda e qualquer possibilidade de conhecimento. Se todo co­
nhecimento e medição empíricos se caracterizam pelo fato
de uma grandeza ser relacionada a outra, de um elemento ser
relacionado a outro através de uma determinada série de ope­
rações, de uma seqüência.finita de passos intelectuais, o in­
finito justamente escapa a uma tal redução. "Finiti et infini­
ti nulla proportio": a distância entre o finito e o infinito per­
manece a mesma, independentemente do número de elos que
queiramos interpor entre eles. Não existe uma metodologia
racional do pensamento, não existe um processo discursivo
que encadeie um elemento ao outro, ou que passe de um ele­
mento a outro, capaz de vencer o abismo entre os dois ex­
tremos e levar de um a outro3.

3. Vide De docta ignorantia, 1, 1: "Todos os investigadores julgam


o incerto proporcionalmente por meio de uma comparação com um pres­
suposto certo. Toda pesquisa, portanto, é comparativa, utilizando o meio
da proporção, de modo que se as coisas pesquisadas podem ser compara­
das no pressuposto por uma redução próxima proporcional, o pensamento
de apreensão torna-se fácil, mas se temos necessidade de muitos meios, as
dificuldades e o trabalho aparecem. Essas coisas são bem conhecidas em
matemática, na qual as primeiras proposições facilmente se reduzem aos
primeiros princípios, mais conhecidos; já com os posteriores isso se faz mais
dificilmente, por não se deixarem reduzir senão por meio dos primeiros.
Toda pesquisa repousa, portanto, numa proporção comparativa fácil ou di­
ficil e é por isso que o infinitivo, como tal, por escapar a toda proporção,
é desconhecido."
20 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA D O RENASCIMENTO

Essas breves e simples frases iniciais de De docta igno­


rantia, porém, revelam que já se processou uma mudança de­
cisiva, pois o laço que até então unira a teologia e a lógica da
Escolástica é cortado de um só golpe. A lógica, na forma que
assumira até então, deixou de ser um organon da teologia es­
peculativa. É bem verdade que a evolução da própria Esco­
lástica já havia preparado o terreno para as conclusões de Ni­
colau de Cusa: o nominalismo de Guilherme de Occam e a
vertente "moderna" da Escolástica, que a ele se une, já ti­
nham afrouxado os vínculos estreitos que, nos sistemas clás­
sicos do realismo, uniam a lógica e a gramática, de um lado,
e a teologia e a metafísica, de outro4. Agora, porém, ocorre

4. Recentemente, pesquisas criteriosas realizadas por Gerhard Ritter


sobre a luta da via antiqua e da via moderna nos sécs. XIV e XV (Studien
zur Spiitscholastik: /. Marsilius von lnghen und die okkamistische Schule
in Deutschland; II. Via antiqua und via moderna auf den deutschen Uni­
versitiiten des 15. Jahrhunderts. Sitzungsber. der Heidelb. Akad. der Wiss.,
Philos.-histor. Kl., 1 92 1 /22.) mostraram que esse afrouxamento, tal como
postulado sistematicamente pelo fundamento da doutrina de Occam e ain­
da que realizado dentro de certos limites, não levou a uma separação entre
os dois momentos, e que mesmo entre os moderni, no tipo de ensino que
predominava nas universidades, os limites que Occam tentara estabelecer
logo voltaram a se confundir. Ritter (op. cit. II, pp. 86 s.) resume assim o re­
sultado de suas pesquisas: "Acompanhamos ponto por ponto o modo como
as proposições radicais de Occam sobre a teoria do conhecimento foram
perdendo sua força transformadora na boca de seus partidários. É bem ver­
dade que um Johannes Gerson esteve bem próximo de entender aquilo que
havia constituído originariamente o motivo mais vigoroso do trabalho in­
telectual de Occam: o fato de o conhecimento religioso ter suas raízes em
domínios do espírito completamente diferentes do intelecto natural e o fa­
to de que, por conseguinte, a especulação teológico-metafisica lhe ser mais
nociva do que de proveito. Se este pensamento tivesse sido efetivamente
levado a efeito, ele teria de fato determinado o fim da Escolástica. Mas isso
ainda tardaria a acontecer. O próprio Gerson só em parte conseguiu se
desarraigar daquele emaranhado interior de observações dogmático-religio-
NICOLA U DE CUSA 21

uma ruptura ainda mais radical : a lógica aristotélica, que re­


pousa sobre o princípio do terceiro excluído, prova-se para
Nicolau de Cusa, exatamente por isso, como uma simples ló­
gica do finito, fadada ao total insucesso quando se trata de
considerar o infinito5• Todos os conceitos da lógica aristoté­
lica são conceitos obtidos por comparação, são conceitos que
repousam sobre o fato de que o igual e o semelhante se unem,
enquanto o desigual e o dessemelhante se separam. Sobre as
bases da comparação e da distinção, da separação e da deli­
mitação, todo o ser empírico se decompõe para nós em gê­
neros e espécies determinados, que guardam entre si uma re­
lação rigorosa de subordinação e de sobreordenação. Toda a
arte do pensamento lógico se empenha, portanto, em tomar
claras e visíveis essas interpenetrações das esferas conceituais.
Para determinarmos um conceito por meio de outro, temos de

sas e lógico-metafisicas que constituíam o cerne de todo pensamento da


Escolástica. Ele não duvidava da real importância da conceitualização ló­
gica a que se chega por abstração. E, por fim, o estudo dos escritos filo­
sóficos e teológicos de Marsilius von Inghen revelou-nos um sistema cien­
tífico absolutamente coerente que, mesmo sobre bases nominalísticas, acaba
por reafirmar todas as posições essenciais da metafisica e da teologia da
Alta Escolástica." Se se têm diante dos olhos esses resultados dos estudos
de Ritter, fica mais claro, também por este ângulo, o quanto Nicolau de
Cusa, em sua primeira obra, estava além daquilo que lhe podia oferecer o
seu mestre occamista em Heidelberg.
5. A este respeito, cf. especialmente a observação de Nicolau de Cusa
contra Johann Wenck, seu opositor escolástico de Heidelberg: "Visto que
agora prevaleça a seita de Aristóteles, a qual considera como heresia a coin­
cidência dos opostos, em cuja admissão está o início da ascensão à teologia
mística. Àqueles que foram alimentados por essa seita, esta visão parece
absolutamente insípida, como se, contrária a seu propósito, fosse expulsa
para bem longe deles, de modo que seria verdadeiro milagre, algo como
uma mudança de seita, transpô-los para o mais alto, por meio da rejeição
a Aristóteles." Apologia doctae ignorantiae, foi. 64 s.
22 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

percorrer toda a seqüência de elementos intermediários que


existe entre eles; nos pontos em que tais elementos não se
oferecem diretamente ao pensamento natural, temos de des­
cobri-los com a ajuda de operações silogísticas, a fim de, as­
sim procedendo, reunirmos numa ordem de raciocínio rigo­
rosamente estabelecida o abstrato e o concreto, o geral e o
específico. Esta ordem é adequada àquela do ser: ela repre­
senta a hierarquia do ser na divisão hierárquica dos conceitos.
Mas - e esta é a obj eção que se levanta a partir dos escritos
de Nicolau de Cusa -, se é verdade que tal procedimento per­
mite que se compreendam as semelhanças e diferenças, as
coincidências e divergências do finito, também é verdade que
o absoluto e o não condicionado, que, como tais, estão além
de qualquer comparação, jamais poderão ser apanhados nes­
sa rede de categorização lógica. O conteúdo do pensamento
escolástico contradiz sua forma; ambos se excluem mutua­
mente. Se é que existe a possibilidade de se pensar o abso­
luto, o infinito, então este pensamento não pode e não deve
usar as muletas da "lógica" tradicional, através da qual só po­
demos passar de um elemento finito e limitado para outro,
mas não podemos transcender todo o domínio da finitude e
da limitação.
Assim, todo e qualquer tipo de teologia "racional" é re­
jeitado e substituído pela "teologia mística". Mas da mesma
forma como antes Nicolau de Cusa ultrapassara os limites do
conceito tradicional de lógica, agora também seu pensamento
ultrapassa os limites do conceito tradicional de mística, pois
com a mesma determinação com que ele nega a compreensão
do infinito através de abstrações e categorizações lógicas, ele
também nega a possibilidade de sua compreensão pelo mero
sentimento. Na teologia mística do séc. XV, duas correntes bá­
sicas se opõem veementemente: uma delas invoca o intelecto,
a outra a vontade, entendida como força fundamental da al­
ma e como o instrumento de sua união com Deus. Nesta
NICOLA U DE CUSA 23

disputa, Nicolau de Cusa posiciona-se firmemente a favor da


primeira. O verdadeiro amor de Deus é "amor Dei intellec­
tualis": ele abarca em si o conhecimento como momento e
condição necessários, pois ninguém é capaz de amar o que já
não tenha conhecido em algum sentido. O amor puro e sim­
ples, entendido como mero afeto sem qualquer envolvimento
do conhecimento, seria uma contradição em si: o que se ama
é colocado sob a idéia do bem, é compreendido sub ratione
boni. Tal conhecimento deve dar impulso e asas à vontade,
ainda que o quid, a essência simples do bem em si, permane­
ça como tal inacessível ao conhecimento. Desta forma, tam­
bém aqui conhecimento e não conhecimento coincidem: veri­
fica-se assim, mais uma vez, o princípio da docta ignorantia
como "douta ignorância"6• Ao mesmo tempo, manifesta-se
também o momento que diferencia este princípio de todo e
qualquer tipo de "ceticismo", pois se a docta ignorantia en-

6. A este respeito, cf. esp. a carta de Nicolau de Cusa a Gaspard Ain­


dorffer, datada de 22 de setembro de 1 45 2 : "em meu sermão sobre o Es­
pírito Santo ( ... ) vós haveis descoberto como, por ex., o conhecimento coin­
cide com o amor. É impossível, com efeito, suscitar algum afeto senão
por amor e, qualquer que seja o objeto amado, ele não pode ser amado
senão por meio do bem ( . . . ) Tudo, portanto, que seja amado ou escolhido
por meio do bem não é amado sem nenhum conhecimento do bem, porque
se ama por meio do bem, através do qual se conduz até Deus; o conheci­
mento está presente, mesmo que ignore que seja o objeto de seu amor. É,
então, a coincidência da ciência e da ignorância, ou seja, a douta ignorân­
cia". O ponto de vista oposto ao de Nicolau de Cusa, ou seja, o de uma
mística puramente afetiva e voluntária é representado, de forma extrema­
mente característica, pelo seu opositor Vincent von Aggsbach. Para infor­
mações mais detalhadas sobre esta disputa vide E. Vansteenberghe, A u­
tour de la docte ignorance. Une controverse sur la théologie mystique au
xve siéc/e, Münster, 1 9 1 5 , em que também estão reunidos os documen­
tos detalhados da disputa. (A carta aqui mencionada está na mesma obra,
pp. 1 1 1 s.)
24 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

fatiza negativamente a oposição entre o absoluto e toda for­


ma de conhecimento racional, lógico-conceptual, ao mesmo
tempo ela encerra em si uma exigência positiva. O ser divi­
no, incondicionado, que se furta ao conhecimento discursivo
pelo simples conceito, exige um novo tipo e uma nova forma
de conhecimento. O verdadeiro instrumento para a sua com­
preensão é a visão intelectual, a visio intellectualis, na qual
todas as oposições de gênero e de espécie lógicos deixam de
existir, porque nos vemos transportados à sua origem simples,
a um ponto anterior a toda e qualquer divisão, a toda e qual­
quer oposição, para além de todas as diferenças empíricas do
ser e de todas as suas divisões meramente conceituais. Neste
tipo de visão, e apenas nele, é que se chega à verdadeira fi­
liatio Dei, que a teologia escolástica acreditava em vão poder
alcançar e, de certa forma, dela se usurpar pelas vias do con­
ceito discursivo7• Nesta idéia defilia tio Nicolau de Cusa tam­
,

bém retoma temas fundamentais da mística medieval; mais


uma vez, porém, é característico o fato de ele lhes conferir a
mesma mudança de enfoque correspondente à sua nova visão
de conjunto acerca da relação entre o absoluto e o finito. Se
em Dionísio, o Areopagita, a "divinização", a �coem; [théosis ] ,
s e processa, por força do princípio hierárquico, numa seqüên­
cia bem determinada de movimento, de iluminação e de união
final, tal divinização é, para Nicolau de Cusa, um ato único, no
qual o homem se coloca em relação direta com Deus. De ou­
tra parte, esta relação ele não obtém por um simples êxtase,
por uma enlevação, mas a visio intellectualis, "visão intelec-

7. Cf. em especial a obra Deflliatione Dei (Opera, foi. 1 1 9): "Pessoal­


mente, não creio que se deva achar que a filiação divina seja outra coisa
que não a deificação, que também se diz em grego �cootç [théosis] . Sa­
bes que existe essa 13écootç como o grau último de perfeição, que se cos­
tuma chamar também conhecimento de Deus e do verbo ou visão intuitiva."
NICOLA U DE CUSA 25

tual", pressupõe um movimento espontâneo do espírito, pres­


supõe uma força primordial, que nele mesmo reside, e seu
desenvolvimento num trabalho mental contínuo. Por esta ra­
zão, Nicolau de Cusa, para caracterizar o sentido e o objeti­
vo da visio intel/ectualis, "visão intelectual", invoca muito
mais a matemática do que a forma mística da contemplação
passiva. A matemática torna-se para ele o símbolo autênti­
co, o único símbolo verdadeiro e "preciso" do pensamento
especulativo e da visão especulativa que reúne os opostos.
Nihil certi habemus in nostra scientia nisi nostram mathe­
maticam (não temos nada de certo na nossa ciência, a não
ser a nossa matemática): se a linguagem da matemática não
é capaz de dar conta, nada há que o espírito humano possa
conceber ou conhecer8 . Portanto, se a teologia de Nicolau
de Cusa se liberta da lógica escolástica, da lógica das cate­
gorizações que se rege pelo princípio da contradição e do ter­
ceiro excluído, por outro lado ela postula um novo tipo de
lógica matemática, que não exclui a coincidência dos opos­
tos, mas que emprega esta mesma coincidência do máximo
absoluto e do mínimo absoluto como princípio constante e
como veículo necessário à evolução do conhecimento.
O fato de que se descortina aqui um novo caminho pa­
ra a teologia, uma via cujo objetivo é ultrapassar as fronteiras
do modo de pensar medieval e, assim procedendo, ultrapas­
sar as fronteiras da cosmovisão medieval, tal fato fica muito
mais claro quando se tenta compreender a singularidade do

8. Cf. Dia/. de possest (Opera, p. 259): "Não há nenhum conhecimen­


to preciso de todas as obras de Deus, a não ser n' Ele, que as cria, e, se nós
temos qualquer conhecimento delas, nós o tiramos do símbolo e do espe­
lho bem conhecido da matemática ( . . . ) Portanto, se consideramos correta­
mente, então, não temos nada de certo na nossa ciência senão a nossa ma­
temática e ela é nosso símbolo para ir à caça das obras de Deus." Cf. em
especial a obra De mathematica perfectione, Opera, 1 1 20 ss.
26 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

método de Nicolau de Cusa não apenas de fonna sistemática,


mas também na tentativa de detenninar o seu lugar no contex­
to da história universal do pensamento, na relação entre a his­
tória da filosofia e a história geral do espírito. Assim como
todo o Quattrocento, também Nicolau de Cusa encontra-se
num momento de virada dos tempos, um momento no qual
a história do espírito humano se encontrava diante de uma
grande decisão: a decisão de escolher entre Platão e Aristó­
teles. Tudo indicava, é bem verdade, que os primeiros huma­
nistas já haviam tomado essa decisão: em Triunfo da glória,
Petrarca já apresenta Platão como o primeiro entre os filóso­
fos, seguido a uma certa distância por Aristóteles9• Mas o que
orienta sua escolha não são questões de princípio, e sim razões
de cunho artístico e literário: o "divino fluxo dicursivo" de Pla­
tão, a cujo conhecimento ele chega pelos testemunhos de Cí­
cero e de Santo Agostinho, pennite-lhe atribuir com seguran­
ça a primazia à filosofia de PlatãoIO. Nicolau de Cusa, ao con­
trário, talvez tenha sido o primeiro pensador ocidental capaz
de perscrutar com autonomia as fontes originais e principais
da doutrina de Platão. Nesse sentido, alguns dados objetivos
de sua própria vida indicam-lhe este caminho : Nicolau de
Cusa foi o chefe da missão que se dirigiu do Concílio de Ba­
siléia até a Grécia e que retomou à Itália com os pensadores
e teólogos gregos mais proeminentes daquela época. Não é

9. Petrarca, Trionfo della fama, cap. 3 : Volsimi da man manca; e


vidi Plato,/ che in quella schiera ando piu pressa ai segno/ ai quale ag­
giunge, cui dai cielo e dato. / A ristotele, poi, pien d'alto ingegno. (Tomei­
me à direita e vi Platão/ que naquele grupo foi mais perto do signo/ ao
qual se ajunta depois, àquele que nos foi dado pelo céu./ Aristóteles, cheio
de alto gênio. )
10. Para um aprofundamento acerca d a relação d e Petrarca com Pla­
tão, cf. G. Voigt, Die Wiederbelebung des klass. Altertums2, 1, pp. 82 ss.
NICOLA U DE CUSA 27

dificil avaliar o quanto Nicolau de Cusa, que já dominava o


grego da época de seus primeiros estudos em Pádua, deve ter
aprendido no contato direto, vivo, com as fontes platônicas
e na troca de idéias com homens do porte de um Georgios
Gemistos Plethon, de um Bessarion, e de outros. Daquela ex­
periência em diante, suas obras revelam um Nicolau de Cusa
em contato permanente e em constante diálogo com essas
fontes. Conforme nos ensina a obra De mente, terceiro livro
de Idiota, os livros centrais de A República, de Platão, deci­
sivos do ponto de vista metodológico, foram os que maior
influência exerceram sobre ele 1 1 • Se ponderarmos ainda que
esta influência encontrou um espírito que desde o início
mergulhara na especulação neoplatônica, que se nutriu dos
escritos de Dionísio, o Areopagita, dos Livros Herméticos e
de Proclo, podemos entender que de todas essas leituras sur­
giria necessariamente um problema que, daquele momento
em diante, clamaria sem cessar por uma solução. A turva
mistura de temas platônicos e neoplatônicos, que dominou
todo o conhecimento e o pensamento da Idade Média, não
mais poderia satisfazer. Para um pensador que havia passa­
do não apenas pela escola da filosofia e da matemática, mas
também pela escola da crítica filosófico-humanista, que em
seus próprios trabalhos havia descoberto e comprovado os
primeiros resultados importantes desta crítica, para um tal
pensador não havia mais lugar para uma mera justaposição
de temas platônicos e neoplatônicos; ao contrário, para ele

1 1 . Na biblioteca de Nicolau de Cusa, conservada até os nossos


dias, encontram-se, além de O Estado, também Fédon, Apologia, Kríton,
Mênon e Fedro. Ao que tudo indica, Nicolau de Cusa também parece
dever muito a Parmênide, que ele conhecia a partir dos comentários de
Proclo. Para um aprofundamento dessa questão, cf. Vansteenberghe, op.
cit., pp. 429 ss.
28 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

era preciso que agora se chegasse a um termo entre tais


temas. E Nicolau de Cusa o fez não de forma explicitamen­
te literária, assim como tampouco participou pessoalmen­
!e da famosa contenda literária suscitada pela obra nepi
rov' AptO"'tO'!ÉÀ.TJÇ npõç; Il À.cl't(J)VCX Õtaq>Ép€'tat [Peri hôn
Aristotéles pràs Plátona diaphéretai] (O que difere Aris­
tóteles de Platão), de Pléton. Em vez de empreender uma
crítica filológica, porém, Nicolau de Cusa realiza aqui a crí­
tica sistemática mais profunda e de conseqüências mais ri­
cas. Seu pensamento especulativo transforma-se em campo
de batalha, onde se confrontam os elementos de reflexão
que, na Idade Média, se mesclavam de forma indiferencia­
da; um campo de batalha no qual tais elementos se reconhe­
cem e se medem um em relação ao outro. A partir dessa luta
- e não a partir da contenda literária entre Pléton e Bessa­
rion, ou entre Theodorus Gaza e George von Trapezunt -
surge uma nova explicação metodológica para o sentido ori­
ginal do platonismo; dela resulta como que uma nova linha
de demarcação intelectual entre Platão e Aristóteles, de um
lado, e entre Platão e o Neoplatonismo, de outro.
A cosmovisão de Platão é caracterizada pelo rígido re­
corte que ele faz entre o mundo sensível e o mundo inteligí­
vel; entre o mundo dos fenômenos e o das idéias. Ambos os
mundos - o mundo do "visível" e o do "invisível", o mundo
do ôpa'tÕV [horatón] e do VOTJ'tÕV [noetón] - não se encon­
tram num mesmo plano e não permitem, portanto, qualquer
tipo de comparação imediata. Ao contrário: cada um deles é
o extremo oposto, o E'tEpov [ héteron] (outro) do outro; por
isso mesmo, todos os predicados que atribuímos a um te­
mos de necessariamente subtrair do outro. Todas as caracte­
rísticas da idéia são derivadas por antítese das característi­
cas da aparência. Se a aparência é caracterizada por um fluir
incessante, a permanência perene é própria da idéia; se aque­
la, por sua própria natureza, nunca é uma, mas se revela ao
NICOLA U DE CUSA 29

olhar que tenta fixá-la como realidade multifacetada, que se


transforma a cada instante, a idéia persiste numa pura iden­
tidade consigo mesma. Se a idéia é caracterizada e totalmen­
te determinada pelo postulado da constância do sentido, o
mundo dos fenômenos sensíveis se subtrai a todo e qualquer
tipo de determinação, ou mesmo à sua mera possibilidade:
nele, nada é um ser verdadeiro, nada é uma unidade verdadei­
ra, nada é alguma coisa ou algo acabado. Eis aí o fundamento
da distinção entre saber e opinar, entre em o"trí µTJ [epistéme]
e õóÇa [dóxa] : aquele se refere ao que existe sempre, ao que

se comporta sempre da mesma forma; este se volta para o


mero fluxo das percepções, das representações, das imagens
que se sucedem em nós. Toda filosofia, tanto a teórica quan­
to a prática, tanto a dialética quanto a ética, consiste do co­
nhecimento acerca dessa oposição: suprimi-la ou tentar de
alguma forma conciliá-la significaria suprimir a própria fi­
losofia. Quem não conhece essa dualidade, aniquila a premis­
sa do próprio conhecimento; destrói o sentido e a importân­
cia do julgamento e, com isso, toda a força da "discussão"
científica Õtaq>'ÔEpEi 7tá.crav tflv tou ÕtaÂ.É)'EO''Ôat õú­
vaµtv [diaphtherei pásan tên tou dialégesthai dynamin] ( des­
trói toda a força do discutir). Aparência e idéia, o mundo
dos fenômenos e dos númenos, podem relacionar-se no pla­
no do pensamento; um pode e deve ser medido pelo outro,
mas nunca ocorrerá entre eles uma espécie de "mistura";
nunca a natureza e a essência de um poderão se converter
na natureza e na essência do outro, de tal modo que haja en­
tre eles qualquer espécie de linha divisória comum, no inte­
rior da qual os dois se refundam num só. A divisão, a xco­
pmµóç [khorismós] , de ambos os mundos não pode ser su­
primida: o Õvtcoç õv [óntos ón] (ser como tal) e o Õvta
[ónta] (entes), o ÀÓyot [lógoi] (razões) e o 7t pá.-yµa.ta [prág­
mata] (coisas) jamais se unem, do mesmo modo como o "sen­
tido" puro da idéia não pode [ser dado] como um "existir"
30 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

singular ou a mera existência possuir por si mesma um sen­


tido ideal, um conteúdo significativo ou um valor perene 1 2•
A crítica de Aristóteles à doutrina das idéias de Platão
parte do fato de ele discordar dessa divisão entre o domínio
da "existência" e o do "sentido" ideal. A realidade é una : co­
mo seria possível concebê-la em dois modos diferentes de
conhecimento, um deles sendo o extremo oposto do outro? A
oposição entre "matéria" e "forma", entre "vir-a-ser" e "ser",
entre o "sensível" e o "supra-sensível", por mais longe que a
possamos levar, só pode ser entendida como oposição se hou­
ver uma mediação, que leva de um pólo a outro. É assim que,
para Aristóteles, o conceito de evolução transforma-se na
categoria fundamental e no princípio por excelência para se
explicar o mundo. O que chamamos de realidade nada mais
é do que a unidade de um mesmo complexo de atividades, no
interior do qual toda a diversidade está contida e representa
uma determinada fase, um determinado estágio do processo
de evolução. Onde houver dois tipos e dois modos de ser
ainda "heterogêneos", basta que olhemos para esse proces­
so dinâmico e unificado e nele encontraremos uma relação
entre eles e uma forma de conciliá-los. A divisão entre "apa­
rência" e "idéia", no sentido platônico, deixa de existir, pois
o "sensível" e o "inteligível", o "inferior" e o "superior", o
"divino" e o "terreno" atuam um sobre o outro numa estrei­
ta e constante conexão . O mundo é uma esfera fechada em
si mesma, no interior da qual só existem gradações. Do di­
vino e imóvel motor do universo parte a força que age pri­
meiro sobre a camada mais externa da abóbada celeste, para
dali se propagar, numa seqüência contínua e ordenada, so-

12. Para um aprofundamento dessa questão, cf. minhas considerações


sobre a filosofia grega em Lehrbuch der Phi/osophie, ed. por Max Dessoir.
Berlim, 1 92 5 , em esp. I, pp. 89 ss.
NICOLA U DE CUSA 31

bre a totalidade do ser e se comunicar ao mundo sublunar


inferior por meio das esferas celestes que se encaixam umas
nas outras. Por maior que seja a distância entre o começo e
o fim, ainda assim não existe, no caminho que leva de um ao
outro, nenhuma ruptura, nenhum "começar" e nenhum "ter­
minar" absolutos. Pois trata-se de um espaço finito e contí­
nuo, mensurável em estágios determinados e comprováveis;
um espaço que separa começo de fim e, dessa mesma for­
ma, os une novamente.
Plotino e o neoplatonismo tentam unir os temas funda­
mentais do pensamento platônico e aristotélico, mas o que
conseguem - do ponto de vista de uma observação mais sis­
temática - é uma mistura eclética de ambos. O sistema neo­
platônico é dominado pelo pensamento platônico da "trans­
cendência", da oposição absoluta entre o inteligível e o sensí­
vel, que é descrita bem à maneira de Platão, chegando mesmo
ao exagero quanto à expressão. À medida que o conceito aris­
totélico de transformação é aceito e integrado ao pensamento,
relaxa-se a tensão dialética que era imprescindível ao siste­
ma platônico. Da união entre a categoria platônica da transcen­
dência e a aristotélica de transformação nasce o conceito bas­
tardo de "emanação". O absoluto, entendido como aquele que
está além e acima de tudo o que é finito, de tudo o que é uno,
de toda a existência, permanece puro em si mesmo; não obs­
tante, porém, sua superabundância provoca um transborda­
mento e, neste transbordar, o absoluto gera toda a diversidade
dos mundos até chegar ao nível da matéria informe, enten­
dida como fronteira derradeira do não-ser. As considerações
sobre a obra de Dionísio, o Areopagita, mostrou-nos que a
Idade Média cristã havia adotado esse conceito e o transfor­
mado a seu modo. O resultado disso foi a categoria funda­
mental da mediação por fases que, de um lado, viabilizava a
transcendência divina para depois, por outro lado, dominá-la
do ponto de vista teórico e prático com a noção de uma hie-
32 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

rarquia dos conceitos e das forças espirituais. No milagre da


ordenação cristã da vida e da salvação, a transcendência es­
tava, ao mesmo tempo, reconhecida e dominada; neste mi­
lagre, o invisível se tornara visível para o homem, e o inin­
teligível, inteligível.
Nicolau de Cusa, conforme demonstra a totalidade de
sua obra e de seu pensamento, ainda estava profundamente
arraigado nessa concepção geral da Idade Média sobre a vi­
da e o espírito. Estreito e demasiado forte era o laço que um
trabalho de reflexão secular havia criado entre o conteúdo da
fé cristã e o conteúdo teórico do sistema aristotélico e neo­
platônico, para que este laço pudesse ser rompido de um só
golpe por um pensador ainda tão vinculado ao conteúdo da fé.
Nesse sentido, um outro dado não apenas explica o vínculo
de Nicolau de Cusa com os grandes sistemas escolásticos que
o precederam, como também revela que este vínculo era qua­
se inevitável. Esses sistemas tinham conferido ao pensamen­
to filosófico não apenas o seu conteúdo, mas também sua for­
ma: eles tinham criado a única e singular linguagem através
da qual o pensamento podia se expressar. É bem verdade que
o Humanismo havia tentado atacar a Escolástica justamente
por este flanco: os humanistas achavam que poderiam derro­
tar o espírito da Escolástica revelando-lhe os erros e a falta de
gosto de seu latim "bárbaro". Neste particular, porém, Nico­
lau de Cusa, embora tão próximo das tendências fundamen­
tais do humanismo, não lhe seguiu os passos. Pelo simples
fato de ser alemão, ele se sentia de antemão à margem dos
grandes artistas do estilo, dos grandes mestres da eloqüência
humanista. Conforme o próprio Nicolau de Cusa percebeu e
expressou, ele não estava em condições de disputar em pé
de igualdade com um Enea Sílvio Piccolomini, com um Lo­
renzo Valla, com todos aqueles homens que eram "latinos por
natureza". Mas não se envergonhava dessa deficiência: afi­
nal, o sentido mais puro e mais elevado também poderia ga-
NICOLA U DE CUSA 33

nhar forma numa expressão mais modesta e humilde (humi­


liori eloquio ) 1 3. Mas é claro que este apego ao "estilo" da Es­
colástica também representava para Nicolau de Cusa uma real
dificuldade interior e o colocava diante de uma nova tarefa
objetiva, pois o que se exigia dele agora era que expressasse,
dentro dos limites da linguagem conceituai filosófica domi­
nante, dentro dos limites da terminologia escolástica, um pen­
samento que, por seu próprio conteúdo e tendência, apontava
para além dos limites da Escolástica. O latim "de estrangei­
ro" de Nicolau de Cusa, que se caracteriza, de um lado, pela
sua obscuridade, por suas expressões enigmáticas e carrega­
das, enquanto, por outro, encerra uma riqueza de usos no­
vos e singulares, ao mesmo tempo que esclarece com a pon­
taria de um raio e, muitas vezes, numa palavra, num termo
cunhado de maneira feliz, toda a profundidade especulativa
das grandes questões fundamentais, este latim só é compreen­
sível à luz de toda a situação espiritual em que ele se encontra
em relação à Idade Média. O embate constante com a expres­
são, característico de toda a sua obra, é apenas um sintoma do
fato de que agora a poderosa massa de pensamentos da filo­
sofia escolástica começava a se libertar de sua rigidez dogmá­
tica; um sintoma de que essa massa, longe de ser colocada de

1 3 . Extraído do prefácio da De concordantia catholica, Opera, foi.


683 s.: "Certamente nós vemos todos se deleitarem tanto com a eloqüên­
cia quanto com o estilo ou com a forma antiga da literatura, sobretudo os
italianos que não se saciam com a habilíssima expressão de sua herança
latina (pois por natureza eles são os latinos), mas dedicam o máximo estu­
do às letras gregas, retomando, assim, os passos dos antigos. Nós, alemães,
embora não tenhamos sido feitos menores que os outros quanto ao gênio
mesmo com a posição das estrelas, contudo no mesmo uso refinado da
fala geralmente cedemos mais ao nosso vício do que os outros, porque só
com o maior esforço, como que indo contra a natureza rebelde, consegui­
mos falar corretamente o latim."
34 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

lado, era impelida para o interior de um movimento absolu­


tamente novo do pensamento. O verdadeiro objetivo deste mo­
vimento, que se nos revela na obra de Nicolau de Cusa ora
em tímidas alusões, ora com uma clareza surpreendente, se
caracteriza pelo estabelecimento, dali em diante, de uma no­
va relação entre o "sensível" e o "supra-sensível", entre o mun­
do "empírico" e o "intelectual": uma relação cujo estudo sis­
temático e cuja compreensão nos remetem novamente aos
conceitos fundamentais genuinamente platônicos de separa­
ção e de participação, de µÉl'}E/;lÇ [méthexis] e de xrop1crµóç
[khorismós] 14. Já as primeiras sentenças de De docta ignoran­
tia apontam para o fato de que o recorte operado no mundo
do ser é feito de uma outra maneira, de um ponto de vista di­
ferente daquele realizado pelos sistemas clássicos da Esco­
lástica. Nicolau de Cusa retoma com toda a seriedade a pa­
lavra de Platão segundo a qual o bem está "além do ser",
E1tÉKElVCl 'tfJÇ oucríaç [epékeina tês ousías]. Nenhuma se­
qüência de conclusões, que comece por um dado empírico e
que alinhe e relacione um dado empírico a outro num pro­
cesso contínuo, é capaz de levar até ele, já que todo pensa­
mento dessa natureza opera no âmbito da mera comparação,
ou seja, na esfera do "mais" e do "menos". Mas como seria
possível apreender, por meio de tais comparações, aquilo que
se eleva para além de toda e qualquer comparação? Aquilo
que não é apenas relativamente grande e maior, mas que é,
por assim dizer, "o maior", o "máximo"? A expressão de má-

14. Num artigo exemplar publicado recentemente, Ernst Hoffmann


demonstrou que e por que esses conceitos, em seu sentido primordial, em
sua acepção originariamente platônica, permaneceram e tiveram de perma­
necer distantes de todo o pensamento da Idade Média. Contento-me, aqui,
em apenas fazer alusão a este estudo (Platonismus und Mittelalter. Vortrãge
der Bibl iothek Warburg, III, pp. 1 7 ss.).
NICOLA U DE CUSA 35

ximo, neste caso, não deve induzir a erro : não s e trata aqui,
por exemplo, de se criar um superlativo relacionado a um
comparativo que lhe seja anterior; ao contrário: trata-se an­
tes de se estabelecer uma oposição incondicionada a toda e
qualquer comparação possível, a todo e qualquer procedimen­
to meramente quantitativo e que opera numa seqüência de
posições graduadas. O máximo não é um conceito de gran­
deza, mas um conceito puramente qualitativo: ele é o funda­
mento absoluto do ser, assim como o fundamento absoluto do
conhecimento 1 5 • Nenhum procedimento meramente quanti­
tativo, nenhuma divisão gradual é capaz de vencer o abismo
que se abre entre este fundamento original do ser e a existên­
cia empírica. Toda e qualquer medição, toda e qualquer com-

1 5 . A este respeito, cabe lembrar que Platão também usa a expres­


são "máximo" para se referir à idéia de bem, que é ao mesmo tempo causa
suprema da real idade e causa suprema do conhecimento: ela é µéyunov
µéxilr1µa [mégiston máthema], conhecimento máximo (Platão, Rep. VI,
505 A). Não é possível afirmar com certeza se Nicolau de Cusa tomou
emprestado diretamente de Platão as características do ser empírico como
o reino do "mais e do menos": µàUov tE icai �t'tOV [mâllon te kai hêtton] :
não encontro e m seus escritos uma prova direta de que ele tenha conheci­
do o Filebo, obra na qual esta acepção é sistematicamente desenvolvida.
Mas mesmo que se suponha que ele tenha criado sozinho tanto a idéia quan­
to a expressão, isso só lança uma luz mais intensa sobre a relação meto­
dológica que aqui se quer demonstrar. No mais, Platão é exaltado por Ni­
colau de Cusa como o único pensador que, no tocante ao conhecimento de
Deus, encontrou o verdadeiro caminho, o caminho da docta ignorantia:
"Ninguém se aproxima mais do conhecimento da verdade do que aquele
que compreende que, nas coisas divinas, mesmo quando se fazem muitos
progressos, aquilo que se procura sempre lhe escapa. Vê agora os caçadores
filósofos ( . . . ) que fizeram trabalhos inúteis: pois eles não entraram no cam­
po da douta ignorância. Somente Platão, porém, vendo alguma coisa a mais
que os outros filósofos, dizia que se admiraria, se um dia Deus fosse en­
contrado e ainda mais se admiraria se, uma vez encontrado, pudesse ser
divulgado." De venatione sapientiae, Cap. XII, foi. 307.
36 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA D O RENASCIMENTO

paração, toda e qualquer conclusão que percorra o fio dessa


existência também acaba no interior deste círculo : ele pode
continuar a se desenrolar indefinidamente no interior do pla­
no do empírico, mas este processo sem limite rumo ao inde­
terminado não é capaz de abarcar o infinito, que é o máxi­
mo absoluto da determinação. Assim, "indefinido" e "infi­
nito" separam-se nitidamente na obra de Nicolau de Cusa.
A única relação que existe entre o mundo do condicionado
e do que é indefinidamente condicionável, de um lado, e o
mundo do incondicionado, de outro, é a relação da total ex­
clusão mútua: a única predicação possível, válida para o in­
condicionado, nasce da negação de todos os predicados em­
píricos. Com todo o seu rigor, descortina-se ante os nossos
olhos, portanto, o tema da "alteridade", o motivo platônico
de EtEpov [héteron] (outro). É vã a tentativa de querer des­
cobrir algum tipo de "semelhança" entre o sensível e o inteligí­
vel. O círculo sensível, a esfera sensível, jamais correspondem
ao conceito puro de ambos, mas permanecem necessariamen­
te em posição de desvantagem em relação a ele. Podemos
relacionar o sensível ao ideal; podemos determinar que um
ser concreto, visível, preencha com maior ou menor exati­
dão o conceito - invisível em si - de esfera ou de círculo:
isso, porém, não suprime a diferença de princípio entre "có­
pia" e "original", pois a pura verdade do original é definida
justamente pelo fato de que não há para ela um "mais" ou
"menos": aquele que se esforce em diminuir-lhe no que quer
que sej a, ou dela faça alguma abstração, já a destruiu por
sua própria natureza. O sensível, ao contrário, não apenas su­
porta essa indefinição, como tem nela sua natureza mais pro­
funda: ele "é", desde que lhe seja atribuída uma existência;
ele só "é" nesse território ilimitado do vir-a-ser, do ir e vir
entre um "ser assim" e um "ser outro". "Se é claro que não
existe uma relação entre o infinito e o finito, também é per­
feitamente evidente que, havendo um excedente e um exce-
NICOLA U DE CUSA 37

dido, nunca s e poderá chegar ao máximo absoluto, pois ex­


cedente e excedido são finitos e o máximo, enquanto tal, é
necessariamente infinito. Havendo, portanto, algo que não
seja este máximo absoluto, é claro que sempre se poderá en­
contrar algo que lhe sej a superior. Assim, não pode haver
duas ou mais coisas que sejam tão iguais ou tão semelhan­
tes entre si a ponto de não ser possível encontrarem-se, até o
infinito, outras coisas mais parecidas ainda. Dessa forma, por
mais próximos que estej am a medida e o medido, sempre res­
tará entre eles uma diferença. O entendimento finito, portan­
to, não pode compreender a verdade das coisas com exatidão
verdadeira, por maior que sej a a semelhança entre elas. Pois
a verdade não é nem mais nem menos; ela é indivisível ( . . . ) O
intelecto está para a verdade como o polígono está para o cír­
culo: quanto mais ângulos e lados este tiver, tanto mais ele se
aproxima do círculo, ainda que jamais chegue a se igualar a
ele, mesmo se os seus ângulos e lados forem multiplicados
ad infinitum. Da mesma forma, nada sabemos da verdade
além do fato de que ela, tal como é, não nos é compreensí­
vel com verdadeira exatidão. Pois a verdade é a necessida­
de mais absoluta, que não pode ser nem mais nem menos do
que é; nosso intelecto, porém, é mera possibilidade." 1 6
Essas poucas e impetuosas frases deixam claro que não
pode haver uma ascensão fácil e constante do condicionado
para o incondicionado, que não pode haver um progresso que
leve de "verdades" empíricas e racionais para a verdade úni­
ca e absoluta, e que, em decorrência disso, tanto a forma da
lógica escolástica quanto o objetivo da ontologia escolástica
são negados. Ao mesmo tempo, porém, tal conclusão encer­
ra em si uma curiosa reversão. O corte que separa o sensível
do inteligível, o empirismo e a lógica da metafisica não sec-

1 6. De docta ignorantia, 1 , 3 , foi. 2 s.


38 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ciona o nervo vital da experiência; ao contrário, ele é justa­


mente o que garante sua legitimidade. E isto ocorre à medi­
da que Nicolau de Cusa passa a desenvolver, com a mesma
decisão e o mesmo rigor com que havia tratado o conceito de
"divisão", o conceito de "participação". "Divisão" e "parti­
cipação", xcoptcrµóç [khorismós] e µÉ-ôeÇtç [méthexis], não
são conceitos que se excluem; com efeito, cada um deles só
pode ser pensado através de e por referência ao outro. Na pró­
pria definição do saber empírico, ambos os momentos estão
necessariamente presentes e ligados um ao outro, pois nenhum
saber empírico é possível sem que se refira a um ser ideal e
a um ideal de assim-ser; de outra parte, nenhum saber empí­
rico é de tal sorte que contenha pura e simplesmente a ver­
dade deste ideal; que compreenda essa verdade como um de
seus componentes. Como vimos, o caráter do empírico é a
possibilidade de ele ser determinado indefinidamente, ao pas­
so que o caráter do ideal é a sua plenitude, sua inteireza, sua
determinação necessária e unívoca. A simples possibilidade
de determinação, porém, só é possível com referência à pró­
pria determinação, que lhe confere uma forma e uma direção
bem definidas. Assim, tudo o que é condicionado e finito vi­
sa ao incondicionado, sem jamais poder alcançá-lo. E este é
o segundo tema básico contido no conceito de docta ignoran­
tia. Em relação à teologia, este conceito enuncia a idéia do
"não-saber que sabe"; em relação à experiência, ao conhe­
cimento empírico, ele enuncia a idéia do "saber que não sa­
be". A experiência abriga o conhecimento autêntico, mas é
claro que esse mesmo conhecimento precisa saber que, por
mais que evolua, sempre chegará a um objetivo e a um fim
relativos, nunca absolutos; precisa saber que, neste domínio,
não impera a exatidão verdadeira, a praecisio; que cada enun­
ciado ou medição, por mais precisos que sejam, podem e de­
vem ser suplantados por outros, mais precisos ainda. Nesse
sentido, todo o conhecimento que adquirimos através da ex-
NICOLA U DE CUSA 39

periência se reduz a conjecturas, a um ponto de partida, uma


hipótese que, de antemão, se resigna diante do fato de poder
ser suplantada por outras, melhores e mais precisas. O con­
ceito de conjectura implica, de uma só vez, a noção da eter­
na alteridade entre idéia e aparência, e a noção da partici­
pação da aparência na idéia. A definição de Nicolau de Cusa
para o conhecimento empírico só é possível através dessa re­
lação recíproca entre alteridade e participação: conjectura
est positiva assertio in alteritate veritatem uti est partici­
pansI 7 (a conjectura é uma asserção positiva que participa a
verdade na alteridade tal como ela é). Assim, paralelamente
à teologia negativa, temos agora uma doutrina positiva da
experiência; e elas não se opõem entre si, mas representam
uma e a mesma concepção básica de conhecimento, só que
a partir de dois ângulos diferentes. A verdade inatingível em
seu ser absoluto só se nos apresenta na esfera da alteridade;
da mesma forma, porém, também não existe para nós uma
alteridade que não aponte para a unidade e dela faça parte 1 B .
É preciso renunciar a toda identidade, a toda compenetração
de uma esfera na outra, a toda supressão do dualismo; é jus-

1 7 . De conjecturis, l , 1 3 .
1 8 . "Portanto, a identidade, que não se desenvolve de modo variado,
desenvolve-se de modo distinto na alteridade e essa mesma variedade se
envolve na unidade da identidade de maneira concordante ( . . . ) De prefe­
rência, portanto, toda nossa inteligência consiste da participação da atua­
lidade divina na variedade potencial. Poder compreender, com efeito, no
ato, a mesma verdade tal como ela é convém, então, às mentes criadas,
assim como é próprio de Deus, que esse ato tenha participado, em poder,
de várias formas, nas mesmas mentes criadas ( . . . ) Nem é acessível essa su­
midade que assim se deve atingir, como se não fosse possível chegar a ela;
nem se deve crer que, uma vez atingida, seja apreendida no ato, mas, antes,
para atingi-la, pode-se sempre, certamente, ir mais próximo, com a mesma,
tal como sempre é, com um restante inatingível." (lbid. )
40 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

tamente esta renúncia que confere ao nosso conhecimento


sua legitimidade e sua verdade relativa. Ela mostra, para usar
a linguagem de Kant, que nosso conhecimento tem limites que
jamais poderá suplantar, mas que, por outro lado, não lhe são
impostas barreiras no âmbito que lhe foi conferido para atuar;
mostra, ainda, que na própria alteridade ele pode e deve se
expandir em todas as direções, com liberdade e sem impedi­
mentos. A própria divisão é a mesma que, impedindo a coin­
cidência, ensinando um a se ver no outro, e o outro no um,
assegura a possibilidade de uma autêntica participação do
sensível no ideal .

Até aqui, fizemos menção apenas ao princípio metodo­


lógico mais geral da filosofia de Nicolau de Cusa; mas jus­
tamente neste princípio está implícita uma série de conclu­
sões que são de importância decisiva para a visão concreta do
mundo, para a concepção tanto do cosmos físico quanto do es­
piritual. Das frases apresentadas anteriormente, extraídas de
De docta ignorantia e de De conjecturis, decorre diretamente
a apresentação do princípio da relatividade do movimento e a
doutrina do movimento próprio da terra. Conforme podemos
depreender de forma irrefutável desse contexto de relações,
Nicolau de Cusa não chega a tais formulações partindo de
ponderações de natureza física, mas de ponderações especula­
tivas, cuja essência está vinculada a uma teoria geral do co­
nhecimento: não é o tisico quem nos fala aqui, mas o teórico
do "não-saber que sabe". Se, por esta razão, as ponderações de
Nicolau de Cusa podem parecer um tanto estranhas e curio­
sas para o historiador das Ciências Naturais, se elas, pela sua
dedução e forma, parecem não possuir o caráter da pesqui­
sa empírica, mas muito mais o caráter de um simples aperçu,
NICOLA U DE CUSA 41

o historiador da filosofia não se pode deixar enganar por tais


impressões. A tarefa deste último reside muito mais em mos­
trar que este aparente aperçu já pressupõe o todo da doutri­
na de Nicolau de Cusa e que este todo se reafirma aqui numa
tarefa de caráter específico.
A fim de compreendermos com o devido rigor as pon­
derações de Nicolau de Cusa e o tema original de seu pensa­
mento, teremos como ponto de partida, mais uma vez, os mo­
mentos em que seu pensamento se opõe à tisica medieval.
Esta se baseia nos fundamentos da doutrina aristotélica dos
quatro elementos, cada um deles tendo um lugar bem defini­
do na constituição do cosmos. Fogo, água, ar e terra guardam
entre si uma relação espacial que obedece a leis rigorosas, dis­
põem-se, por assim dizer, segundo uma ordem determinada
do que está "em cima" e "embaixo". A natureza de cada ele­
mento atribui-lhe uma distância determinada em relação ao
ponto central do universo. O mais próximo dele é a terra; e ca­
da componente dela, quando separado de sua posição natu­
ral, quando distanciado da proximidade imediata em relação
ao centro do mundo, se esforça para a ele retornar num mo­
vimento retilíneo. De forma contrária, o movimento do fogo
tende, "em si'', para cima, de sorte que sua tendência é jus­
tamente a de se afastar do centro. Entre o lugar ocupado pe­
la terra e aquele ocupado pelo fogo fica o domínio do ar e da
água. A forma geral de toda atividade tisica é determinada
pela ordem dessas posições. Toda a atividade tisica se pro­
cessa por meio de transformações de um elemento ao outro,
que lhe é mais próximo, de maneira que fogo se transforma
em ar, ar em água e água em terra. Esse princípio da transfor­
mação recíproca, essa lei do surgir e do desaparecer, é marca
indelével de todos os fenômenos terrestres. Por sobre o mundo
da terra, porém, ergue-se a esfera que não está mais sujeita
a essa lei; a esfera para a qual o surgir e o desaparecer lhe são
totalmente estranhos. A matéria dos corpos celestes possui
42 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENA SCIMENTO

um ser próprio, uma quinta essentia, diferente por natureza da


dos quatro elementos terrestres. Nela não se opera qualquer
transformação qualitativa; ela só está sujeita a um tipo de al­
teração: o puro deslocamento no espaço. E como aos corpos
mais perfeitos deve corresponder a mais perfeita de todas as
formas de movimento, deduz-se daí que os corpos celestes
descrevem órbitas circulares perfeitas ao redor do centro do
mundo. Por toda a Idade Média, esse sistema sustentou sua
predominância de forma quase incontestada. É bem verda­
de que, vez ou outra, a questão relativa à "substância celeste"
sempre dá margem para dúvidas e sofre algumas reformula­
ções pontuais: a essência da visão fundamental, porém, per­
manece incólume a tais transformações. Duns Scot e Guillau­
me d'Occam intervêm nessa questão ao defenderem a tese de
que também os corpos celestes se compõem de uma maté­
ria que em si, e de forma análoga à matéria terrestre, encerra
a possibilidade de transformação, de transição para uma no­
va forma que lhe é oposta, mas que não possui qualquer força
natural capaz de desencadear uma tal transformação. O céu,
portanto, permanece alheio ao surgimento e ao desapareci­
mento; e se isso não se deve a uma necessidade lógica, de­
ve-se, então, a uma necessidade efetiva; se não conceitual­
mente, pelo menos de fato. Um tal surgimento e desapareci­
mento só seria possível por uma intervenção direta de Deus
na natureza, e não por forças que nela existemI9•
Essa concepção aristotélica e escolástica "clássica" de
cosmos contrapõe-se, sob vários aspectos, ao princípio es­
peculativo básico desenvolvido por Nicolau de Cusa em seu
trabalho De docta ignorantia. Por um lado, ela ordena o ele-

1 9. A esse respeito, bem como para outras transformações sofridas


pela doutrina da substância celeste no interior da Escolástica, cf. P. Duhcm,
Études sur Léonard de Vinci, 2� série, Paris, 1 909, pp. 255 ss.
N!COLA U DE CUSA 43

mento celeste e os quatro elementos terrestres segundo uma


escala de localização no espaço que, ao mesmo tempo, tam­
bém é uma escala de valor. Quanto mais elevado é o ponto em
que se encontra um elemento na escala cósmica, tanto mais
próximo ele está do motor inerte do mundo e, por conseguin­
te, tanto mais pura e mais perfeita é a sua natureza. Nicolau
de Cusa, porém, não reconhece mais uma tal relação de pro­
ximidade e distância entre o sensível e o supra-sensível. Onde
a distância como tal é infinita, cessam de existir as diferenças
finitas relativas. Cada elemento, cada ser natural, se compa­
rado com a origem divina do ser, está igualmente próximo e
distante desta origem. Deixam de existir, portanto, as noções
de "em cima" e "embaixo"; o que existe é um único cosmos,
homogêneo em si, que como cosmos empírico se opõe ao ser
absoluto, do mesmo modo como, de outra parte, participa
do absoluto na condição de todo, na medida em que a natu­
reza empírica lhe permite uma tal participação. Como esse ti­
po de participação vale, em princípio, para tudo o que exis­
te, ela não pode ser atribuída em maior grau a um de seus
componentes, e em menor grau a outro. E com isso, de um só
golpe, descarta-se também a oposição de valor entre o mun­
do sublunar, inferior, e o celestial, superior. A escala dos ele­
mentos, tal como a supõe a fisica peripatética, é substituída
pelo princípio de Anaxágoras, segundo o qual na natureza
tangível "tudo está em tudo". As diferenças que podemos
constatar nos diversos corpos do mundo empírico não são di­
ferenças específicas de sua substância, mas algo que se deve
a uma proporção diferente na mistura dos elementos básicos,
que são os mesmos e estão espalhados por todo o mundo. Se
pudéssemos subir até o sol, encontraríamos nele, além do ele­
mento fogo, também um estrato de água, ar e terra, do mesmo
modo como, contrariamente, a terra pareceria uma estrela bri­
lhante a um observador situado num ponto distante, fora e
44 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

acima dela2°. De tais considerações decorre uma segunda


ponderação que, para Nicolau de Cusa, destitui o sistema cos­
mológico de Aristóteles e da Escolástica de todo e qualquer
valor de verdade. Se observarmos atentamente esse sistema,
veremos que ele se compõe de dois elementos desiguais e,
em última análise, irreconciliáveis. O ideal mescla-se aqui
com o empírico, o empírico com o ideal. À substância celes­
te perfeita deve corresponder um movimento perfeito, o mo­
vimento numa órbita circular exata. Mas aquilo que é verda­
deiramente exato, conforme nos ensinou o princípio da docta
ignorantia, jamais poderá ser encontrado na condição de com­
ponente efetivo, de dado concreto ou comprovável na reali­
dade das coisas. Ele é e continua sendo um ideal, ao qual -

é bem verdade - temos de relacionar os corpos e seus movi­


mentos a fim de conhecê-los, mas que em momento algum se
manifesta nos próprios corpos como uma característica per­
ceptível2 1 . O cosmos não representa uma esfera perfeita, nem

20. "Se alguém estivesse no sol, não lhe apareceria a mesma claridade
como para nós: para o corpo do sol, assim observado, portanto, alguém tem
algo como uma terra mais central e algo como uma circunferência brilhante
e, no meio, como uma nuvem aquosa e o ar mais claro ( . . . ) de onde a terra,
se alguém estivesse fora da região do fogo, apareceria na circunferência da
sua região por meio do fogo como uma estrela brilhante, da mesma forma
como a nós, que estamos próximos da região da circunferência do sol, ele
nos parece muito brilhante." De docta ignorantia, I I , 1 2 (foi. 39 s.)
2 1 . Essas ponderações, através das quais Nicolau de Cusa abala a es­
trutura do edifício cósmico construído por Aristóteles, encontram-se ex­
pressas com toda a clareza e rigor em Platão: "Então", disse eu, "precisa­
mos usar toda a gama de brilhos dos céus como modelo para o estudo das
realidades, assim como deveria fazer quem encontrasse diagramas dese­
nhados com cuidado especial pelo próprio Dédalo ou algum outro artífice
ou pintor. Alguém entendido de geometria que visse tais desenhos admi­
tiria a beleza da obra, mas acharia absurdo examiná-los seriamente na ex­
pectativa de encontrar neles a verdade absoluta com relação aos iguais ou
NICOLA U DE CUSA 45

tampouco descreve uma órbita rigorosamente exata, mas per­


manece, como tudo o que é perceptível pelos sentidos, na
esfera da indeterminação, do mero "mais e menos". Partindo
de tais premissas metodológicas, Nicolau de Cusa chega às
considerações centrais da nova cosmologia. A terra se movi­
menta e tem uma forma esférica, mas nem a sua forma nem
o seu movimento são de natureza tal que possam ser deter­
minados com precisão matemática absoluta. Entretanto, como
ela divide com tudo o quanto existe na natureza visível essa
posição de estar aquém da perfeição incondicionada do con­
ceito geométrico, não deve ser considerada, no interior des­
sa mesma natureza, algo inferior e desprezível. Ela é, mui­
to mais, um astro nobre, ao qual correspondem luz e calor e
uma atividade própria e diferente da de todos os outros as­
tros; do mesmo modo como no sistema de relações do cosmos
nenhuma parte é dispensável, cada uma delas possuindo o seu
tipo peculiar de atividade e, por conseguinte, seu valor pró­
prio e incomparável22. Nesse quadro de relações, pode-se per-

duplos de qualquer outra proporção." "Que outra coisa poderia ser senão
um absurdo?", ele disse. "Você não acha", disse eu, "que alguém que fos­
se um astrônomo realmente sentiria da mesma forma quando ele voltasse
seus olhos para os movimentos dos astros?" Ele admitiria que o artista do
céu o elaborou e a tudo que ele contém da melhor maneira possível para
isso; mas quando vem para as proporções do dia e da noite, da relação dos
dois com o mês, do mês com o ano, das outras estrelas com estes, você não
supõe que ele olhará como uma pessoa muito estranha o homem que acre­
dita que essas coisas continuarão para sempre sem mudanças ou sem o
menor desvio - embora eles possuam corpos e sejam obj etos visíveis - e
que sua indagação contínua é a realidade dessas coisas?
22. "A figura da terra é, portanto, móvel e esférica e seu movimen­
to é circular, mas poderia ser perfeito. E porque o máximo das perfeições,
dos movimentos e das figuras não existe no mundo, como fica evidente
do que já foi dito acima, então não é verdade que a terra seja totalmente
vil ou inferior. . A terra é, de fato, uma estrela nobre, que tem outra lumi-
.
46 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ceber claramente que, para Nicolau de Cusa, a nova orien­


tação astronômica, que leva à abolição da cosmovisão geo­
cêntrica, nada mais é do que a conseqüência e a expressão de
uma mudança na orientação geral do espírito. Este entrela­
çamento íntimo já se manifesta na fórmula de que se veste
o pensamento basilar da cosmologia de Nicolau de Cusa em
De docta ignorantia. É vã a tentativa de procurar um centro
físico para o mundo, pois assim como ele não possui uma for­
ma geométrica de contornos fixos, mas se estende no espa­
ço rumo ao indeterminado, também não possui um centro
num local determinado. Assim, a questão de saber se o mun­
do possui um centro, se é que ela pode ser colocada, não pode
mais ser respondida pela fisica, mas pela metafisica: Deus é
o centro da terra e de todas as esferas celestes, do mesmo
modo como também é o centro de tudo o que existe no mun­
do. E na condição de centro de tudo, também Deus deve ser
caracterizado como a circunferência infinita do mundo, pois
sua essência engloba a essência de todas as outras coisas23.

nosidade, e calor, e influência, distinta de todas as outras estrelas ( ... )


Assim, certamente Deus bendito criou todas as coisas, para que, cada uma
esforçando para conservar seu ser, como uma graça divina, faça isso em
comunhão com os outros, assim como o pé não serve somente a si mes­
mo, mas ao olho, e às mãos, e ao corpo, e ao homem inteiro, só porque exis­
te para que se ande, e da mesma forma o olho e os demais membros: da
mesma forma, as partes do mundo. Platão porém disse que o mundo é um
animal, cuja alma, se concebida como Deus, mesmo sem imersão, muitas
das coisas que dissemos a ti serão claras." De doe ta ignorantia, II, 1 2.
23. "A terra não é centro, portanto, nem da oitava esfera nem da ou­
tra, e o fato de aparecerem seis signos sobre o horizonte não implica tam­
bém estar a terra no centro da oitava esfera ( . . . ) O próprio centro do mun­
do também não está mais dentro da terra do que fora, tampouco qualquer
esfera tem centro, pois, como o centro é o ponto eqüidistante da circun­
ferência e não é possível que exista a mais verdadeira esfera ou círculo,
que não se possa dizer mais verdadeiro que outra, então é evidente que não
NICOLA U DE CUSA 47

Para Nicolau de Cusa, porém, esta noção fundamental tem


um sentido ao mesmo tempo natural e intelectual, fisico e
"espiritual". Se a nova forma da cosmologia nos ensina que
na ordenação do cosmos não existe um "em cima" e um "em­
baixo" absolutos, que nenhum corpo está mais distante ou
mais próximo da fonte divina de origem do ser, mas que to­
dos estão "diretamente ligados a Deus", isso significa que a
uma tal idéia corresponde uma nova forma de religião e de
sentimento geral religioso. Nesse sentido, podemos estabe­
lecer um paralelo direto entre as ponderações de Nicolau de
Cusa sobre cosmologia, contidas em De docta ignorantia, e
as concepções filosófico-religiosas por ele desenvolvidas em
De pacefidei ( 1 454). Do ponto de vista de seu conteúdo, as
duas obras exploram domínios completamente diferentes;
nem por isso, porém, deixam de ser reflexos diferentes de
uma única e mesma visão sistemática fundamental. Do mesmo
modo como antes se tiraram conclusões do princípio de docta
ignorantia para o conhecimento do mundo, o mesmo será
feito agora com relação ao conhecimento de Deus. Se o uni­
verso se resolve numa diversidade infinita de movimentos
infinitamente diferentes, cada um deles girando em tomo de
seu próprio centro e, não obstante, mantidos unidos pela sua
relação a uma causa comum e pela sua subordinação a uma
mesma lei universal, o mesmo também vale para o ser espi­
ritual. Cada ser espiritual está centrado em si : e é exatamen-

se possa falar de centro que ao mesmo tempo não se diga mais verdadei­
ro e mais preciso. A eqüidistância precisa entre as coisas diversas não é
encontrada fora de Deus, porque somente Ele é a igualdade infinita. Quem,
portanto, é o centro do mundo, a saber, Deus bendito, é o centro da Terra
e de todas as esferas e de todas as coisas que há no mundo, que é ao
mesmo tempo a circunferência infinita de todas as coisas. " De docta igno­
rantia, II, foi. 3 8 .
48 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

te este seu centro próprio, esta sua individualidade inaliená­


vel, que lhe assegura sua participação no divino. A individua­
lidade não é uma mera /imitação; ao contrário, ela representa
um valor singular, que não deve ser nivelado ou extinto, por­
que só através dela podemos compreender essa noção de uni­
dade, que está "além do ser". Essa idéia é a única coisa que,
no ver de Nicolau de Cusa, permite realizar a teodicéia das
formas e dos usos religiosos pois, graças a ela, a multiplici­
dade, a diferença e a heterogeneidade dessas formas não mais
são vistas como contradição à unidade e à universalidade da
religião, mas sim como expressão necessária dessa mesma uni­
versalidade. A obra De pacefidei se nos coloca esta concep­
ção fundamental in concreto diante dos olhos. Os emissários
de todos os povos e de todas as facções religiosas se apre­
sentam diante de Deus para implorar-lhe que apazigúe os con­
flitos que os separam. Mas o que significam esses conflitos,
já que todas as religiões visam ao mesmo objetivo unificador,
à mesma e simples existência de Deus? "O que pede aquele
que vive, senão o viver? O que pede, aquele que é, senão con­
tinuar sendo? Ora, Tu que tens o poder de dar a vida e a exis­
tência, Tu também és aquele que todos parecem buscar em
rituais diferentes, de formas diferentes; Tu és aquele a quem
chamam de diferentes nomes e que, não obstante, permanece
desconhecido e inefável. Porque Tu, que és força infinita, na­
da tens daquele que criastes, nem pode Tua criatura entender
o conceito de Tua infinitude, pois entre o finito e o infinito
não há qualquer relação. Mas Tu, Deus Todo-Poderoso, invi­
sível a todo espírito, és capaz de Te fazeres visível àquele de
forma a poderes ser entendido. Não Te mantenhas oculto por
mais tempo, ó Senhor; tem compaixão e revela o Teu rosto:
e todos os povos serão salvos. Pois ninguém se furta de Ti,
Senhor, senão porque não Te conhece. Se ouvires este nosso
clamor, então a espada, o ódio, a inveja e todo o mal desapa-
NICOLA U DE CUSA 49

recerão e todos verão que só existe uma religião em meio à


multiplicidade dos ritos. E caso essa multiplicidade de ritos
não sej a suprimida, ou não sej a conveniente suprimi-la para
que a diversidade mesma se transforme em estímulo à devo­
ção e cada país se dedique com fervor ainda maior a seus
usos, como se eles fossem os que mais aprazem a Deus, en­
tão, já que és Um, que haj a apenas uma religião e uma ado­
ração a Deus."24 Mantém-se de pé, assim, o postulado de uma
religião universal, o postulado de uma "catolicidade" que
abarque o mundo inteiro; em contraposição à visão cristã da
Idade Média, porém, ele adquire agora um sentido e uma fun­
damentação inteiramente novos. O próprio conteúdo da fé,
à medida que é sempre e necessariamente fruto da represen­
tação humana, transforma-se em conjectura : ele está subor­
dinado à condição de só poder exprimir o ser uno e a verda­
de una através da alteridade25. Desta alteridade, que está fun­
damentada no tipo e na essência do próprio conhecimento
humano, nenhuma forma específica de fé pode subtrair-se.
Não se trata mais, portanto, de se opor a uma "ortodoxia"
de validade e obrigatoriedade gerais uma profusão de meras
"heterodoxias"; trata-se, antes, de se reconhecer a alteridade,
a Etepov [ héteron] (outro) como o momento básico da pró­
pria õóÇa [dóxa] (opinião). A verdade, que em si permanece
incompreensível e inacessível, não pode ser conhecida, senão
em sua alteridade: cognoscitur inattingibilis veritatis unitas
in alteritate conjecturali26 (conhece-se a unidade da verda­
de inatingível na alteridade conjectural). Dessa concepção
fundamental resulta para Nicolau de Cusa uma "tolerância"
verdadeiramente grandiosa, que nada tem a ver com indife-

24. De pace fidei, Cap. I (foi. 862 s . ) .


25. Cf. De conjecturis, l, 1 3 (vide também nota 1 8, p. 39 deste livro).
26. De conjecturis, !, 2 (foi. 76).
50 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

rença. Com efeito, a maioria das formas de fé deixa de ser to­


lerada como mera justaposição empírica, para ser especulati­
vamente exigida e fundamentada numa teoria do conhecimen­
to. No diálogo De pace fidei, um dos enviados dos povos, um
tártaro, levanta contra a planejada união das crenças a objeção
de que ela não seria viável em vista das diferenças radicais não
apenas nas concepções teóricas fundamentais, mas também
nos usos e costumes. Pode haver contradição maior do que o
fato de uma religião permitir, e até obrigar, a poligamia, ao
passo que outra a considera um ato criminoso? Ou o fato de
que no sacrificio da missa cristã se derrame o sangue de Cristo
e se reparta o Seu corpo, enquanto para os não-cristãos este
ato de devorar o que há de mais sagrado se lhes apresenta
como nefasto e deplorável? "Assim, não entendo como tudo is­
so, que muda de acordo com o tempo e o lugar, pode resultar
numa unidade: e enquanto ela não ocorrer, a perseguição tam­
bém não terá fim, pois a diversidade gera a separação e a hos­
tilidade, o ódio e a guerra." Contra esta objeção, porém, invo­
ca-se agora a palavra divina de Paulo para proferir sua senten­
ça. É preciso mostrar - assim se enuncia a sua sentença - que
a salvação da alma não se dá por suas obras, mas por sua /é;
pois Abraão, o pai de todos os que crêem, sejam eles cristãos,
árabes ou judeus, acreditava em Deus e isso foi sua justificati­
va. Portanto, também caem por terra as barreiras externas :
anima justi haereditabit vitam aeternam (a alma do justo
herdará a vida eterna). Uma vez admitido isso, a diversidade
de ritos deixa de constituir um empecilho, pois todas as insti­
tuições e todos os usos e costumes nada mais são do que sig­
nos da verdade da fé, e só esses signos estão sujeitos a trans­
formações, a modificações, não os seus referentes27. Não exis-

27. De pacefidei, Cap. XV: "Convém que se ostente, não por meio de
obras, mas por meio da fé, apresentar-se a salvação da alma. De fato, Abraão,
NICOLA U DE CUSA 51

te forma de fé que sej a tão inferior, tão desprezível a ponto


de não encontrar nessa noção básica a sua j ustificativa rela­
tiva. Dela não se exclui até mesmo o politeísmo puro, pois a
premissa da veneração de deuses é sempre o pensamento, a
idéia do divino28. Podemos ver que, para Nicolau de Cusa,
o cosmos das religiões apresenta a mesma proximidade e a
mesma distância em relação a Deus, a mesma identidade in­
violável e a mesma alteridade insuprimível, a mesma unidade
e a mesma particularidade com que já nos deparamos antes
quando enfocamos a imagem do cosmos tisico.
E este pensamento vai mais além, à medida que, da par­
ticularidade que se nos revela na natureza e nas formas his­
tóricas do espírito, ele nos conduz à particularidade última,
ao indivíduo propriamente dito. Do ponto de vista religioso,
também o indivíduo não constitui uma oposição ao universal,
e sim sua verdadeira realização. A formulação e a exposição
mais claras dessa noção fundamental nos são dadas por Nico­
lau de Cusa em sua obra De visione Dei, que ele dedicou aos
monges do Tegernsee. Mais uma vez revela-se aqui aquela
forma de instrução simbólica que lhe é característica. Se Goe­
the vê a essência do símbolo na revelação concreta e viva do
imperscrutável, Nicolau de Cusa já havia pensado e percebi-

pai da fé e de todos os crentes, dos cristãos, dos árabes e dos judeus, creu
em Deus e foi-lhe feita a justiça: a alma do justo herdará a vida eterna. Uma
vez admitido isso, aquelas variedades de ritos não trarão mais problemas,
de fato foram estabelecidos e recebidos como signos sensíveis da verdade da
fé: os signos, porém, têm a variação, não o significado."
2 8 . De pacejidei, Cap. V I : "Todos aqueles que, um dia, cultuaram
muitos deuses, pressupuseram haver uma divindade. Adoram-na, de fato,
em todos os deuses, assim como o fazem nos que dela participam. De mo­
do que se a brancura não existisse não haveria coisas brancas, da mesma
forma, não existindo a divindade, não haveria deuses. Logo, o culto dos deu­
ses declara haver a divindade ."
52 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Auto-retrato de Roger van der Weyden. Da Cena de Gregório


da Prefeitura de Bruxelas, segundo cópia do Museu de Berna.
NICOLA U DE CUSA 53

do isso de forma semelhante. Ele sempre procura associar o


geral e o universal ao individual, ao que nos apela diretamen­
te aos sentidos. No início de sua obra, ele menciona um au­
to-retrato de Roger van der Weyden, que ele viu na Prefeitura
de Bruxelas, e que possuía a característica de dirigir o olhar
diretamente ao observador, não importando o ponto em que
este se encontrava29.
Podemos imaginar um quadro desse tipo pendurado na
sacristia do mosteiro, na parede norte, digamos, e os monges
em semicírculo ao redor dele, cada um deles acreditando que
os olhos representados no quadro estão voltados diretamente
para si. E não podemos atribuir ao quadro apenas um olhar
que se volta para o sul, para o oeste e para o norte ao mes­
mo tempo, mas também um triplo estado de movimento, pois
enquanto ele parece estar em repouso para o observador pa­
rado, os olhos retratados acompanham o observador que se
movimenta, de sorte que, se um monge caminha do leste
para o oeste, e um outro do oeste para o leste, os olhos do
retrato participam desses dois movimentos contrários. Vemos,
portanto, que um mesmo rosto imóvel move-se para o leste
e ao mesmo tempo para o oeste, para o norte e ao mesmo
tempo para o sul: vemos que ele, fixo num lugar, está ao mes­
mo tempo em todos os outros lugares e que, percebido em
movimento, realiza ao mesmo tempo todos os outros movi­
mentos. Assim, numa metáfora que apela aos sentidos, re­
vela-se perante nossos olhos a natureza da relação funda-

29. Confonne me infonnou gentilmente Erwin Panofsky, o auto-re­


trato de Roger van der Weyden não existe mais. Dele resta hoje apenas uma
antiga cópia em gobelin, que se encontra no Museu de Berna. H. Kauffmann
(Repertorium für Kunstgeschichte, 1 9 1 6) foi quem encontrou essa cópia
com base na menção que dela é feita em De visione Dei. Um outro quadro,
também mencionado por Nicolau de Cusa, mas desta vez da Prefeitura de
Nümberg, desapareceu e não pôde mais ser reconstituído.
54 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

mental que existe entre Deus, o ser que tudo abarca, o ser
do infinito, e a singularidade última. Cada ser singular e in­
dividual está numa relação direta com Deus; está, por assim
dizer, de olhos nos olhos com ele. O verdadeiro sentido do
divino, porém, só se revela quando nosso espírito não se de­
tém em uma dessas relações nem em sua mera totalidade,
mas quando as reúne na unidade de uma intuição, de uma vi­
sio intellectualis (visão intelectual). Compreendemos, então,
que seria um contra-senso sequer pensarmos no absoluto em
si, sem que tal determinação se processasse a partir de um
"ponto de vista" individual; por outro lado, compreendemos
também que nenhum desses pontos de vista possui a primazia
sobre o outro, pois só a sua totalidade concreta é capaz de nos
proporcionar uma imagem verdadeira do todo. Nesta totali­
dade estão contidas todas as visões individuais, reconhecidas
ao mesmo tempo tanto em sua contingência quanto em sua
necessidade. Assim, é natural que não exista para nós uma
concepção de Deus que não sej a condicionada tanto pela na­
tureza do "objeto" quanto pela do "sujeito"; que não reúna
em si ao mesmo tempo o visto e o modo e a direção especí­
ficos do ver. Cada um só é capaz de ver-se em Deus, assim
como Deus só é capaz de ver-se em si mesmo. Nenhuma ex­
pressão quantitativa, nenhuma expressão associada à oposi­
ção "parte" e "todo" é suficiente para designar essa relação
de pura integração recíproca. "Teu rosto verdadeiro não co­
nhece limitação, não é deste tamanho nem desta qualidade,
nem espacial nem temporal, pois é forma absoluta, é o ros­
to de todos os rostos. E ao perceber que Teu rosto é a verda­
de e a medida mais adequada de todos os rostos, sou tomado
por um sentimento de admiração. Pois Teu rosto, que é a ver­
dade de todos os rostos, não é deste ou daquele tamanho, não
é, portanto, nem mais nem menos, nem é igual a um outro
qualquer, porque é absoluto e está além de toda e qualquer
grandeza. Entendo, assim, ó Senhor, que Teu rosto precede a
NICOLA U DE CUSA 55

todo e qualquer rosto visível, que e l e é a verdade e o para­


digma de todos os rostos. Portanto, cada rosto, cujos olhos se
voltem para o Teu, nada vê de diferente senão o seu próprio
rosto, porque vê sua própria verdade. Assim como a mim,
quando contemplo este quadro de um ponto a leste, me pare­
ce que não sou eu a contemplá-lo, mas ele a me contemplar,
o mesmo ocorrendo se o contemplo de um ponto ao sul ou a
oeste, também o Teu rosto está voltado para todos os que Te
olham. Quem, portanto, Te olha com amor sente o Teu olhar
cheio de amor dirigido a si; e quanto maior for o amor nos
olhos daquele que Te vê, tanto maior é o amor que parte dos
Teus olhos em direção a ele. Quem te olha com ira encontra­
rá irado o Teu rosto; quem Te olha com alegria encontrará Teu
rosto iluminado de júbilo. Pois assim como o mundo se reve­
la vermelho aos olhos do corpo que o observam por detrás de
uma lente vermelha, os olhos do espírito, em sua limitação,
vêem a Ti, meta e obj eto da observação espiritual, de acordo
com a natureza de sua própria limitação. Pois o homem não é
capaz de julgar, senão como ser humano ( ... ) Da mesma forma,
se um leão Te desse um rosto, na certa daria o de um leão; o
bezerro o de um bezerro, a águia o de uma águia. Ó Senhor,
quão maravilhoso é o Teu rosto, que se revela jovial ao jovem,
maduro ao homem e senil ao velho que te queiram entender.
Em todos os rostos, o rosto de todos os rostos se manifesta sob
um véu; e, como num enigma, não pode ser visto descoberto
enquanto, para além e acima de todos os rostos, não se pene­
trar naquele silêncio profundo e misterioso, no interior do qual
nada mais resta do conhecimento e do conceito de rosto."3º
Esta passagem de De visione Dei nos coloca no foco da
especulação de Nicolau de Cusa e deste ponto em diante é
possível enxergar com toda a clareza a relação dessa espe-

30. De visione Dei, Cap. VI, foi. 1 85 s.


56 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

culação com as forças espirituais fundamentais da época. Três


forças houve que tiveram influência já no início da formação
do jovem Nicolau de Cusa e que determinaram de forma deci­
siva o desenvolvimento de sua doutrina. Sua primeira educa­
ção ele a recebeu junto aos "irmãos da vida comum", em De­
venter, círculo em que ganhou vida pela primeira vez um novo
tipo de devoção pessoal, o ideal da devotio moderna3 1 (devo­
ção moderna). Durante esse primeiro convívio, Nicolau de
Cusa entrou em contato pela primeira vez com o espírito da
mística alemã em toda a sua profundidade especulativa e em
toda a sua força primordial religiosa e moral . Mesmo histo­
ricamente é possível seguir com clareza os fios da meada que
associam a forma de vida religiosa que era cultivada em De­
venter com a mística alemã: Gerard Groote, o fundador da ir­
mandade da vida comum, encontra-se em estreito contato com
Ruysbrock32, cuja visão fundamental, por sua vez, remonta
diretamente a Eckhart. Os próprios escritos de Nicolau de
Cusa são um testemunho constante da influência eficaz que
a doutrina de Eckhart exerceu sobre ele, bem como da dire­
ção que essa influência tomou33 . Com a força de um senti-

3 1 . Para um aprofundamento acerca dos "Irmãos da vida comum" e


dos fundamentos da orientação religiosa da devotio moderna, cf. Mestwerdt,
Die Anfãnge des Erasmus. Humanismus und "devotio moderna ". Leipzig,
1 9 1 7, pp. 86 ss., bem como Albert Hyma, The Christian Renaissance. A
history of the "devotio moderna ", 2 vol., Grand Rapids, Michigan, 1 924.
32. Sobre Gerard Groote e suas relações com Ruysbroeck, cf. em es­
pecial Hyma (op. cit. , pp. 1 1 s.); cf. também Gabriele Dolezich, Die Mystik
Jan van Ruysbroecks des Wunderbaren (Breslauer Studien zur historischen
Theologie, IV, Breslau, 1 926), pp. 1 s.
3 3 . Das freqüentes alusões a Eckhart, particularmente importantes são
as de Apologia doctae ignorantiae (Opera, foi. 69 ss.). Para um aprofunda­
mento acerca das relações entre Nicolau de Cusa e Eckhart, cf. Vanstecn­
berghe, pp. 426 ss. e Fiorentino, op. cit. , pp. 1 08 ss.
NICOLA V DE CUSA 57

mento religioso e d e uma expressão lingüística sem preceden­


tes, ele viu aqui o conteúdo dogmático do cristianismo refun­
dir-se em conteúdo da alma individual. O mistério do Deus
feito homem não pode ser desvendado, ou mesmo caracteri­
zado, por qualquer analogia extraída do mundo da natureza
ou do mundo da história; ao contrário : a alma humana em
si, como alma individual, singular, é a instância em que se
dá o milagre do Deus que se faz homem. Este milagre não
faz parte do passado, não é algo ocorrido num e limitado a
um dado momento do tempo histórico e obj etivo, mas algo
que pode e deve se renovar em cada eu e em cada tempo.
Nas profundezas, no mais recôndito da alma é que a divin­
dade deve se dar à luz; ali é a verdadeira "manjedoura em
que nasce a divindade". Mais tarde, sempre que o místico
Nicolau de Cusa fala, ouve-se o eco desse fundamento da fé
e da devoção eckhartianas. Mas Nicolau de Cusa não se de­
tém nesse ponto. À escola da devotio moderna seguem-se,
então, primeiramente a escola do conhecimento escolástico
e depois a da teologia escolástica. Na Universidade de Heidel­
berg ele incorpora à sua formação os princípios fundamen­
tais desse conhecimento. Ali ele começa a trilhar o "novo
caminho", a via moderna introduzida em Heidelberg pouco
antes por Marsilius von Inghen, o seguidor de Occam, e que
predominou naquela escola, de forma quase incontestada, du­
rante as primeiras décadas do séc. XV34• E também aqui ele

34. Para maiores detalhes sobre o ensino ministrado na Universidade


de Heidelberg naquela época, cf. Gerhard Ritter, Studien zur Spiitscholastik
(cf. também nota 4, a pp. 20 deste livro). Curioso e interessante é o fato de,
mais tarde, os moderni de Heidelberg, em sua luta contra a via antiqua, acre­
ditarem poder se referir a Nicolau de Cusa como a um dos seus. Cf. nesse
sentido a edição de Schõffer, de 1 499, na qual Nicolau de Cusa aparece como
autoridade "moderna" ao lado de Occam, Alberto da Saxônia, Johannes
Gerson e outros (Ritter, I I , 77, nota 2).
58 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA D O RENASCIMENTO

recebe fortes estímulos, que marcaram definitivamente sua


obra: não é sem razão que Nicolau de Cusa é considerado mais
tarde pelos seus contemporâneos como um dos melhores "co­
nhecedores da Idade Média"35 . Mas a transformação espiri­
tual realmente decisiva só ocorre mais tarde, na época em que
Nicolau de Cusa residiu na Itália. Somente através do con­
tato direto com a Antiguidade e com a sua renovação na Itália
do Quattrocento é que ele viria a se transformar no que foi.
A Itália exerceu sobre a vida e o pensamento deste homem,
o primeiro filósofo sistemático alemão, o mesmo poder que,
com freqüência, exerceu mais tarde sobre a vida dos gran­
des artistas alemães. E esta influência seria maior no caso de
Nicolau de Cusa, pois ele não tinha quase quarenta anos, co­
mo Goethe, quando pisou em solo italiano, mas apenas de­
zessete. Em outubro de 1 4 1 7, quando passa a freqüentar a
Universidade de Pádua, Nicolau de Cusa vê-se cercado pe­
los ideais da nova cultura universal da época. Ele consegui­
ra escapar da surdina e da solidão do sentimento místico, e da
estreiteza da vida dos estudiosos alemães da Idade Média;
abria-se-lhe agora um mundo imenso, uma vida livre. Ali ele
mergulha na corrente da cultura humanística; ali ele adqui­
re o conhecimento do grego, que lhe possibilitou, mais tarde,

3 5 . Em sua obra Vom Mittelalter und von der lateinischen Philolo­


gie des Mittelalters (Munique, 1 9 1 4, p. 6), Paul Lehmann apresenta como
a primeira prova concreta do emprego da expressão "Idade Média" o ne­
crológio que Johannes Andrea, Bispo de Aleria, dedicou a seu amigo Ni­
colau de Cusa no ano de 1 469: "Esse homem", diz, "coisa rara entre os
alemães, mais do que se imagina, era eloqüente e dominava latim: retinha
de memória não somente todas as histórias antigas mas também as da Idade
Média, asvelhas e as recentes, até o nosso tempo." Nesse mesmo sentido,
Hartmann Schedel em sua Crônica do mundo ( 1 493) e Faber Stapulensis
no prefácio à sua edição das obras de Nicolau de Cusa ( 1 5 1 4) elogiam Ni­
colau de Cusa como o "conhecedor da Idade Média".
NICOLA U DE CUSA 59

dedicar-se a um estudo mais aprofundado de Platão e ao es­


tudo de Arquimedes e dos problemas fundamentais da ma­
temática grega. E o que difere Nicolau de Cusa de humanistas
propriamente ditos como um Poggio ou um Valla é justamen­
te o fato de seu interesse pela Antiguidade tomar uma direção
que lhe é característica: em vez de enveredar pelos caminhos
da poesia e da retórica, Nicolau de Cusa se interessa muito
mais pela filosofia e pela matemática da Antiguidade. É as­
sim que, já em Pádua, se estabelece um vínculo que o ligou
durante toda a sua vida a um dos fisicos e matemáticos ita­
lianos mais proeminentes: Paolo Toscanelli36• Pelas mãos de
Toscanelli, Nicolau de Cusa toma contato com os problemas
geográficos, cosmográficos e fisicos da época; dele, Tosca­
nelli, Nicolau de Cusa recebe os estímulos e ensinamentos
que, mais tarde, retransmitiu a matemáticos e astrônomos
alemães, a Georg Peurbach e a Regiomontam, e cuja influên­
cia se estende até Copérnico. E, juntos, esses três elementos
básicos constitutivos da formação de Nicolau de Cusa recla­
mam agora um equilíbrio intelectual, uma síntese que, à pri­
meira vista, pode parecer uma verdadeira coincidentia oppo­
sitorum, mas que, se analisada com maior cuidado, nada mais
é do que a expressão específica da questão espiritual central
do Renascimento.
O fato de o Renascimento, com suas forças espirituais e
produtivas, estar voltado para um aprofundamento da ques-

36. Sobre Toscanelli, cf. Uzielli, Paolo dai Pozzo Toscanelli. Parti­
cularmente característico para a relação de Nicolau de Cusa com Tosca­
nelli é o prefácio de sua obra De transmutationibus Geometricis: "mas co­
mo tu, incessantemente, desde os anos de nossa juventude e de nossa ado­

lescência, apertaste com o estreito nó da amizade e com um abraço cordial,


peço-te agora que apliques mais cuidadosamente teu espírito à correção
de minha obra e que não permitas que se publique em companhia de outros
( salvo se for correto)".
60 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

tão do indivíduo não carece de mais uma demonstração. O


trabalho fundamental de Burckhardt permanece inabalável
quanto a este aspecto. Por outro lado, também é verdade que
Burckhardt retratou apenas um l� desse monumental pro­
cesso de libertação, no interior do qual o homem moderno
amadurece no sentido de uma consciência de si mesmo. "Na
Idade Média, as duas faces da consciência - aquela voltada
para o mundo e a outra, voltada para o interior do próprio
homem - permaneceram num estado onírice, de semivigí­
lia, envoltas por um mesmo véu tecido de fé, timidez infan­
til e ilusão. Vistos através deste véu, o mundo e a história
pareciam tingidos por cores maravilhosas, mas o homem so­
mente se reconhecia a si mesmo como raça, povo, partido,
corporação, família ou qualquer outra forma de coletivida­
de. É na Itália que, pela primeira vez, este véu se rasga e
alerta para uma observação e um tratamento objetivos do
Estado e de todas as coisas deste mundo; paralelamente a
isso, porém, eleva-se em toda a sua puj ância o subjetivo: o
homem se transforma num indivíduo espiritual e se reco­
nhece como tal."37 Nicolau de Cusa participa plenamente
dessa forma objetiva de observação, que acabara de nascer,
bem como desse aprofundamento da subj etividade. A gran­
deza de sua obra e o sentido histórico de seu feito, porém, não
residem no fato de ele operar essa transformação em oposi­
ção às noções religiosas fundamentais da Idade Média, mas
de fazê-lo justamente a partir do ponto de vista de tais no­
ções fundamentais. A partir do núcleo mesmo desse universo
religioso é que ele traz à luz a "descoberta da natureza e do
homem" e neste núcleo mesmo ele tenta alicerçá-la e anco­
rá-la. O místi<;o e teólogo, que Nicolau de Cusa é e continua

37. Burckhardt, Kultur der Renaissance8, 1 , 1 4 1 .


NICOLA U DE CUSA 61

sendo, sente-se à altura do mundo e da natureza, da história


e da nova cultura secular e humana. Em vez de rechaçá-los,
ele os inclui em sua própria esfera de pensamento, à medida
que avança mais e mais em sua direção. Tal processo pode
ser acompanhado desde os primeiros passos de Nicolau de
Cusa. E, embora neles ainda predomine o tema do xcoptcrµóç
[ khorismós] (divisão) de Platão, o tema da µé0EÇtç [ méthe­
xis] (participação) vai aos poucos assumindo a primazia nas
obras surgidas posteriormente. Nelas, o "ápice da teoria" se
revela, para Nicolau de Cusa, no entendimento de que a ver­
dade, que no início ele buscara na obscuridade da mística, que
ele definira como oposição a toda a diversidade e transforma­
ção, manifesta-se no interior deste mesmo domínio da diver­
sidade empírica, clama pelas ruas3s. Com vigor cada vez mais
intenso, irrompe na obra de Nicolau de Cusa este novo sen­
timento de mundo e, atrelado a ele, o otimismo religioso que
lhe é característico. O conceito de "panteísmo" não abarca

3 8 . De apice theorie (foi. 3 3 2 s.): "Se a qüididade, que sempre foi,


que é e que será pesquisada, fosse completamente ignorada, como seria
pesquisada? ( . . . ) Então como durante anos, vi que era preciso pesquisá-la
além de toda força cognitiva; diante de toda variedade e de toda oposição,
não dirigi a atenção para o fato de ser a qüididade subsistente em si, sub­
sistência de todas as substâncias invariáveis, por isso nem multiplicável
nem plurificável, e que, portanto, a qüididade não é outra e outra para ou­
tros seres, mas a mesma hipóstase para todos. Em seguida eu vi que era
necessário admitir que a própria hipóstase das coisas, ou sej a, sua subsis­
tência, era seu poder-ser. E porque pode ser, ela não pode ser sem seu pró­
prio poder-ser ( . . . ) Verdade é tão mais fácil quanto mais clara. Eu pensa­
va outrora em descobri-la melhor na obscuridade ! A verdade é de um
grande poder, nela o próprio poder-ser se toma muito visível : costuma
gritar nas praças, como tu leste muito certamente no De idiota: mostra-se
a si mesmo para se encontrar facilmente em todas as partes." Cf. especial­
mente ldiotae, Lib. l , foi. 1 3 7 s.
62 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

com precisão esse novo sentimento de mundo, pois a oposi­


ção entre o ser de Deus e o ser do mundo não deve ser apaga­
da, e sim mantida em toda a sua força. Como nos ensinou a
obra De visione Dei, porém, a verdade do universal e a parti­
cularidade do indivíduo encontram-se de tal sorte compene­
trados que o ser divino não pode ser visto e entendido senão
através de pontos de vista individuais e infinitamente di­
versificados; da mesma forma, também só podemos enxer­
gar o ser que se encontra diante de toda limitação, de toda
"contração", dentro dessa mesma limitação. O ideal que o
nosso conhecimento pode almejar, portanto, não é o de ne­
gar ou descartar a particularidade, mas sim o de desenvol­
vê-la em toda a sua riqueza, pois só a totalidade dos rostos
é capaz de nos revelar a visão única do divino. O mundo se
transforma em símbolo de Deus não à medida que dele des­
tacamos qualquer uma de suas partes e lhe atribuímos um
signo especial de valor, mas sim à medida que o percorremos
na totalidade de suas formas e nos entregamos livremente à
sua diversidade, às suas oposições. O lugar especial que Ni­
colau de Cusa ocupa na história eclesiástica e na história ge­
ral das idéias reside justamente no fato de ele não apenas ter
respondido perfeitamente a essa exigência especulativa por
ele estabelecida - conforme demonstra a evolução de seu pen­
samento -, mas de tê-lo feito no interior da própria Igrej a.
Mais tarde, quando a Igrej a católica, tomada de assalto pelo
protestantismo, se viu impelida a fechar-se em si mesma e a
acirrar o conteúdo tradicional de seus dogmas, ela também se
viu compelida a banir esses novos pensamentos e tendências
que, na obra de Nicolau de Cusa, ainda são concebidos e tra­
tados a partir de um ponto de vista religioso. As doutrinas
cosmológicas que em 1 440 Nicolau de Cusa apresentou em
De docta ignorantia foram as mesmas que, mais de cento
e cinqüenta anos depois, levaram à morte Giordano Bruno e
NICOLA U DE CVSA 63

fizeram com que Galileu sofresse a perseguição da Igreja e fos­


se excomungado. Assim, a filosofia de Nicolau de Cusa en­
contra-se numa estreita zona fronteiriça entre tempos e mo­
dos de pensar diversos. E esta constatação se confirma não
apenas quando se confronta a sua doutrina com a do século
seguinte, mas também com a do século precedente. O resulta­
do desse confronto, com efeito, é o fato de que, de modo sin­
gular e único, o individualismo religioso, cuja fonte primor­
dial está na mística, particularmente na mística alemã de um
Eckhart e de um Tauler, se encontra e entra em entendimento
com o individualismo secular, com o ideal da nova cultura e
da nova humanidade. Os primeiros sinais desse entendimento
remontam ao Trecento. A vida e a filosofia de Petrarca mo­
vem-se constantemente ao redor desses dois focos, insistem
na luta por um equilíbrio entre os postulados humanistas da
Antiguidade e os religiosos da Idade Média. Mas Petrarca não
consegue alcançar um ponto de repouso nesta luta, um equi­
líbrio interior entre essas tendências antagônicas. Todo o en­
canto e toda a vivacidade dos diálogos de Petrarca consistem
muito mais do fato de eles nos colocarem no centro mesmo
dessa luta; de eles, incessante e infatigavelmente, entregarem
o Eu ao sabor de forças espirituais antagônicas. O mundo in­
terior de Petrarca permanece dividido entre Cícero e Santo
Agostinho. Dessa forma, ele tem de rejeitar, de um lado, aqui­
lo a que visa de outro; tem de depreciar, do ponto de vista
religioso, aquilo que para ele constitui o conteúdo e o valor
espiritual da vida. Todo ideal humanista mundano - glória,
beleza, amor -, aos quais ele se encontra ligado pelas fibras
de seu Eu, não escapam desse veredito. Mas justamente dis­
so resulta esse desequilíbrio do Eu espiritual, essa enfermi­
dade da alma que Petrarca descreveu em seu diálogo De se­
creto conflictu curarum suarum, sua obra mais pessoal e mais
profunda. O resultado desse conflito é, em última análise, ape-
64 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

nas a renúncia, o tédio deste mundo, a acedia. A vida - o pró­


prio Petrarca assim descreveu esse estado de alma - trans­
forma-se em sonho, em fantasma39: ele enxerga a sua própria
nulidade, mas não consegue dela escapar. É impossível en­
contrar em Nicolau de Cusa um vestígio sequer de tal contra­
dição interior, do pessimismo e do ceticismo em que termi­
na Petrarca. Em meio a lutas as mais difíceis - como no con­
flito com o Arquiduque Sigismundo da Áustria, que acaba
por levá-lo à prisão -, quando Nicolau de Cusa anseia por
ver-se livre do fardo das preocupações mundanas, quando
sonha com sua cela no mosteiro de seus amigos, os monges
de Tegernsee4º, mesmo nesses momentos a sua vida como
um todo está absolutamente voltada para a atividade, para a
produtividade. Do começo ao fim, sua vida foi preenchida
por grandes proj etos e tarefas de política mundial, por re­
formas práticas e pela pesquisa filosófico-científica. E é jus­
tamente dessa atividade efervescente que irrompe o pensa­
mento fundamental de sua especulação . Aquilo que na sua
atividade prática parece dissociado, deve se unir neste pen­
samento, pois a essência de tal pensamento é justamente ex­
por as oposições para depois conciliá-las, para suprimi-las e
dominá-las no princípio da coincidentia oppositorum, "coin­
cidência dos opostos".
Neste ponto, em que se trata de decidir definitivamen­
te entre os pressupostos religiosos de Nicolau de Cusa e os
ideais do mundo e as forças culturais que sobre ele atuam,
um aspecto de sua doutrina talvez deva ser caracterizado co-

39. Epistolae rerumfamiliarium I I , 9, a Giacomo Colonna (cf. Voigt,


op. cit. , !, 1 36).
40. Cf. a carta a Gaspar Aindorffer datada de 16 de setembro 1 454
(em Vasteenberghe, Autour de la docte ignorance, p. 1 39).
NICOLA U DE CUSA 65

mo o mais notável e o mais difícil de toda a sua filosofia.


Para N icolau de Cusa, a decisão está em simplesmente se
aprofundar o conteúdo fundamental do próprio cristianismo.
A idéia de Cristo é invocada por ele para j ustificar, legitimar
religiosamente e sancionar a idéia de humanidade. Até o mo­
mento se tem compreendido tão pouco o terceiro livro de
De docta ignorantia, no qual essa mudança se processa, que
se tentou separá-lo do todo da filosofia de Nicolau de Cusa;
que se pretendeu considerá-lo um apêndice arbitrariamente
"teológico", cuj a origem se deve a um interesse puramente
dogmático4 1 • Divisões dessa natureza, comuns entre nós, não
podem ser introduzidas na doutrina de Nicolau de Cusa sem
que destruam toda a sua coerência interna, sem que anulem
sua estrutura espiritual característica. Na verdade, a idéia de
Cristo, introduzida e tratada de forma especulativa no interior
de De docta ignorantia, está longe de constituir um apêndi­
ce desvinculado de todo o resto; ao contrário : é só através
dela que a força motriz do pensamento de Nicolau de Cusa
ganha uma expressão e um desenvolvimento plenos. De fa­
to, encontramo-nos aqui no verdadeiro ponto de transição,
de mudança dialética de seu pensamento fundamental, cuj o
obj etivo era o de estabelecer uma divisão precisa entre o con­
dicionado e o incondicionado, entre o humano e o divino, en­
tre o finito e o infinito. Nenhum dos dois momentos pode ser
reduzido ao outro; nenhum deve ser medido pelo outro. Des­
ta forma, não resta ao conhecimento humano, finito, outra
atitude diante do absoluto senão a de resignar-se, senão a de
conformar-se totalmente . Mas justamente essa resignação

4 1 . Mais uma vez, este foi o julgamento proferido recentemente por


T. Whittaker em seu artigo intitulado "Nicholas of Cusa". Mind, XXX I V
( 1 925), pp. 439 s .
66 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

encerra agora um momento positivo . Se o c;;enhecimento hu­


mano chega ao não-conhecimento do absoluto, pelo menos
agora ele ganha a oorn;c iênGia desse não-conhecimenkl . Ele
não é capaz de conhecer a unidade absoluta em sua essên­
cia mais pura, mas passa a conhecer-se a si mesmo em sua
diferença em relação àquele, em sua plena "alteridade". E jus­
tamente essa alteridade encerra em si uma relação com este
pólo negativo do conhecimento. Sem uma tal relação, o co­
nhecimento não seria capaz nem mesmo de reconhecer sua
própria nulidade: ele não seria capaz - como diria Hegel, cuja
base de pensamento Nicolau de Cusa antecipa aqui com
admiráwl perspicácia - de estabelecer limites, se, num cer­
to sentido, já não os tivesse vencido. A consciência da dife­
rença encerra em si a mediação da diferença. Essa mediação,
porém, mais uma vez não significa que o infinito, o ser abso­
luto, passa a estabelecer algum tipo de relação com a auto­
consciência empírica, finita. Novamente abre-se aqui um abis­
mo intransponível. O ser empírico cede lugar ao ser universal ;
o homem, como existência singular, individual, tem de ce­
der lugar ao conteúdo espiritual da humanidade. E este con­
teúdo universal e espiritual da humanidade, Nicolau de Cusa
o enxerga em Cristo . Somente o Cri sto encarna, portanto, a
verdadeira natura media, que reúne numa unidade finito e
infinito . E esta unidade não é fortuita, mas essencial, quer di­
zer, ela não estabelece uma simples "relação" de fato entre o
que em si é diferente, mas reclama uma relação primordial e
necessária entre os dois momentos opostos. A "natureza me­
diata" que aqui se postula terá de ser de tal ordem que englo­
be em si o superior e o inferior em sua totalidade; que, na con­
dição de máximo do mundo inferior e mínimo do superior,
encerre em si a totalidade do universo em todas as suas formas
possíveis e que - para usar uma expressão de Nicolau de Cusa
- as "complique" em si. Com isso, tal natureza se transforma
NICOLA U DE CUSA 67

no verdadeiro elo de ligação de tudo, em "nexo do mundo"42 .


Assim como Cristo é a expressão de toda a humanidade, as­
sim como ele não representa outra coisa senão a simples idéia
e a essência da humanidade, de outro lado o homem, consi­
derado em sua essência, carrega em si a totalidade das coisas.
Para ele, como microcosmos, confluem todas as linhas do
macrocosmos�3 . Note-se que o tema do microcosmos, que Ni­
colau de Cusa qualifica expressamente de um tema antigo44,
entrelaça-se aqui de forma peculiar com as idéias religiosas
que constituem o fundamento do cristianismo. No pensamen­
to medieval , o tema da redenção significa essencialmente a
libertação do mundo, a elevação do homem para além da exis­
tência inferior, sensível e terrena. Mas Nicolau de Cusa não
reconhece mais uma tal separação entre o homem e a natu­
reza. Se o homem, como microcosmos, carrega em si todas
as naturezas das coisas, então a sua redenção, a sua elevação

42. Excitai. , Lib. IX (foi. 639): "e nesta passagem entende-se a me­
diação de Cristo, que é a ligação dessa coincidência, ascensão do homem
interior em Deus e de Deus no homem".
43. De docta ignorantia, III, 3: "quanto ao máximo, com o qual coin­
cide o mínimo, convirá assim abraçar um sem deixar escapar o outro, mas
abarcar tudo ao mesmo tempo. Por isso, a natureza intermediária, que é o
meio de conexão do inferior e do superior, é a única que é conveniente­
mente elevável ao máximo, por meio da potência do máximo Deus infini­
to; de fato, ela envolverá em si todas as naturezas: o supremo do inferior
e o ínfimo do superior. Se ela mesma se eleva acima de tudo até a união
com a maximidade, é certo que todas as naturezas e todo o universo atin­
giram nela, de todo modo possível, o grau mais alto".
44. "De fato, a natureza humana é a que foi elevada acima de todas
as obras de Deus e pouco abaixo dos anjos, envolvendo a natureza inte­
lectual e sensível e encadeando todas as coisas dentro de si, de modo a ser
chamada, de maneira razoável, µtKpÓKocrµoç (mikrókosmos) ou pequeno
universo pelos antigos." (lbid. )
68 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ao divino implica em si a elevação da totalidade das coisas.


Não existe mais nada de único, de separado, de descartado,
por assim dizer, que fique excluído do processo religioso fun­
damental da redenção. Assim, não é apenas o homem que se
eleva até Deus através de Cristo, mas nele e através dele o
todo realiza a sua ascenção. O regnum gratiae (reino da gra­
ça) e o regnum naturae (reino da natureza) já não se opõem
como instâncias estranhas e hostis entre si, mas ambos es­
tão inter-relacionados e voltados ao seu obj etivo divino co­
mum. A união que se processou não foi apenas entre Deus
e o homem, mas entre Deus e todas as criaturas: a distância
entre ambos é preenchida à medida que entre o princípio cria­
dor e o criado, entre Deus e criatura, surge o espírito da hu­
manidade, o humanitas, como algo que é, ao mesmo tempo,
criador e criatura45 . Ainda que, do ponto de vista da expres­
são, N icolau de Cusa estej a vinculado à antiga "divisão do
mundo", à divisio naturae - tal como ela já tinha sido definida
por Johannes Scotus Erigena - ao estabelecer a diferença en-

45. De docta ignorantia, III, 2: "Convém, portanto, conceber pelo


pensamento que o mesmo Deus é não só criatura, concebê-lo como cria­
tura, mas também é criador, conceber que ele é criador e criatura sem
confusão nem mistura. Aquilo que pudesse elevar-se dessa maneira até
esse ponto no excelso, de modo a conceber a diversidade na unidade e a
unidade na diversidade seria essa união acima de todo entendimento." Cf.
em especial De visione Dei, Cap. XX: "Vejo em ti, Jesus, a filiação divi­
na, que é a verdade de toda filiação e, paralelamente, a mais alta filiação
humana, que é a imagem mais próxima da filiação absoluta ( . . . ) eu vejo na
tua natureza humana tudo que vejo também na tua natureza divina, mas eu
vejo existir humanamente na natureza humana o que é a própria verdade
divina na natureza divina ( . . . ) Eu te vejo, bom Jesus, dentro do muro do
Paraíso, porque teu ensinamento é igualmente verdade e imagem e que tu
és igualmente Deus e criatura, igualmente infinito e finito ( . . . ) tu és, com
efeito, a união da natureza divina criadora e da natureza humana criada."
NICOLA U DE CVSA 69

tre a natureza que cria e não é criada, a natureza que é criada


e que cria, a natureza que é criada e não cria e, finalmente, a
natureza que nem cria nem é criada, ainda assim essa sua
forma de expressão traz em si um conteúdo essencialmente
novo. Quando Erigena fala do ser criado e que, ao mesmo tem­
po, cria-se a si mesmo, o que ele entende por isso é o surgi­
mento atemporal das coisas a partir de suas idéias, de seus
protótipos e imagens primordiais eternos46. Para Nicolau de
Cusa, porém, não são as idéias - no sentido do Neoplatonis­
mo - que são tomadas como forças criadoras ; ao contrário :
Nicolau de Cusa postula um sujeito concreto como ponto cen­
tral e de partida para toda a atividade verdadeiramente cria­
dora. E este suj eito não pode se manifestar senão no espírito
do homem. É só desse ponto de vista que resulta uma nova
virada na teoria do conhecimento. Todo o conhecimento au­
têntico e verdadeiro não se volta para uma mera reprodução
da realidade, mas representa sempre uma determinada dire­
ção da atividade espiri tual. Toda a necessidade que reivindi­
camos para a ciência e, especialmente, para a matemática,
surge em virtude dessa atividade livre . O espírito só chega à
verdadeira compreensão quando se explicita a si mesmo,
quando explicita sua própria essência, e não quando mera­
mente reproduz uma existência exterior. Em si mesmo ele
encontra o conceito simples, o "princípio" do ponto a partir
do qual, por constante repetição, faz nascer a l inha, o plano
e, finalmente, todo o universo estendido; em si mesmo ele
encontra o pensamento simples do "agora", a partir do qual
se lhe descortina a infinitude da sucessão temporal. E, nesse
sentido, assim como as formas básicas da intuição - espaço

46. Cf. em especial Johannes Scotus Erigena, De divisione natu­


rae, II, 2.
70 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

e tempo - estão implícitas no espírito, também o estão os con­


ceitos de número e de grandeza, e todas as categorias lógi­
cas e matemáticas . Ao desenvolver essas categorias, o es­
pírito cria a aritmética, a geometria, a música, a astronomia.
E assim também tudo o que é lógico - os dez [predicamen­
tos ], os cinco universais etc . - está contido nessa força fun­
damental do espírito . Eles são a condição de toda a "discri­
minação", de toda a decomposição da variedade em espécies
e classes e de toda a subordinação do que se transforma em­
piricamente a leis rigidamente determinadas47. Nesta funda-

47. Para um aprofundamento desse princípio básico da teoria do co­


nhecimento de Nicolau de Cusa cf. o meu trabalho Das Erkenntnisproblem3,
1, 3 3 ss. Cf. em especial De ludo globi, Lib. II, foi. 23 1 s.: "A alma ra­
cional é o poder de envolvimento de todos os envolvimentos nocionais.
Ela envolve de fato o envolvimento da multiplicidade e o envolvimento da
grandeza, a saber, a unidade e o ponto. Pois, sem eles, a saber, a multipli­
cidade e a grandeza, não se faria qualquer discernimento. Ela envolve o
envolvimento do movimento a que se chama o repouso: pois nada se vê
em movimento se não o repouso. O movimento existe, portanto, do repou­
so ao repouso. Ela envolve o envolvimento do tempo, que se chama o agora
ou presente. Pois nada se encontra no tempo a não ser o agora. E assim em
diante, para dizer de todos os envolvimentos, ou seja, a alma racional é a
simplicidade se não o repouso de todos os envolvimentos nocionais, pois
o poder mais sutil da alma racional envolve toda complexidade na sua sim­
plicidade e sem ela não se pode fazer perfeito discernimento. Por isso é que
para discernir a multidão assimila-se à unidade, ou seja, ao envolvimento
do número e a partir de si o número desenvolve a noção de multidão. E da
mesma forma, ela se assimila ao ponto que envolve a grandeza, para desen­
volver a partir de si mesma as noções de linha, de superficie e de volume. E,
a partir desse seu envolvimento, a saber, da unidade e do ponto, desenvolve
as figuras matemáticas circulares e os polígonos. Assim se assimila ao repou­
so, para discernir o movimento ( . . . ) e como todos esses envolvimentos são
unidos nela, ela própria, como o envolvimento dos envolvimentos, de manei­
ra a desenvolver-se, discerne e mede tudo, o movimento e os campos e tudo
que é da ordem quantitativa. Também inventa as ciências, isto é, a aritmética,
a geometria, a música e a astronomia e descobre que elas são envolvidas em
NICOLA U DE CUSA 71

mentação das ciências revela-se a força criadora da alma ra­


cional em seus dois momentos básicos: através dela o espí­
rito, ao se desenvolver, ingressa no tempo; não obstante, o es­
pírito permanece além do tempo, entendido este como mera
sucessão. Pois o espírito, como origem e criador da ciência,
não está no tempo ; é o tempo que está dentro dele. É o es­
pírito que, graças ao seu poder de discriminar, cria as divi­
sões e os períodos de tempo determinados, e estabelece a
separação entre as horas, os meses, os anos. Assim como
Deus cria todas as diferenças de essência, é o entendimento
humano que produz, a partir de si mesmo, todas as diferen­
ças de conceito; é ele a fonte primordial da harmonia que
sempre une os opostos. Ele criou em Ptolomeu o astrolábio,
em Orfeu a lira; pois a invenção não vem de fora, mas é tão­
somente a concretização do conceito numa matéria sensí­
vel. Assim como os olhos estão para a visão, também o tem­
po está para a alma: o tempo é o órgão de que a alma se
vale para poder desempenhar suas funções básicas, as fun­
ções de ordenar e discernir a variedade, o que se encontra
disperso por toda a parte48• Ao estabelecer, nessa concep-

seu próprio poder. Pois essas ciências foram inventadas e desenvolvidas por
homens ( ... ) Daí também os dez predicados são envolvidos no poder nocional
da alma racional, assim como os cinco universais e todos os outros seres lógi­
cos e outros necessários ao conhecimento perfeito, tenham eles ou não uma
existência fora do pensamento, pois sem eles o discernimento e o conheci­
mento não podem ser julgados perfeitamente pela alma."
48. "O ano, o mês, as horas são instrumentos de medida do tempo
criados pelos homens. Assim, o tempo, como é a medida do movimento,
é o instrumento da alma que mede. A razão da alma não depende, pois, do
tempo, é a razão da medida do movimento que se chama tempo e depende
da alma racional. É porque a alma racional não é submissa ao tempo, mas
encontra-se de maneira anterior, em relação ao tempo, como a visão em
relação ao olho: embora ninguém veja sem o olho, não tem contudo, a partir
72 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ção idealista, os fundamentos do moderno conceito fisico­


matemático de tempo, que mais tarde ressurge em Kepler e
em Leibniz49, Nicolau de Cusa inaugura também uma nova
perspectiva e uma nova avaliação da história. A interpretação
da existência histórica também passa a ser subordinada à opo­
sição fundamental entre complicatio e explicatio. Longe de
esta existência constituir um mero "acontecimento" exterior,
ela se apresenta como o ato mais característico do homem.
Em nenhum outro lugar, senão em sua própria história, o ho­
mem pode afirmar-se de forma verdadeiramente criadora e
livre. Na história comprova-se que o homem, em meio ao
curso dos acontecimentos casuais e sob toda a pressão das
condições exteriores, continua a ser "o Deus criado". Total­
mente imerso no tempo, totalmente entregue à particulari­
dade de cada instante, totalmente enredado pelas condições
do momento, ele sempre se mostra como Deus occasiona­
tus diante de tudo isso. Ele persiste em seu próprio ser, sem
j amais transcender a sua natureza especificamente humana;
mas justamente ao desenvolvê-la e representá-la em sua mul­
tiplicidade, ele também representa o divino na forma e nas
limitações do humano50, pois, como todos os seres, ele tam­
bém tem o direito de aperfeiçoar e de concretizar a sua for-

do olho, aquilo que foi visto porque o olho é órgão da visão. Da mesma
forma, a alma racional, embora não meça o movimento sem o tempo, con­
tudo, nem por isso, ela mesma se submeta ao tempo, antes pelo contrário:
serve-se do tempo como instrumento e órgão para se fazerem as distin­
ções dos movimentos." (lbid. ) Cf. em especial Idiotae, Lib. I I I , De mente,
Cap. 1 5, foi. 1 7 1 .
49. Kepler faz referência à doutrina do "divino Nicolau de Cusa" (di­
vinus mihi Cusanus) já em seu primeiro trabalho Mysterium Cosmo­
graphicum (vide Cap. II, Opera I, ed. Frisch, p. 1 22). Cf. também Opera II,
pp. 490 e 595.
50. De conjecturis, I I , 1 4.
NICOLA U DE CUSA 73

mas 1 • Ele pode e até deve afirmar esta forma, esta sua limi­
tação, pois somente ao fazê-lo é capaz de, nela, adorar e
amar a Deus; somente nela é capaz de proclamar a pureza
de sua origems2. É como se, com isso, o dogma do pecado
original - tão pouco discutido por Nicolau de Cusa53 - ti­
vesse perdido as forças que exerceu sobre todo o pensamen­
to e todo o sentimento de vida medievais. Desperta agora,

5 1 . "Quem puder entender essas coisas, como todas as coisas são a


imagem dessa Forma única e infinita, tendo diversidade do contingente co­
mo se a criatura fosse um Deus ocasionado? ( . . . ) Porque a mesma forma
infinita não é recebida senão de modo finito, de modo que toda criatura
seja como se a infinidade finita ou o Deus criado, de modo que assim isso
possa ser melhor ( . . . ) Donde resulta que toda criatura seja perfeita, como
tal, mesmo se, em relação a outra criatura, possa parecer menos perfeita
( . . . ) Todo ser criado repousa em sua perfeição, que tem liberalmente do ser
divino, não chegando nenhum outro ser criado a ser mais perfeito, mas aman­
do ao máximo o que tem, como se fosse um dom divino, querendo aper­
feiçoá-lo e conservá-lo incorruptivelmente." De docta ignorantia, II, 2 .
52. Este pensamento encontra a sua expressão mais clara e mais pre­
cisa em De dato patris luminum; cf., por exemplo, o Cap. 1: "Todo poder
que sabe que existe a partir do melhor, sabe que existe da melhor maneira.
Conhece, pois, seu ser que não gostaria que nunca, em tempo algum, se des­
truísse ou se mudasse num outro ser fora da sua própria espécie, pois esse
ser não lhe foi dado por qualquer outro ser, que não seja do alto, acima de to­
das as coisas pela alteza de toda excelência. Pois o entendimento humano
não crê que sua natureza possa lhe ser dada por um ser cuja bondade não
seja a mais alta, acima de tudo que há de bom. E nenhum ser permanece­
ria na natureza que lhe foi dada, se existisse a partir de um ser bom dimi­
nuto e criado; mas, como parte do melhor e maior mestre, em comparação
ao qual nada é mais alto, seu ser foi herdado: tudo que existe permanece
na sua natureza específica como sendo na melhor natureza recebida do seu
melhor ser."
5 3 . Sobre o pensamento de Nicolau de Cusa acerca do pecado ori­
ginal cf., por exemplo, o sermão Coe/um et terra transibunt, Excitai. , Lib.
V , foi. 495 .
74 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

novamente, aquele espírito pelagiano, sobre cuj o combate


ac irrado, empreendido por Santo Agostinho, toda a doutri­
na religiosa da Idade Média se desenvolvera. A doutrina da
liberdade do homem passa a ser, então, tenazmente enfati­
zada, pois só através da liberdade o homem pode igualar-se
a Deus; só através dela o homem se transforma em receptá­
culo de Deus ( capax Dei)54• E ainda que o homem deva o seu
ser inteiramente a Deus, existe uma esfera na qual ele atua
como livre criador, na qual ele dispõe com autonomia. Esta
esfera é a do valor. Sem a natureza humana não haveria o va­
lor, não existiria o princípio de avaliação das coisas segun­
do sua maior ou menor perfeição. Imagine-se que tal natu­
reza fosse banida da totalidade das coisas : com ela desapa­
receria também toda e qualquer supremacia de valor de uma
coisa sobre a outra. É verdade que Deus é o moedeiro-mes­
tre, que cunha as moedas; mas só o espírito humano é que
lhes atribui um valor. "Pois embora o entendimento humano
não atribua o ser ao valor, sem ele não haveria distinção en­
tre os valores. Se colocarmos de lado o entendimento huma­
no, portanto, não poderemos saber se existe um valor. Sem
a força do julgamento e da comparação, desaparece toda e
qualquer avaliação e, com ela, todo e qualquer valor. Resul-

54. "Deus criou, porém, uma natureza mais participante de sua bon­
dade, ou seja, a natureza intelectual, que é a mais semelhante ao criador, pe­
lo fato de ter o livre-arbítrio e é como um outro Deus ( . . . ) essa natureza
intelectual é capaz de compreender Deus porque ela é infinita em poder:
ela pode sempre com efeito compreender mais e mais ( . . . ) Nenhuma outra
natureza pode de si mesma se fazer melhor, todas são o que elas são pela
necessidade que as mantém assim como são. Somente a natureza intelec­
tual possui em si os princípios pelos quais se pode fazer melhor e assim
mais semelhante a Deus e mais capaz (de compreendê-Lo)." Excitai. , Lib.
V, foi. 498.
NICOLA U DE CUSA 75

t a daí a preciosidade d o espírito, pois sem e l e tudo o que é


criado não teria valor algum. Assim, se Deus quis atribuir um
valor à sua obra, teve de criar, paralelamente às outras coi­
sas, também a natureza espiritual ."55 Nessas frases, o huma­
nismo religioso e o otimismo religioso de Nicolau de Cusa
chegam à plenitude de sua expressão, pois como poderia não
ter valor, como poderia incorrer em desgraça e pecado aqui­
lo que justamente é o princípio e a fonte de todo o valor? As­
sim como antes a natureza foi elevada a Deus através do ho­
mem, agora a cultura humana experimenta sua verdadeira
teodicéia. Nela afirma-se a liberdade do espírito humano; e
esta liberdade é o selo de sua divindade. A atmosfera de eva­
são do mundo é dominada; a desconfiança em relação ao
mundo desaparece. Pois só à medida que o espírito se abre
ao mundo sem reservas, à medida que ao mundo ele se en­
trega, é que o espírito conquista-se a si mesmo e reconhece a
medida de suas próprias forças. E também a natureza sensí­
vel e a força do conhecimento adquirido através dos sentidos
não são mais consideradas algo inferior, uma vez que cons­
tituem muito mais o primeiro impulso e o primeiro estímulo
para toda a atividade do entendimento. O espírito é a descri­
ção viva da sabedoria eterna e infinita, mas sua existência em
nós se compara à de algo que dorme até que a admiração que
nasce da observação do sensível o desperta e o coloca em
movimento56. Tal movimento tem o seu início e o seu fim

5 5 . De ludo globi, Lib. li, foi. 236 s.; cf. a esse respeito Erkenntnis­
problem3, I , 5 7 ss.
56. ldiotae, Lib. III, De mente, Cap. 5: "O pensamento é uma viva des­
crição da sabedoria eterna e infinita. Mas em nossos pensamentos desde o iní­
cio essa vida é semelhante a alguém que dorme até que o espanto, que nasce
das coisas sensíveis, acorda-o e põe-no em movimento. Então, pelo movimen­
to de sua vida intelectiva, descrito em si mesmo, ela descobre o que procura."
76 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

no próprio espírito, ainda que atravesse todo o domínio do


sensível. Sempre é o espírito que "se assimila" ao sensível,
que se transforma em visão perante a cor, em audição perante
o som57. Esta descida ao mundo das percepções sensoriais
não mais é considerada uma apostasia, uma espécie de pe­
cado original do conhecimento: nela se processa muito mais
a ascensão do próprio mundo dos sentidos, que se eleva agora
da diversidade para a unidade, da limitação à universalida­
de, da dispersão à claridade5s. O espírito humano - neste sím­
bolo conciso e de extrema significação se resume para Ni­
colau de Cusa a totalidade desse pensamento - é uma se­
mente divina que traz em sua essência a totalidade de tudo
o que é cognoscível. Mas para que esta semente germine e
produza frutos, ela precisa ser plantada no terreno do sensí­
vel59. Em tal conciliação entre o espírito e o mundo, entre o

57. ldiotae, Lib. I I I , Cap. 7: "A mente é a tal ponto assimilativa que
na visão se assimila com as coisas visíveis e na audição com as coisas au­
díveis, no paladar com as coisas gustativas, no olfato com as coisas olfati­
vas, no tato com as coisas táteis e no sentido com as coisas sensíveis, na ima­
ginação com as coisas imagináveis e na razão com as coisas razoáveis."
58. De conjectur, II, 1 6: "Esse entendimento, porém, em nossa alma,
desce ao sentido por isso, a fim de que o sensível se levante até o enten­
dimento. O sensível se eleva até o entendimento a fim de que a inteligên­
cia desça até ele: portanto, o entendimento descer ao sensível é dizer que
o sensível se eleve ao entendimento, pois o sensível de fato não é atingi­
do pelo sentido da visão com a intenção ausente do vigor da inteligência
( . . . ) O entendimento, porém, que está potencialmente na região intelectual
tem vantagem em ato nas regiões inferiores. Donde vem que ele está em ato
no mundo sensível; de fato, ele apreende, de maneira atual, o visível na vi­
são e na audição, o audível ( . . . ) Ele une as diferenças das coisas sentidas
na imaginação, une a variedade das diferenças imaginadas na razão, une a
diferença das razões em sua unidade intelectual mais simples."
59. ldiotae, Lib. III, Cap. 5 (foi. 1 54): "Porque o pensamento é uma es­
pécie de semente divina que envolve nocionalmente com seu poder os mo-
NICOLA U DE CUSA 77

intelecto e a sensibilidade está o caráter fundamental daque­


la "teologia copulativa'', a que visa Nicolau de Cusa, e que ele
opõe, com plena consciência metodológica, a toda e qual­
quer teologia meramente "disj untiva", negativa, e que opera
por separações6º.

<leios de todas as coisas. Então de Deus, a partir de quem ela tem essa força,
dele mesmo recebeu aquilo que foi colocado no mesmo momento numa
terra conveniente onde ela pudesse frutificar e, por ela mesma, desenvol­
ver nocionalmente a totalidade das coisas. De outro modo, essa força se­
minal lhe teria sido dada em vão, se não se lhe tivesse acrescido a oportu­
nidade de irromper para o ato."
60. Cf. em especial a sua carta aos monges de Tegemsee, datada de
1 4 de setembro de 1 45 3 e publicada por Vansteenberghe em A utour de la
docte ignorance (pp. 1 1 3 ss.). Cf. também Defiliatione Dei (foi. 1 25 ) : "A
teologia afirmativa, que diz que todas as coisas vêm do Uno e a negativa,
que nega que todas as coisas venham do mesmo Uno, e a dubitativa, que
nem nega nem afirma, e a disjuntiva, que afirma uma coisa e nega outra,
e a copulativa, que liga afirmativamente os opostos ( . . . ) são uma só teolo­
gia ( . . . ) Logo, é preciso que o estudante não negligencie o modo pelo qual
nesta escola do mundo sensível uma só coisa é procurada na variedade dos
modos e que todas as coisas são conhecidas em uma só, uma vez gerado,
porém, de maneira pura, o ensinamento no céu da irueligência."
CAPÍTUL0 2
NICOLAU DE CUSA E A ITÁLIA

A forte influência exercida pela personalidade e pela


doutrina de Nicolau de Cusa sobre a Itália e sobre a vida in­
telectual do Quattrocento italiano nos é atestada por seus pró­
prios contemporâneos 1 • Até o presente, porém, a história da
filosofia e a história geral da cultura do Renascimento não re­
conheceram nem discutiram com a devida profundidade as
relações que existem entre Nicolau de Cusa e a Itália. No que
respeita à importância de N icolau de Cusa para a filosofia ita­
liana, esta só se revela de forma clara e inequívoca com Gior­
dano Bruno. O próprio Bruno j amais deixou qualquer dúvida
sobre o quanto devia aos dois pensadores - ao "divino Nico­
lau de Cusa" e a Copérnico -, que ele louva como seus ver­
dadeiros libertadores espirituais. Mas entre o ano de publica­
ção de De docta ignorantia e os textos filosóficos principais

1. Cf. Apologia doctae ignorantiae (foi. 75): "Tenho ouvido dizer, há


muito tempo. através de toda a Itália que esta semente recebida por meio da
tua cultura solícita, pelos espíritos estudiosos, tinha espalhado grande fruto."
80 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

de Giordano Bruno existe um intervalo de tempo de quase


cento e cinqüenta anos. Seria possível supor que durante es­
te intervalo os fundamentos do pensamento especulativo de
Nicolau de Cusa permaneceram na obscuridade? Que não ti­
veram qualquer influência direta sobre a sua própria época?
Tal suposição parece mesmo inevitável, se considerarmos que
os sistemas filosóficos efetivamente representativos da épo­
ca não fazem qualquer referência a esse pensamento funda­
mental; que o próprio nome de seu fundador lhes parece abso­
lutamente estranho. Nem na obra de Pomponazzi e na dos pen­
sadores da Escola de Pádua, tampouco no círculo platônico
de Florença - nos textos de Ficino e Pico - o nome "Niko­
laus von Kues" é mencionado2. Todos os fios que se tentam
juntar nesse contexto ameaçam romper-se: a mera observa­
ção dos fatos parece excluir, de antemão, qualquer tentativa
"construtiva" de estabelecer uma relação entre o sistema de
Nicolau de Cusa e os ensinamentos básicos da filosofia ita­
l iana do séc. XV. De fato, a grande maioria dos historiadores
da filosofia, principalmente os italianos, chegaram a esta con­
clusão . E nesse julgamento ouve-se também o eco daquele
sentimento nacional que, na literatura italiana sobre filosofia,
tem aparecido com intensidade cada vez maior, sobretudo na
última década. Para os que compartilham desse sentimento, o

2. Ao que tudo indica, o nome de Nicolau de Cusa não aparece em


passagem alguma dos textos de Pico; em Ficino, encontramo-lo uma única
vez nas cartas, grafado de maneira curiosamente deformada. Trata-se aqui
de uma listagem de textos filosóficos que pertencem ao círculo platônico, na
qual - paralelamente à defesa de Bessario da doutrina de Platão - também se
faz alusão a "certas especulações" de Nicolau de Cusa (quaedam specula­
tiones Nico/ai Caisii [sic ! ) Cardinalis). Cf. Espistolae, Lib. IX, Opera, foi.
899. Não há dúvida quanto ao fato de Ficino ter conhecido as obras de
Nicolau de Cusa. (Cf., por exemplo, G. Saitta, La filosofia di Marsilio Fi­
cino. Messina, 1 923, p. 75, e as outras referências apresentadas a seguir.)
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 81

mundo das idéias do Renascimento, assim como todo o uni­


verso cultural renascentista, teria brotado de seu próprio solo
materno, deveria ser reconhecido como uma criação autóc­
tone do espírito italiano . Somente a partir de tal perspectiva
é que se pode entender por que um pesquisador como Gentile,
por exemplo, não dedica uma só palavra à doutrina de Nico­
lau de Cusa3 em seus estudos sobre Giordano Bruno e em seu
tratado sobre O conceito do homem no Renascimento. E não
obstante, há quatro décadas um dos historiadores da filosofia
mais proeminentes da Itália já tinha estabelecido, de forma
clara e inequívoca, a relação que existe entre Nicolau de Cusa
e a Itália. "Seria um engano acreditar", assim começa II ri­
sorgimento filosofico nel Quattrocento, obra que nos legou
Fiorentino, "que nosso Renascimento significa um mero re­
torno ao ideário da Antiguidade, pois à parte o fato de que
a história j amais se repete, um novo rebento foi enxertado
então ao antigo tronco greco-latino : o pensamento alemão .
Desprezar o novo fator que entra assim para a história do pen­
samento especulativo, ou diminuir- lhe a importância a partir
de um orgulho nacional mal compreendido, seria proferir um
julgamento inexato e inj usto e fechar-se à compreensão do
verdadeiro início de nossa filosofia." Teria sido um ganho
extraordinário para o conhecimento das origens e dos temas
básicos do pensamento renascentista se Fiorentino, que foi
um dos maiores conhecedores da filosofia do Renascimento,
tivesse conseguido desenvolver e provar ponto por ponto es­
sa sua tese. Visto que, infelizmente, sua obra chegou até nós
de forma fragmentária - ela se interrompe justamente no pon­
to em que começaria a comprovação mais detalhada dessa
relação fundamental a partir de fontes - passa a ser tarefa da
escritura obj etiva da história levar em conta, pelo menos, a

3. Giov. Gentile, Giordano Bruno e il pensiero dei Rinascimento. Flo­


rença, 1 923.
82 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

advertência metodológica de Fiorentina . Não é possível en­


tender a história de um grande movimento espiritual, princi­
palmente de um movimento filosófico, se de antemão se ado­
ta um ponto de vista parcial, nacionalista. Todo gênio verda­
deiramente grande, todo gênio "nacionalista" num sentido
mais profundo da palavra, obriga-nos de imediato a colocar
de lado a estreiteza de um tal tipo de observação. E para Ni­
colau de Cusa isso é duplamente válido . Já vimos o quanto
Nicolau de Cusa é devedor à Itália, no sentido de que o con­
tato com a cultura italiana do séc. XV esclareceu-lhe as idéias
e ampliou-lhe os horizontes, o que conferiu ao seu pensa­
mento uma forma e uma determinação rigorosas. Mas à in­
tensidade e à força dessa influência corresponde também a
influência do próprio filósofo sobre o seu meio . E ainda que
ela não nos sej a visível de imediato em formas acabadas, fa­
to é que ela existe . Para entendê-la, porém, não basta julgar
a filosofia do Renascimento apenas a partir de seu "conceito
de Escola"; é preciso tentar entendê-la a partir de seu "con­
ceito de mundo" . Para esses dois pontos confluem os temas
fundamentais da doutrina de Nicolau de Cusa; e sua influên­
cia se nos revela com tanto mais clareza quanto menos se
trata da mera aceitação de idéias isoladas ou da mera apro­
priação de resultados pontuais. Não foram resultados de um
tipo bem determinado que Nicolau de Cusa legou à filosofia
italiana de sua época, mas tendências e impulsos; tendências
que, à medida que apontam para uma nova direção da con­
cepção geral e para novos obj etivos, aos quais se voltam a
especulação e a vida, podem ser percebidas mais claramente
do que em teses dogmáticas.
Assim, para medirmos a importância e a amplitude da
influência da doutrina de Nicolau de Cusa precisamos nos
voltar, sobretudo, não para a filosofia ou para os represen­
tantes de escolas filosóficas, mas para o mundo leigo e seus
representantes intelectuais. Burckhardt apontou como um dos
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 83

traços fundamentais do Renascimento "o aumento do núme­


ro de pessoas que recebiam uma formação completa" ao longo
do séc . XV. Como nos mostra Burckhardt, porém, esses ho­
mens "versados", de conhecimentos amplos e variados, não
podiam tirar da filosofia de sua época, ainda mais ou menos
atrelada às formas do pensamento e da doutrina escolásticos,
os elementos necessários a uma formação intelectual abran­
gente. À semelhança de Petrarca que, tempos antes, tivera de
se opor veementemente às exigências da cultura filosófica e
erudita4 - de que confessa e afirma com orgulho o seu não­
conhecimento -, a fim de manter seu estilo pessoal de vida e
seu ideal pessoal de cultura, também Leonardo da Vinci tra­
va uma luta constante contra a autoridade e a tradição. Somen­
te através dessa luta é que ele se avizinha da nova noção de
saber a que visa, e para a qual ele próprio criou as primeiras
premissas metodológicas. Para Leonardo, a linha divisória en­
tre os espíritos situa-se na oposição entre o descobridor ori­
ginal e os imitadores e "comentaristas". Os primeiros grandes
pensadores - os "primitivos", para usar uma expressão do pró­
prio Leonardo - conhecem apenas um padrão e um paradig­
ma para as suas pesquisas - a experiência -, e são merecedo­
res, portanto, da designação de descobridores; seus sucessores,
por outra parte, ao abandonarem a natureza e a realidade, per­
dem-se num mundo de distinções meramente conceituais (dis­
corsi). Aqui, a única coisa capaz de ajudar é o retorno à ra­
zão "natural" do homem; à força do espírito não corrompido .
Le bone lettere son nate da un bono natura/e, e perche si
dee piu laudare la cagion che l 'effetto, piu lauderai un bon
natura/e sanza lettere che un bon letterato sanzo natura/e
(As boas letras nascem de um bom natural e, porque se deve
antes louvar a causa que o efeito, louvaria antes um bom na-

4. Cf. em especial De sui ipsius et aliorum ignorantia.


84 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

tural sem letras do que um letrado sem natural)5 . Nicolau de


Cusa, mais do que qualquer outro pensador de sua época, foi
quem formulou com maior rigor e fundamentou com maior
aprofundamento esta frase que sintetiza a atmosfera geral e
a direção da pesquisa de Leonardo da Vinci. Ao ideal da devo­
ção laica, da devotio moderna - que ele aprendera no conví­
vio com os irmãos da vida comum e posteriormente integra­
ra à sua própria vida -, Nicolau de Cusa j ustapõe um novo
ideal de conhecimento laico. Tanto é assim que ele dedicou
à representação e à justificativa desse ideal uma de suas obras
mais importantes, cuj o próprio título já aponta para esse pen­
samento fundamental: os três diálogos De sapientia, De men­
te e De staticis experimentis, Nicolau de Cusa os reuniu sob
o título genérico de Idiota, pois nos três diálogos é o leigo, o
homem não versado, que aparece como o mestre do orador, do
filósofo. É o leigo, o indouto, quem coloca as questões mais
decisivas, cuj as respostas já estão determinadas e, de certa
forma, antecipadas na formulação das próprias perguntas . A
obra começa com o encontro de um leigo com um orador no
foro de Roma: o leigo diz ao orador que o verdadeiro alimen­
to do espírito não está nas obras dos outros ; que a autêntica
sabedoria não pode ser encontrada no abandono de si mes­
mo a uma autoridade qualquer. "Tu te consideras sábio, sem
sê-lo, e te orgulhas dessa tua sabedoria; de minha parte, eu me
reconheço indouto e, justamente por isso, talvez sej a mais sá­
bio do que tu." Pois a sabedoria não carece de qualquer apres­
to erudito: ela clama pelas ruas. Em meio à confusão e ao bur­
burinho do mercado, nos afazeres cotidianos do homem, ela
se oferece àquele que sabe compreendê-la. A sabedoria se
nos revela aos o lhos nas negociações entre vendedor e com­
prador, na pesagem de mercadorias, na contagem de moedas,

5 . 11 codice A tlantico di Leonardo da Vinci. Roma, Milão, 1 894, foi. 75.


NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 85

pois tudo isso está na força fundamental do homem: na sua


faculdade de medir, de pesar, de contar. Nesta força está o fun­
damento de toda a atividade da razão, está o traço distintivo
do espírito; basta que nos aprofundemos nela e em suas ma­
nifestações mais corriqueiras para que reconheçamos em tais
manifestações a essência de nossa natureza espiritual e de seu
mistério6• Somente a partir dessa noção básica é que se pode
compreender a influência que Nicolau de Cusa exerceu jus­
tamente sobre o "leigo" de gênio. Desde as pesquisas criterio­
sas de Duhem, que nos revelaram as fontes do pensamento
de Leonardo, sabemos o quanto eram estreitas as relações de
fato entre Nicolau de Cusa e Leonardo da Vinci. Duhem de­
monstrou em detalhe que um grande número de problemas,
com os quais se ocupou Leonardo da Vinci, ele os recebeu di­
retamente das mãos de Nicolau de Cusa e prosseguiu em suas

6. "Idiota: A opinião da autoridade conduz-te como o cavalo, livre


da natureza, mas impedido com arte, ligado pelo cabresto por onde ele só
come aquilo que lhe é fornecido. Teu entendimento pasta, amarrado à au­
toridade dos escritores, em um pasto alheio e não natural.
Orador: Se o pasto da sabedoria não está nos livros de sábios, onde
está ele então?
Idiota: Eu não digo que não esteja lá, mas que lá não se encontra na­
turalmente. Os que primeiro se puseram a escrever sobre a sabedoria não
receberam seu crescimento do pasto dos livros, que não existiam ainda,
mas primeiro do alimento natural eles se faziam homens acabados e eles
ultrapassaram de longe em sabedoria aqueles que criam crescer por meio
de livros ( . . . ) Alguém escreveu bem essa palavra em que tu crês. Quanto a
mim, digo-te que a sabedoria grita aí fora, nas praças, e seu grito diz que
ela vive nas alturas.
Orador: Ouço-te, mas sendo um idiota pensas que tu sabes?
Idiota: Aí está talvez a diferença entre mim e ti: crês-te sábio e como
tu não o és, e disso te ensoberbas, quanto a mim, sei que sou idiota, portan­
to, mais humilde, e, por isso, talvez, mostre-me mais sábio." (ldiotae, "De
sapientia", Lib. I, foi. 1 3 7 . )
86 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

investigações com esses temas exatamente do ponto em que


Nicolau de Cusa havia parado?. Revela-se-nos agora a razão
mais profunda dessa relação histórica. Se Leonardo se re­
porta a Nicolau de Cusa, se em muitas passagens de sua obra
ele de certa forma reconhece diretamente a sua herança, ele
o faz porque se identifica com Nicolau de Cusa quanto à con­
vicção metodológica. Para Leonardo, Nicolau de Cusa não é
o representante de um determinado sistema fi losófico; ele é,
muito mais, o representante de um novo tipo de estudo, de uma
nova direção da pesquisa. A partir daí, é possível entender que
a relação que aqui se estabelece transcende todos os limites
da esfera meramente individual . Num certo sentido, Nicolau
de Cusa transforma-se em expoente de todo o círculo intelec­
tual a que pertence Leonardo da Vinc i ; de todo o círculo que,
paralelamente ao declínio da cultura escolástica e à ascensão
da cultura humanista, representa uma terceira forma, especifi­
camente moderna, de conhecimento e de vontade de conhe­
cer. Não se trata aqui de se fixar cientificamente nem de se
entender um conteúdo religioso determinado; não se trata, ain­
da, de se retomar à grande tradição da Antiguidade e nela
buscar a renovação da humanidade. Trata-se, isso sim, de uma
tendência geral a se ater a tarefas técnico-artísticas concre­
tas, para as quais se busca uma "teoria". Em meio à ativida­
de artística criadora surge a exigência por uma reflexão mais
profunda acerca dessa mesma atividade; e essa exigência não
pode ser satisfeita, a menos que se recorra aos fundamentos
últimos do conhecimento, especialmente do conhecimento
matemático. Ao lado de Leonardo da Vinci, Leon Battista Al­
berti é quem incorpora essa nova forma e essa nova problemá­
tica da vida intelectual: e ele também não apenas está l igado
a Nicolau de Cusa por relações pessoais, como também faz

7. Études sur Léonard de Vinci, ceux qu 'i/ a lus et ceux qui l 'ont lu.
Seconde série, Paris, 1 909, pp. 99 ss.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 87

referência, em seus principais tratados teóricos, às especula­


ções matemático-filosóficas de Nicolau de Cusa, particular­
mente aos esforços metodológicos em tomo da questão da qua­
dratura do círculos. Essa questão pontual permite-nos iden­
tificar os pensamentos fundamentais que uniam os homens
desse círculo com Nicolau de Cusa9• O tratado De docta igno-

8 . Para informações pormenorizadas, cf. Mancini, Vita di Leon Battis­


ta Alberti, 2� ed., Florença, 1 909, e Olschki, Geschichte der neusprachlichen
wissenschaftlichen Literatur, l, Heidelberg, 1 9 1 9, pp. 8 1 ss.
9 . Uma outra prova para a forte influência que a doutrina de Nicolau
de Cusa exerceu sobre a Itália nos é apresentada por Vansteenberghe em
sua Biographie (pp. 448 ss. ). O autor chama a atenção para o fato de ter exis­
tido na Itália uma "pequena escola de seguidores de Nicolau de Cusa", que
por volta do final do século teria realizado uma "reunião acadêmica". O fa­
to de que, segundo um relato de Pacioli no prefácio de seu tratado Divina
proportione, Leonardo da Vinci participou dela, além de "muitos e doutos
admiradores do grande cardeal", seria uma outra comprovação para a tese
de Duhem. Contudo, é claro que aqui parece haver um equívoco, pois, a meu
ver, a dedicatória do tratado Divina proportione nada contém que permita
concluir sobre a existência de uma tal comunidade de seguidores de N ico­
lau de Cusa. O relato nos fala de uma reunião ocorrida em 9 de fevereiro de
1 498 no castelo de Milão, na presença do Duque Ludovico Maria Sforza, e
lista como presentes, além de Ambrogio da Rosate, Marliani, Pirovano, Leo­
nardo da Vinci e outros, também os nomes de Andrea Novarese e "Niccoló
Cusano"; deste último, só se afirma que se tratava de um homem admirado
e respeitado por todos os presentes pelos seus conhecimentos de medicina
e de astronomia. (E dali prefati mo/to in tutti premesse (discipline) admi­
rato e venerato Nico/o cusano: cf. Luca Pacioli, Divina proportione, reed.
em Quellenschriftenfiir Kunstgeschichte und Kunsttheorie des Mittelalters
und der Neuzeit, N.F., vol. II, Viena, 1 889, p. 32.) Não se trata aqui, portan­
to, de uma admiração pela pessoa e pela doutrina do filósofo Nicolau de Cusa
entre os que estavam ali reunidos. O mencionado N iccoló Cusano era um
médico homônimo, que possuía uma cátedra em Pávia. (Para informações
mais detalhadas sobre ele e sobre os demais presentes mencionados no pre­
fácio de Pacioli, cf. Gustavo Uzielli, Ricerche intorno a Leonardo da Vinci,
serie prima, Turim, 1 896, pp. 368 ss.) No que respeita à reunião em si, trata-
88 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

rantia partira do princípio de que todo conhecimento se de­


fine como uma medida; por conseguinte, estabelecera no con­
ceito de proporção, que carrega em si a condição da possibili­
dade de medir, o meio por excelência do conhecimento. Com­
parativa est omnis inquisitio, medio proportionis utens
(Toda pesquisa que use a proporção é comparativa) 1º. Mas a
proporção não é um conceito fundamental apenas à lógica e
à matemática, mas também, e sobretudo, à estética. A noção
de medida transforma-se, assim, em elo de ligação que une
o pesquisador da natureza e o artista, o criador de uma segun­
da "natureza". A proporção - conforme a define Luca Pacio­
li, amigo de Leonardo da Vinci - não é apenas mãe do conhe­
cimento, mas também "mãe e rainha da arte" . No conceito
de proporção compenetram-se, então, as tendências técnico­
matemáticas, especulativo-filosóficas e artísticas da época;
e justamente graças a essa confluência e inter-relação, o pro­
blema da forma se transforma numa das questões centrais
do Renascimento.
Mais uma vez, este ângulo nos permite enxergar com
clareza o processo singular de "secularização" que perpassa
os temas religiosos do pensamento medieval a partir do iní­
cio do Renascimento. Com efeito, até o novo conceito de "na­
tureza" e de "verdade natural", tal como começa a se formar
a partir de então, remonta, por suas próprias raízes históri­
cas, a esses temas. O retomo à natureza - se se toma esta ex­
pressão em seu sentido religioso, e não na acepção estética
ou científica modernas - já se revela, com toda a clareza, na
grande transformação da devoção, que se processa na místi-

va-se de uma sessão da assim-chamada "Academia Leonardo da Vinci". Para


um aprofundamento em torno dessa "Academia", cf. Uzielli (op. cit. , pp.
34 1 ss.) e Olschki (op. cit., 1 , pp. 239 ss.).
1 O. De docta ignorantia, I, 1 .
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 89

ca medieval . Nesse ponto, não há dúvida de que está correta


a interpretação de Thode em sua obra sobre São Francisco
de Assis: em São Francisco de Assis desperta o novo ideal de
amor cristão, que rompe e supera a divisão estanque e dog­
mática entre "natureza" e "espírito". À medida que o sentimen­
to místico se volta para a totalidade do ser para com ele inte­
ragir, todas as barreiras da particularidade e da individuali­
dade caem por terra perante essa totalidade. O amor não mais
se volta apenas para Deus, origem e causa primordial, trans­
cendental do ser, e também não se resume à relação moral
imanente do homem para com o homem. O amor se derrama
sobre todas as criaturas, sem exceção: animais e plantas, sol
e lua, elementos e forças da natureza. Elas deixam de ser "par­
tes" desligadas e isoladas do ser, e fundem-se numa unidade
com Deus e o homem no ardor do amor místico. A categoria da
concretude específica e individual, por força da qual a vida
da natureza se subdivide em espécies rigorosamente deter­
minadas e se organiza segundo uma hierarquia rigorosa, não
se sustenta diante da categoria mística da fraternidade : para
São Francisco de Assis, não apenas os peixes e as aves, as
árvores e as flores, mas também o vento e a água se transfor­
mam em "irmãos e irmãs" do homem. Sob esta forma da mís­
tica franciscana, o espírito medieval começa a grande obra de
redenção da natureza, de sua libertação da mácula do peca­
do e da sensualidade. Mas falta ainda um conhecimento que
esteja à altura desse tipo de amor e que possa justificá-lo. Vi­
mos que esse novo conhecimento começa com Nicolau de
Cusa; vimos que ele, mesmo tendo suas origens na mística,
postula e busca uma justificativa especulativa para a nature­
za. E é claro que, para isso, um outro caminho tinha de ser tri­
lhado : nesse particular, o místico tinha de pedir aj uda ao ló­
gico. Mas não é à antiga lógica da Escola, à lógica da "seita
aristotélica", como Nicolau de Cusa a chama, que agora se
recorre, já que seu princípio básico é justamente aquele que
90 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

o filósofo da coincidentia oppositorum (coincidência dos


opostos) rechaçava 1 1 • Em seu lugar, em lugar da silogística
formal, Nicolau de Cusa recorre, então, à-19gi�a "'1-m a temá­
tica . Doravante ela seria o meio através do qual nos elevamos
- para além da esfera do sentimento místico - à visão do in­
telecto.. Somente assim o amor de Deus concebido pelo mís­
tico se realiza e atinge o seu obj etivo; pois para Nicolau de
Cusa não existe amor verdadeiro sem um ato de conhecimen­
to sobre o qual ele se apóie 1 2 • Resulta daí , portanto, o espetá­
culo curioso e único na história da filosofia, no qual não se
t busca a exatidão da matemática nem pelo que ela sej a em si
mesma, nem para se fundamentar o conhecimento natural, mas
para se fundamentar e aprofundar o conhecimento de Deus.
Todos os sábios e todos os eruditos mais divinos e sagrados
- - assim nos explica Nicolau de Cusa em De docta ignoran-
tia - estariam de acordo em que todo o visível é uma cópia
daquele invisível que não pode ser visto por nós senão num
espelho ou através de um enigma. Mas se o espiritual em si
também se nos permanece inacessível, e se não podemos en­
tendê-lo de outra forma senão na imagem dos sentidos, no
símbolo, então que pelo menos possamos exigir que essa ima­
gem não encerre em si nada de duvidoso ou de obscuro, pois
o caminho que conduz ao incerto só pode passar pelo certo e
seguro t 3 . Está aí o elemento novo : que se exij a dos símbolos,
através dos quais temos acesso ao divino, não apenas a ple­
nitude e a força sensíveis, mas sobretudo a precisão e a cer-

1 1 . Apologia doctae ignorantiae. Cf. op. cit. , p. 2 1 , nota 5 .


1 2 . Cf. op. cit. , p. 1 9.
1 3 . De docta ignorantia, 1, 1 1 : "Já que nenhum método nos está à
mostra para atingir as coisas divinas a não ser por símbolos, dizemos então
que as atingimos por meio dos signos matemáticos com os quais poderemos
fazê-lo com mais conveniências por causa de sua certeza incorruptível."
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 91

teza intelectuais. Com isso, o tipo de relação entre o mundo


e Deus, entre o finito e o infinito experimenta uma profunda
transformação. Para a esfera do pensamento místico, todo e
qualquer ponto do ser pode se transformar em elo para que
esta relação se efetue ; pois em cada um deles se pode perce­
ber o "vestígio de Deus"; em cada um, o próprio Deus se dei­
xa entrever no reflexo do finito. O próprio Nicolau de Cusa
retoma essa mudança14, mas a insere num novo contexto uni­
versal. Para ele, a natureza não é apenas o reflexo do ser de
Deus e da força divina, mas o livro que Deus escreveu de pró­
prio punho 1 5 • Mas se é verdade que nos encontramos aqui em
solo religioso, também é verdade - para concordarmos com
Shelling - que aqui se processou a ruptura para o campo aber­
to e livre da ciência obj etiva; pois não é possível chegar ao
sentido do livro da natureza apenas pela via do sentimento
subj etivo e da suposição mística, mas há que se pesquisá-10,
há que se decifrá-lo palavra por palavra, letra por letra. O mun­
do não pode mais continuar sendo um hieróglifo divino, um
signo do sagrado diante dos nossos olhos; é preciso analisar
esse signo, interpretá-lo sistematicamente. Dependendo da
direção que tal interpretação toma, ela pode conduzir ou a
uma nova metafisica, ou a uma ciência exata. A filosofia da
natureza do Renascimento enveredou pelo primeiro caminho .
Ela aceita a noção básica de que a natureza é "o livro de Deus"
para depois transformá-la através de inúmeras variações. É

1 4 . Cf., por exemplo, De docta ignorantia, II, 2: "O ser da criatura


não pode ser nada além do que o próprio reflexo de Deus, não recebido
positivamente, mas diverso de modo contingente."
1 5 . Cf. ldiotae, "De sapientia", Lib. I, foi. 1 3 7 : "Orador: Como
podes ter sido conduzido ao conhecimento de tua ignorância, se tu és um
idiota? Idiota: Não por teus livros, mas pelos livros de Deus. Orador:
Quais são? Idiota: Os que Ele escreveu com Seu dedo. Orador: Onde eles
se encontram? Idiota: Em toda a parte."
92 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

sobre este fundamento que Campanella erige toda a sua teo­


ria do conhecimento e toda a sua metafisica. Para ele, "conhe­
cer" não significa outra coisa senão ler a escrita divina na
natureza: intelligere não significa outra coisa senão intus
legere. "O mundo é a estátua, o templo vivo e o código de
Deus, no qual Ele inscreveu e desenhou coisas de infinita
dignidade que abrigava em Seu espírito. Feliz daquele que lê
este livro e dele aprende a natureza das coisas, sem imaginá-las
segundo seu próprio arbítrio ou a partir de opiniões alheias. 1 6"
Nessa metáfora, que como tal não é nova e cuj as raízes re­
montam à filosofia medieval, a Santo Agostinho e São To­
más, passando por Nicolau de Cusa, expressa-se contudo um
sentimento de natureza especificamente novo . Significativo,
porém, é o fato de essas frases se encontrarem ao final de um
tratado que tem por título De sensu rerum et magia; pois o la­
ço que sustenta a natureza no que ela tem de mais recôndito,
e que a une ao homem, ainda é concebido aqui como um laço
de natureza mágico-mística. O homem não é capaz de com­
preender a natureza, a não ser inserindo sua própria vida di­
retamente nela. As fronteiras de seu sentimento de vida, por­
tanto, os limites de sua compreensão mais profunda acerca
da natureza são, ao mesmo tempo, as fronteiras do seu conhe­
cimento dela. A forma oposta de interpretação desse tema é
representada aqui pela tendência da observação da natureza
que, partindo de Nicolau de Cusa, vai até Galileu e Kepler, pas­
sando por Leonardo da Vinci . Tal corrente não mais se con­
tenta com o apelo exercido sobre os sentidos pelos signos, nos
quais "lemos" a estrutura espiritual do universo, mas exige dos
signos que constituam um sistema em si, um conjunto orde-

1 6. Campanella, De sensu rerum et magia, ed. Tob. Adami. Frankfurt,


1 620, pp. 370 s. (Para um aprofundamento dessa questão, cf. Erkenntnis­
problem3, I, pp. 268 s., 282.)
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 93

nado e de validade universal. O "sentido" da natureza não de­


ve ser experimentado apenas de forma mística: é preciso con­
cebê-lo como sentido lógico. E essa exigência não pode ser
satisfeita por outra via, senão através da matemática. Em face
da arbitrariedade e da insegurança das opiniões, só a matemáti­
ca é capaz de estabelecer a medida da necessidade e da univo­
cidade. É assim que, para Leonardo da Vinci, a matemática
constitui a fronteira entre a sofistica e a ciência. Aquele que
deprecia sua suprema acuidade, alimenta de confusão o seu
espírito . Ao se ater a palavras isoladas, cai-se prisioneiro da
incerteza e da ambigüidade, que são próprias de cada pala­
vra, e vê-se enredado em controvérsias de palavras que não
têm fim 1 7 • Somente a matemática, ao fixar os sentidos das pa­
lavras e ao subordinar a sua combinação a regras determina­
das, ao nos apresentar, enfim, não um agregado de palavras,
mas uma construção sintática rigorosa de pensamentos e fra­
ses, é capaz de pôr um termo a tais controvérsias . Galileu le­
va às últimas conseqüências essa tendência de observação.
Para ele, até a percepção sensorial isolada, independentemen­
te da sua intensidade e apelo, nada mais é do que um "no­
me" que, em si, nada "diz"; um nome que, em si, não possui
qualquer significação obj etivamente determinada 1 8 • Uma tal
significação somente ocorre quando o espírito humano re­
laciona o conteúdo da percepção àquelas formas básicas do
conhecimento, cuj a imagem primordial ele carrega consigo .
Somente graças a essa relação e a essa interpenetração é que

1 7. Leonardo da Vinci, Scritti /etterari, ed. Jean Paul Richter. Lon­


dres, 1 883, n? 1 1 5 7 (li, 289).
1 8 . Cf. Galileu, // saggiatore (Opere, ed. Alberi, IV, 334): "Por isso
vou pensando que estes sabores, odores, cores etc. por parte do sujeito, no
qual nos parecem residir não são outra coisa que puros nomes, mas têm
sua sede somente no corpo sensitivo etc."
94 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

o livro da natureza se nos torna legível e compreensível. As­


sim, numa seqüência histórica contínua, passamos da noção
básica estabelecida por Nicolau de Cusa de "certeza indes­
trutível" (incorruptibilis certitudo) que, de todos os símbo­
los de que o espírito humano é capaz e necessita, só é pró­
pria dos signos matemáticos, para os célebres axiomas e prin­
cípios fundamentais que determinam o obj etivo e a singula­
ridade da pesquisa de Galileu. E o processo de secularização
se consuma no momento em que, mais tarde, a revelação do
"livro da natureza" é contraposta à revelação da Bíblia. Entre
ambos os livros não pode haver qualquer oposição de princí­
pio, j á que ambos representam, de diferentes formas, o mes­
mo sentido espiritual; já que neles se manifesta a unidade do
criador divino da natureza. Apesar disso, porém, se nos de­
frontarmos com algo que aparentemente se nos afigure co­
mo uma contradição, não poderemos resolvê-la senão con­
ferindo à revelação contida na obra a primazia em relação à
palavra; pois a palavra é algo que passa e que nos é transmi­
tido, ao passo que a obra é algo que existe e perdura como
algo que, direta e presentemente, se nos oferece à consulta 1 9 •

1 9. Cf. especialmente a carta d e Galileu a Diodati, datada d e 1 5 de


janeiro de 1 63 3 : "Se eu perguntar a Fromondo, de quem o sol, a lua, as es­
trelas e sua disposição e movimentos são obra, penso que me responderá
serem criação de Deus. E perguntado, por quem foram ditadas as Santas
Escrituras, sei que responderá terem sido pelo Espírito Santo, ou seja,
igualmente por Deus. O mundo, então, são as obras e as Escrituras são as
palavras do mesmo Deus. Perguntado depois se o Espírito Santo não tem
o costume, no seu falar, de pronunciar, em aspecto, palavras muito contrá­
rias à verdade e ditas assim para acomodar-se à capacidade do povo, por
mais rústico e incapaz, estou bem certo que me responderá, junto com
todos os escritores sagrados, que tal é o costume das Escrituras ( . . . ) mas
se eu lhe perguntar se Deus, para acomodar-se à capacidade e opinião do
mesmo povo, nunca costumou mudar a sua obra, pelo contrário ( . . . ) conser-
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 95

Nesta evolução do conceito de natureza, nesta sua cons­


tante emancipação dos pressupostos teológico-religiosos, pe­
los quais ele a princípio ainda parecia envolto, atuam duas
forças fundamentais que, por toda a parte, intervêm de for­
ma decisiva na vida espiritual do Renascimento e que, aos
poucos, lhe conferem uma nova direção. A nova forma espi­
ritual e intelectual do Renascimento é co-determinada, em
todos os domínios, pelas novas possibilidades de expressão
criadas então pela lmguagem e pela t�. Quando Nicolau
de Cusa, em sua obra Idiota, estabelece com clareza e deter­
minação o ideal de um novo conhecimento laico, este conhe­
cimento carece ainda de uma forma de expressão que lhe cor­
responda, que lhe sej a adequada. O "leigo" assume por tarefa
convencer o orador e o filósofo de sua ignorância, revolve a
fundo os pressupostos basilares do conceito de conhecimen­
to escolástico e humanista, mas ele próprio ainda fala o latim
da Escola. Já tivemos oportunidade de observar (p. 24 deste
livro) o quanto essa subordinação à linguagem, à terminolo­
gia da Idade Média, constituiu um obstáculo para o próprio
Nicolau de Cusa desenvolver livremente seu pensamento
original . Agora, porém, os homens que, na Itália, retomam
e dão continuidade ao seu pensamento, estão livres deste
obstáculo. Os matemáticos, técnicos e artistas, ao rechaça­
rem o conteúdo do saber tradicional, rechaçam também sua
forma. Eles querem ser inventores, e não comentaristas, o
que implica o fato de que, assim como querem pensar com

vou-a sempre e continuou mantendo seu estilo acerca dos movimentos,


figuras e disposições das partes do universo, estou certo que ele me res­
ponderá que a lua foi sempre esférica, embora tenha julgado durante muito
tempo que o mundo fosse plano e, em suma, dirá que não se muda jamais
nada da natureza para acomodar a sua criação à estima e opinião dos ho­
mens." (Edizione Nazionale XV, 2 3 . )
96 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

suas próprias cabeças, também querem se expressar através


de sua própria língua. "Se não posso citar autores como eles
fazem", objeta Leonardo aos escolásticos e humanistas de
seu tempo, "citarei, então, uma coisa muito mais grandiosa
e muito mais digna. Refiro-me à experiência, mestra de to­
dos os mestres. Eles circulam por aí de peito todo inchado,
com toda a pompa e circunstância, vestidos e adornados com
trabalhos que não são frutos de seu próprio esforço, mas do
esforço de outros, e não querem reconhecer os meus. Mas se
desdenham de mi�, o inventor, tanto mais se pode censurar
a eles, que não são inventores, mas tão-somente trompetas e
declamadores das obras de outros . . . Dirão que eu, por não
ser letrado (per non avere lettere), não posso falar bem e cor­
retamente daquilo que quero tratar. Não sabem eles, por aca­
so, que os meus assuntos se tratam muito mais com a expe­
riência do que com as palavras? E assim como a experiência
foi a mestra de todos os que escreveram bem, também eu a
tomo por mestra e a citarei em todos os casos."2º Uma tal con­
versão à experiência, porém, não teria produzido resultados fe­
cundos nem teria podido chegar a uma verdadeira libertação
das amarras da Escolástica se, ao mesmo tempo, não tivesse
criado um novo instrumento. Em sua obra Geschichte der
neusprachlichen wissenschafllichen Literatur, Olschki mos­
trou com maestria como ambas as tarefas estão intimamente
relacionadas e como só é possível resolvê-las, portanto, ao
se considerarem ambas simultaneamente. Desligar-se do la­
tim medieval e construir e desenvolver paulatinamente o latim
vulgar como forma independente da expressão científica eram

20. li codice A tlantico di Leonardo da Vinci, foi. 1 1 5 ', 1 1 ? v . Um


passar de olhos pelas páginas iniciais de Idiota (op. cit. , nota 6, p. 8 5 ) é o
bastante para se ter uma idéia do quanto Leonardo se aproxima de Nicolau de
Cusa ao assim formular os fundamentos de seu pensamento metodológico.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 97

condições prévias para o livre desenvolvimento do pensamen­


to científico e de seu ideal metodológico. E aqui se percebe
uma vez mais a verdade e a profundidade da noção fundamen­
tal de Humboldt, segundo a qual a linguagem não se limita a
seguir e a acompanhar o pensamento, mas constitui, ela mes­
ma, um momento essencial à formação do próprio pensamen­
to. Também as diferenças entre o latim escolástico e o italiano
moderno por certo não se limitam a meras discrepâncias de
sons e de signos: nelas se expressa "a diversidade das visões
de mundo". De sorte que, também neste caso, a língua não se
limita a servir de mero receptáculo à nova visão de mundo,
mas contribui, com sua própria formação e estrutura, para ge­
rá-la. O pensamento técnico do Renascimento orienta-se na
mesma direção do pensamento lingüístico2 1 • E também nes­
se domínio - o que pode parecer surpreendente à primeira
vista - Nicolau de Cusa estava à frente de seu tempo. Com
efeito, em sua filosofia ele atribuiu uma nova significação ao
espírito técnico, ao espírito do "inventor", e lhe conquista uma
posição igualmente nova. Quando Nicolau de Cusa expõe e
defende sua concepção básica de saber, quando explica que
toda ciência não é outra coisa senão o desenvolvimento e a
explicação do que está contido, de forma intrincada e compac­
tada, na essência simples do espírito, não só ele se refere às
categorias fundamentais da lógica, da matemática e da ciência
exata da natureza, como também aos elementos do saber téc­
nico e da criação técnica. Assim como o espírito deriva o con­
ceito de espaço a partir do princípio do ponto que traz em si,
assim como deriva a noção de tempo a partir do simples "ago­
ra" e a noção de número a partir da unidade, assim também

2 1 . Para uma exposição mais completa do problema, é indispensável


a consulta à obra de Olschki aqui citada ( Geschichte der neusprachlichen
wissenschaftlichen Literatur, I, pp. 3 ss., 30 ss., 53 ss.
98 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

toda ação do espírito sobre a natureza deve ser precedida de


um "proj eto" ideal. Todas as artes e oficios têm sua raiz num
tal projeto. Paralelamente aos predicamentos da lógica, aos
conceitos da geometria e da aritmética, da música e da astro­
nomia, é preciso citar também as conquistas da técnica - a li­
ra de Orfeu e o astrolábio de Ptolomeu, por exemplo - como
testemunhos da autonomia e da eternidade do espírito22• E o
fato de o espírito não permanecer em si mesmo ao aplicar sua
própria força criadora, ao se debruçar sobre a "matéria" sen­
sível a fim de modelá-la e transformá-la, de modo algum sig­
nifica que ele perca algo de sua natureza e essência puramen­
te intelectuais. Com efeito, também aqui o caminho que leva
para cima é o mesmo que leva para baixo: o intelecto só desce
ao sensível para elevar até a si o mundo dos sentidos. Sua ação
sobre o mundo material, que aparentemente se lhe opõe, cons­
titui precisamente a condição de seu próprio reconhecimen­
to e da realização de sua própria forma, da passagem de uma
existência potencial para uma existência atual23. A partir daí,
é possível entender como do idealismo de Nicolau de Cusa
parte uma possante influência "realista"; como o renovador
da doutrina platônica da anamnese pôde se transformar em
líder dos grandes "empiristas", dos fundadores da moderna
ciência experimental. Isto porque também para eles não há

22. Cf. esp. De ludo globi, Lib. II (foi. 232): "A alma cria, por sua in­
venção, novos instrumentos para discernir e conhecer, como Ptolomeu, o
astrolábio, e Orfeu, a lira, assim como muitos outros. Pois os inventores
não criaram nunca nada por meio de algo exterior, mas antes de seu próprio
pensamento. Desenvolveram, portanto, o que concebiam na matéria sensí­
vel ." Cf. também Excitat. , Lib. V, foi. 498 : "Nesta natureza (a intelectual),
Deus quis mostrar melhor as riquezas de sua glória: nós vemos de fato que
o entendimento abraça e assimila todas as coisas e tira de si as artes assimi­
ladoras como são a arte do ferreiro ou do pintor." (Cf. p. 69 ss. deste livro . )
23. De conjecturis, l i , p. 1 6 (cf. nota 5 8 , p. 76 deste livro).
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 99

qualquer oposição entre "apriorismo" e "empirismo", visto


que não buscam na experiência senão a necessidade, senão a
própria razão. Quando Leonardo da Vinci se volta para a ex­
periência, ele o faz para nela mesma mostrar as leis eternas e
imutáveis da razão. Para ele, não é a experiência em si que
constitui o seu obj eto autêntico, mas os fundamentos da ra­
zão, as ragioni que ela oculta e, de certa forma, incorpora. O
próprio Leonardo afirma que a natureza está repleta de tais
"fundamentos da razão", nunca presentes na experiência: la
natura é pie na d 'infinite ragioni che non furono mai in ispe­
rienza24. Também Galileu envereda pelo mesmo caminho:
na mesma intensidade com que se considera defensor do direi­
to da experiência, ele também enfatiza que o espírito não po­
de criar o conhecimento autêntico, necessário, senão a partir de
si mesmo (da per se). Pelo que se depreende do ambiente ge­
ral em que gravita o pensamento desses grandes mestres, é
possível compreender que a nova ciência da natureza, ao se
desvincular da Escolástica, não precisou romper o laço que a
unia à filosofia da Antiguidade e às tentativas de renová-la,
mas que, ao contrário, pôde ligar-se a ela de forma ainda mais
estreita.

As considerações dos parágrafos precedentes já nos le­


varam para muito além da época na qual se inserem a doutri­
na de Nicolau de Cusa e sua influência imediata. Se mais uma
vez voltarmos nossos olhos retrospectivamente, a questão cru-

24. Les manuscrits de L. de Vinci, ed. Charles Ravaisson, Paris, 1 8 8 1 ,


J . foi. 1 8 r. C f. em especial Cod. Atlant., f. 1 47 v.: "Nenhum efeito é , na natu­
reza, sem razão; compreende a razão e não terás necessidade de experiência."
1 00 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

cial que se impõe é a de saber que importância teve essa dou­


trina para o progresso e para a transformação dos problemas
verdadeiramente "filosóficos" na época do Quattrocento. Nes­
se sentido, porém, tivemos oportunidade de ver que os teste­
munhos históricos permanecem calados. O matemático Ni­
colau de Cusa não tardou a reunir à sua volta um círculo fiel
de discípulos, ao qual pertenciam, além dos alemães Peurbach
e Regiomontanus, também um número expressivo de matemá­
ticos italianos. A Itália daquela época não possuía um repre­
sentante verdadeiramente exponencial no campo da matemá­
tica e também nenhum pensador que pudesse ser comparado
a Nicolau de Cusa em termos de originalidade e de profun­
didade na proposição de problemas. M. Cantor, em seu traba­
lho sobre a história da matemática do séc. XV, sentencia: "A
única cabeça genial, com o selo de inventor, era a de Nicolau
de Cusa; e, se ele não chegou a fazer descobertas importantes
neste domínio, isto talvez se deva ao fato de ele não poder ter
sido exclusivamente um homem da ciência, sobretudo um ma­
temático25. A filosofia da época, ao contrário, por mais que
estivesse enraizada no passado, era rica em temas próprios e
originais. Graças à tradução e aos progressos do trabalho de
revisão crítica das fontes, pouco a pouco revelavam-se à fi­
losofia o "verdadeiro" Aristóteles e o "verdadeiro" Platão. E
os dois filósofos gregos não aparecem como expoentes me­
ramente históricos: a doutrina do amor e a teoria das idéias,
de Platão, assim como a doutrina da alma de Aristóteles, apre­
sentadas sob nova forma, são as forças que atuam diretamen­
te sobre o pensamento da época. O resultado disso é o predo­
mínio, por toda a parte, de um movimento vivo, que não tarda
a exigir que se vá além de cada conquista e de toda a siste­
mática estabelecida. A doutrina de Nicolau de Cusa também

2 5 . M. Cantor, Varies. über Geschichte der Mathematik 2, li, 2 1 1 .


NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 101

é atraída para o interior desse movimento. Como nos mos­


trará um exame mais detalhado, porém, se não se pode negar
a influência de sua doutrina também nesse círculo, por outro
lado tal influência não parte mais do sistema como um todo,
mas de apenas alguns de seus problemas e temas fundamen­
tais. Tais problemas são aceitos e tais temas desenvolvidos,
porém, apenas à medida que podem ser integrados à totali­
dade das novas tarefas filosóficas para as quais se voltam os
olhos dos pensadores da época. E mesmo essa integração não
ocorre sem dificuldades e obstáculos, que se tornam com­
preensíveis quando se têm presentes as transformações inter­
nas pelas quais passou o espírito do "Renascimento'', de mea­
dos do séc. XV até o seu final. Somente uma geração separa
as obras filosóficas capitais de Nicolau de Cusa das de Fici­
no ou Pico; e, não obstante, o confronto entre elas deixa clara
a transformação que se processou não apenas na problemáti­
ca abstrata, mas também em todo o ambiente intelectual, em
toda a atitude diante dos problemas do espírito. Este ângulo
de observação evidencia também o quanto é enganosa a cren­
ça de que o processo de libertação do Renascimento das amar­
ras da "Idade Média" foi do tipo retilíneo, uniforme e pro­
gressivo. Em nenhum sentido trata-se aqui de um desenvol­
vimento tranqüilo e uniforme, de um crescimento simples e
espontâneo. No embate de forças que aqui se realiza, chega-se
sempre a um equilíbrio temporário, totalmente instável. O sis­
tema de Nicolau de Cusa representou, também ele, um tal
equilíbrio frágil na grande disputa que se travou entre o con­
ceito de verdade religioso e filosófico, entre fé e conhecimen­
to, entre religião e cultura do mundo. Mas o otimismo reli­
gioso de Nicolau de Cusa, que ousou abarcar a totalidade do
mundo, que atraía para si e tentava reconciliar o homem e o
cosmos, a natureza e a história, subestimou o poder das for­
ças contrárias que tinham de ser dominadas e controladas.
Este erro trágico revela-se não apenas na filosofia de Nico-
1 02 INDIVÍDUO E COSMOS NA fllOSOFIA DO RENASCIMENTO

lau de Cusa, como também aparece em sua vida, em sua atua­


ção política e eclesiástica. Tal atuação ele a inicia com a luta
contra o poder absoluto do papado, ao qual contrapõe, em
sua obra De concordantia catholica, a doutrina da soberania
da igreja como um todo; uma igreja que, incorporada num
concílio universal, estaria acima de bispos e do Papa. O Pa­
pa representa a unidade da Igreja católica; ele é a imagem da
unidade da Igreja, assim como a Igreja é a imagem de Cristo:
mas assim como o modelo é superior à cópia, assim como
Cristo é superior à Igrej a, também a Igreja está acima do Pa­
pa26. Essa convicção teórica, porém, já naufraga por ocasião
das intempéries havidas no Concílio da Basiléia: Nicolau de
Cusa vê-se obrigado, então, a passar para o lado de seus adver­
sários a fim de salvaguardar o seu ideal de unidade da Igreja e
de preservar a Igreja do cisma e da ruína. Fil ia-se ao partido
papista, ao qual permanece ligado a partir de então e do qual
passa a constituir um dos mais sólidos pilares. Toda a sua vi­
da, toda a sua atividade política e intelectual se desenvolve no
interior desse círculo da hierarquia eclesiástica. Em nome des­
sa hierarquia ele assume a luta contra reivindicações seculares
hostis e a leva às últimas conseqüências, sob o risco de per­
der a liberdade e até a própria vida27• É possível identificar
nele próprio, portanto, como essas forças opostas, que em seu
pensamento ele tenta conciliar e fundir numa unidade e nu­
ma harmonia sistemáticas, tendem a se separar no âmbito de
sua própria vida, na realidade imediata na qual ele está inseri-

26. "Da mesma forma que Cristo é a verdade cuja figura e significa­
do é a pedra, ou seja, a Igreja, logo a pedra é a verdade, cujo significado e
figura é Pedro. Donde claramente resulta que a Igreja está acima de Pedro
como Cristo está acima dele." De concord. Catho/ica, II, 1 8, foi. 738.
27. Para um aprofundamento deste ponto, cf. A. Jaeger, Der Streit des
Kardinals Nikolaus von Cusa mit dem Herzoge Sigmund von Ósterreich, 2
vol . , Innsbruck, 1 86 1 .
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 03

do. Se, em meio a essas decepções, Nicolau de Cusa conti­


nuou sendo o grande otimista e o grande discípulo de Santo
Irineu, se continou acreditando na possível e necessária
"coincidência" dos opostos, a evolução posterior da história,
por outra parte, encarregou-se de empalidecer cada vez mais
essa esperança. O curso da história mostrou que as novas for­
ças, que começavam a ganhar uma consciência clara de si
mesmas, foram refratárias a todo e qualquer obstáculo, a todo
e qualquer estreitamento de seu processo evolutivo; que ca­
da uma delas reivindicava para si a plena autonomia. Diante
de tal reivindicação, a filosofia podia se comportar de duas
maneiras. De um lado, podia fomentá-las e apoiá-las, demo­
lindo pedra por pedra o alicerce do antigo edificio filosófico
erigido pela Escolástica; de outro, teria de tentar restaurar es­
se edificio com os meios que lhe oferecia a cultura clássico­
humanista. Toda a filosofia do Quattrocento está dividida entre
essas duas tendências: mas o movimento reacionário, a ten­
tativa de "restauração" das formas de pensamento escolásti­
cas, aos poucos vai ganhando mais força e propagação, até
atingir o seu apogeu nas últimas décadas do séc. XV, época
marcada pelo predomínio da academia platônica de Floren­
ça. A filosofia transforma-se, então, em couraça contra as
forças seculares que ameaçam por todos os lados. Mas ela
não pode cumprir essa tarefa sem colocar em risco novamen­
te os primeiros passos trilhados por Nicolau de Cusa rumo a
uma metodologia autônoma e específica sem voltar a con­
verter-se mais e mais em "teologia". Não é por acaso que
Marcilio Ficino deu à sua obra principal o título de Theolo­
gia platonica ; que Pico della Mirandola inicia sua atividade
filosófica e literária com o Heptaplus, um comentário em for­
ma de alegoria ao mosaico da história da criação. Se nos gran­
des sistemas idealistas de tempos mais recentes o platonis­
mo é entendido como fundamento da filosofia científica, se
ele leva um pensador como Leibniz a postular uma perennis
1 04 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

quaedam philosophia (certa filosofia perene), o platonismo


florentino, por sua vez, deu-se por satisfeito com o postu­
lado de uma pia quaedam philosophia28 (certa filosofia
piedosa). E, nesse contexto, a forma medieval-eclesiástica da
fé, isto é, a fides implicita (fé implícita), também deve ser
restaurada: ego certe maio divine credere, quam humane
scire29 (eu certamente prefiro crer divinamente do que sa­
ber humanamente), é o que lemos numa carta de Ficino. Esta
fórmula mordaz expressa o quanto havia se acirrado nova­
mente a tensão entre a fé e o conhecimento. Ainda que, no
princípio da docta ignorantia, Nicolau de Cusa defina como
tal essa tensão, ele tinha consciência de possuir neste mes­
mo princípio os meios de superá-la através de um caminho
filosófico, especulativo. Ficino e Pico também tentam enve­
redar por esse caminho da especulação, mas o início e o fim
deste caminho, seu ponto de partida e de destino, não mais po­
dem assegurar o conhecimento como tal, só a revelação; uma
revelação entendida num sentido meio místico, meio histórico.
Assim, só chegaríamos a uma imagem totalmente uni­
lateral da atmosfera em que vivia o círculo florentino, se o ava­
liássemos em primeiro lugar a partir dos hinos de Lorenço, o
Magnífico, ou então por seus Canti carnascialeschi. Se é ver­
dade que nesse círculo o culto da arte e do belo se transfor­
mam no culto do mundo e dos sentidos, se é verdade, também,

2 8 . "Não foi sem a divina providência querer chamar miraculosa­


mente para si todos os homens conforme o gênio de cada um que nasceu
outrora uma certa fi losofia piedosa entre os persas, sob Zoroastro, e entre
os egípcios sob Mercúrio, em ambos os lados, de acordo com ela mesma.
Em seguida seria alimentada entre os trácios sob Orfeu e Aglaofemo. Cres­
ceria também rapidamente com Pitágoras entre os gregos e os itálicos. Aper­
feiçoar-se-ia, contudo, verdadeiramente pelo divino Platão em Atenas." Fi­
cino, Epistolae, Lib. VIII, Opera, Basiléia, s/a, foi. 87 1 .
29. Epistolae, Lib. V, op. cit. , foi. 783.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 05

que a alegria trazida só pelas coisas "deste mundo" se mani­


festa com todo o vigor e liberdade, também é verdade que ou­
tros sons não tardam a se mesclar à expressão desse senti­
mento fundamental. Antes mesmo do surgimento de Savo­
narola e de sua atuação histórica efetiva é possível sentir a
sombra de Savonarola, por assim dizer, pairando por sobre
esse círculo. Só podemos explicar o fato de a Academia de
Florença, na pessoa de seus representantes exponenciais, ter­
se rendido a Savonarola, ter-se curvado a ele quase sem re­
sistência, se levarmos em conta os traços ascéticos que se
mesclam desde o início à sua cosmovisão. Na vida de Ficino
são justamente esses traços que determinam cada vez mais a
forma espiritual e toda a atitude moral. O próprio Ficino re­
latou que, durante uma séria enfermidade que o acometeu
aos 44 anos, procurou em vão consolo na filosofia e na lei­
tura de escritores profanos. Sua cura só teria sido obtida de­
pois de ele ter feito um voto à Virgem Maria e de ter implorado
a ela por um sinal de cura. A partir de então, Ficino interpre­
ta essa enfermidade como um sinal divino de que a filosofia,
sozinha, não basta para se obter a verdadeira cura da alma:
atira ao fogo o seu comentário de Lucrécio para não se tor­
nar co-responsável pela propagação de erros pagãos e deci­
de colocar toda a sua atividade filosófica e literária a serviço
exclusivo da religião, do fortalecimento e da propagação da
fé3º.Também sobre a imagem de Pico della Mirandola, tão
luminosa e radiante aos olhos dos contemporâneos que o con­
sideravam um verdadeiro "fênix dos espíritos'', começam aos
poucos a incidir sombras cada vez mais profundas e escuras.
Passado o primeiro período promissor de ascensão, repleto

30. Cf. Ficino, Epistolae, Lib. 1 (foi. 644); cf. também L. Galeotti,
Saggio intorno alia vi ta ed agli scritti di Marsilio Ficino . Arch. storico ita­
liano, N . S . , T. IX, pp. 33 s.
1 06 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

de uma confiança quase ilimitada na força do espírito humano


e dos ideais de vida e de cultura humanistas, começam a pro­
liferar em sua obra os traços ascéticos. A correspondência de
Pico revela de forma particularmente clara e inequívoca es­
sas marcas da negação do mundo e do desprezo por ele3 1 . Sa­
vonarola não lutou por nenhuma outra alma com tamanha te­
nacidade, paixão e fanatismo, do que pela alma de Pico. E,
ao final, saiu-se vitorioso. Pouco antes de sua morte, Pico está
prestes a dar ouvidos à repetida advertência de Savonarola
para que se retire ao Mosteiro de São Marcos. Assim, existe
uma renúncia ao final desta vida, um retorno resignado não
apenas ao dogma religioso, mas também aos sacramentos da
Igreja e às formas da vida cristã medieval.
Não obstante, a influência forte e direta que a academia
platônica exerceu sobre os grandes homens de Florença - uma
influência que em alguns momentos chega a atingir o espíri­
to friamente cético de Maquiavel - não poderia ser explicado,
se nós o considerássemos aqui somente como um movimen­
to reacionário. Se, de um lado, o interesse religioso-teológico
determina toda a atitude e todo o desenvolvimento do pensa­
mento filosófico, de outro, o próprio espírito religioso havia
ingressado, nesse meio tempo, numa nova fase. O trabalho fi­
losófico-intelectual da primeira metade do Quattrocento, a
partir do qual se desenvolveu um conceito de religião novo,
"moderno", não fôra em vão. Se nos é dificil mostrar em de­
talhe e acompanhar o fio da meada que une a Academia pla­
tônica com esse trabalho, de outra parte a relação geral, di­
reta, se nos revela com clareza. A doutrina de Ficino não se
relaciona com a doutrina de Nicolau de Cusa apenas por im­
portantes determinações na proposição e na solução do pro-

3 1 . Cf. em especial Briefe an seinen Neffen Giovan Francesco. Pico,


Opera, pp. 340 ss., 344 ss.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 07

blema do conhecimento. Mais do que em questões fundamen­


tais da lógica, a relação entre elas se torna visível em ques­
tões de metafisica e de filosofia da religião. A nova relação
entre Deus e o mundo, que havia sido estabelecida pelo tra­
balho especulativo de Nicolau de Cusa e que conferiu a este
trabalho o seu caráter singular, continua válida para Ficino,
a despeito de todas as correntes de pensamento contrárias. E
ela recebe agora uma nova confirmação a partir de um tema
que estava relativamente distante de Nicolau de Cusa. En­
quanto Nicolau de Cusa busca os fundamentos da sua ''justi­
ficativa" religiosa do mundo essencialmente em problemas
da matemática e da cosmologia, a Academia de Florença - a
fim de lançar as bases de sua teodicéia - volta-se cada vez
mais para o milagre do belo, para o milagre da forma e da
criação artísticas. A beleza do universo evidencia a sua ori­
gem divina e é a prova cabal, mais elevada, de seu valor es­
piritual . Ela se manifesta como algo absolutamente obj etivo
nas próprias coisas : como medida e forma, relação e harmo­
nia; mas o espírito interpreta essa objetividade justamente
como algo que lhe pertence, como algo nascido de sua pró­
pria essência. Se até o entendimento do homem comum, não
letrado, é capaz de diferençar entre belo e feio, se ele foge
do que não possui forma para buscar abrigo no que está for­
mado, conclui-se daí que, independentemente da experiência
e de uma formação, ele traz consigo uma norma estabelecida
do belo. "Todo espírito exalta a forma redonda logo que a en­
contra pela primeira vez nas coisas, e não sabe porque a exalta.
Da mesma forma exaltamos nas construções a simetria das
paredes, a disposição das pedras, a forma das janelas e por­
tas e, no corpo humano, a proporção dos membros ou numa
melodia o acorde dos sons. Se todo espírito aprova tudo isso
e se sente impelido a aprová-lo, mesmo sem conhecer o mo­
tivo de tal aprovação, isso só pode acontecer por força de um
instinto natural e necessário ( . . . ) Os motivos de tal julgamento
1 08 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

são, portanto, inatos ao espírito."32 Assim, a harmonia trans­


forma-se no selo que Deus imprimiu à sua obra a fim de eno­
brecê-la e de colocá-la numa relação íntima e necessária com
o espírito humano. Somente à medida que o espírito humano,
com o seu conhecimento do belo, com a medida que encon­
tra dentro de si mesmo, aparece entre Deus e o mundo, é que
ambos se fundem numa unidade verdadeira. Novamente nos
deparamos aqui com a noção de mi('.rocosmos na formulação
característica que lhe tinha sido conferida por Nicolau de Cusa.
Sob o ângulo de tal formulação, o homem aparece como laço
de união do mundo, não somente porque reúne em si todos
os elementos do cosmos, mas também porque nele se defi­
ne, de uma certa forma, o destino do cosmos. Sendo o repre­
sentante do universo e um fragmento de todas as suas forças,
o homem não pode ser elevado ao divino sem que, por força
desse processo, também se processe nele a elevação de todo
o universo. A redenção do homem não significa, portanto, a
sua libertação do mundo, que continuaria a existir como a es­
fera inferior dos sentidos; sua redenção se estende, então, à
totalidade do ser. A Academia de Florença adota este pensa­
mento e ele se transforma num dos motivos mais importan­
tes e mais fecundos da filosofia da religião de Ficino. Tam­
bém em Ficino a alma é definida como o "meio" espiritual do
mundo, como o "terceiro reino" entre o mundo do inteligível
e o mundo do sensível. Ela está além do tempo, pois encerra
o tempo em si mesma; simultaneamente, porém, está entre as
coisas que não têm qualquer participação no tempo; é móvel e
imóvel, sjmples e múltipla33. A alma contém o superior, mas
nem por isso abandona o inferior, pois não se contenta com um
único movimento, mas preserva, no interior desse movimen-

3 2 . Ficino, Theologia platonica sive de immortalitate animae, Lib.


XI, Cap. V (foi. 255).
3 3 . Cf. Theologia platonica, Lib. 1 , Cap. 3 ss.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 09

to, a possibilidade de retorno e de mudança total de direção.


Dessa forma, a alma abarca em si o universo de forma mais
dinâmica do que estática: ela não se compõe de partes isola­
das que constituem o macrocosmos, mas, por intenção, está
direcionada para todas elas sem, contudo, persistir numa ou
contentar-se exclusivamente com uma dessas direções34. E
esta direção não lhe é dada a partir do exterior, mas procede
de dentro dela mesma. A alma não é atraída para baixo, para
o mundo sensível, por um desígnio superior ou por uma sim­
ples força da natureza; da mesma forma, ela não é elevada ao
supra-sensível por ação da graça divina, que recebe de forma
passiva, por assim dizer. Neste ponto, Ficino diverge de San­
to Agostinho; em quase todos os outros pontos da matéria
religiosa, porém, Santo Agostinho representa para ele - assim
como para Petrarca - a autoridade máxima. Mais uma vez,
esse ponto de divergência revela uma inclinação para o pen­
samento de Nicolau de Cusa, pois este, seguindo a tendência

34. "Em toda a obra de Deus, deve-se estabelecer a conexão das par­
tes a fim de que também a obra seja de um único Deus. Deus e o corpo são
extremos na natureza, muito diferentes um do outro. O anjo não une esses
extremos, pois, inteiramente, eleva-se a Deus, negligenciando seu corpo
( . . . ) A qualidade também não con�cta os extremos, pois ela pende para o
corpo, deixa de lado os seres superiores e, abandonando o incorpóreo, tor­
na-se corporal. Até aqui tudo é extremo, os seres superiores e inferiores fo­
gem e as coincidências, carentes de vínculo. Mas essa tal terceira essência
intercalada existe, de modo que mantenha as regiões superiores sem aban­
donar as inferiores ( . . . ) De fato, imóvel, ela também é móvel. De um lado,
ela se acomoda com os seres superiores; de outro, com os seres inferiores.
Se ela se acomoda com os dois, ela procura os dois. É então por isso, com
um tipo de instinto natural, que se eleva até as regiões superiores e desce às
inferiores; subindo, não abandona as inferiores; descendo, ela não deixa as
coisas sublimes. Pois, se ela abandonar umas ou outras, penderá ao outro
extremo e não haverá mais fora dela uma verdadeira união no mundo."
Theologia platonica, Ili, 2, foi. 1 1 9.
1 1Ü INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

geral que predomina em sua doutrina filosófica, teve de se


opor ao dogma da predestinação de São Paulino e de Santo
Agostinho. Por menos que ele tenha tentado contestar ou res­
tringir a eficácia da graça, ainda assim ele estava plenamente
convencido de que o verdadeiro impulso religioso não vinha
de fora, e sim do âmago da alma, pois a essência da alma está
j ustamente na capacidade do movimento autônomo, da auto­
determinação. Em De visione Dei, a alma volta-se para Deus
e diz: "Não Te vê aquele que não Te tem. Não Te entende
aquele a quem não Te entregas. Mas como poderia eu pos­
suir-Te? Como pode minha voz chegar até a Ti, que és o ina­
tingível? O que devo pedir-Te? Que Te dês a mim, Tu que és
tudo? Há algo de mais absurdo? E como poderias Tu Te da­
res a mim, sem que me desses ao mesmo tempo o céu, a ter­
ra e tudo o que neles existe?" Mas a resposta que a alma re­
cebe de Deus dirime esta dúvida: "Sê tu mesmo e eu serei
teu." Na liberdade do homem está implícito o querer-se ou
não a si mesmo; e só quando a sua escolha recai espontanea­
mente sobre o primeiro é que o homem recebe Deus em re­
compensa. A escolha, a decisão final cabe a ele próprio, ho­
mem35. Esta noção fundamental também é a base da obra De
christiana re/igione, de Ficino36. A partir dela, o tema da re-

3 5 . De visione Dei, Cap. VII: "E quando eu assim repouso, no silêncio


da contemplação, Senhor, então tu me respondes nas minhas entranhas,
dizendo: que sej as tu teu e eu serei teu. Ó Senhor ( . . . ) tu puseste minha li­
berdade para que eu seja, se eu quiser, de mim mesmo. Daí, se não sou de
mim, tu não és meu ( . . . ) E porque tu a puseste em minha liberdade, tu não
me obrigas, mas esperas que eu peça para ser de mim mesmo. "
3 6 . Vide, por exemplo, Cap. 3 5 (foi. 74): "Deus não obriga à salvação
os homens, que foram, desde o início, criados livres. Ele os atrai um a um
por constantes inspirações, de modo que os que vierem até Ele, Ele os endu­
rece com sofrimentos, Ele os persegue com desgraças; e como o ouro se pro­
va no fogo, a alma se prova na atribulação." etc. Cf. além disso Epistolae,
Lib. II (foi. 683 ): "Se alguém porém disser que o pensamento não pode ser
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 111

denção experimenta uma outra alteração no sentido de que


também o próprio universo, também o próprio mundo dos sen­
tidos aparecem redimidos no sentido religioso. A redenção do
homem não conferiu um novo ser somente a ele: por força des­
se novo ser, também o universo ganhou uma nova forma. Essa
transformação, essa reformatio, equivale a uma recriação es­
piritual. À medida que o homem se conscientiza de sua pró­
pria divindade, à medida que consegue superar a desconfian­
ça que tem de sua própria natureza, desaparece também sua
desconfiança do mundo. Ao se fazer homem, Deus determi­
nou e fez com que nada mais existisse que não possuísse for­
ma, nada que fosse pura e simplesmente desprezível37• Ele
não poderia elevar o homem até Si mesmo, sem enobrecer,
através do próprio homem, também o mundo. Quanto mais
profundamente o homem entende sua própria natureza, quan­
to mais ele se compenetra da espiritualidade pura de sua ori­
gem, tanto maior é o valor que atribui ao mundo; da mesma
forma, inversamente, o abalo de sua fé em si mesmo o conde­
naria - e a todo o cosmos - ao nada, à esfera da morte. Esta
formulação da noção de redenção - como Ficino enfatiza ex-

movido até a inteligência por coisas estranhas ou extrínsecas e que ele


mesmo concebe de si suas espécies e seus objetos por uma virtude própria
e admirável, nós diremos que disso se segue que o pensamento é um
âmago incorpóreo e eterno, pois ele não se move de modo algum por uma
coisa estranha, mas sempre por si mesmo."
3 7 . De christiana religione, Cap. XVIII (foi. 22): "Reformar as coi­
sas disformes não é menos que simplesmente formá-las desde o início ( . . . )
Também foi preciso que Deus, criador de todas as coisas, tomasse perfeito
tudo que era deficiente da mesma maneira que ele tinha criado tudo por
sua palavra invisível ( . . . ) Que é mais sábio que fazer a admirável beleza do
universo ser a união entre a primeira e a última razão? ( . . . ) Assim, então,
proclamou e fez que nada no mundo fosse disforme, que nada, no fundo,
devesse ser desprezado, quando juntou as coisas terrestres para o rei dos
céus e igualou-as de alguma maneira às coisas celestes."
1 12 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

pressamente - não mais reconhece qualquer gradação hierár­


quica, qualquer mediação. Assim como Deus se uniu ao ho­
mem sem qualquer meio de ligação (absque medio ) , também
nós precisamos estar cientes de que nossa salvação consiste
em nos unirmos a ele sem mediação38. 1Não há dúvida de que
nos encontramos aqui no caminho que conduz à Reforma; de
outro lado, porém, o tema que prepara o terreno para essa trans­
formação aparece aqui como absolutamente fundamental ao
Renascimento. De fato, a autoafirmação do homem transfor­
ma-se, ao mesmo tempo, em afirmação do mundo : a noção
de humanitas confere também ao macrocosmos um conteúdo
e um sentido novos. Só a partir desse ponto de vista é possí­
vel entender a profunda influência que a Academia platôni­
ca de Florença teria de exercer sobre os grandes artistas do
Renascimento. Eliminar do mundo tudo o quanto seja de apa­
rência deformada e reconhecer a participação na forma da­
quilo que não possui forma: para Ficino, esta fórmula resume
o conhecimento filosófico-religioso. Mas esse conhecimen­
to não pode limitar-se à esfera do mero conceito; ele precisa
ser traduzido em atos e neles confirmar sua validade. E aqui
começa o trabalho do artista. Aquilo que a especulação só po­
de postular, o artista realiza. O homem só é capaz de se asse­
gurar de que o mundo dos sentidos possui forma e estrutura
à medida que continuamente lhe atribui forma. A beleza do
mundo sensível, em última análise, não provém dele mesmo,
mas encontra seu fundamento ao tornar-se o meio, por assim
dizer, através do qual o homem exercita sua força criativa e no
qual essa força se reconhece a si mesma. Assim considerada,

3 8 . "Porque Deus se juntou ao homem sem intermediário, é preciso


que não esqueçamos que nossa felicidade consiste em l igarmo-nos a Deus
sem intermediário ( . . . ) que os homens, então, cessam de desconfiar de sua
divindade, desconfiança pela qual eles mergulham entre os mortais." De
christiana religione, Cap. XIX (foi. 23).
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 13

porém, a arte não apenas não está fora do ponto de vista reli­
gioso, mas, ao contrário, transforma-se num momento do pró­
prio processo religioso. Se a redenção é entendida como re­
novação da forma do homem e da forma do mundo, ou seja,
como autêntica reformatio39, o foco da vida espiritual de uma
certa forma está no ponto em que a "idéia" ganha corporei­
dade, no ponto em que a forma não-sensível, que habita o es­
pírito do artista, irrompe para o mundo visível e nele se con­
cretiza. Toda a especulação, portanto, está fadada ao erro, se
ativer seus olhos unicamente ao que já possui forma, em
vez de mergulhar no ato fundamental de conferir forma. "Ó
pesquisador das coisas", nos diz Leonardo da Vinci, "não te
gabes do conhecimento sobre as coisas que a natureza pro­
duz em seu curso habitual ! Regoj iza-te, ao contrário, por co­
nhecer o obj etivo e o fim das coisas que são nascidas do t�u
espírito ! "4º Desta espécie são para ele a ciência e a arte: pois
a ciência é uma segunda criação da natureza, produzida pela
razão, e a arte, uma segunda criação da natureza, produzida

39. Em suas criteriosas pesquisas sobre a história das palavras e das


idéias, Konrad Burdach mostrou que os conceitos de renovação e de re­
nascimento, de renasci e de reformatio, têm suas raízes na esfera religiosa
das idéias e só aos poucos passam desta para a esfera do mundo (Sinn und
Ursprung der Worte Renaissance und Reformation. Sitzungsber. der Berl.
Akademie d. Wiss., 1 9 1 O; reed. em Reformation, Renaissance, Humanis­
mus, Berlim, 1 9 1 8) . Infelizmente, Burdach não envederou pelos caminhos
da literatura.fi/osó.fica do Renascimento; e, não obstante, é justamente ela
que constitui um dos mais importantes meios e elos de ligação no processo
por ele descrito. Uma passagem da obra De christiana re/igione, de Fici­
no, como a que citamos antes (nota 3 7, p. 1 1 1 ), revela-nos com toda a cla­
reza a transformação do pensamento : o reformare significa a recriação
espiritual do ser através do processo da redenção e, ao mesmo tempo, con­
tém em si a "descoberta do mundo e do homem", que se processa através
dos novos elementos culturais seculares introduzidos.
40. Les manuscrits de Léonard da Vinci (ed. Ravaisson-Mollien),
G fol . 47 r.
1 14 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

pela imaginação41 . E ambas, razão e imaginação, não mais se


opõem como instâncias estranhas uma à outra; ambas nada
mais são, isso sim, do que duas formas de manifestação di­
ferentes da mesma força primordial do homem para criar e
dar forma.
Se passarmos em revista novamente a história prévia
desse pensamento, seremos reconduzidos para a importante
transformação que a doutrina de Nicolau de Cusa operou no
tema fundamental do espírito humano como "imagem e se­
melhança" do próprio Deus. Tal "similitude" não pode mais
significar, em hipótese alguma, algo objetivo ou substancial,
pois esta interpretação estaria excluída de antemão pelo prin­
cípio da docta ignorantia, pela proposiçãofiniti et infiniti nu/la
proportio (não há proporção alguma do finito e do infinito).
Assim, Deus e o homem não se parecem nem em seu ser nem
em sua obra, pois se da criação de Deus nascem as próprias
coisas, ao espírito humano cabe operar tão-somente com os sig­
nos, com os símbolos dessas mesmas coisas. São eles que o es­
pírito humano coloca diante de si, aos quais ele se refere em
seu conhecimento e com os quais ele inter-relaciona segun­
do regras rigidamente estabelecidas. Se Deus cria a realida­
de das coisas, o homem constrói a ordem do ideal: se àquele
cabe a vis entificativa (força criativa), a este cabe a vis assi­
milativa42 (força assimilativa). Mas se, segundo este princípio,

4 1 . Trattato dei/a pittura ( ed. Mainzi), p. 3 8 .


4 2 . " S e t u disseres que o pensamento divino é o todo d a verdade das
coisas, tu dirás que nosso pensamento é o todo das assimilações das coisas,
de modo que ele é o todo das noções. A concepção do pensamento divino é
a produção das coisas, a concepção de nosso pensamento é a noção das
coisas. Se o pensamento divino é uma entidade absoluta, então sua con­
cepção é a criação dos entes e a concepção de nosso pensamento é a assimi­
lação dos entes: o que convém ao pensamento divino como à verdade infini­
ta convém ao nosso pensamento como à sua imagem próxima." ldiotae, Lib.
Ili, "De mente", Cap. 3, cf. especialmente Cap. 7.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 15

o espírito divino e o humano pertencem de uma certa forma a


dimensões diferentes, se são díspares entre si no que respei­
ta à forma de sua existência e à substância de suas realiza­
ções, então a relação que existe entre ambos está na natureza
mesma do ato de produzir. Só nela é que reside o verdadeiro
tertium comparationis entre eles. Tal relação não pode ser en­
tendida, em nenhuma hipótese, através de uma comparação
extraída do mundo acabado das coisas, porque não se trata de
uma relação estática, e sim dinâmica. Não se pode postular ou
se procurar aqui uma identidade de essência na substância,
mas uma correspondência no ato, na operação. Com efeito,
por mais que queiramos atribuir à cópia a essência substan­
cial do modelo, a cópia não deixará de ser uma cópia morta.
Somente uma concordância na forma do agir é capaz de lhe
conferir a forma de vida. Se pensamos em Deus, que é a for­
ça criadora por excelência, como "arte absoluta", então have­
ria dois caminhos para esta arte, caso ela tomasse a decisão
de se corporificar numa imagem : ou criar uma imagem do­
tada de uma perfeição ao nível máximo de suportabilidade da
coisa criada, mas que, em contrapartida, justamente por estar
no limite da perfeição possível, não pode mais ultrapassar es­
ses limites; ou então produzir um imagem imperfeita em si,
mas conferir a esta imagem o poder de elevar-se constante­
mente e de fazer-se cada vez mais semelhante ao modelo. Não
há dúvida sobre a qual dessas duas imagens deva ser dada a
primazia, pois a primeira estaria para a segunda assim como
o retrato de um homem, igual ao seu original em todos os tra­
ços, mas mudo e inerte, está para outra imagem, em si menos
semelhante, mas que recebeu de seu criador o dom de mo­
ver-se. E é justamente nesse sentido que o nosso espírito é a
imagem perfeita e viva da arte infinita, pois por mais que - no
momento mesmo em que é criado - ele esteja em desvantagem
em relação a essa arte infinita, ainda assim ele possui uma
força inata, através da qual pode éonferir à sua criação uma
1 16 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

forma cada vez mais semelhante à dessa mesma arte infini­


ta43. A prova de sua perfeição específica consiste, portanto,
no fato de ele não se deter diante de qualquer objetivo atin­
gido, mas de constantemente indagar para além dele e de es­
forçar-se para vencê-lo. Assim como o olho físico j amais en­
contra limite ou satisfação em tudo o que vê, pois o olho nunca
se sacia de ver, também a visão intelectual não se saciará
j amais com a visão da verdade. Este talvez sej a o ponto em
que o espírito fáustico do Renascimento encontra sua expres­
são filosófica mais clara e sua j ustificativa filosófica mais
profunda. O ímpeto rumo ao infinito, a incapacidade de per­
sistir em algo dado ou alcançado, não é culpa, não é altivez do
espírito, mas é, isso sim, o selo de sua destinação divina, de
sua indestrutibilidade44• Passo a passo é possível acompanhar
como esse tema fundamental e característico atinge todas as
esferas da vida intelectual e espiritual do Renascimento e co­
mo ele vai se transformando no interior de cada uma delas.
Ele é o núcleo da teoria da arte de Leonardo da Vinci45, assim
como é o núcleo da doutrina filosófica da imortalidade, de Fi­
cino. Nicolau de Cusa tinha estabelecido uma direção e um
significado tríplices para o conceito de infinitude: ao Deus

43 . Vide ldiotae, Lib. III, "De mente", Cap. 1 3 , foi. 1 69.


44. "Da mesma forma que o poder de visão sensível é inesgotável dian­
te de tudo que é visível (jamais, de fato, o olho se satisfaz com a visão), assim
também a visão intelectual j amais se satisfaz com a visão da verdade, pois
sempre o poder de ver é excitado e fortificado. Da mesma forma nós nos
submetemos a nós mesmos: quanto mais progredimos no conhecimento
tanto mais somos capazes de receber, tanto mais temos desejo de progre­
dir, e está aí o signo da incorruptibilidade do entendimento." Excitai. , Lib. V
(Ex. serm . : "se alguém observar meu discurso"), foi. 488.
45. Cf., por exemplo, Leonardo, Tratt. dei/a pittura, p. 2 8 : "Os mode­
los naturais são finitos e as obras que o olho comanda às mãos são infini­
tas, como demonstra o pintor ao fingir infinitas formas de animais e de er­
vas, de plantas e de paisagens."
NICOLA U DE CVSA E A ITÁLIA 1 17

entendido como infinito absoluto, como o máximo que, como


tal, permanece inatingível ao intelecto do homem, opõem-se
duas formas do �nfinito relative. A primeira delas se nos apre­
senta no mundo; a segunda, no espírito humano. Na primei­
ra, a infinitude do absoluto se apresenta e se reflete na ima­
gem de um universo sem fronteiras espaciais, que se estende
de forma ilimitada; na segunda, a relação se expressa no fato de
o espírito, em sua marcha progressiva, não reconhecer qual­
quer ne plus ultra, qualquer fronteira para o seu esforço. Ain­
da que esta noção fundamental, tomada em seu aspecto cos­
mológico, só venha a surtir seus efeitos muito tempo depois,
na filosofia da natureza do séc. XVI e especialmente em Gior­
dano Bruno, ela é reconhecida e desenvolvida pela Escola de
Florença sob o aspecto de psicologia especulativa. A obra
principal de Ficino, Theologia platonica, baseia-se inteira­
mente nela. Por mais que esta obra se apóie em modelos da
Antiguidade e da Idade Média, por mais que renove todos os
argumentos já apresentados por Platão e Plotino, pelos neo­
platônicos e por Santo Agostinho para a indestrutibilidade
da alma, ainda assim toda a ênfase da argumentação e todo o
pathos do conhecimento recaem sobre a ponderação de que
o espírito não pode ter um fim no tempo porque ele próprio é
quem produz todos os limites temporais, todas as divisões do
fluxo contínuo do vir-a-ser em intervalos e períodos determi­
nados. Este conhecimento acerca do tempo, acerca de seu
desenrolar contínuo e acerca das medidas determinadas gra­
ças às quais este desenrolar é, de uma certa forma, retido e
"fixado" pelo pensamento, é aquilo que, de uma vez por to­
das, eleva o espírito para além do tempo46• E também somos

46. "O pensamento divide os corpos em numerosas partes e em par­


tículas das partes, juntando, sem fim, número sobre número. Encontra os
modos das figuras e suas proporções mútuas e também inumeráveis com­
parações de números; ele estende as linhas no céu além de todos os limites,
1 18 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

levados à mesma conclusão pelo lado da vontade, pois esta


só se torna uma vontade verdadeiramente humana à medida
que transcende a todo e qualquer objetivo finito. Se toda a
existência, se toda a vida natural, se satisfaz num determina­
do círculo e tende a persistir em seu estado, para o homem,
ao contrário, tudo o que foi atingido parece insignificante en­
quanto ainda houver alguma coisa a conquistar. Para ele, não
há um momento do tempo em que possa descansar, um lugar
em que possa estacionar47• Este pensamento atinge sua sig-

em todos os sentidos. Para o passado, produz o tempo sem começo; para o


futuro, sem fim. Pensa não somente algo mais antigo para além de todo tem­
po, mas também algo mais vasto para além de todos os lugares ( . . . ) Tudo
isso ( . . . ) me parece provar antes de toda coisa que a força do pensamento é
ilimitada, que ela descobre ser ela própria o infinito e se define como tal.
Como o conhecimento se realiza por uma certa equação do pensamento com
as coisas, o pensamento deve, nesse sentido, igualar-se ao infinito que ele
conhece. É preciso ser infinito para igualar a infinidade. E se o tempo que
mede o movimento por uma certa sucessão deve ser infinito, se o movimen­
to for infinito, quanto mais infinito deve ser o pensamento, que mede não
somente o movimento e o tempo por uma noção estável, mas também infini­
ta ela mesma? Como é necessário que a medida para isso que ela mede tenha
proporção, do infinito ao infinito, não há nenhuma proporção." ( Theologia
platonica, VIII, 1 6, foi. 200 s . ) As últimas sentenças contêm uma alusão
direta à obra De doera ignorantia. Para a relação com Nicolau de Cusa cf. ,
além disso, D e ludo globi, Lib. I I e ldiotae, Lib. III, 1 5 ( p . 7 1 , nota 48)
47. "Não é uma possessão limitada de alguns bens ou uma só espé­
cie de prazer que satisfaz o homem como satisfaz a outros seres viventes;
mas ele crê que o que adquiriu é pouca coisa, tanto que lhe falta uma
parte, mesmo que seja mínima, para adquirir ( . . . ) Só o homem, no presen­
te hábito de viver, nunca descansa e só ele não está contente com essa
posição ( . . . )." Theologia platonica, XIV, 7, foi. 3 1 5 . Cf. ibid. XVIII, 8, foi.
4 1 1 : "Temos costume ( ... ) de não descansarmos j amais em nenhum modo
de conhecimento antes de conhecermos que é a coisa ela-mesma conforme
sua substãncia. Além disso, é natural para a razão perseguir seu discurso por
meio da razão, até que ela chegue à razão suprema, que, por ser infinita,
somente ela pode impedir o discurso da razão de errar em vão sem fim. Caso
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 1 19

nificação plena à medida que é transportado da natureza in­


dividual do homem para sua natureza específica; à medida
que o círculo da observação psicológica é ampliado para a
observação histórico-filosófica. E também aqui é o pensamen­
to fundamental da filosofia religiosa de Ficino que serve de
ponte entre esses dois domínios. Assim como para Nicolau
de Cusa a totalidade dos homens se resume a uma unidade em
Cristo, assim como, segundo esta noção, cada indivíduo é unus
Christus ex omnibus48, também Ficino introduz uma modifi­
cação na idéia de Cristo, através da qual ela se transforma ime­
diatamente na idéia de humanidade, entendida esta última em
seu sentido antigo, estóico49• Deste ponto em diante torna-se
viável uma história da filosofia que, por mais que permaneça
no círculo do pensamento dogmático do cristianismo, vai ven­
cendo cada vez mais a estreiteza do dogma à medida que tende
a enxergar o conceito de religião corporificado não exclusiva­
mente numa única forma de fé, mas na totalidade das formas
históricas de fé. Com isso, porém, rompe-se a forma clássica
da filosofia cristã da história, tal como criada por Santo Agos­
tinho em De civitate Dei. Se em Santo Agostinho a observa­
ção está totalmente voltada para o objetivo da história, já que

contrário, além de toda coisa finita, o pensamento inventa sempre alguma


coisa a mais."
48. "Uma é a humanidade de Cristo entre todos os homens e um o
espírito de Cristo entre todos os espíritos, de modo que tudo esteja nele e
que Cristo seja um a partir de todos os homens. E quem recebe o Um vindo
de todos os homens, que são de Cristo, nesta vida, recebe a Cristo e o que se
faz para um vindo dos menores é feito para Cristo. " De docta ignorantia,
III, 1 2 ; cf. nota 43 , p. 67 deste livro.
49. "Pois todos os homens são um só homem sob uma só idéia e na
mesma espécie. Por isso, julgo que seja a razão e os sábios chamaram so­
mente a ela, dentre todas as virtudes, com o mesmo nome de homem, ou se­
ja, a humanidade, que ama e cuida de todos os homens como a irmãos nasci­
dos de um só pai por uma longa sucessão." Ficino, Epistolae, Lib. 1, foi. 635 .
1 20 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

só nele se torna visível o sentido da história; se pecado origi­


nal e redenção constituem os dois pólos religiosos a partir dos
quais se chega a uma interpretação teológica para todo acon­
tecimento particular, agora o olhar pode se espraiar sobre a
amplidão do acontecimento em si. Com isso, a idéia de evo­
lução é aceita no domínio da religião; com isso, a diversidade
das formas e fases da adoração a Deus é justificada pela pró­
pria unidade da idéia de Deus. O cristianismo autêntico não
exige que os opositores da fé sejam eliminados, mas que se­
jam convencidos pela razão, que sejam instruídos a fim de con­
verterem-se, ou então que sej am tolerados com paciência5 0 .
Com efeito, a Divina Providência não permite que em tempo
algum e em qualquer região da Terra alguém desconheça al­
guma forma de adoração a Deus. A Ela interessa-lhe muito
mais que seja adorada, não importando se por este ou aquele
rito ou gesto; a Ela lhe aprazem as formas de fé e de culto apa­
rentemente mais inferiores e disparatadas, já que estas nada
mais são do que uma forma humana e uma expressão da na­
tureza humana em sua limitação necessária5 1 • Podemos re-

50. De christiana religione, Cap. 8, foi. 1 1 .


5 1 . De christiana religione, Cap. 4: "Nada desgosta mais a Deus que
ser desprezado, nada não lhe agrada mais que ser adorado ( . . . ). É por isso
que a divina providência não permite em tempo algum que alguma região
do mundo seja totalmente desprovida de religião, se bem que Ele permita
que em diversos tempos e lugares se observem ritos de adoração variados.
Talvez uma variedade desse modo, por ser ordenada por Deus, gera no uni­
verso uma certa beleza notável. Para o rei máximo é, com efeito, mais
importante ser honrado do que ser honrado por estes ou aqueles gestos ( . . . )
Ele prefere ser cultuado de qualquer modo, mesmo grosseiro, desde que
seja humano, do que não ser cultuado de modo algum por causa do orgulho
(dos homens)." Cf. Nicolau de Cusa numa carta para Aindorffer, de 22 de
setembro de 1 452: "A inexplicável fecundidade das Santas Escrituras se
explica diversamente por diversos autores, de modo que por uma tão grande
variedade sua infinidade evidencie, contudo, uma só é a palavra divina que
cintila em todas as coisas." Vide pp. 47 ss. deste livro.
NICOLA U DE CUSA E A ITÁLIA 121

conhecer aqui como a filosofia de Ficino, a despeito de toda


a sua ligação com o conceito teológico da revelação, prepara
o terreno, no interior deste mesmo conceito, para uma virada
dialética. Ainda que todos os valores espirituais, que a histó­
ria da humanidade carrega consigo, sej am reduzidos a e fun­
damentados numa revelação única, por outro lado isso im­
plica o pensamento de que justamente esta suposta unidade
da revelação não deve ser procurada em outra parte senão na
totalidade da história e de suas formas de manifestação. A
simplicidade abstrata, tal como representada numa fórmula
dogmática geral e obrigatória, cede lugar agora à generalida­
de concreta de uma forma de consciência religiosa que tem
como correlato necessário a diversidade dos símbolos, atra­
vés dos quais esta mesma consciência se manifesta.
CAPÍTUL0 3
LIBERDADE E NECESSIDADE NA
FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Em fins do ano de 1 50 l , quando a embaixada de Ferra­


ra chegou a Roma para conduzir Lucrécia Borgia para seu
casamento com Alfonso de Este em Ferrara, foi levado à ce­
na, entre as atrações das festividades realizadas em honra des­
ta embaixada no palácio pontifical, um espetáculo no qual se
representava a luta entre Fortuna e Hércules. Juno envia For­
tuna contra seu arquiinimigo Hércules; em vez de derrotá-lo,
porém, Fortuna é dominada, aprisionada e agrilhoada por ele.
Atendendo aos pedidos insistentes de Juno, Hércules liberta
Fortuna, mas sob a condição de que nem ela nem Juno em­
preendam qualquer ato hostil contra a casa dos Borgia ou dos
Este; que, ao contrário, ambas favoreçam e amparem o laço
matrimonial que ora se celebrava entre as duas famílias1 • Tra­
ta-se aqui apenas de uma peça teatral encenada na corte e in­
teiramente revestida da linguagem convencional palaciana;

1 . Para informações mais detalhadas sobre essas festividades, cf. por


exemplo Ferd. Gregorovius, Lucrezia Borgias, 1 9 1 1 , pp. 1 83 s.
1 24 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

e até a escolha do símbolo de Hércules parece representar, à


primeira vista, não mais do que uma alusão ao nome do duque
regente de Ferrara, Ercole d'Este, pai de Alfonso. Muito mais
surpreendente, porém, é o fato de que a mesma oposição ale­
górica, aqui representada nesta festividade da corte, não só
aparece com freqüência na literatura da época, como também
penetra na própria filosofia. De fato, já em fins do séc. XVI, o
mesmo tema ressurge na principal obra de cunho moral-fi­
losófico de Giordano Bruno. Em Spaccio de/la bestia trion­
fante ( 1 5 84), de Bruno, Fortuna apresenta-se diante de Zeus
e de uma assembléia dos deuses do Olimpo para exigir deles
o lugar que até então tinha sido ocupado por Hércules na or­
dem das constelações. Mas sua reivindicação é declarada fú­
til pelos deuses. A ela, à errante e inconstante Fortuna, os deu­
ses não lhe proibem estar onde quer que queira: no céu ou na
terra, ou em qualquer outro ponto do universo. O lugar ocupa­
do por Hércules, porém, seria dado à coragem, pois onde deve
reinar a verdade, a lei e o julgamento justo não deve faltar a
coragem. Ela é o refúgio de todas as outras virtudes, o escudo
da justiça e a torre da verdade: invulnerável aos vícios, inven­
cível pelos sofrimentos, constante nos perigos, severa contra
a cobiça, desdenhadora da riqueza e dominadora da fortuna2.
Não há que se hesitar em se justapor a expressão deste pen­
samento na corte de Ferrara à sua expressão filosófica, pois
um dos traços característicos da cultura e da atitude espiritual
geral do Renascimento é justamente a possibilidade de se es­
tabelecer tal relação, tal justaposição. Burckhardt nos mostrou
o quanto a vida em sociedade no Renascimento, o quanto a
forma de suas festividades e jogos nos revela de seu espírito.
E uma figura como Giordano Bruno nos ensina que as más-

2. Bruno, Spaccio de/la bestia trion.fànte, Dial. II, terza parte; Opere
italiane ( ed. Lagarde, Gõttingen, 1 888), pp. 486 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 25

caras alegóricas que predominam nesses jogos estendem a sua


influência até um domínio que, para o nosso modo de pensar
habitual, deveria ser reservado apenas ao pensamento abstra­
to, conceituai e destituído de imagens. Numa época em que
a vida, em todos os seus aspectos, é dominada por e se ema­
ranha com diferentes formas de se posicionar diante das ques­
tões do espírito, numa época em que os pensamentos funda­
mentais sobre a posição do homem em relação ao mundo,
sobre liberdade e destino atestam sua influência até nas fes­
tividades populares, numa tal época o pensamento também
não permanece fechado em si mesmo, mas aspira a uma ex­
pressão por símbolos visuais. Giordano Bruno é o expoente
que mais claramente representa essa atitude e essa disposi­
ção fundamentais da filosofia do Renascimento. Desde os
seus primeiros escritos, desde a obra De umbris idearum, ele
se manteve fiel ao pensamento de que para o conhecimento
humano as idéias não podem ser representadas ou corporifi­
cadas senão através de uma forma pictórica. Ainda que esta
representação não passe de mera sombra perante o conteúdo
transcendental e eterno das idéias, ela é a única forma ade­
quada ao nosso pensamento e ao nosso espírito. Assim como
a sombra não são trevas absolutas, mas uma mistura de luz e
escuridão, do mesmo modo as idéias, quando concebidas sob
forma humana, não são ilusão e aparência, mas a própria ver­
dade na medida em que pode ser concebida por um ser limi­
tado e finito3 • Para uma tal maneira de pensar, a alegoria dei­
xa de ser um mero ornamento externo, uma vestimenta ca­
sual, para se transformar em veículo do próprio pensamento.
A ética de Bruno, particularmente, que se refere não apenas à
forma do universo, mas também à do homem, recorre a todo

3. Bruno, De umbris idearum, Intentio secunda. Opera latina (ed.


Tocco, Imbriani et ai.), vol. II, pp. 2 1 s.
1 26 INDIVÍDUO t: COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

momento a esse meio de expressão especificamente humano.


O Spaccio de Bruno é o desenvolvimento em todas as direções
daquela linguagem de fórmulas ético-alegóricas, que tenta elu­
cidar as relações do mundo interior através de imagens do cos­
mos visível, espacial . As forças que movem o interior do ho­
mem são vistas como potências cósmicas, as virtudes e os ví­
cios como constelações. Mas se nessa observação afortezza
(força) passa a ocupar o centro, ela não deve ser entendida
apenas em seu sentido e em sua limitação éticos. Ela signifi­
ca - de acordo com o sentido original etimológico de virtus
(virtude), cujo conceito ela aqui expressa - a força mesma da
virilidade, a força da vontade humana, que se transforma em
dominadora do destino, em domitrice dei/afortuna. Para usar
uma expressão que Warburg cunhou para uma outra esfera,
trata-se aqui de uma fórmula ao mesmo tempo nova e genui­
namente antiga de pathos (paixão): uma paixão heróica, que
busca sua linguagem e sua justificativa no plano das idéias.
Se quisermos entender, em toda a sua verdadeira profun­
didade, as doutrinas filosóficas sobre a relação entre liberdade
e necessidade, tal como elas aparecem no Renascimento, pre­
cisamos retroceder sempre às suas raízes mais remotas. A
filosofia do Renascimento pouco acrescentou aos temas pu­
ramente dialéticos deste problema eterno e imutável em sua
forma fundamental. Uma obra como De Fato, libero arbítrio
et praedestinatione, de Pomponazzi, apresenta-nos uma enu­
meração completa, criteriosa e até didática de todos esses te­
mas. Nela, Pomponazzi persegue a questão em todas as suas
ramificações, isto é, examina cuidadosamente todas as distin­
ções conceituais através das quais a filosofia da Antiguida­
de e a Escolástica haviam tentado demonstrar a compatibili­
dade entre a presciência divina e a liberdade do querer e do
agir humanos. A obra mesma, porém, não traz qualquer con­
tribuição decisiva no plano dos princípios, e nem mesmo pa­
rece buscá-la. É preciso recorrer a outros escritos filosófi-
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 27

cos capitais de Pomponazzi, particularmente à sua obra sobre


a imortalidade da alma, para se determinar com clareza a sua
própria posição. Se assim procedermos, porém, perceberemos
- sobretudo no novo fundamento de ética contido em De
immortalitate animae que também aqui começa a se afrou­
-

xar a rigidez dos conceitos e fórmulas tradicionais apresen­


tados e tratados em toda a extensão da obra. Encontramo-nos
aqui diante de um processo semelhante ao que se pode acom­
panhar nas transformações do símbolo de Fortuna nas artes
plásticas do Renascimento. As pesquisas de Warburg e de Do­
ren revelaram-nos esse processo e nos mostraram que, ape­
sar de as formas medievais empedernidas de Fortuna serem
conservadas por longo tempo, começam a ganhar força, pa­
ralelamente a elas, temas que, apesar de enraizados na Anti­
guidade, ganham um novo espírito e uma nova vida. Isso que
vale para as artes plásticas aplica-se também para a esfera
intelectual. Também neste domínio, não se chega de imedia­
to a novas soluções; ao contrário: antes que estas sejam en­
contradas e implantadas, primeiramente é preciso criar um
novo estado de tensão do pensamento, por assim dizer. Em
ponto algum podemos perceber uma ruptura propriamente
dita com o passado da filosofia; o que ocorre, isto sim, é que
se anuncia uma dinâmica diferente do pensamento; anuncia-se
- para usar as palavras de Warburg - um esforço que visa a
atingir um novo "estado de equilíbrio energético". Assim co­
mo as artes plásticas buscam fórmulas plásticas de concilia­
ção, também a filosofia busca fórmulas conceituais de con­
ciliação "entre a confiança medieval em Deus e a confiança
do homem do Renascimento em si mesmo"4• Tal esforço ma-

4. Sobre as transformações do símbolo de Fortuna nas artes plásticas


do Renascimento vide A. Warburg, Francesco Sassetti 's /etztwillige Ver­
.fiigung ( Kunstwissensch. Beitrãge, August Schmarsow gewidmet, Leipzig,
1 907, pp. 1 29 ss.) e A. Doren, Fortuna im Mittelalter und in der Renaissance,
1 28 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

nifesta-se de forma não menos evidente na literatura pro­


priamente "filosófica" da época, nos tratados meio-filosóficos,
meio-retóricos, que constituem o traço literário característi­
co da nova era humanista. Nesse sentido, da obra De remediis
utriusquefortunae, de Petrarca, parte um fio que nos conduz
a Poggio e a Pontano, passando por Salutati. Poggio busca a
solução conferindo a cada uma das forças opostas que confi­
guram a vida do homem o predomínio em diferentes épocas
da existência humana. Os perigos que ameaçam o homem a
partir de fora, as forças do destino que o assaltam, são de maior
intensidade enquanto o seu ser verdadeiro ainda não se for­
mou; enquanto o homem ainda se encontra na infância ou na
primeira juventude. Tais perigos tornam-se menos premen­
tes tão logo este ser desperta; tão logo ele se desenvolve e
atinge sua plena eficácia graças às forças fundamentais da
humanidade livre, graças à energia do esforço moral e inte­
lectual. E assim, virtus (virtude) e studium (estudo) acabam
por vencer as forças hostis do céu5• Transformações dessa na­
tureza atestam uma nova direção do pensamento; nelas, con-

Vortr. der Bibl. Warburg, ed. por Fritz Saxl, 1 922/23, Parte 1, Leipzig, 1 924,
pp. 71 ss.). As provas e os documentos literários de Doren foram recente­
mente complementados por H. R. Patch, The tradition of the Goddess
Fortuna in Medieval Philosophy and Litterature; Smith College Studies
in Modem Languages, j ulho de 1 922.
5 . Poggio, Epistolae, II, 1 95 : "Nada de mais verdadeiro, certamente,
do que o que tu escreveste: nem os astros, nem o curso dos céus podem
perverter e depravar as naturezas eminentes dos homens, fortificadas pelo
estudo das boas artes e pelos costumes excelentes; mas antes que a força
tenha sido adquirida, antes que esses costumes excelentes tivessem sido
adotados, antes que os homens tenham sido fortificados pelos conheci­
mentos das artes liberais ( . . . ) eu estimo que os astros e os céus têm mais
papel na formação de nosso espírito que os preceitos e os conselhos dos
homens." Para um aprofundamento da matéria, cf. Ernst Walser, Poggius
Florentins, Leipzig e Berlim, 1 9 1 4, pp. 1 96, 236 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 29

tudo, revela-se ao mesmo tempo uma nova discrepância es­


piritual. Não mais será possível retomar à unidade plástica e
intelectual da imagem da Fortuna de Dante, que condensa nu­
ma síntese grandiosa todos os motivos antagônicos; que con­
cebe Fortuna como um ser de existência e de características
próprias, ainda que a'ifttegre ao cosmos espiritual divino. Mas
justamente essa incerteza significa uma nova libertação em
frente à segurança e ao refúgio representados pela crença
medieval na Divina Providência. Na doutrina medieval de dois
mundos e em todos os dualismos que nela têm sua origem, o ho ­
mem encontra-se pura e simplesmente diante das forças que o
circundam;.. e stá, por assim dizer, à mercê delas. Ele vivencia
o embate dessas forças, mas não intervém, ele mesmo, neste
embate. Ele é a cena em que se desenrola esse imenso drama
universal, mas ainda não se transformou num antagonista ver­
dadeiramente autônomo desse mesmo drama. O Renascimen­
to, porém, mostra-nos de forma cada vez mais clara uma outra
imagem. A imagem de Fortuna com uma roda que arrebata o
homem com suas engrenagens e o leva consigo, ora erguen­
do-o às alturas, ora precipitando-o às profundezas do abismo,
dá lugar à imagem de Fortuna com a vela de um barco. E não
é apenas ela, Fortuna, que governa o barco, mas o próprio ho­
mem que está sentado ao leme6. As considerações dos teóri­
cos, que têm sua origem menos num saber escolar do que numa
determinada esfera de ação e da criação espiritual, apontam
para a mesma direção. Para Maquiavel, a Fortuna domina a
metade de todas as ações humanas, mas não rende seus fa­
vores àquele que meramente assiste, sem nada fazer, e sim ao
que· age, ao que toma as rédeas nas mãos com rapidez e ousa­
dia; para Leon Battista Alberti, a corrente da Fortuna não ar­
rasta consigo aquele que, confiando em suas próprias forças,

6. A este respeito, cf. o material iconográfico do trabalho de War­


burg (p. 1 4 1 ) e de Doren, op. cit. , quadro VI, figs. 14 e 1 6.
1 30 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

desbrava seu próprio caminho como um nadador intrépido7.


La fortuna per se, non dubitare, sempre.fu e sempre sarà in­
becillissima et debolissima, a chi se gli opponga . (A fortuna
por si mesma, não duvides, sempre foi e sempre será muito
fraca e débil a quem se oponha a ela)8. Ambos, Maquiavel e
Alberti, exprimem aqui o espírito de seu círculo florentino;
o espírito que dominou não apenas os políticos - os homens
de ação como Lorenço, o Magnífico -, mas também os pen­
sadores especulativos, antes que sua força e sua autoconfian­
ça fossem quebradas por Savonarola. De um lado, se Ficino
- numa carta a Rucellai - declara que o melhor é fazer as pa­
zes com a Fortuna, é celebrar com ela um armistício, ajustan­
do nossa vontade à dela para que ela não nos arraste à força por
um caminho por nós indesejado9, por outro lado, a máxima do
jovem mestre da academia platônica, Pico della Mirandola, soa
muito mais livre e mais intrépida: "Os milagres do espírito
são maiores do que os do céu ( . . . ) Nada há de mais grandioso
sobre a terra do que o homem, nada de mais grandioso no ho­
mem do que seu espírito e sua alma. Eleva-te até eles, e te es­
tarás elevando para além do céu." 1º Em meio ao mundo orto­
doxo, ao mundo rigidamente eclesiástico do platonismo flo­
rentino, irrompe agora aquela "paixão heróica", que conduzi­
ria a seguir ao diálogo Degli eroicifurori, de Giordano Bruno.
Não é nossa intenção aqui acompanhar em pormenores
tais transformações ocorridas no ambiente intelectual e espi-

7. Maquiavel, O príncipe, Cap. 25; L. B. Alberti, /ntercoenales (Op.


ined., ed. Mancini, pp. 1 36 ss.). Para informações mais detalhadas, cf. em
especial Doren, op. cit. , pp. 1 1 7 s., 1 3 2 s.
8 . L. B. Alberti, Dei/a tranquillità dei/ 'animo, Lib. 1 1 1 , Opere volga­
ri, 1, 1 1 3 s. (cf. Patch, op. cit. , p. 2 1 7) .
9. O texto d a carta d e Ficino a Rucellai encontra-se n a obra d e War­
burg sobre Sassetti, p. 1 49.
1 0. Pico della Mirandola, ln astrologiam, Lib. Ili, Cap. 27, Opera,
foi. 5 1 9.
LIBERDADE E NECESSIDADE 131

ritual, mas sim e tão-somente tentar compreendê-las na expres­


são sistemática que elas assumiram na teoria filosófica. A dis­
cussão teórica sobre a liberdade da vontade é introduzida pela
obra De libero arbítrio, de Lorenzo Valla. O que atribuiu a es­
ta obra sua importância, o que a distinguiu de imediato dos
muitos tratados escolástico-medievais sobre o mesmo tema,
foi - muito mais do que o seu conteúdo - a forma de que tal
conteúdo se reveste. Com efeito, nela se anuncia não apenas
um novo estilo literário, mas também um novo estilo de pen­
sar. Pela primeira vez desde a Antiguidade, o problema da li­
berdade é novamente citado em frente a um foro puramente. se­
cular, em frente ao tribunal da "razão natural". É verdade que
em nenhuma passagem Valla combate diretamente o dogma e
que, ao final, chega mesmo a submeter-se, num misto de ironia
e crendice, às decisões da "Mãe Igreja", exatamente como fez
um dia diante do tribunal da Santa Inquisição em que foi ci­
tado em Nápoles 1 1 . Não obstante, em todas as suas obras po­
demos perceber a presença do novo espírito da crítica moder­
na, que começa a se conscientizar de sua força e de seu ins­
trumental intelectual. Valla foi o primeiro a criar aquela forma
de crítica aos dogmas que foi praticada no séc. XVII por Bayle
e até no séc. XVIII por Lessing. Ainda que deixe a decisão
para uma outra instância, Valla postula que a investigação se­
ja conduzida exclusivamente a partir do ponto de vista e com
os meios da razão. A razão é o "melhor autor"; aquele que não
pode ser suplantado por nenhum outro testemunho 12. Ainda

1 1 . Sobre o comportamento de Valia diante dos inquisidores da Igre­


ja cf. por ex. a descrição do fato feita por Voigt em Wiederbelebung des
klass. Altertums2 l, 476 ss.
12. Cf. Valia, Confutat. prior in Benedictum Morandum Bononiensem,
Opera, Basiléia, 1 543, pp. 445 ss. "Mas omitindo as acusações recíprocas,
consideremos cortesmente o que tu me objetas. Acaso eu ousei repreender Lí­
vio? Tu julgas que ele jamais possa ser repreendido? ( . . . ) E Demóstenes e Cí-
1 32 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

que com isso o conteúdo da fé permaneça incólume, ainda que


Valia - como, mais tarde, Bayle - assegure que a si só lhe im­
porta trazer à luz esse conteúdo e libertá-lo da perigosa liga­
ção com a "filosofia", ainda assim os fundamentos tradicio­
nais desse conteúdo são testados criticamente e, graças a esta
prova da crítica, são demolidos peça por peça. A crítica vol­
ta-se primeiramente para os fundamentos morais e jurídicos
do sistema hierárquico. Através do ataque à doação de Cons­
tantino, já iniciado por Nicolau de Cusa em sua obra De con­
cordantia catho/ica, mas empreendido agora com novas ar­
mas e com um rigor muito maior, Valia demonstra de forma
cabal a nulidade da pretensão jurídica da Igreja à soberania
secular 1 3 . E a esta contestação jurídica dos fundamentos da
hierarquia corresponde a contestação ética que Valia empreen­
de em sua obra De professione re/igiosorum. Também aqui o
conteúdo religioso como tal não é diretamente tocado em ne­
nhuma passagem; não obstante, Valia posiciona-se veemen­
temente contra a pretensão de que tal conteúdo esteja corpo­
rificado exclusiva ou preferencialmente numa única forma de
vida e numa forma social particular. O ideal da vida monás­
tica e a primazia de valor reservada ao clero são decisivamente
descartados. A essência da religião e da devoção consiste de
uma relação livre que se estabelece entre o eu, o sujeito da fé
e da vontade, e a divindade. A particularidade de tal �elação
perde sua identidade, chega mesmo a ser aniquilada, se essa
relação é tomada no sentido de uma obrigação jurídica, exte­
rior; se se acredita ser possível elevar o valor de uma disposi-

cero, os maiores oradores, não deixam nada a desejar? Em Platão e Aristó­


teles, os maiores filósofos, não há nada para se notar? ( . . . ) O testemunho
da razão é pior que o de um homem? ( . . . ) Qualquer autor é melhor que a
razão?"
1 3 . Vide Valla, De falso credita et ementita Constantini donatione
declamatio, Opera, foi. 76 1 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 33

ção puramente interior ao se lhe agregar uma determinada


conduta exterior. Tal conduta não existe; não existe um fazer
ou um deixar de fazer que possa ser comparado à devoção, à
entrega do ser, ou que possa elevar sua importância ético-re­
ligiosa: omnia dat, qui se ipsum dat (quem se dá, dá tudo).
Para esta concepção - orientada a partir do sujeito, e não do
obj eto, a partir da "fé" e não das "obras" -, não mais é possí­
vel que o elemento religioso seja oficialmente representado,
por assim dizer, por uma instância qualquer: non enim in so­
lid cucullatis vita Christi custoditurl4 (não somente na gente
encapuzada a vida de Cristo se guarda). Do momento em que
se liberta da estreiteza dessa hierarquia, o pensamento, as­
sim como a ação, adquire uma amplitude absolutamente no­
va. É bem verdade que permanece incontestada a pretensão
do Cristianismo de conter em si a verdade; cada vez mais,
porém, o conteúdo da fé cristã se vê obrigado a ceder espaço
a uma interpretação que o concilie com as exigências da ra­
zão natural. E isso encontra sua expressão mais clara na pri­
meira obra de Valia, o diálogo De voluptate. Nela, Valia de­
monstra que o prazer não é apenas o bem supremo, mas o
bem absoluto, o princípio mantenedor de toda a vida e, con­
seqüentemente, o princípio básico de todo o valor. Esta re­
novação do hedonismo, porém, longe de posicionar-se de for­
ma hostil em relação à fé, coloca-se sob a sua proteção. O
Cristianismo - esta é a tese fundamental de Valia - não é hos­
til ao epicurismo: ele não é outra coisa senão um epicurismo

1 4. Cf. Valia, Apologia contra calumniatores ad Eugenium IV, Ope­


ra, foi. 799 v. "Nenhum caminho ensinado por Cristo é mais seguro ou me­
lhor: n ' Ele nenhuma profissão (religiosa) nos é imposta. Mas a vida deles
(dos religiosos), dizem, não difere da de Cristo. Na verdade, não mais que a
dos outros e nem só nos encapuzados que a vida de Cristo se guarda." Cf.
particularmente a obra De professione religiosorum ( ed. Vahlen, Laurentii
Valia e opuscuia fria, Viena, 1 869, em especial pp. 1 60 ss. ) .
1 34 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

elevado, sublimado, por assim dizer. Pois o que significa a


bem-aventurança que ele promete a seus adeptos, senão a for­
ma mais sublime e perfeita do prazer? 1 5 Assim como se po­
de perceber em toda essa obra da juventude de Valia que ele
está menos preocupado com a comprovação de sua tese do que
com entregar-se ao prazer da polêmica, o mesmo vale para to­
dos os seus escritos filosóficos. A Valla se aplicam, em toda
a sua profundidade, as palavras de Lessing: o prazer da ca­
çada sempre lhe foi muito mais caro do que a presa em si. E
é exatamente isso que atribui uma marca literária e intelectual
à sua obra sobre a liberdade da vontade. O sucesso dessa obra
e sua influência histórica, que em Leibniz ainda aparece em
toda a sua puj ança, nem de longe se explica pelo fato de que
um problema que a Escolástica tinha decomposto em infinitos
subtópicos e em distinções dialéticas intermináveis era reto­
mado agora em sua totalidade e levado à sua forma de expres­
são mais aguda, mais refinada do ponto de vista estilístico e
intelectual. Sob este aspecto, pelo menos, o humanista Valia
está à mesma altura do filósofo Valia. Somente um humanis­
ta e um literato genial poderiam criar a forma externa, de que
esse problema se revestiria agora. Em vez de discutir o con­
ceito de onisciência e onipotência de Deus e de opor ambos
ao conceito do livre arbítrio do homem, Valia parte de uma
corporificação dos conceitos. O antigo mito adquire agora
um novo papel : ele se transforma em veículo do pensamento
lógico. A presciência divina é representada pela figura de
Apolo, a onipotência divina pela figura de Júpiter. Essas duas
potências não se opõem entre si, pois o conhecimento do por-

1 5 . Cf. particulannente Valia, De voluptate, Lib. lll, Cap. 9 (Opera,


foi. 977): "Quem duvida que a beatitude seja ou possa ser mais bem
nomeada que 'prazer' ( . . . )? Por aí é preciso entender que não é a honesti­
dade mas o prazer por ele mesmo que se deve pesquisar, tanto pelos que
querem gozar nesta vida quanto pelos que querem gozar na outra."
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 35

vir é tão incapaz de criar o futuro quanto o conhecimento do


presente o é de criá-lo. Conseqüentemente, a segurança com
a qual se prevê um acontecimento futuro de modo algum con­
tém a verdadeira causa de sua efetiva realização. Nessa linha
de raciocínio, Apolo, o vidente que prevê a Sexto Tarquínio
o seu crime, não pode ser culpado por este mesmo ato. A ele
cabe-lhe apresentar Sexto Tarquínio ao tribunal de Júpiter,
que lhe conferiu essa disposição, esse direcionamento da von­
tade. Neste ponto, é verdade, Valia interrompe suas investi­
gações. Como é possível que o homem, como criatura, possa
dever a Deus a totalidade do seu ser e, não obstante, ser agra­
ciado com a liberdade da decisão sobre sua vontade, graças à
qual é responsabilizado por seus atos? Para Valia, essas per­
guntas já não admitem uma solução filosófica. Nesse ponto
não resta outra alternativa senão a renúncia, a fuga para o mis­
tério I 6. E não é preciso ver nesta renúncia um simples esqui­
var-se de conseqüências teológicas perigosas, pois ela cor­
responde perfeitamente ao tipo de gênio de Valia. Aqui, como
em toda a sua obra, ele não quer oferecer uma solução pronta:
ele se contenta em nos colocar a questão em sua forma mais
aguda, para depois deixar-nos sozinhos diante dela.
Um espírito completamente diferente é o que perpassa a
obra De fato, libero arbitrio et praedestinatione, de Pompo­
nazzi. Em lugar do tratamento aforístico que o problema da li­
berdade da vontade e da predestinação tinha recebido de
Valia, o que reencontramos aqui é a solidez e a sobriedade ge­
nuinamente escolásticas da análise. O distanciamento em rela­
ção à Escolástica só se faz sentir na utilização das fontes que,
neste caso, se tornou mais prudente e mais crítica. Por toda a
obra, o que se postula é uma retomada do Aristóteles "puro",
tal como ele se nos revela nas fontes. E esse Aristóteles, que

1 6. Cf. a obra De libero arbitrio, Opera, foi. 1 004 ss.


1 36 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Valia teria se negado expressamente a rastrear17, passa a va­


ler novamente como a autoridade suprema do saber secular.
Contudo, não mais se espera uma conciliação entre esta au­
toridade, entre a razão humana, portanto - que para Pompa­
nazzi se corporifica em Aristóteles -, com a fé. Não apenas
se abandona a tentativa de dissimular a oposição entre am­
bas, como tal oposição é intencionalmente acentuada e agu­
çada. A doutrina da "dupla verdade" permanece, assim, a úl­
tima palavra da sabedoria. Nesse sentido, porém, é claro que,
em relação à Idade Média, a disposição interior, intelectual e
espiritual com respeito a essa doutrina se modificou. Ainda
que se reconheçam as decisões dogmáticas da Igreja, ainda que
pouco se coloque em discussão o conceito dafides implicita
(fé implícita), ainda assim é possível perceber - quando se
compara tal atitude com a do occamismo, por exemplo - o
quanto o centro de gravidade se deslocou agora em favor da
"razão". Pomponazzi foi chamado de "o último escolástico",
mas também é possível chamá-lo de o primeiro iluminista.
De fato, o que a totalidade de sua obra nos oferece é um ilu­
minismo que se nos revela em roupagem escolástica. A pes­
quisa de Pomponazzi é feita com todo rigor e sobriedade, com
pureza e precisão conceituais; ele só confere a palavra ao co­
nhecimento, para depois se deter, é bem verdade, antes de che­
gar aos últimos resultados e tirar as últimas conseqüências.
Pomponazzi não põe por terra o mundo transcendente da fé
religiosa, mas não deixa dúvidas quanto ao fato de que não
precisa dele nem para a construção da ciência, da psicologia

1 7 . Cf. em especial Valia, Dialecticae disputationes, Opera, foi. 645


ss. Igualmente característica é a passagem de De libero arbítrio, foi. 1 004:
"Antonio: Aqui te pego. Ignoras que é preceito dos filósofos admitir-se que,
para que qualquer coisa seja possível, ela deve ser como é? Laurêncio: Tu usas
de fórmulas de filósofos comigo? Como se eu não ousasse contradizê-las."
LIBERDADE E NECESSIDADE 13 7

e da doutrina do conhecimento, nem para a ética. Ciência e


ética, para ele, repousam sobre bases próprias, autônomas; li­
bertaram-se da forma da teologia. O tratado sobre o livre ar­
bítrio também revela esses traços característicos de seu pen­
samento. Se a obra de Valla era uma obra de densidade inte­
lectual e literária, se nela ele tentou condensar o problema em
poucas páginas, Pomponazzi, por sua vez, mais uma vez nos
apresenta toda uma série de provas e contraprovas, de defi­
nições e distinções. A obra tem a forma de um comentário ao
Ilepi d.µapµÉVTIÇ [Peri heimarménes] (Sobre o destino), de
Alexandre de Aphrodisias; um comentário que percorre ponto
por ponto deste tratado. Em toda a obra, Pomponazzi revela
uma inteligência capaz de esmiuçar os assuntos em profun­
didade, um aguçado senso dialético que procura levar o pen­
samento sobre cada sentença às últimas conseqüências e
opor a cada argumento um argumento contrário. É bem ver­
dade que, assim procedendo, permanece em suspenso o juí­
zo sistemático que o próprio Pomponazzi faz do que escre­
ve. Só um ponto - aliás, o ponto sobre o qual também Valia
fizera recair a ênfase de seu trabalho - é destacado e desen­
volvido com agudeza e determinação: a presciência divina não
se encontra necessariamente em oposição à liberdade das ações
humanas. Pois se Deus conhece as ações futuras, não as co­
nhece por suas causas o que de fato seria incompatível com
-

a suposta liberdade de ação -, mas por sua mera "factibilida­


de", pelo seu mero "que". Se o homem pode compreender o
passado e o presente a partir de seu "que", e o futuro, ao con­
trário, sempre de acordo com o conhecimento de que dispõe
acerca do "porque", pois o futuro não lhe é dado diretamen­
te, sendo-lhe possível apenas deduzi-lo a partir do conheci­
mento de suas causas, a mesma diferença entre conhecimento
imediato e mediato, entre conhecimento dado e deduzido, não
vale para o conhecimento divino. Com efeito, o conhecimen­
to divino caracteriza-se justamente pelo fato de nele cessarem
138 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

de existir as distinções temporais, que são fundamentais para


a nossa compreensão do mundo; pelo fato de o conhecimento
do futuro não precisar, portanto, de qualquer mediação, de
qualquer descrição discursiva das condições graças às quais
o futuro deve acontecer1 8• Se, com isso, a questão da pres­
ciência das ações humanas é resolvida de forma semelhante
à de Valia, o outro problema que ficara pendente, ou seja, a
questão da conciliação entre a onipotência divina e a liber­
dade e a responsabilidade do homem, perdeu muito de sua
importância para Pomponazzi. Pois por menos que ele ouse
elucidar sem ambigüidades este ponto, seu juízo acerca des­
ta questão tende de forma inequívoca a um determinismo rí­
gido. Em sua obra de filosofia natural intitulada De naturalium
e.ffectuum admirandorum causis, a causalidade do acontecer
é entendida num sentido estritamente astrológico; o mundo
da história, assim como o mundo natural, são vistos como um
resultado necessário da influência dos corpos celestes. E tam­
bém naquelas passagens em que Pomponazzi se manifesta
mais clara e livremente, o destino, em sua acepção estóica,
se lhe revela como a solução relativamente mais satisfatória,
mais adequada à razão humana. Para ele, o que dificulta a acei­
tação desta solução são resistências mais de natureza ética do
que lógica. De fato, uma parte substancial de sua obra é de­
dicada à eliminação de tais resistências. Se Valia, em sua obra
De voluptate, procurava ajustar a forma da metafisica religio­
sa à forma de sua ética totalmente voltada para a dimensão
secular, Pomponazzi, por sua vez, rompe de um só golpe, cer­
teiro e enérgico, o laço que até então unira a metafisica e a éti­
ca. Em princípio, as duas são totalmente independentes uma

1 8 . Para uma visão completa da questão, cf. Pomponazzi, Defato, li­


bero arbítrio et praedestinatione. Basiléia, 1 567; em espec ial, Lib. V, pp.
9 1 3 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 39

da outra. Do mesmo modo como o julgamento sobre o valor da


vida humana não depende das idéias que temos acerca da con­
tinuidade, da imortalidade da alma humana, também a ques­
tão atinente ao valor ou à ausência de valor de nossas ações
pertence à esfera de um outro tipo de observação, completa­
mente diferente daquele que aplicamos ao analisar suas cau­
sas. Independentemente da solução a que possamos chegar
quanto a estas últimas, o julgamento ético-prático permanece
livre; e é desta liberdade que precisamos, não de uma quimé­
rica falta de causas.
A obra de Pomponazzi está separada da de Valia por um
período de mais de oito décadas: aquela data de 1 520, ao pas­
so que esta parece ter sido escrita por volta de 1 43619• E é jus­
tamente durante esses decênios que se processa a transforma­
ção sofrida pelo pensamento filosófico do Renascimento sob
a ação do platonismo da Academia de Florença. Não apenas
do ponto de vista cronológico, mas também no que respeita
à sistematicidade, a doutrina da Academia insere-se precisa­
mente entre o humanismo, de um lado, e o ressurgimento da
Escolástica, representado pela escola de Pádua, de outro; ao
mesmo tempo, porém, a forma que essa doutrina vai assumin­
do revela com clareza a profunda influência exercida pela obra
de Nicolau de Cusa sobre o platonismo florentino. No famo­
so discurso de Pico della Mirandola, que deveria servir de
introdução à sua defesa das 900 teses em Roma, podemos re­
conhecer com toda a clareza essa filiação espiritual dos pen­
samentos. Ao colocar o tema da "dignidade do homem" no

1 9. Sobre a data do diálogo De libero arbítrio, de Valia, cf. M. von


Wolff, Lorenzo Valia, Leipzig, 1 893, pp. 36 ss. O tratado de Pomponazzi foi
impresso pela primeira vez na Basiléia, em 1 567, como apêndice da obra
De admirandorum effectuum causis; contudo, conforme indica uma nota
ao final, já tinha sido concluído em 1 520.
1 40 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

centro de sua obra, Pico nada mais faz do que retomar certos
motivos que o velho humanismo já tratara retoricamente em
inúmeras variações. O próprio tratado De dignitate et excel­
lentia hominis, escrito por Giannozzo Manetti por volta do ano
de 1 452, já havia sido estruturado segundo o mesmo esquema
formal e intelectual que Pico segue para construir seu discurso.
Ele opõe ao mundo natural, entendido como o mundo do que
meramente é, o mundo intelectual do vir-a-ser, o mundo da
cultura. Somente no interior deste último é que o espírito do
homem encontra sua morada; nele o homem dá provas de sua
dignidade e liberdade: "Tudo o que discernimos é nosso, ou se­
ja, é humano, por ser produzido pelos homens: todas as casas,
todas as fortalezas, todas as vilas, enfim, todos os edificios da
terra. Nossas são as pinturas, as esculturas, as artes, as ciên­
cias, as ( . . . ) sabedorias. Nossas são ( . . . ) todas as invenções, to­
das as diversas línguas e os diversos literários, e, quanto mais
e mais pensarmos sobre seus usos, tanto mais fortemente
somos levados a admirar e a ficar estupefatos."2º Se estas pa­
lavras de Manetti, em sua essência, remontam ao ideário es­
tóico da Antiguidade, o discurso de Pico, por outro lado, vem
acrescentar um elemento novo. Com efeito, todo o seu ponto
de vista está marcado por aquela transformação característi­
ca do motivo do microcosmos, que havia se processado em
Nicolau de Cusa e, depois dele, em Ficino (cf. pp. 1 07 ss.
deste livro). Somente através disto é que seu discurso ultra­
passa as fronteiras de uma brilhante peça de oratória. O pa­
thos retórico da obra encerra, ao mesmo tempo, um pathos
intelectual especificamente moderno. A dignidade do homem

20. Citado do tratado De dignitate et excellentia hominis ( 1 452), de


Giannozzo Manetti, segundo a análise detalhada que Gentile fez da obra
de Manetti em li concetto dell 'uomo nel Rinascimento (reimpr. in: Gior­
dano Bruno e il pensiero dei Rinascimento, pp. 1 1 1 ss.).
LIBERDADE E NECESSIDADE 141

não pode residir no seu ser; não pode residir no ponto que lhe
foi conferido de uma vez para sempre na estrutura cósmica.
Se o sistema hierárquico divide o mundo em degraus e atri­
bui a cada ser um desses degraus como o lugar que lhe cabe no
universo, então essa concepção fundamental ignora o senti­
do e o problema da liberdade humana. Pois este problema está
na inversão da relação que costumamos estabelecer entre o
ser e o agir. No mundo das coisas, pode ser que seja válida a
velha máxima escolástica segundo a qual operari sequitur
esse; a natureza e a peculiaridade do mundo do homem, po­
rém, decorrem do fato de que, nele, vale o princípio contrário:
não é o ser que prescreve de uma vez por todas uma direção
determinada e definitiva para o tipo de criação, mas é a dire­
ção original da criação que determina e fixa o ser. O ser do
homem decorre do seu agir: e este agir não se manifesta uni­
camente na energia da vontade, mas compreende a totalidade
de suas forças criadoras. Com efeito, cada ação genuinamen­
te criadora engloba em si mais do que um mero agir sobre o
mundo; ela pressupõe que o agente da ação sej a diferente do
que sofre a ação, que o sujeito da ação seja diferente do seu
obj eto e a ele se oponha de forma consciente. Tal oposição,
por sua vez, não é um processo único que se encerra com um
resultado determinado, mas algo que tem de ser empreendi­
do sem cessar. O ser do homem, assim como seu valor, depen­
dem desse processo de constante retomada; por conseguinte,
não podem ser definidos e determinados como algo estático,
mas como algo dinâmico. É bem verdade que podemos as­
cender até ao ponto mais alto possível na escala hierárquica
dos seres, que podemos alçar às inteligências celestiais, e mes­
mo à origem divina de todo o ser; mas enquanto nos detivermos
em qualquer um dos degraus desta escala, não encontrare­
mos nele o valor específico da liberdade. Num sistema hie­
rárquico rígido, este valor não pode aparecer de outra forma,
1 42 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

senão como algo estranho, como algo incomensurável e "ir­


racional", pois uma tal ordenação do mero ser não compreen­
de o sentido e o movimento do puro vir-a-ser. Na formulação
deste pensamento - por mais que a doutrina de Pico seja de­
terminada em sua totalidade pela tradição aristotélico-esco­
lástica, de um lado, e pela tradição neoplatônica, de outro -,
processa-se uma nova ruptura. Com efeito, fica claro agora
que nem a categoria da criação nem a da emancipação são
suficientes para definir a relação que existe entre Deus e o
homem e entre o homem e o mundo. A criação, no sentido que
habitualmente atribuímos a ela, não pode ser entendida de
outra forma senão como algo que não apenas confere à cria­
tura um ser determinado e limitado, mas que também lhe pres­
creve uma esfera, também determinada, no interior da qual se
manifesta a sua vontade e seu poder de realização. O homem,
contudo, rompe as limitações de tal natureza: seu agir não lhe
é pura e simplesmente ditado pela realidade em que vive, mas
encerra em si possibilidades sempre novas que, em princí­
pio, transcendem todo e qualquer círculo finito. Este é o se­
gredo de sua natureza; um segredo que lhe é invej ado não
apenas pelo mundo inferior, mas também pelo mundo das
inteligências, já que somente nele, homem, cessam de exis­
tir as regras da criação que, de resto, governam tudo o que é
criado; somente para ele, homem, não vale a regra do "tipo"
fixo e determinado. Ao final da criação - assim descreve o
mito com o qual se inicia o discurso de Pico -, o Demiurgo
sentiu-se impelido a criar um ser que fosse capaz de reco­
nhecer a razão de sua obra e de adorá-la por sua beleza. "Mas
entre os eternos arquétipos das coisas não mais havia um
modelo para um novo rebento, nem o criador possuía entre
seus tesouros um dom que pudesse conferir como dote ao
seu novo filho e tampouco era possível encontrar no mundo
inteiro um lugar que o observador do universo pudesse ocupar.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 43

Pois o universo estava repleto, e em cada esfera, tanto na mais


elevada quanto na mais inferior e na central, tinham sido dis­
tribuídos seres que correspondiam à ordem da esfera em que
tinham sido colocados. Assim, o Mestre supremo decidiu que
a criatura, a quem não podia conferir um bem especial, repar­
tiria com todas as outras os dons que lhes tinham sido atri­
buídos. E deu forma ao homem segundo um modelo geral,
indistinto, e enquanto o colocava no centro do mundo, disse­
lhe : 'Não te conferi um lugar fixo, uma forma que te fosse
própria e um dom especial, Adão, para que tu mesmo, esco­
lhendo segundo o teu desejo e tua determinação o lugar, a for­
ma e o dom que quiseres, possas fazê-los teus. Todos os outros
seres receberam uma natureza rigidamente definida e ficarão
sob o meu poder, segundo leis previamente estabelecidas.
Somente a ti não te prendem laços, a menos que tu mesmo,
segundo a vontade que te concedo, a ti os imponhas. Colo­
quei-te no centro do mundo para que não tenhas dificuldade
em olhar à tua volta e vislumbrar tudo o que nele existe . Não
te fiz um ser nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imor­
tal, a fim de que tu mesmo te possas forj ar e superar com
total liberdade, e para que possas assumir a forma que esco­
lheres para ti, qualquer que ela seja. Podes degenerar-te até te
converteres num animal, ou regenerar-te até alcançares o di­
vino ( . . . ) Os animais trazem do corpo de sua mãe tudo o que
devem ter; os espíritos superiores são desde o princípio, ou
desde pouco tempo depois, aquilo que serão para toda a eter­
nidade. Ao homem, diversamente, seu pai lhe conferiu, no
momento mesmo de seu nascimento, as sementes e os gér­
mens de todas as espécies de vida. Aquelas que ele cultivar
serão as que nele crescerão e darão frutos. Se forem sementes
de vegetais, ele se transformará em planta; se se abandonar à
sensualidade, transformar-se-á em animal; se cultivar em si o
poder da razão, transformar-se-á em criatura celeste; se seguir
1 44 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

a inteligência, será um anjo, um filho de Deus.)"21 Burckhardt


classificou o discurso de Pico como um dos mais nobres lega­
dos da cultura do Renascimento. De fato, nele se resume com
grandiosa simplicidade e concisão a totalidade do querer e
do conceito de conhecimento de toda uma época. Nele são cla­
ramente confrontados os dois pólos sobre cuja oposição re­
pousa a tensão moral e intelectual que é peculiar ao espírito
do Renascimento. O que se exige a um só tempo da vontade do
homem e de seu conhecimento é um total voltar-se para o mun­
do e um total separar-se dele. Vontade e conhecimento po­
dem, ou melhor, devem consagrar-se a cada uma das partes
do universo, pois somente ao percorrer por completo a esfe­
ra do Todo é q_ue o homem pode medir a extensão de sua pró­
pria esfera de determinação. De outra parte, porém, tal aber­
tura completa em relação ao mundo em hipótese alguma pode
significar uma dissolução de si mesmo no mundo, um per­
der-se no sentido místico-panteísta. Pois a vontade do homem
só entra em posse de si mesma ao tomar consciência de que
nenhum fim determinado poderá algum dia satisfazê-la; e o
saber do homem só entra em posse de si mesmo ao saber que
em momento algum poderá satisfazer-se com um conteúdo
determinado, qualquer que seja ele. Desta forma, o ato de vol­
tar-se para o todo do cosmos sempre encerra em si, ao mes­
mo tempo, a possibilidade de não se estar ligado a nenhuma
de suas partes. À força do entregar-se totalmente correspon-

2 1 . Pico della Mirandola, Oratio de hominis dignitate, Opera, foi.


3 1 4 ss. A idéia de que o homem, como ser livre, está acima dos demônios
e das inteligências celestiais, provém de uma tradição hermética que teve
grande influência sobre a Escola de Florença. Marsilio Ficino traduziu pa­
ra o latim o antigo corpus dos escritos herméticos. Para o aprofundamento
deste tema, cf. Konrad Burdach, Kommentar zum Ackermann aus Bõhmen
em Vom Mittelalter zur R�formation I l i , 1, pp. 293 ss., 325 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 45

de a força do subtrair-se totalmente. A dualidade entre homem


e mundo, entre "espírito" e "natureza" é rigorosamente man­
tida e, não obstante, tal dualidade não é desenvolvida a pon­
to de se transformar num dualismo absoluto com a marca da
Escolástica medieval. Pois a polaridade não é uma oposição
absoluta, mas relativa: a diferença entre ambos os pólos so­
mente é possível e concebível à medida que encerra em si,
ao mesmo tempo, uma relação de reciprocidade entre am­
bos. Temos aqui uma das concepções básicas do platonismo
florentino, que nunca pôde ser superada ou apagada por quais­
quer determinações contrárias do pensamento, ou pelo mo­
vimento rumo à "transcendência" e ao ceticismo, que paulati­
namente foi se tornando cada vez mais influente no interior
desse mesmo platonismo. Por mais forte que seja a influên­
cia de temas neoplatônicos sobre toda a obra de Ficino e de
Pico, novamente irrompe aqui o sentido genuinamente platô­
nico dos conceitos de xcoptcrµóç [khorismós] (divisão) e
µéeestç [ méthexis] (participação). A própria "transcendên­
cia" estabelece e exige a "participação"; e a própria "partici­
pação" estabelece e exige a "transcendência". Do ponto de
vista de uma observação objetiva, tal determinação recípro­
ca pode parecer enigmática e paradoxal : mas ela se revela
necessária e compreensível, no momento mesmo em que to­
mamos como ponto de partida a natureza do eu, do sujeito
que quer e que sabe. O livre ato da vontade e o livre ato do
saber reúnem tudo o que na mera existência parecia furtar-se
sem cessar. Pois neste ato interagem concomitantemente a for­
ça da separação e a da união: só ele é capaz de levar a dife­
renciação ao seu grau máximo, sem permitir, com isso, que o
elemento diferenciado se separe totalmente do resto.
E se a relação do eu para com o mundo, do sujeito para
com o objeto, se nos revela claramente aqui como coinciden­
tia oppositorum (coincidência de opostos) - tal como Nico-
1 46 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

lau de Cusa a concebera -, muito mais claro ainda nos será


este parentesco se acompanharmos a influência histórica pos­
terior dos temas que Pico havia proposto em seu discurso "So­
bre a dignidade do homem". No próprio discurso de Pico já
podemos ouvir com clareza o eco da especulação de Nicolau
de Cusa: "A unidade do homem", assim diz no escrito De
conjecturis, "por existir humanamente contraída, parece en­
volver tudo conforme a natureza dessa contração. A virtude
de sua unidade, de fato, está em volta de todas as coisas e as
proíbe, portanto, de entrar nos limites do seu reino em que
nada escapa a seu poder ( . . . ) pois o homem é Deus, mas não
absolutamente, pois ele é homem. É de fato um Deus huma­
no. O homem é também o mundo, mas ele não é todas as coi­
sas contraidamente, pois é homem. Ele é de fato homem-mi­
crocosmo (µucpóKocrµoç), ou seja, o mundo humano. O pró­
prio reino da humanidade está então em volta de Deus e do
mundo interior com seu poder humano. O homem pode en­
tão ser Deus humano e Deus humanamente, ele pode ser anjo
humano, besta humana, um urso ou leão humano ou outra coi­
sa qualquer. No interior do poder humano, portanto, todas as
coisas existem segundo o seu modo. Na humanidade, então,
todas as coisas se desenvolvem humanamente, da mesma for­
ma que no universo eles o são universalmente, pois existe um
homem humano. Todas as coisas, enfim, são envolvidas nela
humanamente, pois há um Deus humano. Pois a humanida­
de é a unidade que é também a infinidade humana contraída
( . . . ) Logo, não há outra finalidade da criação ativa humana
senão a humanidade. Eles não saem de si criando, mas, ao de­
senvolver sua virtude, atinge a si mesmo e não realiza nada
de novo; tudo que ela cria desenvolvendo-se, descobre que já
estava nela."22 O humanismo teve de retomar essas afirma-

22. Nicolau de Cusa, De conject11ris, II, 14 ( cf. pp. 67 ss. deste livro).
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 47

ções fundamentais toda vez que ultrapassou as fronteiras de


um mero movimento de eruditos, toda vez que procurou dar
a si mesmo uma forma e uma fundamentação filosóficas. Por
conseguinte, a influência de tais idéias não se limitou a um cír­
culo determinado, mas estendeu-se também para além das
fronteiras nacionais e para além dos limites das escolas filo­
sóficas. Elas são o ponto de partida de um movimento inte­
lectual que, saindo da Itália, chega à França; um movimento
que vai do humanismo filosófico de orientação platônica ao
humanismo filosófico de orientação aristotélica. Neste mo­
vimento, não apenas se nos revela de forma evidente a rela­
ção objetiva e sistemática dos pensamentos, como também
podemos separar com clareza cada um dos fios históricos.
Com efeito, Jakob Faber Stapulensis, o verdadeiro renovador
dos estudos aristotélicos e o criador do "Renascimento Aris­
totélico" na França, é, ao mesmo tempo, o editor da primeira
edição da obra integral de Nicolau de Cusa. E os estímulos
decisivos que ele recebeu vieram tanto de Nicolau de Cusa,
a quem sempre se refere com grande admiração e respeito,
quanto da Academia platônica de Florença23• Essas duas li­
nhas de influência unem-se também na obra de um de seus
discípulos, Carolus Bovillus, que representa o desenvolvimen-

2 3 . O fato de as doutrinas da academia platônica terem penetrado des­


de muito cedo na França, particularmente na Universidade de Paris, é atestado
por uma carta de Gaguin a Ficino datada de 1? de setembro de 1 496. Diz a
carta: "Tua virtude e tua sabedoria, Ficino, envolvem tantas coisas na nos­
sa academia de Paris, que teu nome é amado e celebrado desde as classes
infantis até os colégios dos homens mais doutos." (Rob. Gaguini, Epistolae
et orationes, ed. Thuasne, Paris 1 903/4, II, pp. 20 s.); cit. por P. Mestwerdt,
Die Anftinge des Erasmus, p. 1 65 . A respeito da influência do platonismo de
Florença sobre a evolução do pensamento filosófico de Faber Stapulensis,
cf. em especial A. Renaudet, Préréforme et Humanisme à Paris pendant les
premiéres guerres d '/ta/ie (1494- 1 5 1 7), Paris, 1 9 1 6, pp. 1 3 8 ss.
1 48 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

to imediatamente posterior e a realização sistemática das li­


nhas fundamentais do pensamento exposto por Pico em seu
discurso24• Esta obra - o livro De sapiente, de 1 509 - é pro­
vavelmente a mais notável e, sob muitos aspectos, a mais ca­
racterística criação da filosofia do Renascimento, pois certa­
mente em nenhuma outra encontram-se tão próximos, divi­
dem um espaço tão estreito o velho e o novo, o que conseguiu
sobreviver e o que é fecundo e criativo. A obra ainda é domi­
nada, de forma quase desenfreada, por aquele impulso funda­
mental do pensamento medieval, que tenta tecer uma densa
trama de analogias sobre todo o cosmos, sobre todo o mun­
do fisico e o espiritual, como se quisesse aprisioná-los nela.
Um único e mesmo tema básico, continuamente repetido, é o
que deve nos desvendar e revelar a ordem do microcosmos e
do macrocosmos, a ordem dos elementos, das forças naturais
e das forças morais, o mundo lógico dos silogismos e o mun­
do metafisico das causas e conseqüências reais. Em meio a es­
sa representação esquemática e alegórica de todo o mundo,
porém, entrelaçam-se pensamentos de um conteúdo tão ge-

24. A proximidade entre o tema da obra de Bovillus e o do discurso


de Pico De hominis dignitate é atestada, por exemplo, pela seguinte passa­
gem, extraída do Cap. XXIV: "Nada é particular ou próprio ao homem, ma.s
todas as coisas que são próprias de outros seres lhes são comuns. Qualquer
coisa que é própria deste ser ou deste, daquele ou do outro e, assim, de ca­
da ser, faz parte da unidade humana. Pois ele transporta em si mesmo a natu­
reza de todas as coisas, ele as observa todas, ele imita toda a natureza.
Absorvendo, haurindo tudo que existe na natureza das coisas, ele se toma
todas as coisas. Pois o homem não é um ser particular de tal ou tal tipo, ele
não é mais desta ou daquela natureza, mas ele é todas as coisas ao mesmo
tempo." (A obra De sapiente foi escrita em 1 509 e publicada em Paris no
ano de 1 5 1 O, juntamente com outras obras de Bovillus. Para informações
mais detalhadas sobre essa edição e sobre os fundamentos da doutrina do
conhecimento de Bovillus, que não será abordada no presente estudo, cf.
Erkenntnisproblem3, 1, pp. 66 ss. ).
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 49

nuinamente especulativo, de um cunho tão caracteristicamen­


te novo que por vezes não podemos deixar de pensar imediata­
mente nos grandes sistemas do idealismo filosófico moderno,
em Leibniz ou Hegel. A construção do mundo se processa,
segundo Bovillus, em quatro etapas distintas, que representam
o caminho, por assim dizer, que vai do "obj eto" ao "sujeito",
do mero "ser" ao "ser consciente de si". O ser, como o ele­
mento mais abstrato, é comum a todas as criaturas; o ser cons­
ciente de si, como o elemento mais concreto e mais evoluí­
do, só é atribuído à criatura superior, ao homem. E entre
esses dois pólos extremos existe a natureza, primeiro degrau
e potência do espírito. Ela corporifica em si as formas mais
diversificadas da vida, mas só conduz até o limiar da razão,
do conhecimento reflexivo, que se refere a si mesmo. Esse, vi­
vere, sentire, intelligere: estes são, portanto, os diferentes es­
tágios que o ser percorre para chegar a si mesmo, para che­
gar ao seu próprio conceito. O mais inferior desses estágios,
a existência como tal, é própria de tudo o quanto existe: da
pedra e do vegetal, do animal e do homem. Mas sobre esse fun­
damento da mera substancialidade erguem-se então as dife­
rentes ordens da vida subjetivazs. Bovillus antecipa aqui pre­
cisamente a fórmula de Hegel, segundo a qual o sentido e o
obj etivo do processo de evolução consistem do fato de que a
"substância" se transforma em "sujeito". A razão no homem
é aquela força através da qual a "mãe natureza" retorna para
si mesma, completa seu ciclo e se devolve a si mesma26.

25. Cf. De sapiente, Caps. 1 e 2 .


26. "Resulta d e novo que nós temos p o r bem definir a Razão como a
filha adulta e completa da natureza, ver como uma espécie de segunda na­
tureza, contempladora da primeira e que, à imitação da primeira natureza,
reproduz todas as coisas em seu seio e governa-as todas sabiamente - substi­
tuindo as forças de sua mãe. Nós definimos também a razão como aquela
força pela qual a mãe natureza volta a si, pela qual se fecha o círculo de toda
1 50 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Após este retorno, porém, ela não mais se encontra sob a mes­
ma forma que tinha quando iniciou sua jornada. Uma vez ope­
rada no homem a primeira ruptura, uma vez saído da simpli­
cidade de seu estado original, nunca mais o homem poderá
retornar a essa simplicidade indivisa. Ele precisa atravessar
o oposto para depois, suplantando-o, encontrar a verdadeira
unidade de seu ser; aquela unidade que não exclui a diferen­
ça, mas que a impõe e exige. Pois no ser simples como tal
não reside força alguma: ele só se torna verdadeiramente fe­
cundo ao se diferenciar e se dividir em si mesmo e ao resta­
belecer, para além desta divisão, a sua unidade27• No desen­
volvimento e na expressão deste pensamento, Bovillus segue
claramente a interpretação especulativa de Nicolau de Cusa
para a doutrina da trindade. À semelhança de Nicolau de
Cusa, Bovillus coloca toda a sua ênfase no fato de que a ver­
dadeira unidade tripartida não deve ser entendida de forma
estática, mas dinâmica; que ela não deve ser entendida como
três "naturezas" meramente justapostas numa substância sim­
ples em si, mas como a unidade do contínuo de uma evolução,
que conduz da mera "possibilidade" à "realidade", da "po­
tencialidade" à "atualização" plena e completa. Da transfe­
rência dessa concepção básica de Deus para o homem pode-se
concluir que a verdadeira realidade do homem somente se con-

natureza, força pela qual a natureza é restituída a si mesma." De sapiente,


Cap. 5 .
2 7 . " A natureza deu a o sábio o ser simples, mas fo i ele quem engen­
drou por si mesmo o ser composto, ou seja, ser bem e bem-aventurado ( . . . )
O sábio recebeu da natureza, com efeito, o dom do homem substancial,
pela fecundidade da qual ele gerou o homem letrado. Aquele que não é
sábio, na verdade, foi feito pela natureza como homem igual e também
substancial, mas ele não brilha por nenhum beneficio dessa virtude. Faz
jus dizer-se, de fato, que este homem tem e não tem, mas aquele tem é tem."
De sapiente, Caps. 6 e 7.
LIBERDADE E NECESSIDADE 151

suma depois de ele ter percorrido cada um dos estágios des­


te processo. Somente neste vir-a-ser é que ele é capaz de al­
cançar e de compreender o seu ser específico. Por conseguin­
te, o que chamamos de "sabedoria" não é, segundo seu ver­
dadeiro conceito, um conhecimento de obj etos exteriores, mas
um conhecimento de nosso próprio ser: seu verdadeiro obj e­
to não é a natureza, mas a humanitas. O sábio é aquele que me­
diu as oposições que j azem na essência do homem; aquele
que as reconheceu e que, por isso mesmo, as superou. Ele é
"homem em poder e homem em ato, homem por seu princí­
pio e homem no seu fim, homem existente e homem aparen­
te, homem esboçado e homem perfeito, homem de natureza
e homem de entendimento"28. E esta definição de sabedoria
ao mesmo tempo encerra, no ver de Bovillus, a formulação e
a solução do problema da liberdade. Com efeito, a liberdade
não significa para ele outra coisa senão o fato de que o homem,
contrariamente aos outros seres, não recebe o seu ser pronto
da natureza e o carrega consigo continuamente como um feu­
do, mas que ele tem de conquistá-lo e de lhe dar forma atra­
vés da virtus (virtude) e da ars (arte). Da força maior ou me­
nor que ele empreende para lhe dar forma depende o seu pró­
prio valor. Neste ponto, portanto, articula-se com o sistema da
metafisica especulativa de Bovillus um sistema ético comple­
to, que repousa sobre as mesmas bases. Assim como o ser se
escalona em esse (ser), vivere (viver), sentire (sentir) e in­
telligere (entender), também o homem, de acordo com sua
própria vontade, pode percorrer toda a extensão dessa série
de estágios, ou então se deter sobre um deles e nele ficar.
Ele pode, se sucumbir o vício da preguiça, da acedia medie­
val, despencar até o estágio mais inferior, em que permanece
como existência desnuda, sem forma e, portanto, sem uma

28. De sapiente, Cap. 6.


1 52 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

consciência dessa existência; ou então pode elevar-se ao pon­


to mais alto, no qual - através do conhecimento de si mesmo
- pode conquistar o conhecimento do cosmos29. Pois um só
é obtido através do outro. O conhecimento de si e o conheci­
mento do mundo são dois processos apenas aparentemente
diferentes e voltados para direções opostas. Na verdade, o eu
só se encontra a si mesmo à medida que se entrega ao mun­
do, à medida que se esforça por integrar-se plenamente nele
e por imitá-lo na totalidade de suas formas, de suas species
(formas). Tal imitação, porém, que parece ser um trabalho
meramente passivo, uma função da memória, na verdade já
contém em si todas as forças do intelecto, da observação es­
peculativa, da reflexão. E é só assim, ao penetrar no minor
mundus (mundo menor), que o major mundus (mundo maior)
pode ser compreendido em sua verdade. O mundo contém a
totalidade das coisas, mas só o homem conhece essa totali­
dade; ela abarca o homem como uma parte, mas ele a en­
tende em seu princípio. Assim, comparado ao mundo, o ho­
mem pode ser chamado tanto de o maior quanto de o menor:
o menor, quando usamos a medida da substância; o maior,
quando usamos a medida do conhecimento. "O mundo é a
maior das substâncias, ele é nulo quanto ao saber; o homem
é o maior quanto ao saber e insignificante quanto à substân­
cia. Cada qual se mantém um no outro e cada um é capaz de
assimilar o outro. A substância do homem se encontra, com
efeito, no mundo; o saber do mundo no homem. O mundo é
mundo substancial, o homem é mundo racional. Quanta for a
diversidade de substâncias e variedade de coisas no mun­
do, tanta será a variedade de razões no homem. Nas duas
estão todas as coisas e em cada um, cada coisa e nos dois, na­
da; no homem, a substância é nula; no mundo, a razão e o con-

29. lbid. , Caps. 1 e 2 .


LIBERDADE E NECESSIDADE 1 53

ceito não são nada. Um e outro são vazios, um e outro são


cheios. O homem, privado de coisas, é rico de razões; o mun­
do, cheio de coisas, é vazio de razões."30 Dificilmente se po­
deria exprimir de forma mais clara a oposição entre "substan­
cialidade" e "subjetividade", entre "ser-em-si" e "ser-por-si"3 I .
E assim como Hegel, Bovillus postula que esta oposição ain­
da sej a superada numa síntese especulativa mais elevada. O
homem da "natureza", o homo pura e simplesmente, deve
transformar-se em homem da "arte", em homo-homo; mas ao
se reconhecer esta diferença em sua necessidade, ela já está su­
perada. Sobre as duas primeiras formas eleva-se agora a última
e suprema; a trindade do homo-homo-homo, na qual a oposição
entre potencialidade e ato, entre natureza e liberdade, entre ser
e consciência é, ao mesmo tempo, entendida e superada32. Ne-

30. lbid. , Cap. 1 9.


3 1 . Cf. ainda Cap. 24: "Em toda substância do mundo se esconde al­
guma coisa de humano. O átomo do homem é alguma substância própria
do homem, aplicada a não importa qual outra, por meio da qual o homem
letrado deve ser composto e constituído, que o homem nasceu para reivin­
dicar para si e para abstrair da matéria pela força de seu gênio ( . . . ) O ho­
mem, então, que é constituído e perfeito pela natureza (quero dizer o nosso
homem, situado no meio do mundo), recebeu da natureza sua mãe a ordem
de fazer o contorno do mundo para pesquisar em cada coisa aquilo que lhe
pertence, para abstrair de toda substância do mundo o átomo de sua pró­
pria espécie. Ele a reivindica para si e a insere e, dos átomos de numerosas
espécies, ele retira e produz sua própria espécie, que se chama ou fruto de
nosso homem natural e primitivo, ou homem adquirido, ou ainda letrado.
Tal é então o acabamento do homem: quando, deste modo, retira do ho­
mem substancial o racional; do natural, o adquirido e do simples, o com­
posto, perfeito e letrado."
32. De sapiente, Cap. 22: "É claro ( ... ) que a sabedoria seja um tipo de
harmonia, de diferença, de fecundidade, de emanação do homem, que ela
consista na díade humana engendrada de uma mônada anterior. Pois nosso
homem primitivo, nativo e sensível, dom da própria natureza, é uma mônada
1 54 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

la, o homem não mais aparece como parte do todo, mas como
olho e espelho deste todo: e um espelho que não recebe de fo­
ra a imagem das coisas, mas que, ao contrário, as forma e cons­
titui no interior de si mesmo33.

e é a fonte e o começo d e toda fecundidade humana. Quanto a o homem ar­


tificial, ou seja, espécie humana engendrada pela arte, é uma díade e um
tipo de emanação do homem primitivo, sua sabedoria, seu fruto e seu fim.
Por esse hábito adquirido, aquele que era somente homem de natureza, por
meio de vantagem da arte e do seu riquíssimo beneficio, chama-se dora­
vante homem redobrado, homem-homem. E não somente até a díade, mas
mesmo até a tríade que a força da sabedoria humana estende a harmonia do
homem e propaga sua humanidade. De fato, sem um meio, os extremos não
seriam nada, sem vizinhança não há distância, sem acordo não há desacor­
do, nem diversidade nem coincidência. Ora, a mônada e a díade, e também
a natureza e a arte, são, de certa forma, extremos; o mesmo para o homem
natural e para o homem artificial, ou seja, para o homem substancial e sua
imagem verdadeira engendrada pela virtude para o homem fornecido pela
natureza ou dom natural e para o homem adquirido. Existe, então, uma
síntese, uma certa concordância e coincidência, um amor, uma paz, um
laço, um meio para os dois, que é seu produto, a união, o fruto, a emanação.
Assim, a mônada e a díade, juntas uma à outra, engendram e produzem a
tríade, que é sua união e concórdia. Por isso, a sabedoria é uma certa
maneira tripla de segurar o homem, a trindade do homem, uma humanida­
de tríade. Pois a trindade é um rival da perfeição total, pois sem trindade é
impossível descobrir qualquer perfeição."
33. "O homem não é nada entre as coisas, ele foi feito, criado a mais
pela natureza, para se tornar multividente, para ser a expressão, o espelho
natural de todas as coisas, desconectado, separado de ordem de todas as coi­
sas, situado bem longe da região das coisas, centro de todas as coisas. A na­
tureza do espelho está, de fato, em ser o inverso e o oposto daquela ima­
gem que deve levar em si ( . . . ) agora, se tu colocas todos os seres em não im­
porta qual lugar do mundo, é preciso colocar e acolher o homem em seu
oposto a partir de ti, para que seja o espelho de todas as coisas ( . . . ) o verda­
deiro lugar do espelho assim como do homem é então, em oposição, no
outro extremo, à distância, na negação de todas as coisas, quero dizer, on­
de as coisas não são, onde não há nada em ato, fora de tudo, onde, porém, elas
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 55

Um traço fundamental da filosofia do Renascimento é o


fato de ela não se contentar com a expressão abstrata desses
pensamentos, mas de buscar para eles uma expressão pictó­
rica e simbólica. Nesse sentido, o mito de Prometeu, que ex­
perimenta uma espécie de ressurreição e de renovação espi­
ritual, oferece-se como que espontaneamente para representar
este traço. O tema de Prometeu está entre aqueles temas mí­
ticos primitivos aos quais a filosofia da Antiguidade não se
cansou de recorrer. Sua interpretação alegórica já havia sido
intentada por Platão em Protágoras e por Plotino e o neopla­
tonismo. Agora, este tema recorrente encontra-se com o tema

nasceram para se transformar ( . . . ) Pois Deus, após ter terminado, acabado


todas as coisas, após ter cada ato atribuído a um lugar, viu que faltava um
espectador de tudo, um olho de todas as coisas ( . . . ) viu também que não
sobrava nenhum lugar em meio das outras coisas para esse olho supremo.
Todas as coisas de fato estavam cheias de atos, cada uma estava estabele­
cida em sua escala, em seu lugar, na sua ordem; e o homem não poderia se
fazer, sem dúvida, a partir dos atos diversos e das espécies díspares ou das
di ferenças das coisas e dos astros do mundo (as quais não é possível nem
conveniente misturar, confundir e coincidir).
De fato, o homem começou a crescer fora das diferentes e das proprie­
dades de todas as outras coisas, num lugar oposto a todos os outros, num
lugar aberto do mundo, no meio de todas as coisas, como uma criatura pú­
blica, vazio que substituiu pelos poderes, pelas sombras, pelas espécies c
pelas imagens o que havia ficado na natureza." (De sapiente, Cap. 26).
Essa passagem possui um significado histórico especial, pois mostra a
"virada" característica que o motivo do microcosmos sofre na filosofia do
Renascimento. Tanto em Bovillus quanto em Pico e em Nicolau de Cusa,
este motivo não encerra apenas a unidade do homem e do mundo, mas é
justamente nesta mesma unidade, na correlação entre ambos, que o
momento da oposição, que a polaridade entre "sujeito" e "objeto" é enfati­
zada. Encontramo-nos com isso nos umbrais da doutrina dos mônadas, de
Leibniz, pois até o mônada, por sua própria natureza e essência, precisa
apartar-se do mundo dos fenômenos, a fim de poder expressá-lo e de tor­
nar-se o seu "espelho vivo".
1 56 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

cristão de Adão, seja para fundir-se a ele, seja para interagir


com ele e - graças à oposição em que se encontra em relação
a ele - reformulá-lo internamente. Burdach acompanhou em
detalhe a evolução do tema de Adão e mostrou que, na tran­
sição da Idade Média para o Renascimento, este tema se pro­
vou fecundo e pleno de impulsos. A figura do primeiro ho­
mem, tal como a visão cristã o havia talhado apoiando-se na
representação bíblica, ganha agora uma nova significação gra­
ças à influência conjunta dos pensamentos platônico-augus­
tinianos e neoplatônico-herméticos. Ao transformar-se em ex­
pressão do homem espiritual, do homo spiritualis, a figura do
primeiro homem resume todas as tendências espirituais da
época voltadas à renovação, ao renascimento, à regeneração
do homem34. Na literatura inglesa, essa mudança ganha ex­
pressão no poema Piers the Plowman, de William Langland,
e na literatura alemã no diálogo entre o camponês e a morte,
composto por Johannes von Saaz por volta de 1 400. Este diá­
logo, que Burdach chamou de a maior obra de arte poética na
Alemanha daquela época, revela, no vigor de sua força figu­
rativa e de sua expressão lingüística, as novas forças ideais que
clamavam então por exprimir-se. O que temos aqui é poesia, e
não uma doutrina; mas uma poesia totalmente animada e per­
passada pelo sopro de um novo pensamento, que se nos re­
vela sem qualquer ornamento escolástico no espaço livre do
pensamento, por assim dizer. Não é a observação filosófica
abstrata que levanta e desenvolve esses problemas, mas a pró­
pria vida, que não se cansa de colocar para si mesma a eterna
questão da sua origem e do seu valor. Assim, todas as oposi­
ções passam de meramente dialéticas a dramáticas. E é somen­
te diante delas, das oposições, e não de suas soluções, que o
diálogo nos coloca. Para a luta entre o camponês e a morte, en-

34. Cf. Burdach, Reformation, Renaissance, Humanismus, pp. 1 7 1 ss.


LIBERDADE E NECESSIDADE 1 57

tre a força fatal da destruição e o espírito do homem, que se


rebela contra ela, parece não haver solução. A sentença de
Deus, com a qual o diálogo se encerra, confere a vitória à mor­
te, mas ao reclamante as honras da guerra: der Krieg ist nicht
gar one sache: ir habt beide wol gefochten; den twinget leit
zu clagen, disen die Anfechtung des clagers die warheit zu
sagen. Darumb, clager, habe ere! Tot, sige!35 E, não obstante,
esta vitória da morte é, ao mesmo tempo, a sua derrota, pois
se agora a sua força fisica é selada e confirmada, seu poder
espiritual é, ao mesmo tempo, quebrado. A destruição da vida,
o fato de Deus a abandonar à morte, não mais significa a nuli­
dade dessa mesma vida. Pois se ela é destruída em seu ser,
resta-lhe ainda um valor indestrutível : o valor que o homem
livre confere a si mesmo e ao mundo. Nesta crença da huma­
nidade em si mesma reside a garantia de seu renascimento.
A forma alegórica do poema atua apenas como um leve véu
através do qual podemos distinguir com clareza e precisão a
grande linha da criação artística e do desenvolvimento do pen­
samento. E neles reconhecemos nitidamente os fundamentos
da visão de mundo do Renascimento, que está por vir. Não é
sem razão que neste grande discurso de acusação do campo­
nês contra a morte, neste discurso que louva o homem como
a criação mais perfeita e mais sublime de Deus, posto que a
mais livre, Burdach reencontra o mesmo espírito que, mais de
duas gerações mais tarde, se manifestaria no discurso de Pico
sobre a dignidade do homem: Engel, teufel, schretlein, e/age-

3 5 . "A guerra não foi sem motivo: vós haveis combatido bem, am­
bos: tu, cujo sofrimento te leva a te revoltar, e tu, cujo ataque do camponês
te leva a dizer a verdade. Portanto, a ti, camponês, as honras ! A ti, morte, a
vitória!" Cit. de Der Ackermann aus Bohmen, ed. por Bernt e Burdach,
Berlim, 1 9 1 7 ( Vom Mittelalter zur R�formation. Forschungen zur Gesch. der
deutschen Bildung III, 1 ), Cap. XXXIII, p. 8 5 .
1 58 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

muter, das sint geiste in gotes twangwesen : der mensche ist


das a/ler achtberest, das a/ler behendest und das a/lerfreies­
te gotes werkstuck.36 Se, por um lado, aparece como traço
mais característico deste discurso de acusação o fato de ele
descartar de maneira decidida os traços pessimistas do dogma
cristão, o fato de ele - em sua fé inabalável nas forças próprias
do homem e na sua natureza boa, assim determinada por Deus
- encerrar um elemento do pelagianismo37, por outro lado,
também é verdade que esse mesmo discurso antecipou uma
visão que, pouco tempo depois, encontrou na filosofia alemã
sua expressão e justificativa conceituais. Se o autor de Acker­
mann aus Bohmen ignora por completo a corrupção da natu­
reza humana, herdada pela humanidade por culpa do pecado
de Adão, proclamada como maldição pela ira divina e legada
a toda a raça humana a cada nova geração, Nicolau de Cusa,
pouco tempo depois, declara-se contrário a esta doutrina, usan­
do para isso quase as mesmas palavras: "Toda essa força que
sabe que ela existe por ação do melhor sabe da melhor forma
que ela existe. Tudo o que existe repousa em sua natureza es­
pecífica, como sendo a melhor vinda do melhor. Sendo dado,
então, um ser natural qualquer em tudo o que ele é, é o melhor
( . . . ) é então criado, do alto para a onipotência infinita."38
E com isso chegamos ao ponto em que o tema de Adão
sofre a transformação interna que o habilita a se transformar
diretamente no tema de Prometeu. Para que esta transição se

36. "Anjo, demônio, duende, feiticeira, todos esses espíritos são pro­
dutos da necessidade divina: o homem, de todas as obras de Deus, é a mais
respeitável, a mais hábil e a mais livre." Cit. de Ackermann aus Biihmen,
Cap. XXV, p. 58; cf. o comentário de Burdach na p. 323 .
3 7 . Burdach, op. cit. , p. 3 1 5 .
3 8 . Nicolau de Cusa, De dato patris luminum, Cap. 1 (Opera, foi. 284
s.); cf. Cap. 1, nota 52, deste livro.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 59

processe, não é necessária qualquer alteração no conteúdo do


pensamento; basta apenas um leve deslocamento da ênfase. O
homem é criatura; mas o que o distingue de todas as demais
criaturas é o fato de ter recebido de seu criador o dom da pró­
pria criação. O homem somente chega ao seu destino, somen­
te atinge a plenitude de seu ser, à medida que põe em ação es­
sa sua força básica e primordial. O mito de Prometeu, o artista
que cria o homem, também foi muito caro ao pensamento me­
dieval: ele reaparece em Tertuliano, Lactâncio e Agostinho.
A visão medieval, porém, só retém do mito, essencialmente,
o seu aspecto negativo: um disfarce pagão para o tema bíbli­
co da criação, que ela, diante de tal desvirtuação, se empenha
para restituir com todas as suas forças. O verdadeiro Prometeu,
o único que a fé cristã pode conhecer e admitir, não é o ho­
mem, mas o Deus único: "o Deus único que criou tudo, que fez
o homem da terra, é o verdadeiro Prometeu"39• Uma mudan­
ça nessa concepção fundamental já pode ser percebida quando
Boccaccio, na interpretação evemerística do mito de Prome­
teu apresentada em sua Genealogia deorum, distingue uma
dupla criação: uma, através da qual o homem é chamado à vi­
da, e outra, através da qual essa vida ganha um conteúdo es­
piritual. O homem rude e inculto, que sai das mãos da natu­
reza, não poderia alcançar sua plenitude, senão por meio de
um novo ato de criação: se o primeiro lhe conferiu sua reali­
dade física, somente o segundo garantiu-lhe sua forma espe­
cífica. Prometeu é aqui um herói humano da cultura, o portador

3 9 . Sobre a fonna do tema de Prometeu na Idade Média, particular­


mente em Lactâncio (Divin. lnstitut. II, 2) e em Tertuliano (Apolog. 1 8; Adv.
Marc. , I, ! ), cf. as indicações mais detalhadas do artigo Prometheus, de J .
Toutain, publ. em Daremberg-Saglio, Dictionnaire des antiquités IV, 684.
Sobre a retomada do tema nas artes plásticas do Renascimento, cf. Georg
Habich, Über 2 Prometheus-Bilder angeb/ich von Piero di Cosimo, Sitzungs­
ber. d. Bayer. Akad. d. Wiss. : Philos.-philol. Klasse, 1 920.
1 60 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

do conhecimento e da ordem política e moral; aquele que, gra­


ças a esses dons, "reformou" - no verdadeiro sentido da pa­
lavra - os homens; aquele que lhes imprimiu uma nova forma
e essência40. Paulatinamente, porém, a filosofia do Renasci­
mento também vai superando uma tal concepção desse tema,
à medida que, de forma cada vez mais decidida, desloca o ato
de dar forma para a atividade do sujeito isolado. Paralelamen­
te à atividade do Criador e à do Redentor, coloca-se agora a
atividade do próprio indivíduo. E esta concepção fundamental
infiltra-se inclusive no mundo das idéias do "platonismo cris­
tão"; por vezes, este individualismo heróico irrompe até mes­
mo na obra de Ficino. Também para ele o homem não é um
escravo da natureza criadora, mas um rival que completa, apri­
mora e apura a obra da natureza: "as artes humanas fabricam
por si mesmas tudo que fabrica a natureza, como se nós não
fôssemos escravos da natureza, mas seus rivais"4 1 . Já vimos

40. Boccaccio, De genealogia Deorum, Lib. IV, Cap. IV: "Os que são
produzidos pela natureza são rudes e ignorantes, ou melhor, se não forem
instruídos, são bestas lamacentas e agrestes. Por isso surge o segundo Pro­
meteu, a saber, o homem sábio que, tomando-os como pedras, recriou-os,
por assim dizer, instrui-os e forma-os e, com suas demonstrações, faz civis
a partir de homens naturais, notáveis pelos costumes, pela ciência e pela
virtude, de modo que é evidente que a natureza produziu uns e o ensinamen­
to reformou outros."
4 1 . Ficino, Theologia platonica XIII, 3 , foi. 295. A tensão que persiste
no conceito de humanitas de Ficino manifesta-se, entre outras coisas, tam­
bém na explicação que ele oferece para a palavra; às vezes, brincando com a
etimologia à moda da Idade Média, ele a compõe com humus (homo dicitur
ab humo, Epistolae, I, foi. 64 1 ) , ao passo que, em outras passagens, ele con­
testa expressamente uma tal derivação: "atenção para não desprezar a hu­
manidade a ponto de crê-la nascida da terra. A humanidade é uma ninfa de
corpo maravilhoso, de origem celeste, nascida do éter, amada por Deus,
mais que qualquer outra" (Epistolae, Lib. V, foi. 805). Aqui também se
revela com clareza a oposição que já tinha adquirido expressão artística no
LIBERDADE E NECESSIDADE 161

como mais tarde este pensamento viria a se aguçar e a ganhar


vigor na obra de Bovillus. Também ele retoma o mito de Pro­
meteu na exposição da obra De sapiente, ainda que o mito apa­
reça transformado sob a ação de uma interpretação que cor­
responde à filosofia da natureza e à metafisica de Bovillus. Se
esta metafisica se subdivide em quatro níveis, se reparte to­
dos os seres pelas ordens básicas do esse, vivere, sentire e in­
telligere, então - seguindo o jogo das analogias que domina
toda a doutrina de Bovillus - dos elementos cósmicos a terra
assume o primeiro estágio, a água o segundo, o ar o terceiro,
enquanto o fogo, que ocupa a posição mais elevada, se trans­
forma em analogia e em imagem da "razão". Elementos do
pensamento estóico fundem-se aqui com uma forma de "me­
tafisica da luz'', que provém de fontes neoplatônicas e que
mais tarde experimentaria uma vez mais uma renovação sis­
temática na filosofia da natureza do Renascimento, particu­
larmente em Patrizzi42• E assim, o tema de Prometeu pode se
transformar agora para Bovillus no elo de ligação entre a sua
filosofia da natureza e a sua filosofia do espírito. O sábio, ao

início do século no discurso entre o camponês e a morte (cf. especialmente


Caps. XXIV e XXV de A ckermann aus Bohmen ) . Em seu comentário
(pp. 3 1 O, 3 1 7), Burdach supõe ter sido fonte direta ou indireta da composi­
ção dos discursos da morte a obra de Inocêncio III, De contemptu mundi sive
de miseria conditionis humanae. Confirmada esta relação, fica provado mais
uma vez, também por este lado, o quanto estavam intimamente relaciona­
dos os círculos do pensamento religioso, filosófico e humanista na época do
Renascimento. Pois foi justamente contra esta obra que Giannozzo Manetti
se posicionou em seu tratado De dignitate et excellentia hominis ( 1 452); e
este último tratado, por sua vez, parece ter sido em muitos pontos o mode­
lo literário direto para a apologia da Humanitas de Ficino. (Para um apro­
fundamento dessa questão, cf. Gentile, op. cit. , pp. 1 53 ss. ; cf. também pp.
1 39 ss. deste livro . )
42. Cf. Patrizzi, Pancosmia, L i b . IV (Nova de universis Philosophia,
Ferrariae, 159 1 , P. IV, foi. 73 ss.).
162 INDIVÍDUO E CW>MOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

gerar o homem celestial a partir do terrestre, o atual a partir


do potencial, o intelecto a partir da natureza, imita o próprio
Prometeu, que subiu aos céus para trazer à terra o fogo dos
deuses que dava vida a todos os seres. Ele se torna o seu pró­
prio criador e mestre, conquista e possui a si mesmo, enquanto
o homem meramente "natural" sempre pertence a uma força
estranha, de quem é eternamente devedorl3 . A ordem tem­
poral que está entre o homem da "natureza" e o homem da "ar­
te", entre o primus homo (homem primeiro) e o secundus homo
(homem segundo), sofre, portanto, uma inversão, quando avan­
çamos para uma ordem de valor: o que era segundo na ordem
do tempo passa a ser primeiro na ordem de valor. Pois o ho­
mem só atinge seu ponto de destino ao conferi-lo a si mesmo;
ao transformar-se, como afirma Pico em seu discurso, em li-

43 . "O sábio ( ... ) produz o homem celeste, solicitando e tirando das


trevas a claridade; do poder, o ato; do começo, o fim; do poder inato, a obra
acabada; da natureza, o entendimento; do rascunho, a perfeição; da parte, o
todo e do grão, enfim, o fruto. Desse modo, imita o famoso Prometeu, que
(como cantam as fábulas dos poetas) foi admitido algum tempo nas mora­
das etéreas, seja com a permissão dos deuses, seja pela agudeza de seu gê­
nio e de seu pensamento, e, após ter examinado todos os palácios dos céus
como o mais atento olhar do pensamento, não encontrará nada de mais san­
to, de mais precioso, de mais vivo que o fogo. Esse fogo, então, que os deuses
recusam tão zelosamente aos mortais, roubou-o imediatamente e introdu­
ziu-o no mundo dos mortais e animou, com ele, o homem de argila que ti­
nha outrora modelado. Assim é que o sábio, tirando o mundo sensível pela
força da contemplação, passando pelo palácio celeste e penetrando nele,
recolhe o fogo resplandecente da sabedoria do seio imortal de seu pensa­
mento e o leva para baixo e, com esta chama pura e vivíssima, o homem natu­
ral de si mesmo ou terrestre vivificará, entreterá, animará.
O sábio restitui à natureza seus dons, como homem letrado; além dis­
so, ele ganhou a si mesmo, ele se possui e vive em si mesmo. Quanto àquele
que não é sábio ( . . . ) permanece seu perpétuo devedor, com o peso do homem
substancial e não é nunca de si mesmo." De sapiente, Cap. 8 .
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 63

vre escultor de si mesmo (sui ipsius quasi arbitrarius honora­


riusque piastes etfictor). Este pensamento reaparece mais tar­
de em Giordano Bruno, se bem que totalmente desvinculado
de sua origem inicial religiosa e até mesmo renunciando cons­
cientemente a ela. Em Bruno prevalece apenas a paixão he­
róica e titânica da auto-afirmação do eu. Se, por um lado, o eu
reconhece um elemento transcendental, que vai além de todos
os limites da força de compreensão do homem, por outro la­
do ele não quer receber este elemento supra-sensível como um
mero dom da graça. Aquele a quem um tal dom é conferido
pode possuir em si um bem maior do que aquele que tenta che­
gar ao conhecimento do divino por suas próprias forças; mas
este bem objetivo não compensa o valor específico do esforço
e do agir autônomos. Pois não é na condição de receptáculo ou
de mero instrumento que o homem deve entender o divino, e
sim como artista e como causa influente. Nesse sentido, Bruno
separa os que meramente crêem e recebem daqueles que expe­
rimentam em si o impulso de ascender ao divino e a força do
ímpeto, o impeto razionale, "ímpeto racional": "gli primi
hanno piu dignità, potestà ed efficacia in se, perche hanno la
divinità; gli secondi sono essi piu degni, piu potenti ed effi­
caci, et son divini. Gli primi son degni come l ' asino che por­
ta li sacramenti; gli secondi come una cosa sacra. Nelli primi si
considera et vede in effetto la divinità et quella s'admira, ado­
ra et obedisce; negli secondi si considera et vede l 'eccellenza
della propria humanitade"44 (em si os primeiros têm mais dig­
nidade, poder e eficácia, porque eles possuem a divindade; os
outros são mais dignos, mais poderosos e mais eficazes e eles
são divinos. Os primeiros são dignos como o asno que leva
os santos sacramentos; os segundos como a coisa sagrada.

44. Bruno, De gli heroicifurori, Dial. I I I ; Opere ital. , ed. Lagarde,


p. 64 1 .
1 64 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Nos primeiros considera-se e vê-se efetivamente a divindade


e ela mesma é admirada, adorada e obedecida, nos segundos
considera-se e vê-se a existência da própria humanidade). Jun­
tas, essas afirmações do diálogo Degli eroicifurori, de Bru­
no, e as afirmações de De docta ignorantia, em que Nicolau
de Cusa define o conceito e o ideal de humanitas, constituem
a totalidade do movimento de idéias dos sécs. XV e XVI. Ni­
colau de Cusa não apenas tenta articular este ideal com o cír­
culo religioso de idéias; para ele, tal ideal significa exatamente
a realização e o cumprimento das doutrinas fundamentais do
cristianismo: a idéia de humanidade e a de Cristo confluem pa­
ra uma unidade. Mas quanto mais avança a evolução do pen­
samento filosófico tanto mais este laço se afrouxa para, ao
final, desatar-se totalmente. A formulação de Giordano Bruno
permite que se reconheçam, com precisão característica, as
forças que levam a uma tal solução. O ideal de humanidade
encerra em si o ideal da autonomia; e quanto mais se forta­
lece este último tanto mais ele solapa o terreno do círculo re­
ligioso ao qual tanto Nicolau de Cusa quanto a Academia de
Florença procuravam relegar o conceito de humanidade.

As considerações tecidas até aqui mostraram-nos a pro­


gressiva transformação do problema da liberdade e o avanço
cada vez mais seguro e vigoroso do princípio de liberdade pa­
ra o interior do ideário religioso do Renascimento. Passo a
passo, tal avanço teve de conquistar o terreno da dogmática
teológica: um processo dificultado pelo fato de o fundador
dessa dogmática continuar a ser considerado pela filosofia do
Renascimento um autor inteiramente clássico, uma autoridade
em assuntos filosóficos e religiosos. Petrarca tinha sido o pri-
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 65

meiro a cultuar Santo Agostinho : de toda a plêiade dos gran­


des mestres de tempos passados, Petrarca o havia destacado
e reconhecido como aquele que lhe era "o mais caro entre
mil"45 . A Academia de Florença envereda pelo mesmo cami­
nho à medida que vê em Agostinho o modelo por excelência
do "platônico cristão". Somente quando temos presente esta
relação histórica é que podemos avaliar em toda a sua exten­
são a intensidade das resistências a serem vencidas aqui. E,
não obstante, a eliminação de tais resistências não teria bas­
tado para garantir a vitória ao pensamento de liberdade, pois,
antes que isso pudesse acontecer, era preciso empreender uma
luta contra uma outra força que estava ligada à vida espiritual
do Renascimento por milhares de laços. Leibniz distinguiu
na teodicéia três formas de destino: ao Fatum Christianum
(destino cristão), ele contrapõe o Fatum Mahumetanum (des­
tino maometano) e o Fatum Stoicum (destino estóico). As três
tendências fundamentais do pensamento, expressas por esses
conceitos, ainda são forças inteiramente vivas no Renascimen­
to. Com intensidade equiparável à do mundo do pensamento
cristão, continua a exercer suas influências no Renascimen­
to o mundo de idéias da astrologia, que se nutre de fontes pa­
gãs e arábicas. E quando a Antiguidade pôde ser invocada
contra a tradição e a dogmática de orientação cristã e medie­
val, a princípio ela permaneceu impotente diante de seu no­
vo adversário, chegando mesmo a parecer que não surtia ou­
tro efeito, senão o de lhe intensificar as forças. De fato, no
início, o caminho para a época "clássica" da filosofia grega
estava totalmente vedado ao Renascimento, que não podia
enxergá-la senão sob um invólucro e uma roupagem helenís­
ticos; que não podia vislumbrar a doutrina de Platão senão

4 5 . Petrarca, De secreto conflictu curarum suarum, Prefatio.


1 66 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

por meio do neoplatonismo. É assim que, com a renovação do


mundo conceituai antigo, o Renascimento se avizinha também
do mundo dos mitos antigos. Ainda em Giordano Bruno po­
demos perceber que este mundo, longe de ter submergido
definitivamente, continua atuando de forma absolutamente
determinante no próprio pensamento filosófico. E esta in­
fluência se faria sentir de forma mais intensa e profunda nos
momentos em que se buscou uma integração entre o eu e o
mundo, entre o indivíduo e o cosmos, não por meio do pen­
samento conceituai, mas através do sentimento artístico ou
da paixão. Quanto mais autônomas essas forças se tomam no
interior do Renascimento, quanto mais livremente elas po­
dem exercer suas influências, tanto mais caem por terra as
resistências que a Idade Média havia oposto ao sistema da
astrologia. A própria Idade Média cristã não havia consegui­
do liberar-se desse sistema e nunca conseguiu superá-lo por
completo. Ela acaba por assimilá-lo, da mesma forma como
tolera e leva adiante as idéias fundamentais da Antiguidade
pagã. As antigas figuras dos deuses continuam a existir, mas
são rebaixadas à condição de demônios, de espíritos de esfe­
ras inferiores. Por mais forte que tenha sido o sentimento pri­
mitivo de terror do homem diante dos demônios, ele agora se
enfraquece e é controlado pela confiança na onipotência do
Deus único, a cuja vontade todas as forças contrárias têm de
reverenciar. Portanto, se por um lado o "conhecimento" da
Idade Média, se particularmente a medicina e as ciências na­
turais medievais estão impregnadas de elementos de astrolo­
gia, por outro a fé medieval oferece um permanente corretivo
para eles. A fé não nega ou elimina tais elementos, mas os
subordina ao poder da Providência Divina. Graças a tal su­
bordinação, a astrologia pode continuar incólume como prin­
cípio do conhecimento do mundo. O próprio Dante a admite
neste sentido; de fato, no Convivia, ele nos oferece um sis-
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 67

tema completo do conhecimento, que corresponde ponto por


ponto ao sistema da astrologia. As sete ciências do Trivium
e do Quadrivium são ordenadas às sete esferas planetárias: a
gramática corresponde à esfera da Lua, a dialética, à de Mer­
cúrio, a retórica, à de Vênus, ao Sol, a aritmética, a Marte, a mú­
sica, a Júpiter, a geometria e a Saturno, a astronomia46• Quanto
ao Humanismo, não é possível reconhecer em suas primeiras
manifestações qualquer mudança de atitude em relação à astro­
logia. Nesse sentido, Petrarca ainda está plenamente inserido
na visão cristã fundamental: sua posição em relação à astro­
logia não é diferente da de Agostinho, em cujos argumentos
ele expressamente se baseia47• E se é verdade que Salutati,
em sua juventude, tende para o fatalismo astrológico, tam­
bém é verdade que mais tarde, em sua obra Defato etfortuna,
ele superou essa tentação e contestou expressamente uma tal
fé. Os astros não são senhores de um poder autônomo: eles só
devem ser vistos como ferramentas nas mãos de Deus48. Quan­
to mais avançamos, porém, tanto mais percebemos que pre­
cisamente a evolução do espírito e da cultura seculares refor­
ça a tendência às doutrinas básicas da astrologia. Na vida de
Ficino, de resto tão comedida e regular, o dilema da relação
espiritual e moral em frente à astrologia traz um momento de in­
quietação e de constante tensão interior. Também Ficino se
submete à visão geral do Cristianismo e da Igreja; também ele
ressalta o fato de que os corpos celestes, embora detentores
de um certo poder sobre o corpo do homem, são incapazes de

46. Dante, Convivia, trattato secondo, Cap. XIV.


47. Petrarca, Epist. rerumfamiliarium Ili, 8 (para informações mais
detalhadas, cf. Voigt, Wiederbel. des klass. A ltert. 2, l, 73 ss.).
48. Para maiores detalhes sobre a obra Defato etfortuna ( 1 396), de
Salutati, cf. especialmente A.V. Martin, Coluccio Salutati und das huma­
nistische L ebensideal, Leipzig e Berlim, 1 9 1 6, pp. 69 ss., 283 ss.
1 68 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

exercer qualquer tipo de coação sobre o seu espírito e a sua


vontade49• E a partir daí ele combate toda e qualquer tentati­
va de se querer desvendar o futuro com os meios da astrologia:
si diligentius rem ipsam consideramus, non tam fatis ipsis,
quam fatuisfatorum assertoribus agimur50• E, não obstante,
não se pode contestar o fato de que esta convicção teórica, pe­
la qual ele se decide, não é capaz de alterar a essência de seu
. sentimento de vida; este, por sua vez, continua sendo domina­
do pela crença no poder dos astros, sobretudo pela crença no
poder funesto de Saturno, que figurava no ascendente do ho­
róscopo do próprio Ficino5 1 • O sábio não deve tentar escapar
à força de sua estrela: só lhe resta desviar esta força para o
bem ao fortalecer em si mesmo as influências benéficas que
dela partem e ao afastar, na medida do possível, as influências
maléficas. O ato de dar forma à vida repousa sobre a capaci­
dade de levá-la à unidade e à perfeição no interior de um cír­
culo prescrito; e para além de tais limites nosso esforço su­
premo não pode nem deve se aventurar. No terceiro livro de
sua obra De vita triplici, à qual ele deu o título de De vita coe­
litus comparanda, Ficino desenvolveu em seus mínimos deta­
lhes um sistema completo das formas de vida segundo a de­
terminação e a força dos astross2• Um tal exemplo permite que

49. Ficino a Cavalcanti, Epistolae, Lib. 1 , foi. 633 : "Nosso corpo é


arrancado do corpo do mundo pelas forças do destino como uma partícula
é retirada do todo por um impulso violento, mas a força do destino não
penetra no nosso pensamento, a menos que ele não decaia, de início, por
sua própria vontade num corpo submetido ao destino ( . . . ) Que cada espíri­
to se retire do corpo, pela destruição, e se recolha no pensamento, e a for­
tuna expandirá seu poder no corpo e não passará no espírito."
50. Ficino, Epistol. , Lib. IV, foi. 78 1 .
5 1 . Cf. as cartas de Ficino a Cavalcanti, Epistolae, Lib. III, foi. 73 1 e 732.
52. Sobre a obra De vita triplici, de Ficino, bem como sobre sua posi­
ção em relação à astrologia, cf. especialmente Panofsky-Saxl, Dürers Melan­
colia 1 (Stud. der Bibl. Warburg Nr. 1 1 ), Leipzig e Berlim, 1 92 3 , pp. 3 2 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 69

se reconheça com clareza as duas forças fundamentais e dis­


tintas contra as quais o novo sentimento de vida do Renasci­
mento e contra as quais o seu conceito e o seu ideal de huma­
nidade tinham de lutar. A cada tentativa de libertação do eu
contrapõe-se uma necessidade de natureza e de caráter duplo:
de um lado, o regnum gratiae (reino da graça), de outro, o
regnum naturae (reino da natureza) cobram-lhe o seu reco­
nhecimento e submissão. Quanto maior o vigor com que se
rechaçava a primeira exigência, tanto mais tinha a segunda
de se elevar e de se declarar a única válida. À obrigação trans­
cendental contrapõe-se agora a imanente; às obrigações reli­
giosas e teológicas, a naturalista. E esta última era a mais di­
ficil de se superar e de se vencer: o conceito de natureza do
Renascimento alimentava-se, em última análise, das mesmas
forças espirituais, a partir das quais se havia desenvolvido o
seu conceito de espírito e o seu conceito de homem. O que se
postulava aqui era nada mais nada menos do que o fato de es­
sas forças voltarem-se de certo modo contra si mesmas e de
estabelecerem para si mesmas os seus próprios limites. Se a
luta contra a Escolástica e contra a dogmática medieval se vol­
tava para o exterior, era chegado o momento de se empreender
uma batalha voltada para o interior. É fácil medir a enorme
dificuldade e a tenacidade necessárias para que esta luta ga­
nhasse forma. De fato, toda a filosofia da natureza do Renas­
cimento - tal como ela aparece no séc. XV e continua a viver
no séc. XVI e até os primórdios do séc. XVII - está intima­
mente entrelaçada com a concepção mágico-astrológica da
causalidade. Entender a natureza "segundo os seus próprios
princípios" (juxta propria principia) não parecia significar
outra coisa senão explicá-la a partir das forças inatas que ne­
la jazem. Mas onde essas forças se manifestavam com maior
clareza, onde elas se mostravam sob sua forma mais geral e
mais inteligível do que no movimento dos corpos celestes?
1 70 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Se é que fosse possível descobrir em algum lugar a lei imanen­


te do cosmos, a regra universal que rege todos os eventos, in­
clusive os mais particulares, isso seria no movimento dos
corpos celestes. Por conseguinte, a astrologia e a magia, na
época do Renascimento, estão tão pouco em conflito com o
"moderno" conceito de natureza, que acabam se converten­
do em seus veículos mais poderosos. A astrologia e a nova
"ciência" empírica da natureza contraem uma união tanto no
que respeita ao seu objeto quanto no que tange às pessoas que
as praticam. É preciso visualizar esta união na figura de ca­
da pensador tomado isoladamente; é preciso observá-la, por
exemplo, na forma através da qual ela se nos apresenta na au­
tobiografia de um homem como Cardano, para que possamos
avaliar em toda a sua extensão o poder que ela exerce sobre a
própria vida, sobre sua concepção teórica e sobre sua confi­
guração prática. Somente com Copérnico e com Galileu é que
se rompem esses laços; e, não obstante, tal ruptura não signi­
fica uma mera vitória da "experiência" sobre o "pensamen­
to", da medição e do cálculo sobre a especulação. Antes que
isso pudesse acontecer, era preciso que se processasse uma
transformação na própria maneira de pensar, era preciso que
se constituísse uma nova lógica do conceito de natureza. Na­
da é mais importante para se reconhecerem as grandes rela­
ções sistemáticas que se estabelecem no interior da filosofia
do Renascimento do que acompanhar de perto o surgimento
e as transformações de tal lógica. Pois, para tanto, o resulta­
do como tal não é tão decisivo e essencial quanto o caminho
através do qual se chega até ele. Se é verdade que este cami­
nho por vezes parece nos conduzir em meio a um emaranhado
de superstições fantásticas, se é verdade que em alguns pen­
sadores do porte de um Bruno ou de um Campanella não é
possível estabelecer com nitidez os limites entre mito e ciên­
cia, entre "magia" e "filosofia", também é verdade que, per-
LIBERDADE E NECESSIDADE 171

correndo esse caminho, nossos olhos mergulham profunda­


mente na dinâmica do processo intelectual, através do qual, e
somente através dele, se processou, de forma lenta e constan­
te, a "separação" entre esses dois domínios.
É óbvio que esta constância não deve ser entendida no
sentido de que a seqüenciação temporal das idéias represen­
ta e reflete, ao mesmo tempo, a sua seqüenciação sistemáti­
ca. Com efeito, de forma alguma trata-se de um "progresso"
temporal contínuo que se desenvolve linearmente em direção
a um objetivo determinado. O antigo e o novo não apenas se
desenvolvem paralelamente por um longo período de tempo,
como também se mesclam constantemente um com o outro.
Assim, só se pode falar de um "progresso" aqui no sentido
de que, na flutuação deste ir e vir, os temas que animam os
pensamentos aos poucos vão se separando uns dos outros,
vão se destacando sob formas deterruinadas e típicas. Em tais
formações típicas, o processo imanente do pensamento se evi­
dencia, sem necessariamente corresponder ao seu desenrolar
temporal e empírico. No processo de superação da visão de
mundo marcada pela astrologia, há que se distinguirem so­
bretudo dois estágios diferentes: o primeiro consiste da ne­
gação do conteúdo de tal visão, o segundo da tentativa de re­
vestir tal conteúdo de uma outra forma, a fim de lhe atribuir,
com isso, uma nova fundamentação metodológica. Esta última
tentativa é característica para o tipo de observação da natu­
reza que não parte diretamente dos fenômenos em si, mas que
procura observá-los através da lente do conceito aristotélico­
escolástico de natureza, para depois inseri-los no sistema des­
ses conceitos . . O resultado disso é uma forma híbrida e singular,
uma espécie de astrologia escolástica ou de escolástica astro­
lógica, que encontra seu modelo em certos sistemas medie­
vais, particularmente no averroísmo. No Renascimento ita­
liano, esse tipo de pensamento tomou corpo mais uma vez, e
de forma característica, na obra De naturalium effectuum admi­
randorum causis sive de incantationibus ( 1 520), de Pompa-
1 72 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOf'IA DO RENASCIMENTO

nazzi. Se observarmos esta obra a partir de seu conteúdo, à


primeira vista ela não nos parece ser outra coisa senão um
compêndio de superstições antigas e medievais. Nela estão
reunidos e ordenados por grupos os variadíssimos tipos de
presságios e milagres, as diferentes formas de adivinhação e
de magia. Ainda que Pomponazzi se posicione de forma crí­
tica e cética em relação a alguns desses relatos, em nenhuma
passagem ele contesta a veracidade e a credibilidade do gê­
nero em si. Para ele, a "experiência" é a garantia dessa vera­
cidade; e o crítico de filosofia deve simplesmente aceitar a
experiência, sem alterar-lhe o conteúdo. Segue-se daí que, por
mais estranho e inverossímil que seja um efeito de qualquer
natureza, a teoria - que nada deve objetar a tais observações,
limitando-se simplesmente a "redimi-las" - não deve con­
testar o puro "quê", a realidade de tais efeitos, mas deve, is­
so sim, buscar o "porquê" deste "quê", a "causa" dos fenô­
menos. Certamente, isso só é possível quando conseguimos
ir além do caso isolado em que os fenômenos se nos apresen­
tam num primeiro momento; quando conseguimos atribuir o
efeito especial que observamos, por mais enigmático que ele
nos pareça, a uma forma universal de regularidade. E, para
Pomponazzi, essa forma se revela justamente na ação dos cor­
pos celestes, na causalidade astrológica. Para ele, portanto,
esta última não é nada mais, nada menos do que o postulado
fundamental sobre o qual deve se apoiar toda e qualquer ex­
plicação para os fenômenos naturais. Nenhum fenômeno po­
de ser considerado plenamente entendido enquanto não for
relacionado desta forma com as últimas causas reconhecíveis
de todo ser e de todo vir-a-ser. De outra parte, porém, não há
um único evento da natureza que não possa ser explicado, ao
menos quanto ao seu princípio e à sua possibilidade, pela in­
fluência dos astros sobre o mundo inferior. Assim, para Pom­
ponazzi, todos os "milagres" em particular podem ser atribuí­
dos a uma dessas influências. Por toda a obra ele procura mos­
trar que não há necessidade de se recorrer a nenhuma outra
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 73

força para explicar os supostos atos de encantamento, os fe­


nômenos da magia, a interpretação de sonhos, a quiromancia,
a necromancia etc. Se para a crendice popular tais fenômenos
só se tornam inteligíveis à medida que neles ela enxerga a
emanação de forças pessoais e de atos de vontade pessoais,
o teórico deve rejeitar esta premissa que abandona os fenôme­
nos da natureza ao sabor da arbitrariedade. Para ele não exis­
tem intervenções diretas, sejam demoníacas ou divinas, capa­
zes de romper a lei que rege tais eventos, pois mesmo a in­
tervenção de Deus sobre o mundo não se processa de outra
maneira, senão através dos corpos celestes. Estes, por sua vez,
não são apenas signos da vontade divina, mas são também, e
sobretudo, suas causas mediatas, genuínas e indispensáveis53.
Não importa se podemos ou não apontar essas causas media­
tas para cada acontecimento em particular nem se podemos
acompanhá-las numa série ininterrupta; basta saber que esta
série existe, que ela é absolutamente necessária54• O senso
de compreensão do filósofo não deve, em hipótese alguma,
afastar-se desta exigência; não deve se dar por satisfeito com

5 3 . "É certo que os poderes do alto não se tratam sem a mediação


dos corpos celestes ( . . . ) Donde se conclui que todo efeito produzido aqui
embaixo se leva, ou por si ou por acidente, ao céu e que se pode descobri-lo
e expô-lo a partir da admirável e surpreendente ciência dos corpos celes­
tes." Pomponazzi, De naturalium ejfectuum admirandorum causis sive de
incantationibus, Cap. X, Ausg. Base!, 1 567, pp. 1 22 s.
54. "Admite-se definitivamente que, nas coisas dificeis e escondidas,
as respostas mais distanciadas das inconciliáveis e mais de acordo com as
idéias sensatas e racionais são mais receptíveis do que as razões opostas
( . . . ) Por essas hipóteses, quer-se somente tentar responder aos problemas
objetivos sem recorrer aos demônios e aos anj os ( . . . ) Um efeito inferior não
é produzido imediatamente por Deus acima de nós, mas somente pela me­
diação de seus ministros. Pois Deus ordena tudo e dispõe tudo regular e agra­
davelmente e ele deu às coisas uma lei eterna que é impossível de transgredir."
/bid. , pp. 1 3 1 , 1 34 ; cf. Cap. 1 2, p. 223 .
1 74 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

qualquer explicação que passe ao largo do meio da causalida­


de astrológica ou que interrompa prematuramente sua pes­
quisa, pois caso esta regra básica permitisse uma única exce­
ção, a ordem da natureza perderia toda a sua consistência inter­
na. Se os anjos e demônios pudessem exercer uma influência
direta sobre os objetos naturais e sobre o mundo dos homens,
sem a intermediação dos corpos celestes, não mais seria pos­
sível entender a importância e a necessidade desses corpos
cósmicos; não mais se poderia entender a função que eles
têm a cumprir em todo o mundo55. Como vemos, o que temos
aqui é uma forma peculiar de se conceber a astrologia e tam­
bém uma fundamentação não menos peculiar que se busca
para ela. Pois o que impera aqui não é nem a paixão que se
lança ao futuro e dele quer arrancar seus segredos nem a
observação empírica ou a teoria matemática: o que temos aqui
é uma lógica que, de certa forma, tenta deduzir a priori a for­
ma da astrologia como a única adequada à nossa compreensão
da natureza. Para usar uma expressão moderna, a causalidade
astrológica transforma-se em "condição para a inteligibili­
dade da natureza". Para Pomponazzi, tal causalidade não sig­
nifica um salto para a superstição, mas sim a única via para
se escapar dela; a única garantia realmente segura para a va­
lidade incondicional das leis da natureza. Assim, deparamos
aqui com uma astrologia "racional", por mais paradoxal que
isso possa parecer à primeira vista. Declara-se o domínio in­
condicional dos astros sobre todo o mundo terrestre, a fim
de se manter de pé a primazia incondicional da razão cientí­
fica. Pomponazzi persegue aqui o mesmo obj etivo a que vi­
sam todos os seus outros escritos filosóficos. Ele quer colocar
o "conhecimento" no lugar da "fé"; ele busca uma explicação
puramente "imanente" em lugar de uma explicação transcen­
dente. É para este sentido que se orienta a sua ética, que ele

55. Vide op. cit. , Cap. X, p. 1 42 ; Cap. 1 3 , p. 299.


LIBERDADE E NECESSIDADE 1 75

- independentemente de qualquer suposição acerca da imor­


talidade e de uma vida futura - tenta estabelecer sobre um fun­
damento próprio e derivar a partir de uma certeza original e
autônoma da razão; também é nesta direção que aponta a sua
psicologia, que combate a oposição dualística de "alma" e "es­
pírito" e que tenta provar que mesmo as funções espirituais
mais elevadas não devem ser entendidas de outra forma, se­
não em sua ligação orgânica com as faculdades sensitivas e,
por conseguinte, com as funções do corpo. O que fora esta­
belecido como meta da ética e da psicologia em De immor­
talitate animi, Pomponazzi tenta aplicar à filosofia da natu­
reza na obra De incantationibus. Nela, Pomponazzi procura
mostrar que mesmo os efeitos "mágicos", que não podem ser
contestados quanto à sua efetividade e possibilidade, não po­
dem fugir aos limites de uma única causalidade natural ima­
nente. A natureza como tal não distingue entre o corriqueiro
e o extraordinário; somente nossa capacidade de compreen­
são é que estabelece distinções dessa natureza. Assim, tudo
o que a princípio parece apontar para além dos limites de tal
causalidade natural única nos reconduz de volta a ele numa
observação mais aprofundada. O casual e o individual se dis­
solvem no necessário e no geral. Se o resultado, por um lado,
aparece como o triunfo da cosmovisão astrológica, uma obser­
vação mais criteriosa nos revela, por outro, que esta mesma
cosmovisão já sofreu uma dissociação peculiar. Conforme
Warburg demonstrou na história da própria astrologia, desde
os seus primórdios ela revela uma dupla face intelectual :
como teoria, procura traçar diante dos nossos olhos, de for­
ma clara e despojada, as eternas leis do universo; como prá­
tica, a astrologia está sob o signo do medo de demônios,
"das formas mais primitivas da causalidade religiosa"56• A

56. Cf. A. Warburg, Heidnisch-antike Weissagung in Wort und Bild


zu Luthers Zeiten . Sitzungsber. der Heidelberg. Akad. d. Wissensch. Phi­
los.-hist. Klasse, Jahrg. 1 9 1 9, pp. 24, 70.
1 76 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

importância da obra De incantationibus, de Pomponazzi, pa­


ra a história das idéias consiste do fato de que ela, mesmo que
sob a égide da visão astrológica, é a primeira a proceder a uma
separação nítida e consciente entre os dois momentos básicos
que, até então, se encontravam inextricavelmente entrelaça­
dos. Nesse sentido, sua obra, que a princípio pode parecer um
arsenal de superstições, encerra um autêntico trabalho de ra­
ciocínio crítico. O elemento puramente "primitivo'', demonía­
co, da crença nos astros é afastado e em seu lugar permanece
apenas a noção de uma única lei inviolável que rege os acon­
tecimentos e que desconhece qualquer exceção ou acaso: a
causalidade "demoníaca" da fé cede lugar à causalidade da
ciência57. É bem verdade que esta última ainda permanece
totalmente ligada ao círculo de representações tradicional da
astrologia, visto que para Pomponazzi ainda não existe uma
ciência natural matemática. Contudo, já se pode antever aqui
que, uma vez rompida esta moldura, uma vez substituído o
conceito astrológico de causalidade pelo fisico-matemático,
não haverá mais barreiras interiores para a elaboração deste
último. Neste sentido absolutamente mediato, até uma obra
tão singular e abstrusa quanto esta de Pomponazzi contribuiu,
no que concerne ao aspecto puramente metodológico, para pre­
parar o terreno à nova concepção dos processos da natureza,
própria das ciências exatas.
Ao mesmo tempo, porém, esta obra de Pomponazzi en­
cerra uma outra conseqüência. A ruptura para o rigor do na­
turalismo, que se processa em Pomponazzi, só pôde ser con­
quistada à medida que se concedeu à concepção fundamen­
tal naturalista o poder e o domínio absoluto sobre a totalidade

57. A este respeito, cf. especialmente a oposição do conceito "filosófi­


co" (peripatético) e "religioso" de causalidade: De incantat. , Cap. X, p. 1 98 ;
Cap. X I I I , p. 3 0 6 ; cf. também Douglas, The Phi/osophy and Psychology of
Pietro Pomponazzi, Cambridge, 1 9 1 O, pp. 270 ss.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 77
, ,,,,-

da vida do espírito. Não poderia haver aqui qualquer fronteira,


qualquer linha de separação, se levarmos a sério e às últimas
conseqüências o postulado de que a relação entre causas e
efeitos deve ser concebida como uma relação absolutamente
homogênea e unívoca. Tal singularidade do nexo causal exclui
o fato de que, paralelamente à esfera de determinação univer­
sal, que chamamos de "natureza", possa existir alguma outra
região que esteja fora do alcance dessa mesma determinação.
A própria vida do espírito, com tudo o que nela nos parece ser
um domínio do livre vir-a-ser e da produtividade criadora, só
pode ser efetivamente compreendida se relacionada às mes­
mas leis universais sobre as quais repousa toda a ordem e to­
da a relação do mundo fenomenológico. Na linguagem de
Pomponazzi, isso não significa outra coisa senão dizer que a
causalidade astrológica constitui não apenas o princípio pa­
ra toda a explicação dos fenômenos da natureza, mas também
o princípio constitutivo da história. Assim como todo o ser e
todo o vir-a-ser naturais, também a evolução histórica encon­
tra-se sob o poder dos astros. É deles que ela recebe seu pri­
meiro impulso; são eles que determinam, de maneira decisi­
va, todo o seu desenvolvimento ulterior. O radicalismo desse
pensamento aparece com clareza em sua aplicação à história
das religiões. Pomponazzi não é o único a realizar uma tal apli­
cação; assim procedendo, ele nada mais faz do que dar con­
tinuidade a uma conseqüência à qual o sistema da astrologia
tinha sido impelido desde tempos imemoriais. O fato de as for­
mas de fé, à semelhança das formas da natureza, possuírem
suas próprias "épocas", suas fases de prosperidade e de apo­
geu, bem como de decadência, e o fato de tais coisas pode­
rem ser "lidas" nos astros é uma visão com a qual há muito a
·
astrologia estava familiarizada. Assim , a fé judaica foi asso­
ciada à conjunção de Júpiter com Saturno, a fé cal déia à con­
junção de Júpiter com Marte, a fé egípciã à conjunção de Jú­
piter com o Sol e a fé maometana à conjunção de Júpiter com
1 78 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOHA DO RENASCIMENTO

Vênus. E essa construção astrológica da história não se detém


nem mesmo diante do cristianismo: no ano de 1 327, Cecco
d' Ascoli expiou com a morte na fogueira a tentativa de as­
sim fixar a natividade de Jesus Cristo. Sobre tais intentos,
Burckhardt afirma que eles, em suas conseqüências ulterio­
res, acabariam necessariamente por trazer consigo "um obs­
curecimento de todo o supra-seri sível"58• E tal conseqüência
provavelmente não encontra sua realização mais consciente
do que na obra de Pomponazzi. Ele precisa justamente deste
"obscurecimento" para que, contrapostas a ele, a autarquia e
a autonomia das leis da natureza possam se destacar de for­
ma tanto mais nítida e clara. Nesse sentido, Pomponazzi vai
até as últimas fronteiras e tira conseqüências que, provavel­
mente, nunca tenham sido formuladas com tanto rigor e tão
sem reservas. As transformações que ocorrem no céu são as
mesmas que, por uma necessidade interior, provocam ao mes­
mo tempo uma "transformação na figura dos deuses". É bem
verdade que temos a impressão de nos encontrarmos aqui num
terreno totalmente "irracional", inacessível à causalidade na­
tural : afinal, a causa última das religiões não reside na reve­
lação, nas inspirações diretas que seus anunciadores e profe­
tas recebem? Mas é justamente aqui que intervém o método
peculiar de Pomponazzi. Se, por um lado, ele não nega a re­
velação, por outro ele postula que até mesmo a revelação se
insere no desenrolar e nas leis gerais da natureza. O princípio
básico, segundo o qual o divino jamais atua diretamente so:.
bre o mundo terreno, inferior, mas sempre através de causas
mediatas determinadas, não pode ser infringido neste ponto.
Todas as transformações das formas de religião, entendidas
como transformações empírico-temporais, estão sujeitas a tais
causas mediatas. O próprio despertar do fundador de uma re-

5 8 . Cf. Burckhardt, Kultur der Renaissances, I I , 243 .


LIBERDADE E NECESSIDADE 1 79

ligião pressupõe dele uma "predisposição" natural e exige,


além disso, certas condições indispensáveis para que possa
se tomar eficaz. Se tentarmos reunir essas condições naturais
e nos empenharmos em rastrear a causa última que as reúne,
seremos novamente impelidos ao poder dos astros. É das cons­
telações que dependem todo o ser e todo o acontecer espiri­
tuais, pois são elas que fazem despertar tanto o artista e o poe­
ta quanto o visionário religioso, o vates. Também aqui deve
ser mantida afastada toda e qualquer idéia de uma "posses­
são" exterior, divina ou demoníaca. Se Deus, em última ins­
tância, como a origem de todo o acontecer, também é a origem
da iluminação do visionário, esta mesma iluminação orien­
ta-se segundo a situação cósmica do mundo que, por sua vez,
é determinada pela disposição dos corpos celestes. É esta dis­
posição, portanto, que faz despertar a força do profeta e que
determina o seu êxito ou fracasso59. Assim, nenhuma forma
de fé deve aspirar a ser a verdade eterna, algo que está além
do tempo, por assim dizer; toda e qualquer forma de fé é de­
terminada pelo tempo e a ele está ligada. À semelhança do
que ocorre com todo o ser natural, também a fé possui um
período de florescimento e de evanescência, de nascimento e
de morte. O paganismo também teve a sua época, durante a
qual se atribuiu a seus deuses o domínio, às suas orações e in-

59. "Esses oráculos não se revelam sempre verídicos, pois as estrelas


não têm sempre um só e mesmo movimento e o vulgar o atribuía à irrita­
ção das divindades, ignorando sua causa verdadeira. Mas tal é o hábito do
vulgo de atribuir aos demônios e aos anjos tudo aquilo de que ele ignore as
causas ( . . . ) Deus, no entanto, não é só a causa de uma coisa, mas de todas;
é por isso que ele é a causa de todos os presságios, mas somente conforme
tal ou tal disposição dos céus ( . . . ) segundo tal disposição ele dá um pressá­
gio e segundo tal outra um outro ( . . . ) seria preciso ser bem desprovido de
filosofia para ignorar que efeitos variem a disposição conforme a varia­
ção." Pomponazzi, De incantat. , Cap. 1 2, pp. 230 s.
1 80 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

vocações sua plena eficácia. E o mesmo também vale para o


Judaísmo e para o Islamismo: não se pode negar que tanto a
missão de Jesus Cristo quanto a de Moisés e a de Maomé
tenham sido anunciadas e atestadas por certos "milagres". No
caso desses signos e presságios, porém, não se trata em ne­
nhum momento de "milagres" no sentido absoluto da pala­
vra; não se trata, enfim, de fenômenos que contrariam fron­
talmente a natureza, ou que se encontram fora dos domínios
de sua ordem. O que chamamos de milagre nada mais são do
que aqueles fenômenos raros e extraordinários, que se repe­
tem depois de longos intervalos de tempo, e que estão na raiz
das grandes transformações espirituais ocorridas no mundo.
Suas manifestações mais ricas e mais eficazes revelam-se ao
longo do nascimento de uma nova fé, para depois irem per­
dendo seu vigor e se enfraquecerem, à medida que a própria
fé começa a envelhecer e a ser vencida por uma outra, mais
potente. Assim como para os deuses, também vale para suas
manifestações, suas previsões e oráculos o fato de estes te­
rem sua hora determinada escrita nos astros: "Não se pode
produzir de si mesmo nem um signo, nem uma escritura nem
uma profecia podem fazer isso por si, mas isso se faz com a
virtude dos corpos celestes que favorecem os legisladores,
de tal forma, e suas marcas ( . . . ) da mesma forma que hoje
os discursos de que se compõem tocam a multidão, no tempo
dos deuses, os hinos proferidos em seu louvor floresciam por­
que então os astros os favoreciam e agora de fato não os fa­
vorecem mais, pois são propícios àqueles que existem agora."60
Depois de Pomponazzi, o próprio cristianismo não escapa des­
te ciclo de nascer e de morrer, mas está inserido dentro dele.
Também nele, cristianismo, mais do que uma existência eter­
na, o que encontramos é a comprovação da regra universal do

60. lbid. , Cap. 1 2 , pp. 2 8 7 s.


LIBERDADE E NECESSIDADE 181

surgimento e do desaparecimento de tudo. E Pomponazzi não


se intimida em interpretar os signos do tempo no sentido de
que eles apontam para o fim já próximo da fé cristã. Até o
signo da cruz, que outrora vencera os deuses e os cultos pa­
gãos, também não está investido de uma força e de uma vali­
dade ilimitadas: nada existe neste mundo terrestre, assim como
no espiritual e no natural, que, no momento mesmo em que
nasce, já não tenha prescrito o seu fim6• .
Neste ponto, a obra de Pomponazzi nos permite vislum­
brar, ao mesmo tempo, os problemas mais gerais que a filo­
sofia do Renascimento tem a enfrentar, e as contradições que
tem a vencer no interior de si mesma. Um novo conceito de
natureza e um novo conceito de humanidade estão prestes a
nascer. Esses dois conceitos, porém, não podem unir-se de
imediato, pois parecem incorporar em si tendências do espí­
rito não apenas diferentes, mas diametralmente opostas. E,
quanto mais clara e nitidamente tais conceitos se vão defi­
nindo, tanto mais acirrado se revela o conflito entre ambos.
Do ponto de vista da "natureza", o mundo da liberdade per­
manece um eterno mistério, uma espécie de milagre. Tal mi­
lagre não pode ser reconhecido sem que isso signifique, ao
mesmo tempo, o aniquilamento do sentido específico do con­
ceito de natureza, tal como o Renascimento a concebe. Com
efeito, tal conceito não consiste de outra coisa, senão da no­
ção de unidade e de singularidade que constituem a explica-

6 1 . "Assim é em tais leis como nas coisas gerais e corruptíveis. Ve­


mos com efeito essas coisas e seus milagres serem no princípio mais tê­
nues, depois crescerem, em seguida tocarem seu ápice, depois decaírem e
retomarem ao nada. Por isso vemos tudo resfriar em nossa fé cristã, os mi­
lagres terminaram, exceto os milagres fabricados e simulados, pois parece
que o fim esteja próximo ( . . . ) Uma virtude qualquer não exerce com efeito
uma influência senão em tempo determinado e não além: vai do mesmo a
virtude das imagens." (lbid. , Cap. 1 2 , p. 286.)
J 82 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ção da natureza e esse monismo metodológico parece excluir


de antemão todo e qualquer dualismo no conteúdo do ser. O
mundo intelectual-hjstórico não pode existir paralelamente ao
mundo natural como uma espécie de "estado dentro do esta­
do", m á s deve ser reduzido a ele e subordinar-se às suas leis.
Mas o sentimento de vida do Renascimento rebela-se incan­
savelmente contra uma tal redução que, do ponto de vista do
conceito de conhecimento desse mesmo Renascimento, pare­
ce inevitável. Na obra De incantationibus, de Pomponazzi,
podemos enxergar um dos pólos desse movimento, por assim
dizer; o tratado de Pico contra a astrologia representa o outro.
Entre esses dois extremos, porém, não faltam tentativas de se
criar, para esses dois momentos polares, uma compensação,
uma mediação. Um tal termo de conciliação parecia consti­
tuir-se da retomada de um tema fundamental da filosofia do
Renascimento: o tema do "microcosmos". Nele, estava-se
desde o início numa esfera intermediária, no interior da qual
se encontravam e se determinavam mutuamente o conceito de
natureza e o conceito de humanitas (humanidade) do Renas­
cimento. Como símbolo, como imagem da natureza, o ho­
mem tanto está relacionado a ela quanto dela se distingue.
Ele a traz dentro de si, e nem por isso se confunde com ela;
ele contém todas as forças da natureza, mas a elas acrescen­
ta uma outra, que lhe é específica: a força da "consciência".
A partir daí, um novo pensamento começa a se infiltrar no
mundo das idéias da astrologia e a modificá-la paulatinamente
de dentro para fora. A cosmovisão da astrologia não apenas
estava associada à noção de microcosmos desde tempos ime-
. moriais, como também não parecia ser outra coisa senão a
simples conseqüência e a realização deste último. Em De vi­
ta trip/ici, a representação que Ficino faz do sistema da as­
trologia começa com o pensamento de que, assim como é ver­
dade que o mundo não é um agregado de elementos mortos,
mas uma essência animada, também é verdade que em lugar
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 83

algum deste mesmo mundo existem "partes" avulsas, que pos­


suem uma existência autônoma, paralela e exterior à existên­
cia do mundo. O que observamos superficialmente como parte
do universo deve ser entendido, numa análise mais aprofun­
dada, como órgão possuidor de um lugar definido e de uma
função necessária no conjunto vital do universo. A unidade
da dinâmica universal precisa se articular numa tal multipli­
cidade de órgãos, mas essa diferenciação, longe de significar
uma separação de partes em relação ao todo, significa, isto
sim, uma expressão - diferenciada a cada vez - deste mesmo
todo; uma faceta determinada de sua auto-representação, por
assim dizer. Por outra parte, esse conj unto fechado, comple­
to e complexo do cosmos, essa concordia mundi (harmonia
do mundo) não seria possível, se não existisse uma determi­
nada ordem hierárquica entre as forças peculiares que se en­
grenam em seu interior. A eficácia do universo não apenas
preserva uma forma determinada, como também aponta sem­
pre para uma direção determinada. Este caminho conduz de
cima para baixo, do reino do inteligível ao reino do sensível.
Da esfera celestial, superior, transbordam sem cessar emana­
ções, através das quais o ser na Terra não apenas é mantido,
como também é constantemente fecundado. Mas esta forma
emanística da fisica, que Ficino ainda expõe totalmente à ma­
neira das antigas formas de representação, particularmente no
sentido do Picatrix, o manual clássico da magia e da astrolo­
gia do final do Helenismo62, não seria capaz de se sustentar
por muito mais tempo, pois seu alicerce mais sólido tinha sido
destruído, desde que o pensamento filosófico do Quattrocento
tinha empreendido a crítica decisiva ao conceito do cosmos

62. A respeito do Picatrix, cf. Helmut Ritter, Picatrix, ein arabisches


Handbuch hel/enistischer Magie, Vortr. der Bibl. Warburg 1 ( 1 92 1 /22),
pp. 94 ss.
1 84 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

escalonado. Na nova cosmologia, que começa com Nicolau


de Cusa, não mais existe um "acima" ou um "abaixo" abso­
lutos; não mais existe, portanto, uma via de mão única para
a ação. A noção de universo como organismo é ampliada aqui
até o ponto em que cada elemento do mundo tem o mesmo
direito de ser considerado o centro do universo (cf. pp. 3 7 ss.
deste livro). A relação de dependência unilateral entre o
mundo inferior e o superior, vigente até então, assume cada
vez mais a forma de uma autêntica relação de correlação. E
com isso, mesmo nos momentos em que os pressupostos ge­
rais do pensamento astrológico continuam em vigor, o tipo e
a fundamentação de tal pensamento precisam se transformar
paulatinamente. Na Alemanha, essa transformação aparece de
forma mais inequívoca na filosofia da natureza de Paracelso.
A relação e a correspondência contínua entre o mundo "gran­
de" e o "pequeno" é totalmente preservada. Para Paracelso,
tal correspondência constitui a premissa por excelência de
toda a terapêutica. Assim como a filosofia é "o primeiro ali­
cerce da medicina", a astronomia é o seu "outro alicerce" :
"Primeiramente o médico deve saber que precisa compreen­
der o homem em sua outra metade, a que concerne à astro­
nomicam philosophian (filosofia astronômica), e que deve
relacionar o homem ao céu e o céu ao homem, do contrário
não será um médico do homem, pois o céu, em sua esfera, re­
tém a outra metade do corpo e também a metade das enfer­
midades. Que médico seria aquele que não compreendesse as
doenças daquela outra metade? ( . . . ) Que médico seria aque­
le que não dominasse a cosmografia, quando deveria estar
particularmente bem informado sobre ela? Pois todo conhe­
cimento encontra sua confirmação na cosmografia e sem ela
nada aconteceria." Contudo, a harmonia entre o mundo e o
homem, cujo conhecimento constitui a tarefa principal de to­
da a ciência médica teórica, não mais é entendida no sentido
de uma simples dependência. "Dois gêmeos, que parecem
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 85

iguais: qual deles ganhou do outro aquilo que faz com que se
pareçam? Nenhum dos dois. Por que, então, nos dizemos fi­
lhos de Júpiter e da Lua, se estamos para com eles como um
gêmeo está para o outro?" Se se quisesse interpretar aqui a
relação de semelhança à luz de uma relação causal, o ponto
central de tal relação teria de ser deslocado do ser "exterior"
para o "interior", do ser das coisas para o ser da "alma". As­
sim, seria mais acertado indagar o que Marte tem do homem,
do que o que o homem tem de Marte: "pois o homem é mais do
que Marte e outros planetas"63 . Podemos reconhecer aqui,
uma vez mais, como um tema novo e fundamentalmente es­
tranho se infiltra no fechado e bem estruturado círculo do pen­
samento naturalista da astrologia. ief tipo de observação pura­
mente causal transforma-se no tipo de observação teleológica;
e através dela, todas as determinações sobre a relação entre
microcosmos e macrocosmos, ainda que preservem o mes­
mo conteúdo, ganham agora um traço distintivo de certa forma
diferente. Ao tema do destino da astrologia opõe-se também
aqui a autoconsciência ética do homem. Na própria estrutu­
ração externa da medicina e da filosofia da natureza de Pa­
racelso manifesta-se esta mescla singular. Em Buch Para­
granum, obra que apresenta as "quatro columnae" da terapêu­
tica, Paracelso arrola, ao lado das três colunas da Filosofia,
da Astronomia e da Alquimia, também a da Virtus: "que a
quarta coluna seja a da virtude e que ela permaneça com o
médico até sua morte, pois ela encerra e mantém as outras três
colunas"64. O pensamento do microcosmos - na acepção que
lhe tinha conferido a filosofia do Renascimento - não apenas

63 . Theophrast v. Hohenheim, gen. Paracelsus, medizinische, natur­


wissenscha.ftliche und philosophische Schr!ften, ed. por Karl Sudhoff,
tomo VIII ( Munique, 1 924), pp. 68 ss., 9 1 ss., 1 03 ss.
64. Paracelsus, Das Buch Paragranum, op. cit. , ed. Sudhoff, p. 56.
1 86 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

permite uma tal µetá�a.mç eiç ãt..l..o ')'Évoç [ metábasis eis


állo génos], uma tal transição da tisica para a ética, como tam­
bém a exige, pois nele, desde o início, a cosmologia não esteve
associada apenas à fisiologia e à psicologia, mas também à
ética. Se, por um lado, esse pensamento exige que o eu do ho­
mem seja entendido a partir do mundo, por outro ele também
traz implícita a exigência de que o verdadeiro e genuíno co­
nhecimento do mundo deve passar necessariamente pela me­
diação do conhecimento de si. Na obra de Paracelso, essas duas
exigências ainda permanecem em paralelo. Por um lado, ele
não considera o homem outra coisa senão "uma imagem num
espelho, ali colocada pelos quatro elementos" e "assim como
aquele no espelho não pode entender sua essência, não pode
dar a conhecer ·o que é, pois ali nada mais há do que uma ima­
gem morta, também assim é o homem em si mesmo; nada se
tira dele, tudo provém do conhecimento exterior, de que ele
é tão-somente a imagem refletida no espelho"65. E não obs­
tante, essa "imagem morta" reúne em si todas as forças da
pura subj etividade, toda a força do conhecimento e da vonta­
de, e transforma-se por isso mesmo em núcleo e centro do
mundo, agora num novo sentido. "Pois a alma do homem é al­
go de tão grande, que nada é capaz de expressá-la: e assim co­
mo o próprio Deus e a Prima Materia e o céu são, os três, eter­
nos e indestrutíveis, também assim é a alma do homem ( . . . )
Por isso o homem chega à bem-aventurança através de sua
alma e com ela ( . . . ) E se nós, homens, conhecêssemos a fim­
do nossa alma, nada nos seria impossível sobre esta Terra."66
Assim, mesmo quando a visão astrológica do mundo per­
manece absolutamente incólume, percebe-se claramente um

65. Paracelsus, Buch Paragranum, op. cit. , p. 72.


66. Paracelsus, Liber de imaginibus, Cap. XII, Werke, ed. por Joh.
Huser, Base!, 1 589 ss. IX, 389 s.
l/BERDADE E NECESSIDADE 1 87

empenho no sentido de se conquistar para a subjetividade uma


nova posição no interior dessa mesma visão de mundo. Nes­
se sentido, Paracelso recorre aos pensamentos do homem a
quem chamou - ele que, de resto, pouco desfrutou do elogio
de seus predecessores - de "o melhor médico italiano"67.
Este seu reconhecimento de Ficino refere-se evidentemente
aos três livros De vita, nos quais Ficino empreende a tentati­
va de estruturar toda a medicina sobre bases astrológicas.
Mas a doutrina das irradiações dos astros, que através de sua
influência determinam a totalidade dos hábitos fisicos e mo­
rais do homem, já havia sofrido nesta obra de Ficino um
afrouxamento peculiar. É bem verdade que, para Ficino, o
laço que une cada homem ao "seu" planeta a partir do mo­
mento mesmo de seu nascimento é indestrutível. O próprio
Ficino queixa-se incessantemente da influência que exerce
sobre ele e sobre todo o curso de sua vida o astro funesto,
que figura no ascendente de seu próprio horóscopo. A ele, o
"filho de Saturno", lhe é negada a facilidade e a segurança
na conduta da vida, com que Júpiter havia premiado os outros.
E não obstante, Ficino não considera esse reconhecimento
do destino astrológico uma renúncia definitiva à autonomia
de se conferir forma à própria vida. A resignação pesada e
pungente, com a qual ele se entrega à vontade do destino, aos
poucos vai cedendo terreno a um tom novo e mais livre. As­
sim como ao homem não lhe é concedido escolher seu astro
e, em decorrência disso, sua natureza tisico-moral, seu tem­
peramento, de outra parte ele é livre para fazer suas escolhas
dentro dos limites que esse mesmo astro lhe prescreve. Pois
cada astro contém em sua própria esfera uma multiplicidade
de formas de vida diferentes, às vezes até opostas, e deixa
aberta à vontade a decisão final sobre elas. Se, de um lado,

67. Carta a Christoph Clauser, Werke, ed. Huser, tomo VII.


1 88 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Saturno é o demônio da indolência e da melancolia infrutí­


feras, de outro lado ele também é o gênio da observação e da
profundidade intelectuais, da inteligência e da contempla­
ção. Essa polaridade, que reside nos próprios astros e que
havia sido reconhecida e claramente expressa pelo sistema
da astrologia, abre caminho agora para o livre arbítrio do ho­
mem. Se a esfera do querer e do realizar está rigidamente de­
terminada para o homem, a direção deste querer não o está.
A depender de esta direção apontar para as forças superiores
ou inferiores, para as forças intelectuais ou sensíveis, que o
planeta possui em si como possibilidades iguais, o resultado
disso serão formas individuais de vida não apenas diferen­
tes, mas também opostas. E à semelhança do que ocorre com
a configuração da vida, também a felicidade ou a desgraça
dependem deste impulso da vontade. O mesmo planeta pode se
transformar em amigo ou em inimigo do homem, pode colo­
car em ação suas forças benfazejas ou maléficas, dependendo
da predisposição interior do homem em relação a ele. Assim,
Saturno transforma-se em inimigo de todos os que levam uma
vida vulgar, e em amigo e protetor daqueles que tentam de­
senvolver os dons mais profundos que em si estão latentes;
daqueles que se entregam de alma aberta à contemplação di­
vina. Desta forma, portanto, Ficino continua a cultivar o pen­
samento da "filiação planetária"; paralelamente a uma ascen­
dência planetária natural; porém, ele também passa a reco­
nhecer uma ascendência espiritual, ou - como se costumou
dizer - uma "filiação planetária eletiva". Ainda que o homem
nasça sob a influência de um determinado planeta e tenha de
conduzir sua vida sob o domínio deste astro, resta-lhe esco­
lher, dentre as possibilidades e forças que este planeta guarda
em si, quais ele quer desenvolver em si e levar à plena matu­
ridade. Com efeito, dependendo das inclinações espirituais e
dos esforços que o homem fomente e faça prevalecer em si,
ele pode mesmo se entregar ora à influência de um determi-
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 89

nado astro, ora à influência de um outro68• Seguindo por este


caminho, Ficino tenta inserir em seu sistema teológico as dou­
trinas fundamentais da astrologia. Para ele existe uma ordem
tríplice das coisas, que ele designa com os nomes de provi­
dentia (providência) , fatum (destino) e natura (natureza). A
Providência é o reino dos espíritos, o destino, o reino das al­
mas e a natureza, o reino dos corpos. Se é verdade que os cor­
pos, em seus movimentos, encontram-se sob o domínio das
leis naturais, se é verdade que a alma "irracional", enquanto
está ligada ao corpo e lhe serve de força motriz, sofre a cons­
tante reação do mundo dos corpos e com isso permanece en­
rededa à sua necessidade, por outro lado também é verdade
que o princípio puramente espiritual do homem possui a fa­
culdade de se libertar de todos esses liames. O que chamamos
de a "liberdade" do homem é o fato de ele, ainda que sob o
jugo dessa ordem triplice, poder passar de uma ordem a outra.
Ainda que por nosso próprio espírito estej amos sujeitos à Pro­
vidência, por nossa imaginação e sensibilidade ao destino, por
nossa natureza especial à natureza geral do universo, ainda as­
sim somos, desta vez graças à nossa razão, senhores de nós
mesmos (nostrijuris) e estamos livres de todo e qualquer gri­
lhão, posto que podemos nos submeter ora a um, ora a outro69•

68. Neste estudo, não pretendo entrar em detalhes sobre a obra De


vila triplici, de Ficino; indico, porém, a exposição de Panofsky e Saxl em
Dürers Melancolia I, p. 32, na qual se encontram reproduzidas extensas
passagens da obra de Ficino.
69. Cf. Ficino, Theologia platonica, Lib. XIII (foi. 289 s.): "Nós so­
mos então religados como por três cabos à máquina inteira, aos pensamen­
tos pelo pensamento, aos ídolos pelo ídolo, às naturezas pela natureza ( . . . )
por meio do pensamento a alma está então acima do destino, como que imi­
tando os seres superiores na única ordem da providência e governando com
eles juntos os seres inferiores. Como que participando da providência, o
modelo do governo divino governa-se a si mesmo e governa a casa, a cidade,
1 90 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Neste ponto, o próprio sistema astrológico de Ficino desem­


boca na esfera de pensamento da Academia de Florença, no
interior da qual se movem as idéias de Pico della Mirandola,
expostas em seu discurso Sobre a dignidade do homem . Em
cada ordem do ser o homem possui apenas a posição que ele
mesmo se atribui dentro dela. O que faz dele um ser individual
depende, em última análise, de sua determinação, e esta não é
tanto uma conseqüência de sua natureza quanto uma conse­
qüência de sua livre ação.
Mas se o resultado deste embate constante de Ficino com
o problema não passa de uma solução meramente aparente, de
um compromisso, a luta que Pico della Mirandola empreen­
de contra a astrologia em sua obra nos coloca num terreno
absolutamente novo. A zona de influência da astrologia é que­
brada aqui de um só golpe. O fato de Pico ter conseguido uma
tal façanha pode parecer uma curiosa anomalia histórica à pri­
meira vista, já que toda a sua doutrina continua totalmente sob
a égide do pensamento mágico-cabalístico, que domina não
apenas sua filosofia da natureza, como também sua filosofia

as artes e os animais. Do mesmo modo, por meio do ídolo, a alma está na


ordem do destino, mas não sob Q,·destino ( . . . ) Por meio da natureza, o cor­
po está igualmente sob o destino;� alma move a natureza no destino. Da mes­
ma forma o pensamento está sobre o destino, o ídolo sobre a natureza, a
natureza sob o destino, sobre o corpo. Assim, a alma é colocada nas leis da
providência, do destino, da natureza, não somente como paciente, mas co­
mo agente ( . . . ) Enfim, esse poder racional que é a natureza da própria alma
verdadeira não é determinada a qualquer coisa de único, pois ela vaga, indo
de alto a baixo de um movimento livre ( . . . ) Assim, bem que, por meio do
pensamento, o ídolo e a natureza sejamos ligados de uma certa maneira à
ordem universal das coisas por meio da mente à providência, por meio do
ídolo ao destino, por meio da natureza singular ao conjunto da natureza; por
meio da razão da nossa justiça, ao contrário, somos completamente livres
e desligados de algum modo, seguimos essas partes de um modo e aquelas
de outro."
LIBERDADE E NECES!:.WADE 191

da religião. Dentre as novecentas teses, com cuja defesa se ini­


cia a sua carreira filosófica, nada menos do que setenta e uma
pertencem a essa esfera e são pelo próprio Pico expressamen­
te chamadas de conclusões cabalísticas7º. É compreensível,
portanto, que Franz Boll, um dos maiores conhecedores da his­
tória da astrologia, expresse sua admiração diante do fato de
que justamente Pico, cuja natureza ambígua é dominada mais
pela mística neoplatônica e neopitagórica do que pelo impul­
so à crítica rigorosa, rejeite de forma tão incondicional a as­
trologia, por um lado, ao passo que, por outro, represente
justamente todas as tendências filosóficas fundamentais, das
quais se nutriu e nas quais se aprofundou constantemente a
crença astrológica7 1 . Quando se leva em conta a peculiarida­
de espiritual da obra de Pico, não se pode atribuir uma tal so­
lução - como o fez Boll - a um impulso exterior, ao abalo pro­
vocado pelo sermão de Savonarola. Trata-se aqui, muito mais,
da ação de forças interiores e independentes, que certamente
não têm sua causa última na visão de natureza de Pico, mas
na sua visão global de ética. Se é verdade que em sua metafi­
sica, em sua teologia e em sua filosofia da natureza, Pico ain­
da se encontra ligado por laços indestrutíveis ao passado, em
sua ética ele se transformou num dos primeiros anunciadores
e precursores do verdadeiro espírito do Renascimento. E é so­
bre este alicerce da humanidade ética que ele edifica sua obra
contra a astrologia. O pensamento que dominou o discurso de
Pico Sobre a dignidade do homem encontra nesta obra o seu
eco mais puro e mais completo: "Não há nada de grande so­
bre a terra além do homem, nada no homem além do pensa­
mento e do espírito, se tu te elevas até aí, ultrapassas o céu,

70. Joh. Piei Mirandulae, Conc/usiones DCCCC; cf. Opera, foi. 63 ss.,
1 07 ss.
7 1 . Ft. Boll, Sternglaube und Sterndeutung, 2� ed., Leipzig, 1 9 1 9, p. 50.
1 92 INDIVIDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

se te abaixas até o corpo e desdenhas o céu, parecerás uma


mosca e menos ainda que uma mosca."72 Essas frases fazem
reviver e se tornar novamente efetivo um tema genuinamen­
te platônico. O que se postula aqui é uma espécie de "trans­
cendência", que já não reconhece uma medida espacial, por­
que vai além da forma do espaço. Por mais simples e ele­
mentar que este pensamento pareça, ele vai frontalmente de
encontro a uma das premissas fundamentais sobre as quais re­
pousa tanto a cosmovisão helenístico-neoplatônica quanto a
cristã-medieval. Pois o que caracteriza estas últimas é justa­
mente o fato de elas tomarem o motivo do que está além deste
mundo, o ETIÉKEtV<X (epékeina) platônico, num sentido ao mes­
mo tempo espacial e espiritual e de manterem esses dois as­
pectos indissoluvelmente amalgamados. Ainda que, de resto,
Pico della Mirandola permaneça sob a égide do neoplatonis­
mo e de sua confusão sincrética de temas, neste ponto ele con­
seguiu assenhorar-se de tal confusão e traçar limites bem de­
finidos. E assim procedendo, conseguiu também enriquecer e
aprofundar a concepção global do mundo espiritual antigo.
Estava dado o primeiro passo no longo e árduo caminho que
reconduziria de Plotino a Platão, do Helenismo à Grécia clás­
sica. As primeiras sentenças da obra de Pico já contêm a indi­
cação característica de que a astrologia tinha sido um elemento
completamente estranho ao universo de pensamento genuina­
mente helenístico e grego clássico. Platão e Aristóteles não
teriam chegado sequer a mencioná-la: e com o desprezo de seu
silêncio a teriam condenado mais do que se a tivessem refutado
de forma circunstanciada73. A este argumento histórico ali­
nham-se então os argumentos sistemáticos efetivamente deci-

72. Pico della Mirandola, ln astro/agiam libri XII, Lib. III, Cap. 27,
foi. 5 1 9.
73. Pico, ln astro/agiam, Lib. 1 (foi. 4 1 5 ) .
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 93

sivos. Neste ponto, a fim de desenvolver sua tese principal, Pi­


co della Mirando la precisa se transformar em crítico do conhe­
cimento; precisa separar a forma da causalidade físico-ma­
temática da causalidade astrológica. Enquanto esta repousa
sobre a suposição de qualidades ocultas, aquela se contenta
com o que nos ensina a experiência, a visão empírica. Para esta
última, não lhe servem de laço a unir o céu e a terra as "ema­
nações" misteriosas dos astros, que atingem por simpatia os
afilhados de uma determinada constelação. Tais invenções qui­
méricas cedem lugar, na visão empírica, ao fenômeno único,
àquilo que se oferece diretamente à observação, àquilo que po­
de ser comprovado e atestado empiricamente. Se a física as­
trológica de Ficino condiciona todas as atividades terrestres
e naturais às irradiações dos astros, através das quais o sopro
que tudo anima se propaga do mundo superior para o inferior,
Pico della Mirando la não apenas rejeita essa explicação de for­
ma pontual, mas como um todo; não apenas do ponto de vista
do conteúdo, mas também metodologicamente. Pois todos os
fenômenos devem ser entendidos a partir de seus próprios prin­
cípios (ex propriis principiis) , a partir de suas causas próximas
e particulares. Mas não precisamos ir muito longe para encon­
trarmos a causa próxima para tudo o que o céu encerra em ter­
mos de influência real: ela não consiste de outra coisa senão
das forças da luz e do calor; não consiste de outra coisa, por­
tanto, senão de fenômenos conhecidos de todos e comprová­
veis pelos sentidos. Somente eles constituem o veículo de to­
das as influências celestes e o meio através do qual aquilo que
está separado no espaço, por mais distante que sej a, possa se
inter-relacionar dinamicamente74. À primeira vista, o que Pico

74. ln astro/. , Lib. III, Cap. V (foi. 46 1 ): "Além do comum do movi­


mento e da influência da luz, os corpos celestes não guardam nenhuma força
particular." Cf. esp. Lib. III, Cap. XIX (foi. 503): "Os pastores, os camponeses
1 94 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

nos oferece aqui não parece ser outra coisa senão uma teoria
da filosofia da natureza, tal como a encontramos mais tarde
na obra de Telesio ou de Patrizzi. Mas se consideramos o con­
texto no qual surge essa teoria, reconhecemos que nela existe
muito mais do que à primeira vista se nos revela: o que é des­
coberto e comprovado aqui não é menor do que o conceito de
vera causa, ao qual recorrem Kepler e Newton e sobre o qual
eles embasam sua concepção básica da indução. O próprio
contexto histórico imediato parece comprovar tal relação, pois
desde o seu primeiro tratado metodológico, desde sua apolo­
gia a Tycho, Kepler se refere a Pico e à sua refutação da as­
trologia. Toda e qualquer causa que possamos forjar de forma
puramente conceptual para explicar um fenômeno da natu­
reza não é "verdadeira" : para se tornar verdadeira, é preciso
que ela possa ser verificada e comprovada através da obser­
vação e da medição. Ainda que Pico não consiga enunciar um
tal princípio com a mesma clareza com que o fizeram os fun­
dadores da ciência natural exata, tal princípio é empregado por
ele em toda a sua obra como um critério imanente. Com a aju­
da deste princípio, Pico é um dos primeiros a se voltar contra
a suposição de que certos lugares possuem forças que lhe são
inerentes. O lugar é uma determinação geométrica e ideal, e
não fisica e real, donde não ser possível partirem dele efeitos
fisicos concretos75. E aquilo que a astrologia se engana ao
tomar como real e a lhe conferir forças efetivas não é ape­
nas ideal, mas também puramente fictício. As linhas que o

e, freqüentemente, até o povo sem cultura sabe o que fará, não pelos astros,
mas pela própria atmosfera ( . . . ) Por isso eles se enganam raramente, julgan­
do a atmosfera pela atmosfera, assim como os médicos julgam o doente pelo
doente, ou seja, pelos princípios próprios e não, como fazem os astrólogos,
pelos mais distantes e mais comuns do universo, a saber, o que é pior, pe­
las ficções fabulosas."
7 5 . /n astro/. , Lib. VI, Cap. 3 , foi. 5 84 s.
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 95

astrólogo traça no céu a fim de se orientar, cada uma das ca­


sas nas quais ele divide o céu, todo este aparato do pensamento
calculador está sujeito, na astrologia, a uma hipóstase singu­
lar: ele se transforma num ser sui generis, dotado de poderes
demoníacos. Mas todas as construções se evanescem quando
se tem claro que elas não possuem um sentido ontológico, mas
meramente significativo. É bem verdade que até mesmo a au­
têntica ciência natural, assim como a astrologia, não pode pres­
cindir do elemento significativo, da operação com signos. Para
ela, porém, tais signos não são algo definitivo, muito menos
algo que possua uma existência autônoma; eles constituem tão
somente um meio através do qual o pensamento se expressa;
são uma etapa no caminho que conduz da apreensão sensorial
dos fenômenos à apreensão de suas causas, agora como fru­
to de uma reflexão. Um tal passo, porém, pressupõe mais do
que uma vaga correspondência, mais do que uma relação me­
ramente analógica entre os elementos do ser separados espa­
cial e temporalmente. É preciso que possamos acompanhar
passo a passo, membro a membro, o contínuo da seqüência
de transformações que têm sua origem num determinado ponto
do universo; é preciso que estejamos em condições de esta­
belecer uma lei única à qual todo este contínuo de transforma­
ções está sujeito, se quisermos falar de um nexo causal real.
E se não formos capazes de comprovar empiricamente uma
tal forma de atividade do céu, de nada adianta querer enxer­
gá-lo como signo de acontecimentos futuros e pretender de­
cifrar seus sinais, pois o céu nada pode indicar além do que
efetivamente produz: non potest coe/um ejus rei signum
esse, cujus causa non sit76 "o céu com efeito não pode ser o

76. ln astro!. , Lib. IV, Cap. 1 2, foi. 543 : "O céu não pode, de fato,
signi ficar coisas inferiores, se ele não está na medida onde uma causa indi­
ca seu efeito por que os que, convencidos pela razão, reconhecem que um ser
1 96 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

signo daquilo do qual ele não é a causa". Com essas formula­


ções fundamentais, Pico della Mirandola vai além da mera crí­
tica à astrologia: ele traça com toda a clareza a linha divisória
que separa os signos mágicos da astrologia dos signos inte­
lectuais da matemática e da ciência natural exata. A partir daí,
está aberto o caminho à interpretação da "escrita cifrada da
natureza" por meio de símbolos da matemática e da física; tais
símbolos não mais são entendidos como símbolos que se
opõem ao espírito como forças estranhas, mas que se lhe ofe­
recem como suas próprias criações.
As raízes mais profundas da crítica que Pico della Mi­
randola dirige à astrologia não se encontram, contudo, em tais
ponderações de natureza lógica e epistemológica. Pela sua
própria origem, o pathos que anima sua obra contra a astro­
logia é mais de natureza ética do que reflexiva: o que ele opõe
sem cessar à astrologia são os fundamentos de seu espiritua­
lismo ético. Aceitar a astrologia significa menos inverter a
ordem do ser do que a ordem de valor das coisas; significa de­
clarar a dominância da "matéria" sobre o "espírito". Tal obje­
ção, porém, parece não ter qualquer validade quando se exa­
mina a forma básica da astrologia e sua origem histórica. Com
efeito, o que precisamente caracteriza essa forma básica é o
fato de os corpos celestes de forma alguma serem considera­
dos algo meramente material, simples massas cósmicas, mas
o fato - isso sim - de tais massas serem animadas por princí­
pios espirituais, por inteligências que lhes atribuem vida e de­
terminam a sua trajetória. Se o destino do homem está subor­
dinado ao céu, o ser do homem não está ligado e subordinado
a um princípio material: a este ser só lhe é determinado o seu
lugar fixo na hierarquia das forças inteligíveis que dominam o

não é uma causa, mas sustentam que ele é um signo, desconhecendo seu
próprio julgamento."
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 97

universo. Justamente neste ponto, porém, é que intervém a


acepção e a determinação do conceito de liberdade, tal como
Pico o definiu em seu discurso De dignitate hominis. Esse con­
ceito de liberdade é lesado não apenas quando o espírito do
homem é subordinado à causalidade da natureza, mas também
quando é subordinado a todo e qualquer outro tipo de deter­
minação que ele próprio não tenha estabelecido. O que defi­
ne precisamente a supremacia do homem não apenas sobre
- os demais seres da natureza, mas também no interior do pró­
prio "reino dos espíritos", do reino das inteligências, é o fato
de ele não receber, desde o início, uma essência já pronta, por
assim dizer, mas de ser capaz de lhe dar uma forma segundo
o seu livre arbítrio. Essa capacidade de configurar sua própria
essência contradiz foda e qualquer determinação exterior, se­
ja ela considerada "material" ou "espiritual". A crença na pura
força criativa do homem e na autonomia dessa força criativa,
essa crença genuinamente humanista, portanto, é a que aca­
ba por determinar a vitória sobre a astrologia na obra de Pi­
co della Mirandola. Nesse sentido, as provas mais cabais pa­
ra a demonstração de suas teses ele as encontra sobretudo na
oposição que estabelece entre o mundo astrológico e o mundo
da cultura do homem. Este último, longe de ser o produto da
atuação de forças cósmicas, é obra do gênio. É bem verdade
que, em se tratando do gênio, temos a impressão de estarmos
diante de um poder "irracional", um poder refratário à decom­
posição em seus elementos e em suas origens causais, de tal
sorte que, ao reconhecê-lo, somos reconduzidos às fronteiras
do entendimento. Mas esta fronteira é de natureza humana, e
não mística. Nela podemos nos deter, pois o fato de a termos
alcançado significa, ao mesmo tempo, que percorremos toda
a esfera da existência e da determinação humanas. Encon­
tramo-nos, assim, diante daquelas causas últimas que somen­
te a nós nos é dado entender, posto que são a expressão de nos­
sa própria essência. Aquele que pretende associar tais causas
1 98 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

a alguma coisa que as preceda, aquele que acredita poder "ex­


plicá-las" a partir de forças e influências cósmicas, nada mais
faz do que enganar-se a si mesmo com tais explicações. Não
é a força dos astros, mas sim a força da humanidade que de­
vemos reconhecer e venerar na obra de grandes pensadores,
homens de estado e artistas . O que fez com que Aristóteles e
Alexandre se destacassem de seus contemporâneos, o que lhes
atribuiu importância e poder, certamente não foi a superiori­
dade de sua estrela, mas a superioridade de seu ingenium (gê­
nio) : e este não provém dos astros nem de uma causa corpo­
ral , mas diretamente de Deus como fonte e origem de todo o
ser espiritual . Os milagres do espírito são maiores do que os
do céu: tentar atribuir ao céu os milagres do espírito não signi­
fica entendê-los, mas negá-los e nivelá-los77.

77. ln astro/. , Lib. III, Cap. 27, foi. 5 1 7 ss.: "Tu admiras em Aristó­
teles a ciência acabada das coisas naturais e eu admiro tanto quanto tu. A
causa é o céu, dizes, e a constelação sob a qual ele nasceu; não aceito, ao
menos não com uma razão tão divulgada, que os muitos nascidos sob o
mesmo astro não foram outros Aristóteles, mas antes porque ( . . . ) há causas
próximas, próprias e particulares a esse mesmo Aristóteles, às quais nós
referimos o seu sucesso singular, causas que estão além do céu, sob o qual,
como se por uma causa universal, nascem tanto os filósofos quanto os por­
cos da Beócia. Antes, em todo caso ( . . . ) ele foi dotado de uma alma boa, que
não provinha do céu, se é verdade que o espírito seja imortal e incorpóreo,
o que demonstrei eu mesmo e que os astrólogos não negam. Depois foi do­
tado de um corpo agradável para acompanhar uma tal alma, e isso, não pe­
lo céu, como se isso fosse uma causa comum, mas por seus pais. Ele esco­
lheu filosofar. Isso que é também a obra dos principios que nós dissemos, a
saber de espírito e do corpo e de sua livre escolha; ele progrediu em filosofia,
o que é o fruto de um propósito bem acabado e de sua habilidade ( . . . ) mas
ele progrediu ainda mais que seus contemporâneos e que seus discípulos.
Ele não era dotado de uma estrela melhor, mas de um gênio melhor; o gê­
nio não vem do astro, se é verdade que é incorpóreo, mas de Deus, como o
corpo vem do pai, não do céu ( . . . ) Por quanto ao que toca realmente ao pro­
blema que é principalmente tratado aqui, eu nego que algum homem sobre a
LIBERDADE E NECESSIDADE 1 99

Assim, não foram motivos de natureza empírica ou pro­


venientes das ciências naturais nem foram os novos métodos
da observação e do cálculo matemático os responsáveis pela
derrocada da cosmovisão astrológica. O golpe fatal j á tinha
sido desferido antes mesmo de tais métodos terem sido ple­
namente desenvolvidos. O verdadeiro motivo desta libertação
não foi a nova visão de natureza, mas a nova visão do valor pró­
prio do homem. À força dafortuna (destino) opõe-se a força
da virtus (virtude); ao destino opõe-se a vontade consciente
de si e confiante em si mesma. Aquilo que podemos chamar de
o destino do homem, no sentido mais profundo e autêntico da
palavra, não é algo que o atinge de cima para baixo, como a
emanação descida à Terra a partir de uma estrela, mas algo
que vem à tona a partir das profundezas mais remotas de seu
próprio interior. Somos nós mesmos que fazemos de Fortu­
na uma deusa e a colocamos no céu, quando, na verdade, For­
tuna é "filha da alma" : sors animaejilia78• O fato de nada me­
nos do que um Kepler retomar os pensamentos de Pico della
Mirandola e lhes dar continuidade é característico para o modo
como, dentro da filosofia do Renascimento, os temas proce­
dentes de diferentes círculos de pensamento se interpenetram
e se fecundam reciprocamente . Como pesquisador da natu­
reza, matemático e astrônomo, Kepler de forma alguma se
encontra totalmente livre da influência da astrologia. Sua li­
bertação dessas amarras se dá de forma lenta e gradual; e nes­
se processo podemos identificar novamente todas as media­
ções e transições que acompanhamos na evolução da filosofia

terra se tome ou pareça tão grande a ponto de merecer o céu como autor.
Pois as maravilhas do espírito (como dissemos), a saber, a fortuna e o cor­
po, são maiores que o céu; de qualquer forma são as maiores de todas, compa­
radas ao céu, e são depreendidas como as menores."
78. /n astro/. , Lib. IV, Cap. 4, foi. 5 3 1 .
200 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

do Renascimento. O que dificulta e retarda essa libertação não


são apenas motivos de natureza social e econômica que, ain­
da nos tempos de Kepler, exigiam que o astrônomo e o as­
trólogo se unissem numa mesma pessoa. Kepler se referiu à
astrologia como "a filha tola", que a mãe astronomia, extre­
mamente sábia mas pobre, tinha de alimentar79. Contudo, nem
sempre as suas afirmações sobre a astrologia se vestem des­
se tom de superioridade ao mesmo tempo alegre e irônico.
Num escrito do ano de 1 623, Kepler ainda atribuiu às conjun­
ções dos planetas, se não uma influência direta sobre o mun­
do inferior, ao menos um "aguilhão e um estímulo". E a par­
tir desta idéia de causalidade, ainda que indireta, ele se re­
colhe ao pensamento da simples correspondência : a relação
de "causa" e "efeito" é substituída por uma de correlação . O
céu não engendra nenhuma nova ação, mas "toca os tambores"
para aquelas que têm sua origem em princípios naturais, em
causas físicas e nas paixões e sentimentos humanosso. O ar­
gumento verdadeiramente decisivo contra a astrologia, porém,
Kepler também não o obtém a partir do mundo dos fenômenos
naturais, mas sim, e muito mais, do mundo da criação espiri­
tual. Também para ele, o que leva a uma decisão derradeira é
a retomada da consciência da força primordial do espírito, da

79. Kepler, De ste/la nova in pede Serpentarii ( 1 606), Cap. XII (Ope­
ra, ed. Frisch, li, 656 s .): "No que toca à astrologia, reconheço de fato, le­
vado por um certo entusiasmo fora da razão, que aquele homem (Fabrício)
sucumbe em algum lugar à autoridade dos antigos e ao desejo das predições,
onde os dois motivos convergem. Na verdade ele cometeu essas coisas em
comum com uma imensa horda de sábios. Unicamente por esse nome me­
rece a permissão. Por que rosnas, delicado filósofo, se a filha tola, a qual se
parece contigo, sustenta e alimenta com suas futilidades a mãe muito sábia
e pobre?"
80. Cf. Kepler, Discurs von der grojJen Conjunction und allerlei Va­
ticiniis über das J 623. Jahr, Opera VII, 697 ss.; cf. esp. VII, 706 s.
LIBERDADE E NECESSIDADE 20 1

força do "gênio". Conforme ele próprio afirma em Harmonia


mundi, suas estrelas não teriam sido Mercúrio e Marte, mas
Copérnico e Tycho Brahe. Em vão o astrólogo buscaria em seu
horóscopo as razões para o fato de, em 1 596, Kepler ter des­
coberto as proporções entre as distâncias dos planetas ou ter
formulado, nos anos de 1 604 e 1 6 1 8 , as leis dos movimentos
dos planetas : "essas coisas (os astros) não influenciaram com
o caráter do céu, sobre a pequena chama da faculdade vital,
recentemente iluminada e produzida para o ato, mas (essas
verdades), por uma parte, estavam escondidas na natureza mais
íntima da alma; conforme a doutrina de Platão, por outra par­
te, elas foram recebidas na alma por uma outra via, eviden­
temente, a dos olhos, e a única ação realizada pelo horóscopo
genetlíaco foi de limpar as velas do gênio e do julgamento, de
instigar o espírito ao esforço incansável e de aumentar o dese­
jo de saber. Em suma: ela não insuflou no espírito nenhuma
das faculdades supramencionadas, mas as excitou"s 1 . Desse
modo, aquela determinação mútua, que j á havia aparecido na
obra de Pico contra a astrologia, encontra aqui a sua confir­
mação. O problema da liberdade entrelaça-se intimamente
com o problema do conhecimento : a concepção de liberdade
determina o conceito de conhecimento, assim como, inversa­
mente, a concepção de conhecimento determina o conceito de
liberdade. Pois a espontaneidade e a produtividade do conhe­
cimento são o que, em última análise, selam a convicção acerca
da liberdade e da força criativa do homem. Em passagens an­
teriores, assinalamos a importância do tema de Prometeu - tal
como ele se desenvolve progressivamente no pensamento do
Renascimento - para a transformação paulatina da visão-de­
mundo medieval-teológica; o que se revela agora é o fato de es­
se mesmo motivo constituir a força propulsora da luta contra

8 1 . Kepler, Harmonia mundi, Lib. IV, Cap. 7 (Opera V, 262 s.).


202 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

a astrologia, contra a visão-de-mundo dos fins da Antigui­


dade, e acabar decidir, em última instância, a vitória sobre ela.
Em Spaccio de/la bestia trionfante, Giordano Bruno criou o
símbolo característico para todo este movimento de idéias. As
constelações do zodíaco, que aparecem aos homens apri sio­
nados pela loucura e pela superstição como os senhores abso­
lutos de seu destino, devem ser derrubadas e substituídas por
outros poderes. Uma nova filosofia da moral deve ser funda­
da, que represente seu obj eto simplesmente a partir da "luz
interior" que reside na atalaia ou no timão de nossa alma. Este
princípio da consciência e da autoconsciência - o princípio da
sindérese, como Bruno o chama82 - passa a ocupar o lugar das
forças cósmico-demoníacas, que atuam sobre o inconsciente.
"Coloquemos em ordem primeiramente aquele céu que reside
intelectualmente dentro de nós (che intellettualmente e dentro di
noi) e depois aquele outro, visível, que se revela materialmente
aos nossos olhos. Expulsemos do céu de nosso espírito a Ursa
da brutalidade, o Sagitário da invej a, o Poldro da leviandade,
o Cão da maledicência, a Canícula da adulação; desterremos
o Hércules da violência, a Lira da conspiração ( . . . ) o Cefeu
dos corações empedernidos. E assim, quando tivermos puri­
ficado nossa morada e recriado nosso céu, ele será repleto
por novas constelações, novas influências e forças, novos des­
tinos. Pois tudo depende deste mundo superior, enquanto de
causas contrárias fluem necessariamente influências contrá­
rias . Felizes de nós, verdadeiramente bem-aventurados sere­
mos, se cultivarmos com retidão nosso espírito e nosso pensa­
mento ! Se quisermos mudar nossa condição, que mudemos
nossos hábitos; e se quisermos que ela sej a boa e melhor, não
permitamos que os últimos se degenerem. Purifiquemos nos-

82. Bruno, Lo spaccio dei/a bestia trionfante; Opere ital. , ed. Lagar­
de, p. 4 1 2 .
LIBERDADE E NECESSIDA DE 203

so desej o interior: e a partir da transformação deste mundo


interior não nos será dificil proceder à reforma do mundo
exterior e sensível" (purghiamo l 'interiore ajfêtto: atteso che
dali ' informatione di questo mondo interno non sarà d!fficile
di far progresso alia riformatione di questo sensibile et
esterno )83. Assim, mesmo num pensador que em geral é con­
siderado um típico representante das tendências "naturalis­
tas" do Renascimento, a filosofia da natureza e a cosmolo­
gia levam uma marca pronunciadamente ética: somente por
meio da paixão heróica, que nele mesmo se inflama, o
homem passa a estar à altura da natureza e amadurece para a
observação da infinitude e da incomensurabilidade dessa
mesma natureza.

8 3 . Bruno, op. cit. , pp. 439 s.


CAPÍTUL0 4
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO
NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

A relação de dois lados e de dois sentidos, na qual o Re­


nascimento se encontra com respeito à Idade Média e à An­
tiguidade, em nenhuma outra parte se revela com maior nitidez
do que em sua atitude em frente ao problema da autoconsciên- ·

eia. É para essa questão central que confluem todas as fontes


espirituais, das quais ele se nutre . Mas dessa condicionante
histórica multifacetada e . contraditória resultam, ao mesmo
tempo, novas questões sistemáticas . A formulação consciente
de tais questões constitui , naturalmente, um dos resultados
mais tardios da filosofia do Renascimento: somente com Des­
cartes, ou mesmo - num certo sentido - somente com Leibniz,
é que se chega a tal formulação . Somente com eles é que se
encontra e se determina o novo "ponto de Arquimedes", a
partir do qual o mundo conceituai da filosofia escolástica se
desconjunta. Nesse sentido, é a partir do princípi � de cogito,
de Descartes, que se costuma datar o início da filosofia mo­
derna. Tal início, por sua vez, de forma alguma parece ser
mediado pela história: ele repousa - conforme o próprio Des-
206 INDIVÍDUO E COSMOS NA fllOSOFIA DO RENAS('JMENTO

cartes percebeu e declarou - sobre um ato livre do espírito


que, de um só golpe, por uma decisão única e autônoma da
vontade, descarta todo o passado e tem de trilhar o novo ca­
minho da reflexão consciente de si mesma. De forma alguma
se trata aqui de uma evolução paulatina, mas sim de uma ge­
nuína "revolução da forma de pensar" . Mas o valor e a im­
portância desta revolução não serão minimizados, se acom­
panharmos a transformação e o crescimento constante das
forças intelectuais e das forças de natureza espiritual mais ge­
rais, a partir das quais, em última análise, esta revolução acaba
por irromper. A princípio, tais forças não constituem uma uni­
dade e tampouco apresentam uma organização rigorosa. Elas
atuam mais em oposição umas às outras, do que conjuntamen­
te ; e à medida que possuem pontos de partida diferentes, pa­
recem apontar para obj etivos intelectuais também diferentes.
Não obstante, todas estão de acordo quanto a uma tarefa ne­
gativa, por assim dizer: de uma certa forma, todas se empe­
nham em revolver o terreno do qual viria a nascer a nova no­
ção fundamental, especificamente moderna, da relação entre
"suj eito" e "obj eto". Quase não existe uma direção da filoso­
fia do Renascimento que não tenha participado desse trabalho .
Nele se engajaram não apenas a metafisica, mas também a fi­
losofia da natureza e o conhecimento empírico da natureza;
não apenas a psicologia, mas também a ética e a estética. Até
mesmo as diferenças entre tendências opostas de pensamento
encontram aqui a sua compensação, pois o movimento que par­
te do platonismo converge neste ponto para o movimento que ·

tem seu ponto de partida num aristotelismo renovado e refor­


mado. A consciência histórica da época, assim como sua cons­
ciência sistemática, vêem-se colocadas aqui diante das mesmas
questões fundamentais e forçadas a tomarem certas decisões
obj etivas.
Entre os feitos fundamentais da filosofia grega está o fa­
to de ela ter sido a primeira a conseguir desvincular da esfera
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 207

do pensamento mítico o conceito de autoconsciência e o de


mundo. Ambas as tarefas condicionam-se reciprocamente,
pois só a nova imagem de cosmos, que o pensamento grego
traça, cria espaço para o surgimento da nova visão do eu que
aqui surge. É bem verdade que a visão do eu parecia bem mais
profunda e solidamente entrelaçada com componentes e pres­
supostos míticos do que a visão do mundo das coisas. Com
efeito, ainda em Platão o problema do eu está indissoluvelmen­
te associado ao problema da alma, e de tal modo que mesmo
a linguagem filosófica de Platão não conhece outras formas de
expressão para esse problema do que aquelas que, de uma ma­
neira ou de outra, remontam à significação fundamental da
\jlUXlÍ [psykhé] (alma). Esta relação se expressa, no próprio
Platão, numa tensão constante que domina toda a sua doutri­
na, do começo ao fim : até mesmo as novas concepções a que
a dialética de Platão chega pelo caminho da análise progres­
siva e da fundamentação cada vez mais profunda do conheci­
mento revestem-se, na linguagem, da psicologia metafisica
do mesmo Platão . A determinação do conceito de a priori e
a demonstração de sua razão necessária ocorrem na forma da
doutrina platônica da anamnese; a diferenciação dos graus e
dos tipos de certeza procura seu fundamento na separação dos
diferentes componentes da alma. É verdade que no apogeu da
especulação platônica, caracterizado pelos diálogos escritos
por Platão em sua velhice, parece que o filósofo consegue che­
gar a uma delimitação nítida e rigorosa das diferentes esferas
de problemas. O Teeteto ainda define a unidade da consciên­
cia como unidade da alma, como Ev n \jl'UXll Ç [hen ti psykhês] ;
mas este conceito de alma já baniu de sua esfera todos os com­
ponentes mítico-primitivos, todas as reminiscências do concei­
to órfico de alma. De uma certa forma, ele figura apenas como
símbolo do processo evolutivo e da função progressiva da
união que o pensamento puro exerce sobre os conteúdos da per­
cepção. Contudo, continuam a subsistir a polaridade dos te-
208 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

mas e a polaridade dos meios de representação. A filosofia


de Platão conhece duas formas de representação radicalmen­
te opostas: uma é válida para o reino do ser, a outra para o reino
do vir-a-ser. Somente é possível se chegar a um conhecimento
rigoroso daquilo que sempre é, daquilo que permanece idên­
tico a si mesmo e que se comporta sempre da mesma manei­
ra. De outra parte, tudo o que se transforma, tudo o que sofre as
condicionantes do tempo e que muda de momento para mo­
mento não é possível de ser apreendido pelo conhecimento :
ele só pode ser descrito, se é que pode, pela linguagem do mi­
to . Se nos perguntarmos, seguindo essa diferenciação básica
estabelecida pela doutrina do conhecimento de Platão, qual
seria o meio adequado e conveniente à compreensão e à repre­
sentação da alma, a resposta a esta pergunta certamente não
será unívoca. Isso porque a alma rompe a divisão platônica ori­
ginal : ela pertence tanto ao reino do ser, quanto ao do vir-a-ser;
e, de uma certa forma, não pertence nem a um nem a outro.
Ela é um ser intermediário e híbrido, igualmente incapaz de
renunciar ao puro ser das idéias, de um lado, e ao mundo dos
fenômenos e do vir-a-ser, de outro. Por sua própria natureza,
toda alma humana contemplou o ser e, desta forma, subsiste
nela a capacidade de compreender as relações do puro ser; de
outra parte, cada alma carrega consigo a direção, a tendência,
a aspiração à multiplicidade e ao vir-a-ser sensíveis. Esse mo­
vimento duplo, de que ela consiste, expressa sua verdadeira
essência. Desta forma, a alma permanece um "meio interme­
diário" entre o vir-a-ser e o ser, entre a aparência e a idéia.
Ela se refere a ambos os pólos, ao ser e ao vir-a-ser, ao idên­
tico e ao diferente, sem penetrar nem num domínio nem em
outro ; sem estar atrelada a nenhum dos dois. Em vez disso, a
alma opõe-se - na condição de algo próprio e autônomo -
tanto à idéia pura quanto aos fenômenos, aos conteúdos da
percepção sensível. Como "suj eito" do pensar e do perce­
ber, ela não coincide nem com o conteúdo do que é percebi-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 209

do nem com o conteúdo do que é pensado. É certo que a lin­


guagem mítica do Timeo de Platão acaba por encobrir essa
distinção, pois assim como ela só conhece uma dimensão, a
saber, a do acontecer no tempo, ela precisa transformar to­
das as diferenças qualitativas em diferenças de origem e de
criação temporais. Desta forma, a alma se transforma aqui
num ser híbrido, no qual o Criador, o Demiurgo, imprimiu e,
de certo modo, fundiu as duas naturezas opostas : a natureza
do mesmo e a do outro . Uma diferença ideal de significação,
como a que corresponde à essência e à singularidade da ex­
pressão mítica, converte-se numa diferença ontológica de ser
e de origem. E foi basicamente dessa forma que a doutrina da
alma de Platão influenciou as épocas subseqüentes. Durante
toda a Idade Média, o Timeo é considerado uma obra funda­
mental de fi losofia e permanece praticamente o único diálo­
go de Platão que é conhecido e lido na tradução de-Calcídio.
Assim, o conceito socrático-platônico de alma, segundo o
qual a alma é um princípio da subj etividade, só pode ser
concebido numa roupagem e numa obj etivação míticas . Tal
processo de obj etivação já tivera início no próprio pensamen­
to da Antiguidade. Aristóteles interpreta a alma como a forma
do corpo; como tal, porém, ela é, ao mesmo tempo, a força mo­
triz que nele atua e que lhe é imanente. Ela é tanto a causa fi­
nal, expressão da "determinação" ideal do corpo, quanto é
causa motriz, através da qual o corpo é conduzido numa evo­
lução progressiva rumo a essa sua determinação. Nesta acep­
ção da alma como entelechie do corpo, ela se transforma nova­
mente em pura potência natural, em força da vida e da consti­
tuição orgânicas. É bem verdade que, num momento decisivo
de sua doutrina, o próprio Aristóteles se vê impel ido a rever
e a ampliar o seu conceito original de alma, pois se tal concei­
to, de um lado, apreende e explica os fenômenos da vida, por
outro ele não é abrangente o bastante para abarcar todas as
determinações do saber. O saber, em sua forma mais elevada
2 1Ü INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

e pura, deixa de se relacionar a algo individual para se rela­


cionar ao universal ; deixa de se referir a um conteúdo "mate­
rial", para referir-se a um conteúdo puramente inteligível. E
assim, a força anímica, que concretiza este saber em si, pre­
cisa ser da mesma espécie de seu objeto; precisa ser concebida
como algo totalmente desatrelado de tudo o quanto possua um
corpo e como algo que não se confunda com ele xroptcr'tÓç
1mí à.µryíiç [khoristàs kai amigés] . Contudo, mais uma vez
essa diferenciação é imediatamente traduzida em termos
metafisicos e ontológicos . O vouç [nous] (intelecto) aristo­
télico, que é o sujeito do pensamento puro, do pensamento
das "verdades eternas", também é um "ser espiritual" obj eti­
vo, tal como a alma, como forma do corpo orgânico, é um
ser natural. Assim como esta é força motriz, o pensamento é
força pensante que vem de fora -ôúpm'}ev [thyrathen] para
dentro do homem. O neoplatonismo retoma essa determina­
ção ; ao mesmo tempo, porém, ele despe a força do pensa­
mento do caráter particular que Aristóteles lhe tinha atribuí­
do, à medida que a reinsere na hierarquia geral das forças,
que descende da unidade para a multiplicidade, do inteligí­
vel para o sensível, e lhe estabelece um lugar bem definido no
interior dessa hierarquia. Quanto mais avança a evolução nes­
se sentido tanto mais uma multidão de seres intermediários,
semidivinos e semidemoníacos, se aglomera entre a força
do pensamento como tal e a forma através da qual esta for­
ça se manifesta no homem, como indivíduo concreto. A con­
clusão e a formulação conseqüente e sistemática dessa evo­
lução se manifesta na filosofia árabe da Idade Média, sobre­
tudo na doutrina averroísta. À medida que, nesta doutrina, a
alma é novamente concebida no interior da esfera de forças
metafisico-obj etivas, não apenas se abandona o princípio da
subj etividade, como também o da individualidade . A força
fundamental do pensamento está além de todo e qualquer tipo
de individualização, pois o intelecto como tal, longe de ser
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 21 1

algo dividido em muitas partes, constitui uma unidade abso­


luta. O ato de pensar constitui-se justamente do fato de o eu
libertar-se do isolamento que lhe é peculiar como mero ser
vivente; consiste j ustamente do fato de o eu suplantar um tal
isolamento e de fundir-se com a unidade do intelecto absoluto,
o intellectus agens (o intelecto agente). A viabilidade de tal
fusão é postulada agora não apenas a partir do ponto de vista
místico, mas também lógico, pois somente ela parece ser ca­
paz de explicar realmente o processo de pensar e de funda­
mentá-lo em sua validade necessária. O verdadeiro sujeito do
pensamento não é o indivíduo, não é o "si mesmo", mas é um
ser substancial, impessoal e comum a todos os seres pensan­
tes; e a "ligação" de tal ser com o eu individual permanece
sendo uma ligação exterior e acidental .
Preci samente neste ponto, porém, o sistema lógico-me­
tafisico, que se desenvolvera a partir das interpenetrações entre
o aristotelismo e o neoplatonismo, entra em rota de colisão com
o sistema de fé, de quem ele até então parecia ser o alicerce
mais seguro . A fé cristã, pelo menos, não pode abandonar o
princípio do "subj etivismo", o princípio da autonomia e do
valor próprio da alma individual, sem que com isso se torne
infiel a seus próprios pressupostos religiosos. Os grandes pen­
sadores cristãos do séc . XIII viveram esse dilema; e para es­
capar dele, combateram sem cessar as conseqüências sistemá­
ticas a que o averroísmo havia chegado. São Tomás de Aquino
dedicou um tratado inteiro De unitate intellectus contra Aver­
-

roistas à refutação de tais conseqüênc ias. As bases do pen­


-

samento contido nesta obra estão no fato de que a tese averroís­


ta, ao tentar esclarecer o fenômeno do pensamento, acaba na
verdade por anulá-lo. O que é o intelecto em si? O que é o in­
telecto segundo sua própria essênc ia universal? Tais pergun­
tas não podem sequer ser colocadas sem que exerc itemos a
função do pensamento. Essa função, porém, nós não a conhe­
cemos empiricamente senão na forma individual, na relação
212 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

com um eu pensante . Excluir este eu significa, portanto, eli­


minar o fato sobre o qual toda a teoria do conhecimento deve
se construir. E o averroísmo ameaça bem mais do que a teoria
do conhecimento; ele ameaça também a certeza religiosa em
sua singularidade e em sua essência mais profunda. Com efei­
to, essa certeza exige que se mantenha a autonomia de ambos
os membros da relação religiosa fundamental, de Deus e do
eu. Não podemos compreender nem nos apoderar do conteú­
do absoluto e universal da fé, se não nos colocarmos no centro
da vida religiosa, para o qual a personalidade não constitui um
limite e um impedimento simples e casuais; ao contrário : ne­
le elas atuam como princípio imprescindível, constitutivo. San­
to Agostinho, o primeiro grande pensador sistemático do cris­
tianismo, já tinha chegado com todo o rigor a essa conclusão.
É fato de todos conhecido que o subj etivismo religioso de
Agostinho o levou diretamente aos resultados fundamentais
que mais tarde Descartes formularia como lógico e como crí­
tico do conhecimento . O princípio sobre o qual se baseiam o
idealismo religioso de Agostinho e o idealismo lógico de Des­
cartes é o mesmo : trata-se do princípio da interiorização, da
reflexão sobre si mesmo . Noli foras ire, in te ipsum redi: in
interiore homine habitat veritas (não saias, volta para dentro
de ti mesmo: é no homem interior que mora a verdade). O pró­
prio ser, o conhecer e querer próprios, o próprio esse (ser),
nosse (conhecer), velle (querer) constituem o ponto de parti­
da inabalável de todas as teorias, pois nada há que o espírito
conheça melhor do que aquilo que tem presente; e nada há
que lhe possa ser mais presente do que ele próprio 1 • Nessas
frases se estabelece a primazia da experiência religiosa so­
bre todas as conseqüências dogmáticas de uma doutrina me­
tafisica de Deus e da alma. Cessa aí a ordenação do eu num

1 . Augustinus, De trinitate, XIV, 7 ; De vera religione, Cap. 39.


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 213

esquema construtivo do conhecimento obj etivo, pois justa­


mente esta determinação mediata não alcança sua essência
especí fica e seu valor específico, que é um valor absoluta­
mente sui generis.
É preciso ter presente esta oposição, esta tensão que j á
existe n o sistema d e vida e de reflexão d a Idade Média, a fim
de se compreender a mudança que se introduz com a filoso­
fia do Renascimento. Nos sécs. XIV e XV, a despeito de todos
os ataques que sofrera pelos sistemas clássicos da Escolástica,
o averroísmo parecia continuar inabalado em seus fundamen­
tos teóricos. Por longo tempo, ele foi a doutrina dominante
nas universidades italianas. Em Pádua, o centro por excelên­
cia da erudição escolástica, a doutrina averroísta confirmou
sua primazia da primeira metade do séc. XIV até os sécs. XVI
e XVIP . Paulatinamente, porém, começa a ganhar cada vez
mais força um movimento que lhe é antagônico. Significa­
tivamente, tal movimento antagônico não se restringe à esfe­
ra da Escola, mas recebe de um outro lado seus impulsos mais
vigorosos. Os primeiros a declararem guerra ao averroísmo
são os partidários e defensores do ideal de cultura humanista
e do novo ideal de personalidade do Renascimento. E também
nesse sentido, Petrarca é o primeiro. A luta apaixonada que
ele empreendeu durante toda a sua vida contra o averroísmo
não está isenta de mal-entendidos teóricos que, contudo, não
chegam a comprometer seriamente o valor desta luta. Isso
porque se trata aqui de mais do que discussões meramente
teórico-especulativas. Trata-se, isso sim, de uma personali­
dade genial que, apoiando-se no direito que lhe atribui seu
profundo sentimento de vida, se insurge contra conclusões
que ameaçam limitar ou cercear esse direito. O artista e o vir-

2. Para maiores detalhes, cf. Emest Renan, A verroes et l 'A verrois­


me, 3� ed , , Paris, 1 866.
214 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

tuoso da "individualidade'', o primeiro a redescobri-la em sua


riqueza e em seu valor inesgotáveis, resi ste a uma filosofia,
para a qual toda individualidade representa algo meramente
fortuito, puramente "ac idental". E nessa luta, Petrarca toma
Santo Agostinho por seu verdadeiro patrono. Petrarca foi um
dos primeiros a não se deixar influenciar pelo conteúdo me­
ramente obj etivo das criações hi stóricas do espírito. Usando
tais criações como meio, sua meta é experimentar os senti­
mentos e compartilhar da vida de seus criadores. Imbuído des­
se espírito, Petrarca vence o intervalo de séculos e entra em
contato direto com Santo Agostinho . O gênio lírico da indi­
vidualidade inflama-se ao contato com o gênio religioso da in­
dividualidade, pois poesia e religião confluem para uma unida­
de na forma característica da mística de Petrarca. Esta mística
não se orienta - como a mística averroísta - por um sentido
cosmológico, mas sim puramente psicológico. E por mais que
ela busque e anseie pela unidade da alma com Deus, tal uni­
dade não constitui o obj etivo único e essencial com o qual ela
irá se satisfazer. Ao contrário : ela mergulha cada vez mais
fundo na contemplação da mobilidade interior do eu, para
admirá-la em toda a sua multiplicidade e usufruí-la justamen­
te em seu aspecto contraditório. A partir dessa perspectiva,
podemos entender como Petrarca, em sua luta contra o aver­
roísmo, enfatiza constantemente a sua fé; como ele pode se
sentir um cristão ortodoxo, que defende a simplicidade da fé
contra a arrogância da razão humana e como, de outra parte,
esse cristianismo adquire em Petrarca uma marca absoluta­
mente pessoal, mais estética do que religiosa. A reflexão fi­
losófica teria de enveredar por um outro caminho, se quises­
se dominar o averroísmo; em vez de se abismar no sentimen­
to e no prazer da individualidade, ela teria de tentar estabelecer
para essa individualidade um princ ípio novo, mais profundo .
Já vimos que tal princípio foi formulado pela primeira vez na
doutrina de Nicolau de Cusa. Durante ·o período em que Ni-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 215

colau de Cusa estudou em Pádua, o averroísmo da Escola de


Pádua está no apogeu de sua evolução . Nada parece indicar,
porém, que Nicolau de Cusa tenha recebido dele qualquer es­
tímulo essencial à elaboração de seu pensamento . Em suas
obras sistemáticas principais, escritas mais tarde, Nicolau de
Cusa combateu expressamente a doutrina central do averroís­
mo; e o fez com argumentos extraídos mais da sua doutrina
do conhecimento, do que de sua metafisica. A metafisica de
Nicolau de Cusa não reconhece uma separação absoluta en­
tre o reino do sensível e o do intelectual, pois ainda que o
sensível e o intelectual se oponham um ao outro, o intelecto
precisa justamente dessa contradição, dessa resistência da per­
cepção sensível, pois somente através dela ele pode chegar
à sua plena realização, à sua plena atualização ( cf. pp. 69 s .
deste livro). Igualmente, também não é possível imaginar
qualquer função intelectual que pudesse se processar de forma
totalmente independente do material sensível. Para poder agir,
o espírito exige um corpo que lhe sej a correspondente e "ade­
quado": daí a necessidade de a diferenciação e a individualiza­
ção do ato de pensar andarem pari passu com a organização
do corporal. "Assim como a visão do teu olho não poderia ser
a visão de um outro qualquer, ainda que ela se desprendesse de
teu olho e se unisse ao olho de outro, pois não encontraria num
outro olho a medida que só o teu olho possui; e assim como
a distinção que existe em teu olhar não pode ser a distinção do
olhar de um outro, do mesmo modo também não se pode pen­
sar num único intelecto para todos os homens." Neste ponto
surge um pensamento que somente em Leibniz viria a en­
contrar sua formulação sistemática, sua plena realização . O
puro ato de pensar não tem no sensível e no corporal sim­
plesmente um substrato indiferente, nem dele se serve como
um mero instrumento, que se lhe opõe como uma ferramen­
ta sem vida: a força e a realização desse ato consistem justa­
mente do fato de ele compreender como tais as distinções
216 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

que existem no sensível e de representá-las em si em toda a


sua plenitude . Por conseguinte, o principium individuationis
não pode ser buscado na simples "matéria" do pensamento,
mas deve ser fundado em sua forma pura. A alma, como força
ativa do pensamento, não está fechada dentro do corpo co­
mo num invólucro, mas expressa, com maior ou menor cla­
reza, todas as diferenças nele existentes, todas as transforma­
ções que nele ocorrem. Assim, entre alma e corpo não exi ste
apenas uma relação de união, mas de contínua "adequação" :
a proporção universal, como a chama Nicolau de Cusa3 . Se, por
um lado, ele encontra a concepção oposta representada não
apenas em Averrois, mas também na doutrina de alguns neo­
platônicos, por outro lado é característico para o neoplatonis­
mo do Renascimento, para a Academia de Florença, o fato de
ela se encontrar no mesmo terreno em que se encontra Nico­
lau de Cusa, no que respeita a esse problema fundamental.
Também Ficino, tanto em sua obra capital - a Theologia pla­
tonica quanto em suas cartas, combateu incessantemente a
-

doutrina da unidade do "intelecto ativo". E, nesse sentido, tam­


bém ele se baseia na experiência imediata, que nos revela de
uma forma absolutamente individual aquilo que chamamos
de nosso eu e de nosso pensamento . Não pode haver nenhuma
di ferença de princípio entre a essência do eu e aquilo que se
nos dá a conhecer na consciência imediata: quid enim menti

3 . Cusa, Jdiotae, Lib. III, "De mente", Cap. 1 2 , foi. 1 67 s.: "Da mesma
forma, de fato, que a visão de teu olho não poderia ser a visão de nenhum
outro, seria ela separada de teu olho e juntada ao olho dum outro, porque não
mais a sua proporção que se encontra no teu olho pode ser o discernimento
que está na visão dum outro. Assim, nem o discernimento que está no teu
olho poderia ser discernimento na visão do outro. Da mesma forma, não mais
a intelecção desse discernimento saberia ser a intelecção do discernimento
de outro. Por isso eu julgo tudo de fato possível que haja um intelecto único
em todos os homens."
.1 PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 217

naturalius, quam sui ipsius cognitio ?4 (o que de mais natu­


ral ao pensamento que o conhecimento de si mesmo?).
Mas a esse processo, cuj o obj etivo é elaborar os funda­
mentos e as condições do conceito de "subjetividade", opõe-se
um outro, que nos permite identificar com toda a clareza, e
pela primeira vez, as verdadeiras forças que, em última aná­
lise, determinam e governam todo o movimento de idéias. O
alicerce sobre o qual Ficino constrói sua doutrina da alma e
sua doutrina da imortalidade do indivíduo representa menos
a sua concepção do conhecimento humano do que da vontade
do homem. A doutrina do Eros, a verdadeira pedra angular da
psicologia de Ficino, transforma-se no centro de todos os esfor­
ços filosóficos da Academia de Florença. Como nos mostram
as Disputationes camaldulenses, de Christoforo Landino5, ela
constitui o eterno e inesgotável tema dos discursos acadêmi­
cos. Desse centro partem todas as influências que a Academia
exerceu sobre a totalidade da vida intelectual da época, so­
bre a literatura e sobre as artes plásticas do Quattrocento. Ao
mesmo tempo, ocorre aqui um efeito recíproco constante : as­
sim como Girolamo Benivieni, em sua Canzone dei/ 'amor ce­
leste e divino, reveste de forma poética o pensamento funda­
mental da teoria do amor de Ficino, também o comentário que
Pico della Mirandola escreveu acerca do poema de Benivie­
ni resgata esse mesmo pensamento para o interior da esfera
puramente filosófica6• Ao que tudo indica, Pico e"Ficino não
parecem guiados aqui por outro obj etivo senão o de reprodu-

4. Ficino, Epistolae, Lib. I, foi. 628.


5. Sobre as Disputationes camaldu/enses, de Landino, e sobre o va­
lor que elas possuem como fontes para a história da Academina de Flo­
rença, cf. em esp. Storia de/l 'Academia Platonica di Firen::e, de Della Torre.
Florença, 1 902, pp. 579 ss.
6. Pico della Mirandola, Opera, foi. 734 ss.
218 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

zir a teoria platônica do Eros da forma mais fiel possível: ambos


se empenham em expor sem mediação o Banquete de Platão,
que Ficino, numa obra característica, havia comentado exaus­
tivamente. E, não obstante, em nenhum outro lugar parece vir
à tona com tanta clareza a peculiaridade e a singularidade do
platonismo "cristão" da Academia de Florença. Numa carta
endereçada a Luca Controni, enviada juntamente com o seu
comentário ao Banquete e com sua obra De christiana religio­
ne, Ficino escreve : Mitto ad te amorem, quem promiseram.
Mitto etiam religionem ut agnoscas et amorem meum religio­
sum esse et religionem amatoriam (Envio-te o Amor que te
havia prometido. Envio-te também a Religião para que saibas
que meu amor é rel igioso e minha religião amorosa)7. De
fato, a doutrina do Eros, de Ficino, é o ponto no qual sua psi­
cologia e sua teologia se encontram e se fundem de forma in­
dissolúvel. Também em Platão, Eros pertence a um reino inter­
mediário do ser: estando entre o divino e o humano, entre o
mundo inteligível e o mundo sensível, Eros tem por missão es­
tabelecer relações e ligações entre eles. E ele só pode reali­
zar essa sua missão enquanto não pertencer exclusivamente
nem a um mundo nem a outro. O próprio Eros não é nem ple­
nitude nem falta, não é sábio nem ignorante, não é imortal
e nem mortal : sua essência "demoníaca" é um misto de to­
dos esses opostos. Essa natureza de Eros, em si contraditória
e dividida, constitui o momento genuinamente motor do cos­
mos de Platão. Aqui, pela primeira vez, um tema dinâmico pe­
netra na estrutura estática do cosmos. O mundo das aparências
e o mundo do amor não mais se encontram numa relação de
simples oposição: a aparência em si "aspira" à idéia, O pÉ)'E'tcx.t
wu õvwç [orégetai tou óntos] . E este anseio é a força fun­
damental, a partir da qual deriva todo o vir-a-ser; esta insa-

7. Ficino, Epistolae, Lib. I, foi. 632 .


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 219

tisfação interior representa a "inquietação" eternamente ani­


madora, que confere a todo acontecer uma determinada dire­
ção, a direção do ser imutável da idéia. No interior do sistema
platônico, porém, tal direção não é reversível. É bem verda­
de que existe um "transformar-se em ser", um yÉVEmç EtÇ
oocriav [génesis eis ousían] ; de outra parte, porém, não há
uma ação do ser em direção ao vir-a-ser, da idéia para a apa­
rência. o tema da xroptcrµóç [khorismós] (divisão) é mantido
aqui em todo o seu rigor: a idéia do bem é "causa" do vir-a-ser
apenas no sentido de que representa o seu obj etivo e final ,
não no sentido de que ela, como força motriz, intervenha na
engrenagem da realidade empírica e sensível. Essa relação
no plano do método sofre então, no sistema do neoplatonis­
mo, sua interpretação e sua hipóstase metafisicas. Também
para os neoplatônicos, é próprio de todo ser condicionado e
derivado o esforço rumo à causa primeira. Mas a esse esfor­
ço do condicionado para o incondicionado não corresponde,
da parte deste último, um esforço contrário . Aquilo que, no
neoplatonismo, está acima do ser e acima da unidade, está tam­
bém "acima da vida", unep 'tÕ Çf)v [hyper tà zên]. A pura obje­
tividade do absoluto, como tal, está acima da consciência sub­
j etiva, seja esta entendida como consciência prática, sej a como
consciência teórica. Pois assim como a determinação do es­
forço deve ser mantida à distância do absoluto, também a de­
terminação do conhecimento . Todo conhecimento pressupõe
a relação a um outro; e tal relação contradiria a pura autarquia
do absoluto, sua integridade e plenitude em si mesmos.
A teoria do amor de Ficino rompe esse círculo de idéias
à medida que concebe o processo do amor como um proces­
so absolutamente recíproco. O anseio do homem em direção
a Deus, que se manifesta em Eros, não seria possível sem um

8. Cf. em esp. Plotino, Ennead. VI, 7, 3 5 ; VI, 7, 4 1 .


220 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

anseio contrário de Deus em direção ao homem. É o pensa­


mento fundamental da mística cristã que ganha vida em Fici­
no e que confere ao seu neoplatonismo uma característica nova.
Deus, o ser obj etivo absoluto, está tão implicado na subj eti­
vidade, tão ligado a ela como seu correlato, como seu opos­
to necessário, como toda subjetividade se refere e está dire­
cionada a ele. O próprio amor, portanto, não pode se concre­
tizar de outra maneira, senão nessa forma dupla: ele é tanto
o ímpeto do superior em direção ao inferior, do inteligível em
relação ao sensível, quanto é o anseio do inferior em relação
ao superior. Assim como Deus se volta para o mundo num ato
livre de amor, assim como ele, num ato livre de sua graça, re­
dime o mundo e o homem, também essa dupla direção do es­
forço é essencial a todas as inteligências. "A singularidade de
todos os espíritos divinos reside no fato de eles, ao contempla­
rem o mundo superior, não deixarem de olhar para o inferior
e de zelar por ele. Tal é também a singularidade de nossas al­
mas, que não se preocupam apenas com o próprio corpo, mas
também com o corpo de todas as coisas terrestres e com a pró­
pria Terra, a fim de cultivá-la e fazê-la prosperar." Nesse culti­
vo, nessa "cultura" do sensível reside um momento e uma ta­
refa fundamentais do próprio mundo espiritual. Essa acepção
da doutrina de Eros lança uma nova luz sobre o problema da
teodicéia, com o qual o neoplatonismo também tinha se deba­
tido incessantemente. Só agora é possível uma teodicéia em
sentido estrito, pois a matéria deixa de ser entendida como me­
ra oposição à forma e, por conseguinte, como o "mal" abso­
luto, para se transformar na instância por excelência em que
toda a efetividade da forma se realiza e se comprova. Eros con­
verte-se, assim, no verdadeiro "elo do mundo", pois é ele
quem vence toda a desigualdade dos diferentes elementos e
reinos, à medida que acolhe cada um deles no interior de si
mesmo; à medida que concilia e faz cessar toda a desigual­
dade substancial dos elementos do ser ao permitir o reconhe-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 22 1

cimento de tais elementos e reinos diferentes como sujeitos


e pontos centrais de uma mesma e única função dinâmica. É

graças ao amor que o espírito desce ao mundo sensível e cor­


póreo e é também através dele que o espírito pode elevar-se
para além dos domínios do sensível. Em ambos os movimen­
tos, porém, ele não segue um impulso que lhe é estranho, uma
coerção fatalística, mas sua própria e livre decisão . Animus
nunquam cogitur aliunde, sed amore se mergit in corpus, amo­
re se mergit e corpore (O espírito nunca é coagido a partir de
fora; é pelo amor que ele mergulha no corpo e é pelo amor
que ele do corpo se desprende)9• Revela-se aqui um movimen-

9. Ficino, Theologia platonica, Lib. XVI, Cap. 7, foi. 382. Este mo­
mento decisivo da teoria do amor de Ficino é convenientemente ressaltado
por Saitta em Lafilosofia di Marsilio Ficino. Messina, 1 923, pp. 2 1 7 ss. Mas
nesse particular, como em muitos outros pontos, Saitta superestimou con­
sideravelmente a originalidade de Ficino em frente a Nicolau de Cusa: "O que
diferencia Ficino dos filósofos precedentes, compreendendo Nicolau de
Cusa", escreve ele, "é a intuição agitada de amor como extensão absoluta,
infinita de liberdade ( . . . ) A verdadeira mística se fixa na absoluta indistin­
ção ou indiferença enquanto o pensamento de Ficino respira na atmosfera sã
da liberdade como diferenciação contínua." ( Op. cit. , p. 256.) Mas é justamen­
te no interior desta "atmosfera de liberdade" que se circunscreve o conceito
de criação e o conceito de amor divino de Nicolau de Cusa. Cf. , por ex., De
beryllo, Cap. XXII I , foi. 2 7 5 : "A todo modo de ser satisfaz superabundan­
temente o primeiro princípio uno e triplo: convém que ele seja absoluto e
acima de tudo, porque não é um princípio contraído, como a natureza que
opera por necessidade, mas que é o princípio de sua própria natureza. É as­
sim sobrenatural, livre, criando tudo por sua própria vontade ( ... ) É o que Pla­
tão ignorava tanto quanto Aristóteles: manifestamente eles creram de fato
um e outro que o entendimento criador fazia todas as coisas pela necessidade
de sua natureza e de lá veio todo o erro. Pois se ele não opera evidentemen­
te por acidente, como o fogo por meio do calor ( ... ) (por nenhum acidente pode
ocorrer na sua simplicidade) e parece então agir por essência. Não age, po­
rém, por isso, como por natureza, ou seja, como um instrumento necessitado
por uma ordenação superior, mas pela livre vontade, que é sua essência."
222 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

to circular do espírito, um circuitus spiritualis, que não carece


de um obj etivo exterior, porque possui sua meta e suas fron­
teiras no interior de si mesmo; porque encontra em si mesmo
tanto o princípio do movimento quanto o do repouso 1 0 .
A filosofia d o Renascimento acolheu essas idéias funda­
mentais da doutrina especulativa do amor de Ficino e se em­
penhou em fazê-Ias render seus frutos tanto para a filosofia da
natureza quanto para a ética; tanto para a teoria da arte quanto
para a teoria do conhec imento. No que respeita à doutrina
do conhecimento, a literatura neoplatônico-mística da Idade
Média já havia unido amor e conhecimento de forma indis­
solúvel, pois o espírito não pode voltar-se para obj eto algum
numa contemplação puramente teórica, a menos que para ele
sej a impelido por um ato de amor. Na fi losofia do Renasci­
mento, essa concepção basilar sofre uma renovação e um de­
senvolvimento sistemático na doutrina de Patrizzi. O ato do
conhecimento e o ato do amor têm um mesmo e único obj eti­
vo, pois ambos tendem a suprimir a separação entre os ele­
mentos do ser e a remontar-se ao ponto de sua unidade primor­
dial. O saber não é outra coisa senão uma etapa determinada
neste caminho de retomo. Ele é, em si mesmo, uma forma des­
se esforço, pois a "intenção" com respeito a seu próprio obj eto
é essencial a todo saber (intensio cognoscentis in cognoscibile).
O intelecto mais elevado não se transformou em intelecto, em
consciência pensante, senão pelo fato de ele, movido pelo
amor, ter-se dividido, ter oposto a si um mundo de obj etos
de conhecimento como objetos de contemplação. Mas o ato de
conhecimento que provoca essa divisão, essa entrega da uni­
dade primordial à diversidade, é o mesmo que a suplanta no­
vamente . Com efeito, conhecer um obj eto significa negar a
distância que existe entre ele e a consciência e fundir-se com

1 O. Ficino, Theologia platonica IX, 4, foi. 2 1 1 .


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 223

ele numa unidade: cognitio nihil est aliud, quam Coitio quae­
dam cum suo cognobiJil 1 (a consciência não é outra coisa senão
um acoplamento com o cognoscível). Mas a doutrina de Eros,
sob a forma renovada que lhe conferiu Ficino, exerceu sobre
a concepção do Renascimento acerca da essência e do sentido
da arte uma influência mais poderosa e profunda do que sobre
a doutrina do conhecimento . A paixão com que muitos dos
grandes artistas do Renascimento se apegam à doutrina espe­
culativa da Academia de Florença revela que, para eles, ela
significava bem mais do que mera especulação . Nela, esses
artistas não viam apenas uma teoria do cosmos que vinha ao
encontro de sua própria visão; eram sobretudo os segredos
de sua própria criação que eles ali viam revelados e interpre­
tados. A enigmática natureza dupla do artista - sua entrega ao
mundo das aparências sensíveis, de um lado, e sua luta inces­
sante por superá-lo e sobrepuj á-lo, de outro - parecia entendi­
da agora e, através de tal entendimento, verdadeiramente j us­
tificada. A teodicéia do mundo, que Ficino havia traçado em sua
doutrina de Eros, transformara-se, ao mesmo tempo, em teodi­
céia da arte. Pois, assim como Eros, também é próprio do ar­
tista unir e relacionar tudo o que está separado ou que se opõe;
buscar no "visível" o "invisível'', no "sensível" o "inteligível".
Se é verdade que sua visão e sua criação são determinadas
pela referência à forma pura, também é verdade que ele só
obtém verdadeiramente essa forma pura quando consegue rea­
lizá-la na matéria. Mais do que qualquer outro, é o artista que
sente mais profundamente essa tensão, essa oposição polar
dos elementos do ser; ao mesmo tempo, porém, ele se enten­
de e se sente como seu mediador. Neste ponto está o cerne de
toda harmonia estética, mas também a eterna insatisfação ine-

1 1 . Francisci Patricii, Panarchias, Lib. XV: De intellectu (Nova de


universis philosophia, Ferrara, 1 59 1 , foi. 3 1 ) .
224 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

rente a toda harmonia, a todo belo, que não pode se manifes­


tar senão através da matéria. É sob essa forma e nesse grau
de profundidade que encontramos a doutrina do amor de Fi­
cino nos sonetos de Michelangelo. Somente chegamos a com­
preender plenamente os fundamentos da extraordinária fecun­
didade dessa doutrina quando comparamos essa sua influência
com a evolução ulterior que ela sofre pelas mãos de Patrizzi,
na doutrina do conhecimento, e pelas de Giordano Bruno, na
ética. Também o platonismo da Escola de Florença ainda con­
cebe essas idéias como forças, como potências cósmicas obje­
tivas; paralelamente a tal concepção, porém, ele descobre, em
sua doutrina de Eros, um novo conceito da consciência espi­
ritual de si mesmo. Esta se manifesta agora em sua unidade e
multiplicidade, em sua diferenciação das atividades fundamen­
tais do saber, do querer e da criação estética, bem como em sua
plenitude e homogeneidade imanentes. O eu, o "espírito subje­
tivo", articula-se nas diferentes direções da criação, das quais
provém a diversidade da cultura, o sistema do "espírito obj e­
tivo". Giordano Bruno, referindo-se a Plotino, também recorre
a Eros como o único capaz de nos revelar verdadeiramente o rei­
no da subjetividade. Enquanto nossos olhos se entregarem uni­
ca e exclusivamente à mera contemplação do objeto percebido,
o fenômeno do belo, assim como o do amor, não pode aconte­
cer: ambos só têm lugar quando o espírito se afasta das formas
exteriores da imagem e se entende em sua forma própria, in­
divisível, que está além de toda e qualquer visibilidade 1 2 •

1 2. Cf. Giordano Bruno, De umbris idearum (Opera latina, ed. lm­


briani, li, 48): "Plotino, primeiro dos platônicos, notou isso. Por mais tem­
po que alguém se concentre perto de uma figura palpável, a fim de con­
templá-la, não será tomado pelo amor, mas à primeira vez que o espírito a
conceba, ao afastar-se dela, em si mesma como algo indivisível, para além
do visível, imediatamente o amor surge."
.4 PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 225

Se é o espiritualismo do Renascimento que determina


aqui o modo de conceber o problema da alma e da consciên­
cia de si, esses dois problemas parecem enveredar por um ca­
minho completamente diferente quando os consideramos no
âmbito do conceito de natureza e da psicologia naturalista. A
inclinação ao naturalismo, a tentativa de inserir o princípio de
"alma" no complexo geral de relações da natureza e de lhe con­
ferir uma explicação puramente imanente a partir de tal inser­
ção, constituem a tendência básica da renovação critica da psi­
cologia aristotélica, que a Escola de Pádua tenta implantar por
volta da virada do séc. XVI. A obra De immortalitate animi,
de Pomponazzi, representa a primeira conclusão sistemática
desse processo evolutivo. Novamente, a luta contra o averroís­
mo ocupa o centro das observações. Para a doutrina averroísta,
somente é possível salvar a unidade do intelecto fazendo-a
coincidir com sua generalidade, considerando a individuali­
dade do princípio pensante não uma determinação original,
mas tão-somente uma determinação casual deste mesmo prin­
cípio . Contudo, não se trata mais de psicologia, e sim de me­
tafisica, quando, em vez de se descreverem os fenômenos da
vida mental tal como se dão, se indaga sobre sua causa trans­
cendente e quando se define esta última de modo que o cará­
ter empírico distintivo de todos os processos mentais se perde.
Trata-se primeiramente de se reconhecer tal caráter, antes de
se tentar explicá-lo desta ou daquela forma. O averroísmo, po­
rém, peca justamente contra essa máxima metodológica ao ex­
plicar a consciência pensante de um modo tal que acaba mui­
to mais por anulá-la como consciência. A unidade de sua
"razão ativa" pode ser vista, na melhor das hipóteses, co­
mo um ser cósmico, como uma força cósmica; mas a esta for­
ça falta-lhe justamente aquele momento capaz de transfor­
má-la em consciência de si; capaz de fazê-la passar de mero
"em-si" a "ser-para-si". E visto que a consciência só é possí­
vel na forma do "para si", ela só é concebível numa diferen­
ciação concreta, já que uma determinação implica a outra. A
226 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

partir desse ponto, porém, a demonstração de Pomponazzi


avança mais um passo. Não podemos pensar a diferenciação
do sujeito da consciência sem uma diferenciação de objeto que
lhe sej a correspondente. Urna alma individual só pode ser com­
preendida como tal quando é pensada como forma de um cor­
po individual. Poderíamos ir mais além e afirmar que aquilo
a que chamamos de animação de um corpo nada mais é do
que sua total individualização. Através dela, o corpo se dis­
tingue da simples "matéria"; através dela ele se transforma
em corpo orgânico que, em sua determinação individual, é
portador de uma vida determinada, concreta e individual . A
"alma", por conseguinte, não se soma ao "corpo" como um
princípio externo motriz e animador, mas é justamente o que
inicialmente dá forma ao corpo, o que faz dele um todo dife­
renciado e articulado nessa diferenciação. E essa relação ri­
gorosamente correlativa admite também sua expressão inversa.
Se a alma não é meraform a assistens (forma junta), mas uma
genuína /arma informans (forma informadora), é claro que
sua função formativa só pode se realizar num determinado
substrato tisico. Se pensamos em suprimir este último, a fun­
ção não apenas perderia seu apoio, como também, e precisa­
mente, seu sentido . Neste ponto, Pomponazzi se afasta não
apenas do averroísmo, mas também de todo e qualquer tipo
de psicologia espiritualista. Assim como a alma não pode se
desprender do corpo, de que é a forma, como se fosse uma en­
tidade autônoma, também em seu próprio interior não pode
haver uma divisão absoluta, que simplesmente separe suas fun­
ções "superiores" das "inferiores". A alma só é "intelecto", ou
"espírito", à medida que também é "vida"; e ela só pode se
manifestar como vida num determinado corpo orgânico. Daí
resulta que - se atentarmos mais para os princípios da razão
do que para a revelação - caem por terra todas as provas da
imortalidade da alma, da sua sobrevida autônoma, despren­
dida do corpo. Isso porque, numa observação mais detalhada,
todas essas provas têm por base uma simples petitio principii
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 227

(petição de princípio): tendo por ponto de partida a universa­


lidade da função de pensar, a atividade autônoma que o pen­
samento "puro" desenvolve em oposição à percepção sensível,
elas inferem a existência autônoma da alma, a possível sepa­
ração da substância pensante. E porque existem significações
ideais universais, porque existem valores éticos e lógicos in­
dependentes da experiência dos sentidos, por essas razões se
postula uma força de pensamento autônoma, que seria por­
tadora desses valores. Na verdade, porém, uma análise mais
rigorosa do próprio ato de pensar mostra que tal postulado é
insustentável, pois o espírito só percebe o sentido de um con­
ceito universal ou de uma regra geral através da visualização
desse sentido em algo particular, num conteúdo da percep­
ção ou da imaginação sensível. Sem essa realização concreta,
sem a relação ao caso particular, o pensamento universal per­
manece vazio. Assim, lógica e psicologia apontam aqui para
uma mesma conclusão, que evidentemente está em franca e
insuperável contradição com o conteúdo da doutrina cristã.
Em passagem alguma Pomponazzi tenta superar essa oposi­
ção; ao contrário: ele a expõe com grande precisão e deter­
minação, para depois buscar refúgio na doutrina da "dupla
verdade". Essa limitação puramente formal, porém, só faz
destacar com mais clareza ainda o radicalismo do conteúdo
de suas teses. Se em sua luta contra o averroísmo ele faz uso
constante dos argumentos com os quais São Tomás de Aqui­
no combatera a doutrina de um intelecto único para todos os
homens, agora a sua argumentação volta-se contra o próprio
São Tomás de Aquino e, com isso, contra os fundamentos de
toda a psicologia escolástica. Com verdadeira maestria, ele
revela aqui sobretudo a contradição que continua a existir en­
tre os elementos platônicos e aristotélicos do conceito tomista
de alma. O platonismo, para o qual alma e corpo são substân­
cias originalmente separadas e diferentes quanto à sua essên­
cia, pelo menos permanece fiel a si mesmo, segundo Pompo­
nazzi, quanto à rigidez de seu dualismo metafisico. Ele não
228 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

concebe a "união" entre corpo e alma como correlação, como


uma relação íntima e essencial, posto que considera a alma um
princípio motriz exterior. Por conseguinte, a unidade entre
"corpo" e "espírito", entre "sensibilidade" e "intelecto", que
cremos experimentar de forma direta na autoconsciência do
homem, por certo é explicada fundamentalmente como ilusão :
ela não seria diferente, por exemplo, da relação que existe en­
tre o boi e o arado. Mas como um adepto do aristotelismo po­
deria dar-se por satisfeito com uma tal unidade, uma vez que
- segundo a definição clássica de Aristóteles - a alma não é
outra coisa senão a realidade, a entelechie do próprio corpo?
Uma contradição se interpõe, portanto, entre essa explicação
e a suposição de que a alma é capaz de possuir um duplo modo
de ser: um que lhe é atribuído durante a vida terrestre e ou­
tro que ela possui depois da separação do corpo, como subs­
tância separada. Pois uma vez que a substância j amais se nos
revela em seu ser absoluto, em seu puro "em si", sendo-nos pos­
sível reconhecê-la apenas em suas operações, em seu modo
de atuação, segue-se daí que não podemos atribuir a uma úni­
ca e mesma substância duas formas díspares de ação, comple­
tamente diferentes uma da outra. Portanto, se atribuímos à al­
ma, além do tipo de ação empiricamente condicionado e em­
piricamente conhecido que ela possui como "forma do corpo",
um outro tipo de ação que ela fosse capaz de desenvolver in­
dependentemente deste último, não nos restaria outra coisa
senão uma identidade meramente verbal, em lugar da preten­
dida identidade real da alma. O que fazemos é estabelecer
duas substâncias, duas essências diferentes do ponto de vista
conceituai e definitório, às quais, não obstante, atribuimos ar­
bitrariamente o mesmo nome. E esta é justamente a deficiên­
cia fundamental da doutrina tomista. São Tomás de Aquino
não pode deixar de reconhecer o fundamento epistemológico
da doutrina de Aristóteles. Como Aristóteles, ele também se
apóia sobre o princípio de que nenhum pensamento, nenhum
exercício de qualquer função puramente intelectual é possí-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 229

vel , sem que tal pensamento se refira de alguma forma a re­


presentações do mundo sensível. O ato mediato, "represen­
tativo" de pensar precisa sempre do apoio de algo que se dá
de imediato, que se faz presente à consciência sem mediação;
e esta presença corresponde unicamente aos "fantasmas", às
imagens da percepção e à força de imaginação dos sentidos.
Contudo, essa conseqüência necessária do ponto de vista da
teoria do conhecimento é negada e anulada pelo metafisico
Tomás de Aquino. Desprender a alma do corpo significa pri­
vá-la do único substrato no qual ela pode exercer suas funções.
E, não obstante, essa mudança nos pressupostos de se pensar
a alma não deve significar a supressão deste pensar; deve, is­
so sim, refundi-lo numa forma nova, radicalmente diferente
da precedente. Uma tal forma, porém, é inventada, e não ex­
perimentada; e não há possibilidade alguma de se poder expe­
rimentá-la em qualquer sentido que seja. De nada vale recor­
rer aqui a instrumentos empíricos : não mais nos encontramos
no âmbito da análise psicológica ou lógica, mas no terreno
vazio da especulação. Aristóteles, o analítico e psicólogo, em
momento algum reconhece uma tal transição de um modo de
ação da alma em outro que lhe sej a diametralmente oposto 1 3 :
visto que o conceito d e ser deve ser determinado segundo o
conceito de ação, tal transição na verdade não significaria ou­
tra coisa senão uma espécie de metamorfose mítica, tal co­
mo as encontramos nas fábulas de Ovídio14• A ruptura com a

1 3 . "Parece ridículo dizer CJUe a alma intelectiva ( . . . ) tem dois modos


de entender, a saber, um dependente e outro independente do corpo; assim,
parece ter então duas existências." "Nem foram encontrados por Aristóte­
les em lugar algum vários modos de conhecer, nem está de acordo com a
razão." Pomponazzi, De immortalitate animi ( 1 5 1 6), Cap . IV, IX.
14. Op. cit. , Cap. IX: "Dizer com efeito ( ... ) que esse mesmo enten­
dimento tem dois modos de conhecimento, a saber, um completamente sem
imagem e outro com imagem é metamorfosear a natureza humana em natu-
230 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

psicologia da Escolástica dificilmente poderia se processar


de forma mais flagrante do que esta. Toda a metafisica esco­
lástica da alma transforma-se agora em mera fábula da alma:
transforma-se numa ficção, incapaz de se fundamentar sobre
dados reais, sobre um critério e um signo "naturais". Quem
afirma e defende uma existência dupla da alma - uma no cor­
po e outra desprendida dele - teria de demonstrar dois tipos
de conhecimento especificamente diferentes, um que a rela­
ciona aos sentidos e outro que a desprende totalmente deles.
A observação dos fenômenos psíquicos, porém, não nos ofe­
rece qualquer prova de tal existência autônoma. E para a expli­
cação racional trata-se unicamente de interpretar e de "salvar"
esses fenômenos, não de supor arbitrariamente a existência de
um outro "mundo" e de um estado da alma correspondente a
este mundo que, observado de nosso ponto de vista, perma­
nece simplesmente transcendente e inconcebível. Aqui, a
"razão" não pode decidir de outra maneira, senão do modo
como o verdadeiro Ari stóteles, o Aristóteles corretamente
interpretado teria decidido. Para ambos, a alma humana é e
continua sendo a forma do corpo orgânico e, como tal, "mor­
tal por sua própria natureza" (simpliciter morta/is), ainda
que, num certo sentido - por ser capaz de voltar-se para o
geral através do individual, para o atemporal e o eterno atra­
vés do efêmero e sensível - possa ser chamada de "condicio­
nalmente imortal" (secundum quid immortalis) 15•

reza divina ( . . . ) Assim, a alma humana tornar-se-ia simplesmente divina


ao assumir o modo de agir dos seres divinos e nós admitiríamos as fábulas
de Ovídio, ou seja, a metamorfose de uma natureza noutra."
15. Para uma visão de conjunto, cf. também , além da obra De immor­
ta/itate animi, o comentário de Pomponazzi à obra De anima, de Aristóte­
les ( ed. por Ferri, Roma, 1 876). Para outras provas, cf. minha obra Das Er­
kenntnisproblem3, l, pp. 1 05 ss., bem como Douglas, The Phi/osophy and
Psychology ofPietro Pomponazzi, Caps. 4 e 5 .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 23 1

Aqui, tudo parece indicar que tais ponderações represen­


tam a oposição mais radical à doutrina da alma da Academia
de Florença; do mesmo modo, o tratado De immortalitate ani­
mi, de Pomponazzi, parece ser, em todos os seus pontos, o pó­
lo negativo da obra homônima de Ficino. Não obstante, para
além de tal oposição existe ainda um ponto comum no que res­
peita ao interesse sistemático. Ambos, Pomponazzi e Ficino,
lidam com o problema da individualidade; ambos tentam co­
locar o fenômeno do "eu" no centro da psicologia. Mas eles
perseguem esse obj etivo por caminhos totalmente distintos.
Para Ficino, a natureza puramente espiritual do homem é a
única capaz de transformá-lo num "ser autônomo" em sen­
tido estrito; a única capaz de elevá-lo para além da esfera
das meras coisas. A liberdade do homem, na qual se expres­
sa o seu verdadeiro eu, pressupõe a possibilidade de a alma
libertar-se do corpo . Para Pomponazzi, ao contrário, a indi­
vidualidade não deve ser afirmada de forma contrária à na­
tureza, mas deve ser deduzida e comprovada a partir dela. Pa­
ra ele, a individualidade não é uma prerrogativa do "espírito",
mas representa o caráter fundamental de toda a vida. "Vida"
não significa outra coisa senão a existência sob uma forma
individual e sob uma configuração inteiramente individual .
Assim como Ficino em sua luta pelo direito e pela singulari­
dade do eu individual recorre ao supranaturalismo e à trans­
cendência, Pomponazzi, por sua vez, recorre na mesma luta
ao naturalismo e à imanência. Para ele, tanto a razão derradei­
ra do individual quanto sua verdadeira j ustificativa residem
na própria natureza, e nãciem algo além dela: como exemplo
típico, como protótipo da "individualização" ele tem diante
dos olhos o corpo orgânico. Assim, é ao Aristóteles biólogo,
e não ao metafisico, que ele novamente rende suas homena­
gens ; o que Pomponazzi busca é uma doutrina da alma que,
por seu próprio princípio, não se distinga de uma doutrina do
232 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

corpo, mas represente, isso sim, seu prolongamento direto e


seu arremate final. A imagem do "mundo exterior" parece for­
mar a partir de si mesma a imagem do mundo "interior"; ao
mesmo tempo e inversamente, porém, a experiência funda­
mental da vida psíquica individual transformou-se na chave
para toda a natureza. Contudo, nem o caminho trilhado por
Ficino nem aquele seguido por Pomponazzi conduziram à
moderna concepção de natureza e à moderna visão da cons­
ciência de si. As verdadeiras fontes de tal visão nós as en­
contramos muito mais num movimento de idéias que, sem
subordinar o "sujeito" ao "objeto", nem o "objeto" ao "sujeito'',
busca de uma certa forma um novo equilíbrio ideal entre am­
bos. A fim de se estabelecer um tal equilíbrio, a fim de definir e
de consolidar - dentro de um novo conceito de natureza - um
novo conceito de intelecto e de espírito, seria necessário aban­
donar o caminho da metafisica e o da mera psicologia. Nem a
metafisica supranaturalista nem a psicologia naturalista, mas
sim a observação da natureza a partir da perspectiva da arte
e das ciências exatas alcançou esse obj etivo, criou um conceito
de necessidade e de legalidade natural, que não mais se opunha
à liberdade e à autonomia do espírito, mas que se transformara
em seu apoio e em sua confirmação mais segura.

A psicologia do Renascimento, em sua forma filosófico­


científica, mostra-nos apenas os primeiros passos daquele
enorme movimento intelectual, do qual brotaria o conceito
novo e mais profundo de "subj etividade". Ela própria ainda
não é capaz de abarcar e de formular em sua totalidade o no­
vo problema que aqui surge, pois não consegue visualizar
numa unidade verdadeira os dois momentos antagônicos que
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 233

l h e dão origem. A antiga luta entre o "espiritualismo" e o "na­


turalismo" não poderia ser decidida sobre este campo . Essen­
cialmente, os sistemas psicológicos dos primórdios do Renas­
cimento não têm outro mérito senão o de trazer à sua expressão
mais aguda tal oposição fundamental. Uma vez mais, o con­
ceito de "natureza" e o de "espírito" disputam o domínio sobre
a "alma" do homem. A doutrina teórica da alma permanece di­
vidida entre duas concepções básicas divergentes. Se envereda
pelo caminho do espiritualismo, como na Academia de Flo­
rença, ela chega ao ponto de ter de depreciar profundamente
o valor da natureza; se, como na psicologia de Pomponazzi,
concebe "alma" e "vida" como uma unidade, o espírito e as
funções éticas e intelectuais "superiores" acabam perdendo a
primazia. Assim, a visão de eternidade e de indestrutibilidade
do espírito tem de negar a natureza; a visão da singularidade e
da completude do complexo de relações naturais tem de negar
a imortalidade. E a razão derradeira para essa exclusão mútua
reside no fato de que tal oposição ainda é entendida a princí­
pio como puramente substancial . Enquanto "natureza" e "es­
pírito" são concebidos como duas "partes" do ser, a questão de
saber qual deles abarca o outro, e qual deles é pelo outro abar­
cado, continua sem resposta. Nessa disputa incessante, eles
transformam todo o espaço da realidade em palco de sua lu­
ta, por assim dizer. Em Telesio, o espírito transforma-se num
domínio especial da natureza, regido e movido por forças na­
turais gerais, as forças do calor e do frio; em Ficino, a natu­
reza transforma-se no grau mais baixo do ser, abaixo do reino
da graça, da escala da :Providentia e do Fatum. Para o natura­
lismo, o elemento espiritual constitui uma "província" isolada
do ser, que não deve ser vista como "um estado dentro de ou­
tro estado", mas que se encontra como que implantada no ema­
ranhado de suas leis universais; para o espiritualismo, enfim,
a natureza é o elo final na corrente que une o mundo da "for-
234 INDIVÍDUO E COSMOS NA flLOSOFIA DO RENASCIMENTO

ma" ao da "matéria" 1 6 • A investigação prossegue usando ima­


gens desse tipo, que, na verdade, são mais do que imagens, são
expressões típicas de uma forma básica comum de observa­
ção . A mudança desse cenário só se processa à medida que o
pressuposto, sob o qual repousam não apenas a psicologia es­
piritualista, mas também a psicologia naturalista do Renasci­
mento, começa a ser paulatinamente descartado; à medida que
a relação substancial e concreta entre "corpo" e "alma", entre
"natureza" e "espírito", é substituída por uma relação funcio­
nal . Mas a metafísica da época, por suas próprias forças, não
podia chegar nem dar forma a essa nova relação. Ela não te­
ria sido capaz de implodir a forma fundamental da Escolás­
tica, que continuava a surtir seus efeitos não apenas no espi­
ritualismo, mas também no naturalismo do Renascimento, se
não tivesse recebido um auxílio decisivo vindo de outra parte.
Tal auxílio lhe chega às mãos pela pesquisa exata e empírica,
por um lado, e pela teoria da arte, por outro. A união de ambos
representa um dos momentos mais marcantes e mais fecun­
dos de todo o processo de evolução das idéias do Renascimento.
A teoria do conhecimento natural e a teoria da criação artística

1 6. De um modo geral, também o humanismo não superou a ordenação


medieval escalonada e hierarquizada das ciências, que confere às ciências da
natureza o grau mais baixo. Assim, por exemplo, Salutati considera a jurispru­
dência mais elevada do que a medicina, pois aquela, tanto por sua base - o
conceito de aequitas (igualdade) -, quanto pela forma das leis, é um testemu­
nho direto da sabedoria divina, ao passo que esta, que se debruça sobre o que
nasce e morre, deve ser vista mais como uma arte do que como uma ciência. A
medicina não aspira ao bem, mas à verdade subordinada; ao servir-se de forma
puramente empírica da experientia et instrumenta (experiência e instrumen­
tos), ela cultiva unicamente a existência temporal, em vez de mover-se, atra­
vés da especulação, rumo às eternas causas das coisas. (Para maiores detalhes,
cf. Paul Joachimsen, Aus der Entwick/ung des italienischen Humanismus,
Histor. Zeitschrift, tomo 1 2 1 , 1 920, pp. 1 96 s.; cf. também Ernst Walser,
Poggius Florentinus, pp. 250 ss.)
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 235

não apenas indicam à filosofia u m novo caminho, como a pre­


cedem nesse novo caminho, ao conferirem um sentido novo à
legalidade da natureza. E, com isso, a questão fundamental da
"liberdade" e da "necessidade" entra numa nova fase. A teo­
ria da ciência assim como a teoria da arte do Renascimento não
poderiam passar ao largo dessa questão espiritual central da
época, e encontram para ela uma solução que está além das
oposições metafisicas da Escola. A antinomia de liberdade e
necessidade transforma-se em correlação. Com efeito, o traço
comum que une o mundo do conhecimento puro com o da cria­
ção artística reside no fato de em ambos reinar, ainda que de
maneira diferente, o tema da verdadeira produção intelectual ;
o fato d e eles, para usar a linguagem d e Kant, terem d e ir além
de uma forma de observação que meramente copia o observado
e se transformarem, enfim, em estrutura "arquitetônica" do cos­
mos. Quanto mais a ciência e a arte se conscientizam dessa sua
função formativa primordial tanto mais elas passam a interpre­
tar a lei que as rege como expressão de sua própria liberdade es­
sencial. Com isso, tanto o conceito de natureza quanto todo o
mundo dos obj etos ganham um novo significado . O "obj eto"
deixa de ser a mera oposição do eu, a outra face da moeda, por
assim dizer, e passa a ser aquilo a que se voltam todas as forças
produtivas, todas as forças verdadeiramente formadoras do eu;
passa a ser, enfim, a instância em que tais forças encontram sua
comprovação genuína e concreta. Na necessidade do obj eto, o
eu se reconhece a si mesmo, reconhece a força e a direção de sua
espontaneidade. Esse pensamento fundamental do idealismo fi­
losófico já fora compreendido em todo o seu rigor e em toda a
sua profundidade por Nicolau de Cusa. Contudo, não foi na es­
peculação abstrata, mas na nova forma do conhecimento cientí­
fico e na nova visão de arte que ele pôde repercutir verdadeira­
mente e experimentar uma realização plena de vida.
O primeiro testemunho da transformação decisiva do con­
ceito de natureza não deve ser procurado, por certo, na teoria
236 INDIVIDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMEN1V

pura, possa ela versar sobre problemas filosóficos, científicos


ou artísticos; tal testemunho se encontra, isso sim, nas modi­
ficações sofridas pelo sentimento de natureza a partir do séc.
XIII. Primeiramente, a poesia de Petrarca rompe o laço que
mantinha a natureza aprisionada à visão dogmático-medieval.
Dela são abolidos todo e qualquer elemento estranho, demo­
níaco e sinistro, pois a atmosfera lírica não vê na natureza a
oposição à realidade da alma, mas sente por toda a parte os
vestígios e os ecos da alma. Assim, para Petrarca, a paisagem
se transforma em espelho do eu. E nisso reside, evidentemente,
não apenas uma libertação do sentimento de natureza, mas
também uma limitação, pois justamente nessa sua função de
refletir o espiritual, a própria natureza possui uma realidade
apenas mediata e, por assim dizer, refletida. Não se busca
nem se representa a natureza em função dela própria; seu va­
lor reside no fato de que o homem moderno encontrou nela um
novo meio de expressão para si mesmo, para a vivacidade e
para a infinita multiplicidade de facetas de seu próprio inte­
rior. As cartas de Petrarca revelam essa singular polaridade de
seu sentimento de natureza com uma clareza e uma consciên­
cia sem precedentes . Se para expressar sua vida interior ele
se sente impelido a representar a natureza, é justamente na
contemplação da natureza que ele encontra o caminho de volta
para si mesmo, para seu próprio eu. Para Petrarca, a paisa­
gem perde o seu valor autônomo e o seu significado próprio .
O sentimento d e natureza reduz-se uma vez mais à condição
de mero reflexo do desmedido sentimento do próprio eu: quid
enim habet locus ille gloriosius habitatore Francisco ? 1 7 (há,
pois, lugar mais glorioso para Francisco habitar?). As descri­
ções da natureza feitas por Petrarca revelam em todos os seus

1 7. Petrarca, Append. litt. epist. 6, ed. Fracassetti; cf. Voigt, Wie­


derbel. , d. klass. A ltert. 2, I, 1 1 3 .
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 237

traços e s s a duplicidade e e s s a peculiar oscilação. Mesmo na


mais célebre dessas descrições, na narrativa de sua subida ao
monte Ventoux, elas aparecem de forma inequívoca. A cena
característica é bem conhecida: Petrarca, depois de vencer di­
ficuldades indescritíveis, chega ao cimo da montanha; em
vez de contemplar a vista que se descortina diante de seus
olhos, ele se debruça sobre o livro, fiel companheiro de j or­
nada, e depara justamente com a passagem das Confissões
em que Santo Agostinho fala que os homens saem pelo mun­
do para admirar as altas montanhas, a vastidão das ondas do
mar e a traj etória dos astros, mas se esquecem de si mesmos 1 8 .
Esta passagem resume a típica oposição entre u m modo de
pensar e toda uma atmosfera. O ímpeto de se entregar à na­
tureza, o desejo de contemplá-la sem mediação, é refreado pela
advertência de Agostinho, que em tal entrega só vê o perigo
que ameaça a única e verdadeira relação imediata: a relação
da alma com Deus. Noliforas ire, in te ipsum redi, in interio­
re homine habitat veritas (Não vás para fora, entra em ti mes­
mo. É no interior do homem que habita a verdade) 1 9• Esta má­
xima de Santo Agostinho parece impedir qualquer acesso à
natureza, ao mundo da contemplação "exterior". Assim, o sen­
timento de natureza de Petrarca permanece, em última instân­
cia, na mesma tensão que é característica para todo o seu sen­
timento de mundo. Ele vê a natureza e o homem, o mundo e a
história envoltos por um nofo esplendor; esse mesmo esplen­
dor, porém, continua a se lhe mostrar como cegueira, como se­
dução. Ao livro que trata desse seu conflito interior, que traz
a confissão dessa "luta secreta dos tormentos de seu coração",
a este livro, que talvez se possa classificar como a primeira

1 8. Petrarca, Epistolaefamil. IV, 1 ; cf. a exposição de Burckhardt, Kult.


d. Ren. 8, II, 1 8 s.
1 9. Augustinus, De vera religione, Cap. 39.
238 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA D O RENASCIMENTO

representação da alma moderna e do homem moderno, ele


pôde dar o título genuinamente medieval de De contemptu
mundi. A atitude de Petrarca diante da natureza é a mesma ati­
tude que ele tem diante da vida no mundo e da fama que, pa­
ra ele, constitui o cerne da vida mundana: Petrarca sente-se
apaixonada e irresistivelmente atraído por elas, mas não pode
se lhes entregar incondicionalmente e de consciência tranqüila.
O que surge aqui, portanto, não é uma relação ingênua em fren­
te à natureza, mas uma relação absolutamente "sentimental":
a natureza não pode ser entendida, sentida ou desfrutada, se­
não como um pano de fundo obscuro ou luminoso do eu.
Quanto a esse ponto, o período seguinte - a época do
Quattrocento e do Cinquecento - teve de enveredar por um ca­
minho diferente . A tarefa que esse período abraçou primei­
ramente foi a de estabelecer o conceito de natureza e de lhe
assegurar um conteúdo sólido, estritamente "obj etivo". So­
mente depois de tal tarefa ter sido cumprida é que se poderia
e se teria de reformular a questão de saber de que forma esse
novo domínio autônomo se comportaria em relação ao mundo
da "consciência" e do "espírito". E, novamente, o que se bus­
ca é uma "correspondência", uma "harmonia" entre esses dois
mundos. Tal harmonia, porém, pressupõe agora a autonomia
e a determinação independente dos dois termos que entram em
relação . Tanto na história da filosofia quanto na da cultura e
na das idéias, é opinião dominante até os nossos dias, e de for­
ma quase incontestável, o fato de o Renascimento ter desco­
berto e conquistado a legitimidade própria da natureza pela via
da observação direta, empírico-sensível. Num dos capítulos
mais brilhantes de sua obra, Burckhardt retratou essa "des­
coberta progressiva do mundo" . Em vez de simplesmente
relacionar as formas do mundo ao homem, parecia suficien­
te percebê-las em sua pura obj etividade, aceitá-las segundo
sua simples determinação sensível, descrevê-las e ordená-las
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 239

de acordo com tal determinação, para se chegar, assim, a uma


nova imagem da realidade, entendida esta como realidade da
experiência. Tentativas de se consolidar urna tal forma de obser­
vação surgem por toda a parte na Itália dos sécs. XIV e XV e
vão ganhando força e amplitude com o passar do tempo. O vo­
lume do material a ser observado, do qual resulta a nova ima­
gem do mundo, cresce de maneira espantosa; com nitidez cada
vez maior se vão destacando os grandes traços dessa imagem
e se vão distinguindo os pequenos e os menores contornos do
detalhe . E do anseio por uma visão própria das coisas surge o
anseio correspondente pela descrição e pela ordenação siste­
máticas. O senso de colecionar, que desde cedo leva à consti­
tuição de j ardins botânicos e zoológicos, assenta ao mesmo
tempo a pedra fundamental para uma nova e exata forma de
descrever a natureza. A obra de Cesalpino, De plantis ( 1 5 3 8),
abre o caminho para uma nova botânica científica, ao tentar
estabelecer pela primeira vez um "sistema natural" do mun­
do vegetal. Também a filosofia da natureza do Renascimento
parece enveredar a princípio por essa via puramente empírica.
Telesio, como mais tarde o faria Bacon, também postula que
a natureza não sej a vista por meio das categorias aristotélicas
abstratas, mas que sej a conhecida a partir dela mesma, que se­
j a pesquisada de acordo com seus próprios princípios (juxta
propria principia). Tais princípios próprios não estão nos con­
ceitos lógicos de "forma" e "matéria", de "atualidade" e "po­
tencialidade", de "realidade" e "privação", mas devem ser pro­
curados em fenômenos naturais concretos, constantes e in­
variáveis. Como fenômenos primordiais, passíveis de serem
compreendidos pela via da observação sensível e direta, Te­
lesio elege as forças fundamentais do calor e do frio. Ao man­
terem-se em equilíbrio recíproco, ao imprimirem sucessiva­
mente diferentes formas à matéria - que não deve ser pensada
aqui como sujeito meramente lógico da transformação, mas
240 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOflA DO RENASCIMENTO

como seu substrato tisico real -, tais forças geram toda a di­
versidade do acontecer. Tal diversidade, por outro lado, justa­
mente por remeter a esta tríade de princípios, é reconhecida
ao mesmo tempo como unidade suj eita a leis rígidas. A per­
cepção sensível, porém, é meio básico decisivo desse conhe­
cimento proclamado por Telesio ao longo de toda a sua obra.
Ela deve preceder todo o trabalho do intelecto, toda ordena­
ção e comparação racionais dos fatos isolados, pois só ela é
capaz de estabelecer o contato entre "sujeito" e "obj eto", en­
tre conhecimento e realidade . Tanto o sistema da natureza
quanto o sistema do conhecimento de Telesio entendem esse
contato num sentido absolutamente literal. Toda compreensão
racional de um objeto pressupõe o contato com ele através dos
sentidos, pois não há outra forma de tomarmos consciência
de um obj eto, senão sofrendo a ação que tal objeto exerce so­
bre nós; senão à medida que tal obj eto se nos penetra através
dessa ação . O que chamamos de "espírito" é uma substância
móvel, determinada e modificada nessa sua dinâmica por in­
fluências externas; aqui, cada percepção sensível representa
um tipo específico dessas modificações. O que difere é o tipo
de propagação do impulso inicial, que é co-determinado pela
natureza do meio que serve de suporte a essa propagação. Nas
sensações visuais, as forças do calor e do frio são transporta­
das por meio da luz; nas sensações auditivas, pelo ar que tam­
bém serve de veículo às sensações olfativas. Mas visto que
toda essa propagação indireta deve culminar num contato di­
reto, o tato transforma-se para Telesio no sentido de todos os
sentidos. Mesmo as funções mentais "superiores" são redutí­
veis a ele, em última análise; todo o nosso pensar e todo o nos­
so raciocínio também representam um "tatear à distância". Isso
porque o ato de deduzir racionalmente não consiste de outra
coisa, senão do fato de o espírito não apenas receber as im­
pressões vindas de fora, as modificações do frio e do calor,
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 24 1

mas também de guardá-las dentro de si; consiste, enfim, do


fato de o espírito ser capaz de, sob certas condições, renovar
em si mesmo um estado de movimento que um dia foi produ­
zido nele por uma influência externa. Assim, o espírito chega
a uma repetição de impressões passadas e, com isso, a uma es­
pécie de união entre seu estado presente e seu estado passado,
o que inclusive o habilita a avançar para o futuro, antecipan­
do impressões que ainda estão por vir. Essa forma de retornar
ao que já passou e de avançar para o que está por vir é o que
costumamos chamar de força reflexiva do pensamento, de for­
ça do "deduzir racionalmente". O que se manifesta aqui, po­
rém, não é uma força autônoma, desprendida de um "intelecto
ativo" independente ; o que temos aqui nada mais é do que a
continuação mecânica, por assim dizer, dos movimentos que
um dia atuaram sobre nós. Ao dizer que a memória procede
dos sentidos, a experiência procede da memória e o conheci­
mento procede da experiência, Aristóteles reconhece impli­
citamente essa relação fundamental entre as diferentes funções
mentais e sua ação conjunta na constituição do saber, ainda
que em sua doutrina do vouç [noils] (intelecto) ele tenha nega­
do explicitamente tal relação. Na verdade, entre sentir e re­
presentar, entre representar e recordar-se e entre recordar-se e
saber só pode haver zonas fluidas, não divisões estanques; o
próprio intelecto não passa de um sentido mediato e derivado
que, justamente por essa sua condição, permanece necessa­
riamente imperfeito e é uma espécie de sombra, de analogia,
de símbolo das qualidades reais da impressão2º.
Assim, o naturalismo do Renascimento, quando se ma­
nifesta primeiramente como sistema fechado, parece tomar
uma direção estritamente empírica e sensualista. Toda a sua

20. Telesio, De rerum natura juxta propria principia; cf. esp. Lib. VIII,
Caps. 3 e 1 1 . Ed. de Nápoles, 1 5 87, foi. 3 1 4 s., 326 s.
242 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

fundamentação parece consistir do fato de ele eleger a obser­


vação empírica como o único norte de sua bússola e de excluir
da imagem da natureza tudo o que não se apóie sobre o teste­
munho direto da percepção sensível. E não obstante, quando
acompanhamos a influênc ia exercida posteriormente pelas
idéias de Telesio no interior da filosofia da natureza do Renas­
cimento, percebemos desde logo uma curiosa reviravolta. Os
primeiros sucessores de Telesio, os homens que se conside­
ram seus discípulos diretos, já abandonam o caminho da obser­
vação exata da natureza e o método do conhecimento estri­
tamente descritivo. A diretriz fundamental do pensamento de
Telesio não se volta apenas contra a explicação aristotélico­
escolástica da natureza, mas também, e com igual determina­
ção, contra as ciências ocultas. Quando postula a explicação
da natureza "a partir de seus próprios princípios", Telesio re­
futa, ao mesmo tempo, as ciências ocultas da astrologia e da
magia. Mas essa autonomia da ciência empírica, nem bem pa­
rece ter sido alcançada, é novamente abandonada. A filosofi a
da natureza do Renascimento em momento algum consegue
tirar de seu caminho a pedra da magia. Nas obras de Giorda­
no Bruno, os problemas da "magia natural" adquirem uma am­
plitude tal, que constantemente ameaçam sufocar as questões
especulativo-filosóficas. E Campanella, que mais se aproxi­
ma de Telesio nas diretrizes de sua doutrina da natureza e de
sua doutrina do conhecimento, ainda pode dar à sua obra ca­
pital sobre a filosofia da natureza o título de De sensu rerum
et magia. Podemos ver, assim, que o "empirismo" que se anun­
cia e se formula aqui não possui, por si só, a força necessá­
ria nem para se transformar num sistema da "experiência pu­
ra" nem para se libertar de todo e qualquer componente fan­
tástico. Por toda a parte, ele se converte abruptamente em seu
oposto, isto é, em teosofia e mística. Não há uma via direta que
leve do conceito de natureza de Telesio ao da ciência moder­
na. Campanella estava enganado ao achar que, como repre-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 243

sentante dos princípios telesianos, podia apresentar-se tam­


bém como apologista de Galileu2 1 • Isso porque é exatamente
aqui que se revela com absoluta nitidez a linha divisória en­
tre os métodos do conhecimento da natureza. O caminho de
Leonardo e de Galileu, que busca na experiência a "razão", a
ragioni do real , separa-se clara e estanquemente do caminho
trilhado pelas doutrinas sensualistas da natureza. Se aquele
inclina-se de forma cada vez mais clara e dec idida em dire­
ção ao idealismo matemático, este retorna sempre às formas
primitivas do animismo . E tal mudança não ocorre por acaso
nem significa um mero retrocesso histórico; seus fundamen­
tos não estão nos sentimentos e paixões obscuros que desper­
tam no homem o desej o de dominar a natureza, mas sim nos
pressupostos teóricos gerais da filosofia da natureza italiana.
"Conhecer" uma coisa - este é o princípio comum do qual ela
sempre parte - significa comungar com ela numa unidade. Tal
unidade, porém, só é possível quando sujeito e obj eto, quan­
do conhecedor e conhecido são de mesma natureza, quando
são membros e partes de um único e mesmo complexo de vi­
da. Toda percepção sensível constitui um tal ato de fusão e de
reunião. O objeto só é percebido, só é entendido em sua essên­
cia genuína e própria quando experimentamos nele a mesma
vida, o mesmo tipo de movimento e de animação que se nos
dão e se nos apresentam diretamente na experiência de nosso
próprio eu. De modo que o pan-psiquismo se revela como sim­
ples corolário da teoria do conhecimento, assim como - inver­
samente - a te6ria do conhecimento carrega, desde os seus pri­
mórdios, a cor do pan-psiquismo. Essa relação é tão estreita, que
Patrizzi chegou a anexar a exposição de sua teoria do conheci­
mento a uma obra à qual deu o título de Panpsychia. Nela, o

2 1 . Cf. Campanella, Apologia pro Galileo mathematico .florentino.


Frankfurt, 1 622.
244 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

que Patrizzi reprova em Aristóteles é o fato de ele ter desen­


volvido pela metade o pensamento fundamental do pan-psi­
quismo, de ter transformado o mundo num monstro ao consi­
derar animado apenas o mundo celeste dos astros e inanimado
todo o mais. Na verdade, porém, a unidade da vida desconhece
tais separações e limitações; a vida está contida, inteira e in­
divisa, em tudo o que, aparentemente, sej a meramente mate­
rial ; ela pulsa tanto no máximo quanto no mínimo, tanto no
superior quanto no inferior, tanto nos astros quanto nos ele­
mentos simples . Pois todo ser verdadeiro e todo valor real só
convêm ao animado: os elementos estariam privados de ambas
as coisas, se lhes fosse negada uma vida própria22• A teoria do
conhecimento de Telesio tenta comprovar a unidade entre in­
telecto e sensibilidade lançando as raízes de todas as funções
do pensamento e da dedução "racional" sobre a função única
da construção de analogias : intellectionis cujusvis principium
similitudo est sensu precepta23 (o princípio de toda intelec­
ção é a similitude percebida pelos sentidos). Ao atribuir uma
infra-estrutura de certa forma metafisica a tal tipo de constru­
ção de analogias, o que se tenta agora é determiná-la mais pre­
cisamente. A conclusão teórica por "analogia" tem suas raízes
na comunhão primordial e essencial de todos os seres, e não
teria qualquer consistência sem ela. Toda compreensão, toda
conclusão mediadora reduz-se, em última análise, a um ato ori­
ginal de comunhão de sentimentos, no qual nos asseguramos
da comunidade que nos une a todo o ser. Também a doutrina da
natureza de Cardan é totalmente dominada por tais jogos ana­
lógicos do pensamento, que querem ser mais do que simples

22. Cf. Franciscus Patritius, Panpsychia (Novae de universis Philo­


sophiae tomus Ili), Ferrariae, 1 59 1 , Lib. IV, foi. 54 ss.
23. Telesio, De rerum natura, VIII, 3 ; para maiores detalhes acerca da
teoria do conhecimento de Telesio, cf. Erkenntnisproblem3, 1, 232 ss.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 245

j ogos, que querem ser uma compreensão intuitiva imediata das


relações da natureza. Para ele, os metais não passam de "plan­
tas enterradas", cuj a vida se desenvolve no mundo subterrâ­
neo; as pedras têm sua evolução, seu crescimento e sua ma­
turidade24. Tal concepção não apenas tolera a magia, como
também a postula; é na magia que ela reconhece a verdadei­
ra realização de toda a ciência da natureza. Quando Pico della
Mirando la, em suas 900 teses e na Apologia que escreveu em
defesa dessas teses contra a acusação de heresia, define a ma­
gia como a soma de toda a sabedoria da natureza e como a par­
te prática de toda a ciência da natureza, ele não faz outra coisa
senão expressar a convicção básica comum da filosofia da na­
tureza do Renascimento. Para ela, a magia nada mais é do que
o lado ativo do conhecimento da natureza: o que esta reconhe­
ce teoricamente como aparentado, como pertencente a um
todo, aquela reúne e relaciona na prática e conduz a um fim
comum. Desse modo, a magia mesma não opera milagres, mas
sustenta, na condição de serva diligente, as forças da nature­
za atuante. "Ela investiga o conjunto de relações do universo,
que os gregos chamam de ' simpatia' ; ela penetra no entendi­
mento da essência de todas as coisas, extrai do seio da terra e
de suas reservas secretas maravilhas ocultas e as traz à luz co­
mo se ela própria as tivesse criado. Assim como o lavrador
celebra a união entre o olmo e a videira, também o mago en­
laça'f éu e terra e põe em contato o mundo inferior com as for­
ças do mundo superior."25 . A magia pode ser reconhecida aqui

24. Cardanus, De subtilitate libri XXI . Basiléia, 1 5 54, Lib. V, foi.


1 52 : "Pode-se também depreender deste argumento que os metais vivem e
que nas montanhas eles nascem como plantas, com largos ramos, raízes e
troncos e tipos de flores e frutos, se bem que o metal ou a substância metá­
lica não seja senão uma planta sepultada."
2 5 . Pico della Mirandola, Apologia, Opera, foi. 1 70 s.; cf. particular­
mente o discurso De hominis dignitate, ibid. , foi. 327 s.
246 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

em toda a sua amplitude, sob a condição sine qua non de que


a razão de sua atividade não pode mais ser buscada fora ou
acima da natureza, mas no interior dela mesma. O que atri­
bui uma direção e estabelece um objetivo para toda a atividade
mágica não é a intervenção de poderes demoníacos, mas a
observação do decurso mesmo dos acontecimentos e da lei
que lhe é inerente . É nesse sentido que Giambattista Porta
estabelece o conceito de magia em sua obra sobre a "magia
natural". A natureza, menos do que obj eto da magia, é seu
sujeito : graças à atração entre iguais e à repulsa entre desi­
guais, que nela reinam, a natureza é origem e germe de to­
da força mágica26• Em seu tratado De sensu rerum et magia,
Campanella se confraterniza com essas idéias fundamentais
de Porta; contudo, enquanto Porta parte do simples fato do
OÚµ7tVOla IDV'ta [sympnoia pánta] (tudo conspira), do "fa­
to" da simpatia universal, Campanella tenta reduzir tal fato à
sua "razão" especulativa. E assim, numa mistura paradoxal de
temas, que é característica para a fi losofia do Renascimento,
ele se transforma no fundador do método racional da magia.
O próprio Campanella declara expressamente que sua tarefa
consiste em reduzir às suas úl timas causas a magia natural,
que Porta estabelecera em sua obra de cunho histórico como
um conjunto de fatos determinados, e assim conferir-lhe uma
forma verdadeiramente rac ional27. Enquanto a obra de Porta
mergulha na profusão de analogias que existem entre macro­
cosmos e microcosmos, entre o mundo dos homens e o dos
elementos, das plantas e dos animais, Campanella pretende

26. Joh. Baptista Porta, Magiae natura/is lihri viginti, Lib. l, Cap. 2 .
2 7 . Campanella, De sensu rerum e t magia, ed. Tob. Adami, Frankfurt,
1 620, Lib. IV, Cap. 1, p. 260: "O muito esforçado Porta tentou por duas ve­
zes ( . . . ) reviver essa ciência, mas somente de uma maneira histórica, não
extraindo causa alguma de suas proposições (eu ouvi dizer porém que ten­
do visto este meu livro, ele mesmo elabora uma magia racional )."
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 247

reduzir toda essa diversidade a um único princípio. Ele não se


contenta em tomar como fato tais concordâncias, mas indaga
pelo seu "porquê" e acredita tê-lo encontrado ao apontar co­
mo causa de todo vínculo, de toda semelhança e dessemelhan­
ça, de toda simpatia e antipatia, a faculdade da percepção sensí­
vel , que é própria de todas as partes do ser, qualquer que seja
a sua constituição peculiar, ainda que se manifeste numa gra­
dação diferente e que, justamente por isso, os una não de forma
meramente indireta, mas direta, não de forma meramente em­
pírica, mas a priori, por assim dizer. O sentir transforma-se
numa determinação ontológica, primordial à essência de todo
ser, além de toda e qualquer diferença individual e, portanto,
de toda separação dos elementos do ser entre si, de toda a sua
aparente disparidade. O sentir não nasce nem perece; ele não
se encontra apenas nas formações orgânicas individuais da
natureza, mas é comum a todas as suas formas, pois assim co­
mo nada pode ser no efeito que não tenha sido pré-formado na
causa, também do que é inanimado e desprovido de sentidos
nada pode resultar que possua sensação ou vida2s.
Não vamos nos deter aqui nas conseqüências metafisicas
às quais conduz essa doutrina no sistema de Campanella; nos­
so interesse pela sua consideração limita-se apenas às deter­
minações metodológicas que elas implicam. E nesse sentido
revela-se agora com toda a clareza que a inclinação à hetero­
geneidade do mundo sensível e fenomenológico e o esforço em
conpreendê-lo diretamente e de, num certo sentido, esgotá-lo,
não apenas criou o novo conceito de natureza, especificamen­
te moderno, como também o refreou e paralisou. Enquanto

28. Campanella, Universa/is philosophiae seu metuphysicarum rerum


juxta propria dogmata partes tres. Paris, 1 63 8 , P. 11, Lib. VI, Cap. 7; sobre
a relação entre Campanel la e Giambattista Porta cf. Fiorentino, Bernardi-

110 Telesio. Florença, 1 872 ss., li, pp. 1 23 ss.


248 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

certos critérios da própria experiência não foram criados por


meio da matemática e dos novos instrumentos de pensamen­
to que dela resultaram, faltou ao empirismo do Renascimento
uma medida objetiva de valor e um princípio de escolha entre
as várias formas de observações que se lhe ofereciam. Os "fa­
tos" isolados se justapõem numa profusão ao mesmo tempo
rica e totalmente caótica do ponto de vista de uma regularidade.
O recurso à experiência de nada serve, visto que seu próprio
conceito ainda abarca elementos completamente heterogêneos.
A teoria da natureza dos sécs. XV e XVI lança a pedra funda­
mental para a descrição e a experimentação exatas; lado a lado
com elas, porém, convivem as tentativas de uma fundamenta­
ção para a "magia empírica". Pois justamente o que diferencia
a magia "natural" da "demoníaca"29 é o fato de esta repousar
sobre a suposição de forças supranaturais, e aquela, ao pre­
tender manter-se no domínio da natureza e de sua uniformi­
dade empírica, não lançar mão de outros métodos do que a
observação e a comparação indutiva dos fenômenos. Essa for­
ma de "indução", porém, ainda não conhece as limitações que
lhe impõem os pontos de vista da análise crítica, pressupostos
fundamentais de todo e qualquer "experimento" verdadeiro.
Dessa forma, o mundo da experiência não apenas se avizinha
do mundo do milagre, como ambos se sobrepõem e se inter­
penetram sem cessar. Toda a atmosfera dessa "ciência" da na-

29. Essa distinção entre magia "natural" e "demoníaca" perpassa to­


da a filosofia do Renascimento. Ela se encontra, por exemplo, nas 900 te­
ses de Pico della Mirandola e em sua Apologia, na obra De vila triplici, de
Ficino, e na obra De admirandorum �ffectu11m causis sive de incantationi­
b11s (Lib. 1, Cap. 5, p. 74), de Pomponazzi : "A magia natural, ninguém du­
vida, é em si uma verdadeira ciência eficaz, subordinada à filosofia natural
e à astrologia, como a medicina e muitas outras ciências; e em si ela é boa
e é a perfeição do entendimento ( . . . ) e deste fato, ela não toma mau, de mo­
do algum, o homem que a possui."
:1 PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 249

tureza está plena e saturada de milagres. Giambattista Porta


é enaltecido por Kepler como o inventor do telescópio; se tal
atribuição procede ou não, fato é que ele prestou uma inesti­
mável contribuição ao estabelecimento das bases da ótica cien­
tífica. De outra parte, porém, o mesmo Porta também é o funda­
dor da Accademia dei Secreti, em Nápoles, que se transformou
no primeiro grande centro compilador das ciências "ocultas".
Colecionador e pesquisador incansável, Porta conseguiu reu­
nir em longas viagens que realizou por toda a Itália, França e
Espanha tudo o que se referia ao estudo das forças secretas da
natureza e não mediu esforços para ampliar e enriquecer o
compêndio de magia natural que já havia escrito aos quinze
anos de idade . Aqui, como mais tarde em Campanella, o em­
pirismo não conduz, portanto, à refutação da magia, mas sim
à sua codificação. Para os que concebiam a experiência como
mero agregado, para os que - como Campanella - a definiam
como experimentorum multorum coacervatio (acúmulo de nu­
merosas experimentações), não havia qualquer seleção de seus
elementos componentes, qualquer avaliação do detalhe para
a estruturação sistemática da "natureza". Tal avaliação sele­
tiva não poderia ocorrer antes que se chegasse, de outra par­
te, a uma divisão de seus elementos fundamentais, antes que
se instaurasse na experiência mesma uma crise interna. Tal di­
visão, que separa o "necessário" do "casual", o regular do ar­
bitrário e fantástico, não foi operada pelo empirismo e pelo
sensualismo da filosofia da natureza, mas pelo intelectualis­
mo da matemática. E não obstante, não foram temas de natu­
reza puramente intelectual os únicos a atuarem nessa disputa
de forças e a acabarem por decidi-la; nesse caso - e isso é ca­
racterístico e decisivo para a imagem global do mundo espi­
ritual do Renascimento - a lógica da matemática caminha de
mãos dadas com a teoria da arte. Somente a partir dessa união
e dessa aliança é que surge o novo conceito da "necessidade"
da natureza. Matemática e arte unem-se aqui em tomo da mes-
250 INDIVÍDUO J:: COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ma exigência fundamental : a exigência da "forma". Essa ta­


refa comum torna fluida toda e qualquer divisão estanque en­
tre a teoria da arte e a da ciência. Nesse sentido, Leonardo da
Vinci pode referir-se diretamente a Nicolau de Cusa; e Gali­
leu Galilei, numa célebre passagem dos diálogos sobre os dois
grandes sistemas do mundo, pode se basear em Michelange­
lo, Rafael e Ticiano para demonstrar sua concepção do intelecto
humano e o papel que lhe cabe na estruturação da ciência ex­
perimental30. O que se produz aqui é uma nova síntese no in­
terior do mundo do espírito e, em decorrência dela, uma nova
correlação entre "suj eito" e "obj eto" : a reflexão sobre a liber­
dade do homem, sobre sua força criativa primordial, exige por
seu complemento e comprovação o conceito da "necessidade"
imanente do obj eto natural.
Esse processo duplo aparece com toda a clareza nos ma­
nuscritos de Leonardo da Vinci . Os apontamentos de Leo­
nardo são perpassados pela luta incessante contra as ciências
"énganosas", que adulam o homem com falsas esperanças, que
o iludem, fazendo-o crer no seu domínio direto sobre a natu­
reza e sobre suas forças sec retas. O que ele censura nessas
ciências é o fato de elas desprezarem o verdadeiro caminho da
mediação, o único meio autêntico de se chegar ao conhecimen­
to da natureza, que está na matemática. "Quem desaprova a
sabedoria suprema da matemática, nutre-se de confusão e j a­
mais poderá impor si lêncio às contradições das ciências sofis­
ticas, das quais nada se aprende a não ser uma eterna alga­
zarra."3 1 Com essas palavras, Leonardo da Vinci divorcia-se
para sempre dos "espíritos exaltados" da fi losofia da nature-

30. Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo. Ed. Na­
zionale VII, pp. 1 29 s.
3 1 . The Literary Works ofLeonardo da Vinci, ed. por Jean Paul Richter,
2 vol . , Londres, 1 883, n? 1 1 57 .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO

za, dos vagabundi ingegni, como ele próprio os chama. Ainda


que estes aparentemente se lancem à conquista de obj etivos
os mais elevados e penetrem nas razões mais profundas da na­
tureza, a grandeza do obj eto de sua ciência, contudo, nunca
deve iludir sobre a incerteza do fundamento desse saber. "Tu,
porém, que vives de sonhos : a ti te aprazem mais as razões
sofistas e as vigarices dos que se j ulgam versados nas coisas
grandes e incertas do que as coisas certas e naturais, que não
são de tal envergadura."32 Agora, de um só golpe, estava alte­
rada a escala de valor que determinava a posição de cada ciên­
cia no sistema medieval. Recordemo-nos que ainda em Salutati
a jurisprudência ocupava uma posi ção mais elevada do que a
medicina, porque lidava com a lei - com algo espiritual e di­
vino, portanto -, enquanto a medicina, como toda a ciência da
natureza, ocupava-se tão-somente das coisas materiais, infe­
riores. Nos curamus temporalia - diz a Medicina na obra De
nobilitate legum et medicinae, de Salutati sed leges aeter­
-

na, ego de terra creata sum, /ex vero de mente divina (Nós
tratamos de coisas temporais, o Direito de coisas eternas; eu
sou criada da terra, o Direito vem da mente divina). As leis
são "mais necessárias do que a medicina", e tanto isso é ver­
dade que elas provêm de Deus33. Agora, porém, eram criados
um novo conceito e uma nova norma de necessidade, que não
mais dependem da elevação e da dignidade do objeto do saber,
e si nl'da forma do saber, da qualidade específica da certeza.
Esta certezza (certeza) transforma-se no único e verdadeiro
fundamentum divisionis ( fundamento da divisão). E com is­
so, a matemática transforma-se no foco do conhecimento, pois
só há certeza onde se pode aplicar uma das ciências matemá-

3 2 . Leonardo da Vinci (Richter), n? 1 1 68 .


3 3 . Vide nota 1 6, p. 2 3 4 deste livro; cf. esp. Walser, Poggius Floren­
ti11us, pp. 250 s.
252 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

ticas ou onde o obj eto da questão pode ser discutido à luz de


princípios matemáticos34• A passagem pela forma da demons­
tração matemática transforma-se em condição sine qua non
de toda a verdadeira ciência: nessuna investigazione si po '
dimandare vera scienza, s 'essa non passa per le mathemati­
che dimostrazioni35 (nenhuma investigação pode arrogar-se
vhdadeira ciência se não passa pelas demonstrações mate­
máticas). É bem verdade que, por mais firmeza que possa ha­
ver na formulação deste princípio, um rápido exame de todos
os apontamentos de Leonardo pode nos dar a impressão de
que seu pensamento, no tocante ao verdadeiro fundamento me­
todológico do conhecimento natural, oscila entre duas deter­
minações opostas. Pois ora é a matemática, ora a "experiên­
cia" que aparece aqui como princ ípio básico. A sabedoria é
filha da experiência; o experimento é o único intérprete ver­
dadeiro entre a natureza artificiosa e a espécie humana36. O
erro, portanto, não tem suas raízes na experiência, nos dados
dos sentidos, mas sim e tão-somente na reflexão, no julgamen­
to falso que fazemos deles. Assim, é sem razão que as pessoas
se queixam da experiência e lhe imputam a culpa de ser enga­
nosa. "Mas deixai em paz a experiência e volvei tais lamen­
tações contra vossa própria ignorância, que faz com que vos
precipiteis, com vossos desejos füteis e insensatos, em vos pro­
meter coisas que estão fora de seu alcance."3 7 Contudo, esta
frase não reconhece um segundo princípio da certeza, que es­
taria ao lado ou mesmo acima da matemática, pois decisivo
aqui é o fato de não mais existir, para Leonardo, um dualismo

34. les manuscrits de léonard de Vinci, publ. por Charles Ravais-


son-Mollien, G. foi. 96, verso.
3 5 . Trattato dei/a pittura, ed. Ludwig, Leipzig, 1 882, l, 3 3 .
36. II codice A tlantico di l. da Vinci. Milão, 1 894, foi. 86•.
37. lbid. ( Codex A tlanticus), foi. 1 54•.
.1 PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 253

entre o abstrato e o concreto, entre a "razão" e a "experiên­


c ia". Ambos os momentos estão inter-relacionados e são in­
terdependentes : a experiência só se completa na matemática,
assim como a matemática só "produz seus frutos" na expe­
riência. Nesse ponto não há qualquer competitividade, muito
menos um conflito : trata-se, antes, de uma relação puramen­
te complementar. De fato, não existe experiência verdadeira
sem a análise dos fenômenos, sem a redução do dado e do
complexo a suas condições básicas; e não há outra forma de
se proceder a essa análise do que a demonstração e o cálculo
matemáticos. O que chamamos de mundo dos fatos nada mais
é do que uma trama de "princípios racionais'', de elementos
de determinação que, no ser e no acontecer concretos, se en­
trelaçam e se sobrepõem de infinitas maneiras e que só pela
força do pensamento podem ser separados uns dos outros e
apresentados individualmente em sua importância e valor. O
próprio experimento tem seu valor específico no fato de pos­
sibilitar essa anál i se, de tornar visível cada um dos fatores
que intervêm num evento complexo e de acompanhar, em se­
parado, a ação de cada um deles. Assim, usando a linguagem
de Ari stóteles, a experiência é apenas npótEpov npõçfiµãç
[próteron pràs hemâs] (primeiro para nós), ao passo que o
princípio racional matemático, sobre o qual ela se baseia, per­
manece sendo npótEpov ti'\ qn)cret [próteron tê physei] (pri­
meiro na natureza). E não há dúvida de que o que a experiên­
cia nos mostra, o que o mundo dos fenômenos efetivamente
nos revela, constitui sempre um fragmento, sempre um recor­
te finito do domínio infinitamente diversificado em si dos prin­
cípios racionais . A natureza oculta em si uma infinidade de
princípios que j amais penetraram no fenômeno sensível38• Es­
te é, portanto, o verdadeiro caminho da pesquisa: mediante

3 8 . Litterary Works (Richter), n? 1 1 5 1 .


254 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

uma relação constante entre a experiência e a matemática, re­


duzir o volume oscilante de eventos a uma medida determina­
da e a uma regra fixa; transformar, enfim, o casual e empíri­
co em necessário e regular. Chega-se, assim, a um critério que
a filosofia da natureza do Renascimento não fora capaz de for­
mular; estabelece-se, assim, uma divisão rígida entre a dire­
ção metodológica da experiência e a mera "especulação"39•
Ficam estabelecidas as regras que diferenciam o verdadeiro do
falso, que separam o que pode ser alcançado cientificamen­
te do impossível e do fantástico. O homem compreende ago­
ra o obj etivo do seu saber, assim como os limites desse saber.
Não mais o envolve o véu da incerteza, que não produz outra
conseqüência senão um entregar-se desesperado ao ceticismo
em face da impossibilidade de se alcançar qualquer resultado40.
Quando nos perguntamos sobre a contribuição de Leo­
nardo da Vinci para a fundação das ciências exatas, costuma­
mos partir dos resultados isolados da estática e da dinâmica
modernas que ele antecipou em seus apontamentos. E de fa­
to, neles encontram-se dispersos vários indícios que preconi­
zam os princípios fundamentais da teoria do movimento de
Galileu. Tais indícios referem-se tanto às leis da inércia quanto
ao princípio da igualdade de ação e reação, ao problema do
paralelogramo de forças e de velocidades, ao princípio da ala­
vanca e ao princípio que Lagrange formulou mais tarde como
"princípio da velocidade virtual". Tudo isso, porém, por mais
importante e fundamental que seja4 1 , de forma alguma esgo-

39. "Foge dos preceitos dos especuladores, pois suas razões não são
confirmadas pela experiência." (Ravaisson-Mollien, B foi. 14 v.)
40. Codex A tlanticus, foi. 1 1 9'.
4 1 . Sobre as pesquisas de Leonardo no âmbito da mecânica cf. , além
dos trabalhos fundamentais de Duhem, a obra mais recente de lvor B . Hart,
The mechanica/ investigations ofL. da Vinci, Londres, 1 92 5 .
1 l'ROBLEMÁT/CA SUJEITO-OBJETO 255

ta a totalidade d a obra teórica d e Leonardo, cuj o mérito está


menos nos resultados do que numa nova forma de colocar
problemas, no novo conceito de "necessidade natural" que ele
formulou e verificou sob os mais diversos ângulos. Em sua
definição de "necessidade", Leonardo deixou cunhadas pa­
l avras verdadeiramente essenciais do ponto de vista meto­
dológico : La neciessità e maestra e tutrice dei/a natura, la
11eciessità e tema e inventrice dei/a natura e freno e rego/a
l'ferna (A necessidade é mestra e tutora da natureza, a ne­
cessidade é tema e inventora da natureza e freio e regra eter­
na )42 . Em tal formulação do problema, do "tema" das ciências

exatas, reside a verdadeira grandeza intelectual de Leonardo.


A natureza é dominada pela razão, entendida esta como a lei
que lhe é inerente e que a natureza em momento algum, em
h ipótese alguma é capaz de transgredir43• Agora j á não são
mais os sentidos, já não é mais a sensação ou o sentimento
i mediato da vida os instrumentos com os quais nos igualamos
à natureza e podemos perscrutar seus mistérios. Somente o
pensamento, o "princ ípio da causa", que Leonardo entende
como princípio da fundamentação matemática, prova-se efeti­
vamente à altura da natureza. Este é justamente o ponto a partir
do qual se pode compreender e apreciar em toda a sua impor­
tância a influência que Leonardo da Vinci exerceu sobre Ga­
l i leu Gal ilei. Por vezes, a enunciação das leis naturais pode
parecer oscilante e ambígua na obra de Leonardo; contudo, a
idéia e a definição da lei natural propriamente dita permane­
ce inabalável . Sob esse aspecto, Galileu representa a conti­
nuidade imediata de Leonardo, à medida que apenas desen­
volve e explicita o que Leonardo havia começado . Também

42. Richter, n? 1 1 3 3 .
4 3 . " A natureza é governada pela razão da sua lei que nela vive de
maneira infusa." ( Ravaisson-Mollien, e foi. 23 V. )
256 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

para Galileu, a natureza, menos do que ter necessidade, é ne­


cessidade . Tal é o traço distintivo que separa aquilo que cha­
mamos de natureza do reino da ficção e da criação poética.
Se Galileu combate com igual vigor tanto a filosofia espe­
culativa da natureza de seu tempo quanto Aristóteles e a Es­
colástica, isso ocorre porque as explicações de ambos teimam
em diluir essas fronteiras . Conforme o próprio Galileu decla­
ra em Saggiatore, eles vêem a filosofia como um livro, um pro­
duto da imaginação como a Ilíada ou o Orlando furioso, nos
quais o que menos importa é se o que está escrito é verdade .
"Mas não é bem assim: a filosofia está escrita no grande l ivro
da natureza, que está aberto o tempo todo diante dos nossos
olhos, mas que ninguém pode ler, a menos que tenha apren­
dido anteriormente a entender os caracteres com os quais ele
está escrito, quer dizer, as figuras da matemática e seu vín­
culo necessário."44 Somente nesse tipo de vínculo, na relação
rigorosamente unívoca da "causa" sobre o "efeito", do�efei­
to" sobre a "causa", é que se nos revela a conexão lógico-ma­
temática do ser e do acontecer. Contudo, Leonardo e Galileu
- por mais que se aproximem em sua forma de observação
da natureza - não chegaram a este resultado pela mesma via.
Pois se Galileu traça sua linha divisória entre a verdade obje­
tiva da natureza e o mundo da fábula e da ficção, a criação
poética e a arte entram para esta última categoria. Para Leo­
nardo, ao contrário, a arte j amais significa um mero produto
da imaginação subj etiva, mas é e continua sendo um órgão
verdadeiro e indispensável da própria compreensão da real i­
dade . Seu valor de verdade imanente não é inferior ao da rea­
lidade, pois Leonardo não atribui nem a um nem a outro um
momento sequer de arbitrariedade subj etiva; ao contrário : ve-

44. Galileu, li saggiatore, Ed. Naz. VI, 232.


1 l'RUBLEMÁTICA SUJt"/70-0BJt:TO 257

ncra em ambos a necessidade todo-poderosa como tema e des­


cobridora da natureza, como suas rédeas e sua eterna regra.
Assim como Goethe, também Leonardo distingue claramen­
te o "estilo" artístico de toda e qualquer "maneira" meramente
i ndividual e contigente; para ele, assim como para Goethe, o
estilo "tem suas raízes nas bases mais profundas do conheci­
mento, na essência das coisas, tanto quanto nos é dado reco­
nhecê-la em formas visíveis e inteligíveis". Esta visibilidade
e inteligibilidade da forma são os elementos aos quais se atém
também o pesquisador Leonardo. Para ele, são elas os limites
aos quais permanecem atados todo o conhecimento e toda a
compreensão humanos. Medir em toda a sua extensão o rei­
no das formas visíveis, compreender cada uma dessas formas
cm seus contornos claros e bem definidos e representá-las
com absoluta precisão com o olhar exterior e interior: tal é o
objetivo supremo da ciência de Leonardo. Por conseguinte, os
l i mites da visão são-lhe também, e necessariamente, os limi­
tes da compreensão. Assim, o que Leonardo da Vinci abraça
como artista e como pesquisador é sempre o "mundo do olho";
este último, porém, não deve se lhe apresentar em pedaços, frag­
mentariamente, mas completa e sistematicamente45 .
Se não conhecemos bem essa forma fundamental da ques­
tão proposta por Leonardo, se a substituímos por outros pro­
blemas que as ciências naturais exatas só formularam e só
puderam formular mais tarde, corremos o risco de, nesse ca­
so, usar uma escala errada para medir seu conceito de saber
e sua obra científica. Por dois lados distintos se tentou recen­
temente contestar a validade desse conceito e limitar sua im-

45. Sobre esta relação entre "ver" e "conhecer" em Leonardo da Vin­


c i . c f. por exemplo a exposição de Farinelli em La natura nel pensiero e
,,. .11 ·arte di Leonardo da Vinci, Michelange/o e Dante, Turim, 1 9 1 8, pp.
\ 1 ) ss.
258 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA D O RENASCIMENTO

portância para a história do conhecimento. Num tratado inti­


tulado Leonardo filosofo, Croce aproxima Leonardo dos gran­
des pesquisadores modernos da natureza, Galileu e Newton,
mas nega-lhe o olhar para o mundo interior, para a verdadeira
esfera do espírito e do conhecimento especulativo46. A críti­
ca oposta foi feita por Olschki em sua Geschichte der neu­
:.prachlichen wissenschaftlichen Literatur (História da litera­
tura científica em línguas modernas): "É como se ele temes­
se toda e qualquer generalização cientificamente útil, a que se
pudesse chegar pela via dedutiva ou indutiva; como se se sen­
tisse incapaz de permanecer na abstração mais próxima e se
desse por satisfeito com as provas intuitivas que obtinha atra­
vés de seus desenhos." Mas esses dois julgamentos - o pri­
meiro, que mede Leonardo pela norma de um idealismo espe­
culativo, e o segundo, que o mede pela norma do positivismo
moderno - se esquecem de que também existe, para us�r as pa­
lavras de Goethe, uma "imaginação sensível exata'', que pos­
sui suas próprias regras e sua própria medida imanente. E Leo­
nardo provou como nenhum outro o que essa forma da ima­
ginação exata é capaz de fazer pela pesquisa empírica. Nada
pode ser mais enganoso do que considerar sua obra científica
uma simples mistura de fatos observados rigorosamente e de
"exaltações" da imaginação47. Pois em Leonardo a imaginação
não se soma à percepção, mas é, ela própria, o veículo vivo da
percepção, aquela que lhe indica um caminho e lhe atribui seu
teor de expressividade, seu rigor e sua exatidão. É acertado
afirmar, portanto, que o ideal de ciência de Leonardo não se
volta para outra coisa, senão para o aperfeiçoamento do olhar,
para o saper vedere (saber ver); que o material pictórico re­
presentativo predomine também em seus apontamentos sobre

46. Croce, Leonardo filosofo ( Saggi filosofici, Paris, 1 9 1 3 , IJI).


47. Olschki, Geschichte der neusprachlichen wissenschafilichen Li­
teratur. Heidelberg, 1 9 1 9, 1 , 26 1 , 300 s.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 259

mecânica, óptica

e geometria; que "abstração" e "visão" coa-
tuem nele de forma indissolúvel48• Mas é justamente a essa
atuação conj unta que a sua pesquisa deve os seus resultados
mais importantes. O próprio Leonardo explicou que primei­
ramente observou como pintor a contração e a dilatação das
pupilas de acordo com a incidência de luz, para só depois tra­
tá-las como teórico49• Dessa forma, a visão de natureza de Leo­
nardo comprova-se, sob todos os seus aspectos, como um pon­
to de transição metodologicamente necessário: a "visão" ar­
tística foi quem primeiro conquistou à abstração científica o
seu direito e preparou-lhe, assim, o terreno. A "imaginação
exata" do artista Leonardo está tão além das ondulações caó­
ticas do sentimento subjetivo, na qual todas as formas amea­
çam submergir numa unidade indiferenciada, quanto, de outra
parte, opõe-se a todas as distinções meramente conceituais e
abstratas e se atém com todas as suas forças à realidade visí­
vel. É na visão mesma, e não sob ou sobre ela, que se descobre
a verdadeira necessidade obj etiva. E com isso, a necessidade
ganha um novo sentido e um novo tom. Se até então a necessi­
dade, como regnum naturae (reino da natureza), opunha-se
ao reino da liberdade e do espírito, agora ela se transforma em
selo do próprio espírito. "Ó maravilhosa necessidade", escre­
ve Leonardo, "Tu obrigas com suprema razão todos os efei­
tos a participarem de suas causas, e cada ação natural a Ti obe­
dece sem demora, segundo uma lei sublime e irrevogável
( . . . ) Quem poderia explicar essa maravilha que eleva a razão
do homem à visão de Deus? ( . . . ) Ó instrumento poderoso da
natureza artificiosa, a Ti te foi concedido obedecer à lei que

48. Olschki, op. cit., 1, 342, 379.


49. Ravaisson-Mollien D foi. 13 r; cf. Solmi, Nuovi studi sul/a.filo­
sofia natura/e di Leonardo da Vinci, p. 39: "Analisar um fato pelo discur­
so ou analisá-lo pelo desenho são (para Leonardo) apenas dois modos dife­
rentes dum mesmo processo."
260 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Deus e o tempo deram à natureza criadora."5º A visão do


artista foi a primeira capaz de descobrir esse domínio da
necessidade e este seu conteúdo mais profundo. A máxima
de Goethe, segundo a qual o belo é uma manifestação das
leis secretas da natureza e sem o qual jamais nos seria dado
conhecê-las, está perfeitamente de acordo com o sentido da
visão de Leonardo e expressa o cerne de seu pensamento. A
proporção, em sua legalidade mais profunda, é para ele o
verdadeiro membro intermediário, o elo de ligação entre a na­
tureza e a liberdade: nela o espírito repousa como em algo
que existe obj etivamente, e nela, ao mesmo tempo, ele se
reencontra a si mesmo e à sua própria regra.
Vale a pena examinarmos mais detidamente esse parale­
lismo absoluto entre a teoria da arte e a teoria da ciência, pois
ele nos revela um dos temas mais profundos de todo o movi­
mento intelectual do Renascimento. Pode-se dizer que quase
todas as grandes conquistas do Renascimento concentram-se
aqui como que num foco; que quase todas elas têm suas raízes
numa nova atitude diante do problema da forma, num novo
sentimento formal. A poesia e as artes plásticas remetem aqui
à mesma relação fundamental. Borinski demonstrou a impor­
tância que a poética do Renascimento tem para a totalidade do
ideal de vida humano e espiritual desse período. "Essa revo­
lução na conquista espiritual do mundo ( . . . ) possibilita escla­
recer, em primeiro lugar, a importância que a Antiguidade
clássica teve ( . . . ) para a nova era do espírito. De certo, a Ida­
de Média ( . . . ) continuou a guardar relações com a Antigui­
dade. Nesse sentido, é graças ao poder cultural, graças à Igre­
ja, que se dá continuidade à Antiguidade, que nunca se pro­
cessou uma ruptura total com ela; é graças à Igreja que po­
demos encontrar, como no período carolíngio, ottonico e dos

50. Codex A tlanticus, foi. 345'.


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 26 1

Hohenstaufen, traços que antecipam o grande movimento de


idéias. Em'essência, porém, a influência da Antiguidade so­
bre a época é uma influência material, para usar uma expres­
são acertada em seu sentido mais amplo. E essa 'Antigui­
dade material ' continua a exercer suas influências por longo
tempo, adentrando inclusive o período do Renascimento pro­
priamente dito. A revolução na atitude da personalidade diante
da Antiguidade, porém, expressa-se na forma: desde a forma
da existência autônoma no sentir, pensar e viver, até as for­
mas da Antiguidade clássica que foram emprestadas à poe­
sia e à arte, à sociedade e ao Estado."5 1 Quase não existe um
único domínio da vida do espírito em que não se possa de­
monstrar essa relação, essa primazia peculiar que a forma
adquire no pensamento e na vida do Renascimento. Nesse sen­
tido, a lírica se adianta em relação às demais manifestações
e transforma-se no primeiro e mais poderoso veículo da no­
va vontade formal. Na Vita nuova, de Dante, e nos sonetos de
Petrarca, o sentimento formal antecipa-se, por assim dizer, ao
sentimento de vida: enquanto este ainda parece atrelado à es­
fera do sentimento e à visão medieval, aquele se transforma
em força efetivamente libertadora e redentora. Aqui, a expres­
são lírica não se contenta em apenas descrever uma realida­
de interior pronta, já configurada em si mesma: ela descobre
e cria essa mesma realidade. O novo estilo lírico transforma-se
em fonte da nova vida. Se quisermos buscar as fontes filosó­
ficas desse estilo, teremos de nos remeter à filosofia medie­
val, especialmente ao averroísmo. O conteúdo dos problemas
bem como toda a linguagem alegórica dos conceitos dessa lí­
rica só se tomam compreensíveis à medida que os deduzimos
de seus pressupostos históricos, da tradição poética dos tro-

5 1 . Borinski, Der Streit um die Renaissance, pp. 20 s. ( cf. nota 8,


p. I O deste livro).
262 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

vadores e da tradição científica da Escolástica52• No entanto,


a nova forma dentro da qual se derrama esse conteúdo tradi­
cional estava destinada a alterá-lo prog ressivamente. E a mes­
ma relação entre conteúdo e expressão da esfera lírica revela-se
também na esfera da lógica. Também aqui o novo sentimento
lingüístico do Renascimento, que se desenvolve no círculo do
Humanismo, age como força motriz direta do pensamento. O
anseio pela pureza da língua, pela libertação das deformações
"bárbaras" do latim escolástico, leva a uma nova configuração
da dialética. As Elegâncias da língua latina, de Valia, vol­
tam-se para o mesmo obj etivo de suas Discussões dialéticas:
ambas visam à clareza, à simplicidade, à depuração da lingua­
gem, objetivos estes que levariam, direta e espontaneamente,
à simplicidade e à pureza do pensamento. A teoria das partes
do discurso é desenvolvida ao ponto de se transformar numa
teoria da estrutura geral do pensamento: a estilística se trans­
forma em paradigma e guia da doutrina das categorias. O que
a filosofia, a lógica e a dialética possuem em termos de con­
teúdo verdadeiro, elas o tomam emprestado à "rainha eloqüên­
cia": omnia quae philosophia sibi vendicat - escreve o huma­
nista e retórico Antonio Panormita no diálogo de Valia sobre
a volúpia nostra sunt53 (tudo que a filosofia se arroga é
-

nossa). E assim se pôde afirmar que as raízes mais profun­


das do Humanismo, bem como o enorme laço comum que une
todos os humanistas, não está nem no individualismo nem na
política, na filosofia ou nas idéias religiosas comuns, mas pu­
ra e simplesmente no sentir artístico54. Fica claro agora que
este sentir artístico foi o que atribuiu uma determinação con-

52. Para um aprofundamento dessa questão, cf. Karl VoBler, Die phi­
lasaphischen Grundlagen zum "süften neuen Stil " des Guida Guinicelli,
Guida Cavalcanti und Dante A lighieri. Heidelberg, 1 904.
53. Valla, De valuptate, Lib. 1 , Cap. X; Opera, foi. 907.
54. Ernst Walser, Studien zur Weltanschauung der Renaissance, p. 1 2 .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 263

ereta ao novo conceito de natureza, que se desenvolveu nas


ciências do Renascimento. Entre a criação artística de Leo­
nardo e a sua obra científica não existe apenas uma espécie
de união pessoal, como se costuma admitir na maioria das ve­
zes, mas uma união verdadeiramente real, concreta, graças à
qual ele pôde chegar a uma nova noção da relação entre "li­
berdade" e "necessidade", entre "sujeito" e "objeto", entre "gê­
nio" e "natureza". Parecia que a teoria mais antiga da arte do
Renascimento, na qual Leonardo tem suas raízes e a qual ele
desenvolve, tinha aberto uma espécie de abismo entre esses
termos. Em Trattata dei/a pittura, Leon Battista Alberti adver­
te o artista contra o perigo de se abandonar à força de seu pró­
prio gênio (ingegna ) , em vez de mergulhar no grande para­
digma da "natureza". Ele deve evitar o caminho daqueles tolos
que, orgulhosos de seu próprio talento, acreditam poder ga­
nhar elogios na pintura, sem tomarem à natureza um modelo
que possam seguir com os olhos ou com a mente55• Em Leo­
nardo, ao contrário, tal oposição é suplantada, pois encontra
o seu ponto de equilíbrio. Ele está convencido de que a força
criativa do artista encontra-se em pé de igualdade com seu
pensamento teórico e científico. A ciência é uma segunda cria­
ção feita com a mente; a pintura, uma segunda criação feita
com a imaginação (la scienza e una secanda creaziane falta
cal discarsa, la pittura à una secanda creaziane falta cal/a
fantasia). Tais criações, porém, encontram seu valor justamen-

5 5 . Leon Battista Alberti, Trattato de/la pittura, Lib. III (ed. Janitschek,
Viena, 1 877, p. 1 5 1 ) : "Mas para não perder esforço e fadiga, fugir-se-á des­
se hábito de alguns tolos que, presunçosos de seu gênio sem ter nenhum
modelo de natureza a seguir com os olhos ou com o pensamento, esfor­
çam-se por adquirir deles mesmos os elogios por pintar. Eles não aprendem
a bem pintar, mas se acostumam com seus erros. Fugi dos talentos inexpe­
rientes, dessa idéia de beleza que os espíritos mais treinados mal conseguem
discernir."
264 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

te no fato de não se afastarem da natureza, da verdade empírica


das coisas, mas de compreenderem e descobrirem essa verda­
de. Uma tal reciprocidade de caráter tão peculiar entre "na­
tureza" e "liberdade" não foi possível, enquanto a oposição
entre ambas foi pensada unicamente em categorias éticas e
religiosas. Aqui, no domínio da vontade, tratava-se de uma al­
ternativa diante da qual se colocara o eu moral e religioso, que
podia escolher um ou outro ponto de vista: podia decidir-se
pela natureza e contra a liberdade e a graça, ou podia deci­
dir-se pelo regnum gratiae, pela liberdade e a Providência,
contra a natureza. Leonardo da Vinci, contudo, desde o início
está além desse conflito que constitui, por exemplo, o cerne
do discurso de Pico della Mirando la Sobre a dignidade do ho­
mem. Com efeito, a natureza não mais significa para Leonar­
do o reino do informe, da mera matéria que se opõe ao prin­
cípio da forma e à sua dominância; para ele, que não vê a na­
tureza senão por meio da arte, a forma não é algo estranho,
alheio à natureza; ao contrário: a natureza é, por excelência,
o reino das formas perfeitas e completas. Sob esse ponto de
vista, é evidente que a natureza seja regida pela necessidade,
entendida esta última como seu laço de união e regra eterna.
Tal necessidade, porém, não é a da simples matéria, mas sim
a da "proporção" pura, com a qual o âmago do espírito está fa­
miliarizado. A proporção não se encontra apenas nos núme­
ros e nas medidas, mas também nos sons, pesos, nas horas e
lugares, em toda força, enfim, não importando qual ela sej a56.
Através dela, através da medida e da harmonia internas, a na­
tureza é redimida e enobrecida, por assim dizer. Ela não mais
se opõe ao homem como força estranha ou hostil, pois - ain­
da que inesgotável para nós, ainda que absolutamente infini­
ta - estamos certos de que tal infinitude não é diferente da

56. Ravaisson-Mollien foi. 49' ( ed. Herzfeld, p . 26 ).


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 265
)
infinite ragioni da matemática, que podemos compreender
em suas causas últimas e em seus princípios, embora não pos­
samos vislumbrar em toda a sua amplitude. A idealidade da
matemática eleva o espírito ao seu ponto mais elevado e o con­
duz à sua plena realização: ela elimina as barreiras que a vi­
são medieval erigira entre natureza e espírito, de um lado, e
entre o intelecto humano e o divino, de outro. Galileu chega­
ria a formular expressamente essa ousada conclusão. A me­
dida do saber - assim ele se expressa nos diálogos sobre os
dois sistemas do mundo - pode ser entendida num sentido
duplo, dependendo de se tomar o conhecimento num senti­
do intensivo ou extensivo. Em se escolhendo este último, em
se partindo da multiplicidade do que é passível de conheci­
mento, o intelecto humano de nada vale se comparado a ela.
Uma outra coisa, porém, é remontar-se à causa do conheci­
mento, ao seu princípio, àquilo que faz dele conhecimento,
em vez de se ter em vista o seu objeto. "Com efeito, digo que
aquilo que o espírito humano compreende, ele o faz de for­
ma tão perfeita, e possui dele uma certeza tão absoluta quanto
a própria natureza: e são dessa natureza as ciências matemá­
ticas puras. É bem verdade que o intelecto divino conhece as
verdades matemáticas numa profusão infinitamente superior
à nossa (pois ele as conhece todas); não obstante, creio que
do pouco que o intelecto humano pode compreender, seu co­
nhecimento se iguala ao divino em certeza objetiva, pois o
homem chega a reconhecer sua necessidade, para além da qual
não pode haver grau mais elevado de certeza."57
E com isso fica estabelecida também a verdadeira rela­
ção fundamental entre a imaginação artística e a realidade,
entre o "gênio" e a "natureza". Entre ambos não existe qual-

57. Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mmulo, 1, Ed. Naz.
VII, 1 29.
266 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

quer conflito: a verdadeira imaginação artística não visa a ul­


trapassar as fronteiras da natureza e a adentrar o reino das me­
ras ficções e quimeras, mas tão-somente a entender as leis
eternas e imanentes dessa mesma natureza. Pois - e também
nesse ponto Leonardo concorda com Goethe - "a lei que se
manifesta, segundo condições que lhe são as mais próprias,
na aparência, na liberdade suprema, produz o belo obj etivo
que, naturalmente, precisa encontrar sujeitos dignos, capazes
de compreendê-lo"58. A força criativa do artista, sua imagi­
nação que cria uma "segunda natureza", não consiste do fato
de ele inventar essa lei, de criá-la como que do nada; consis­
te, isso sim, de ele descobri-la e demonstrá-la. No ato mesmo
da visão e da representação artísticas, separam-se casual e ne­
cessário: neles revela-se a essência das coisas, que encontra
na forma sua expressão visível. Também nesse ponto, a teo­
ria científica da experiência - tal como cunhada por Galileu
e Kepler - liga-se diretamente ao conceito e à exigência fun­
damentais da "exatitude", tal como a teoria da arte a estabeleceu
e confirmou. E ambas, a teoria da arte e a do conhecimento
das ciências exatas, passam aqui exatamente pelas mesmas
fases do pensamento. Não é sem razão que se apontou como
um dos momentos mais significativos da teoria da arte do Re­
nascimento o fato de nela começar a ser afrouxado, e pela
primeira vez, "o laço que unia o pulchrum (belo) e o bonum
(bom)'', que durante toda a Idade Média manteve a arte forte­
mente atrelada à esfera teológico-metafisica, e o fato de se
ter iniciado com isso a autonomização da esfera estética, que
só viria a ser teoricamente fundamentada mais de três séculos
depois59• De outra parte, porém, a esse afrouxamento corres-

58. Goethe, Maximen und Reflexionen, ed. por Max Hecker, n? 1 346.
59. Erwin Panofsky, Jdea, Ein Beitrag zur Begr!ff.çgeschichte der iilte­
ren Kunstheorie (Studien der Bibl. Warburg, ed. por Fritz Saxl, V). Leipzig,
1 924, p. 29.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 267

ponde uma outra amarra: pois quanto mais o pulchrum (belo)


se liberta do bonum (bom) tanto mais fortemente ele se une
ao verum (verdadeiro). Assim como Leonardo adverte o ar­
tista do perigo de "imitar a maneira de um outro", assim como
classifica aqueles que só estudam os autores, e não as obras
da natureza, de netos e não de filhos da natureza6o, Galileu
trava uma luta constante contra aquele m�todo escolástico que
privilegia a interpretação dos escritores em detrimento da in­
terpretação e da explicação dos fenômenos. Mas assim como
Leonardo, Galileu também enfatiza incessantemente o fato de
que a lei que rege os fenômenos, as ragioni (razões) que lhe
são subjacentes, não podem ser identificadas de imediato pela
percepção sensível a partir dos próprios fenômenos, mas que
- para descobri-las - é preciso lançar mão da espontaneidade
do pensamento matemático. Pois não chegamos a conhecer o
eterno e necessário nas coisas através do mero acúmulo e da
mera comparação de experiências sensíveis: é preciso, isso
sim, que o espírito os tenha compreendido "a partir de si mes­
mo", para depois reencontrá-los nos fenômenos. As coisas
verdadeiras e necessárias, isto é, aquelas que não poderiam
ser de forma diversa da que são, ou o entendimento as conhe­
ce da per se (a partir de si mesmo), ou lhe é impossível che­
gar a conhecê-las6 1 . Assim, todo experimento, toda questão
endereçada à experiência, pressupõe um "esboço" intelec­
tual do pensamento, uma mente concipio (concepção pela
mente), como Galileu o chama. Nele nós antecipamos uma
legalidade da natureza, para depois, através do exame da

60. Codex A tlanticus, foi. 1 4 1 ' (cf. edição de M. Herzfeld, pp. 1 3 7 s.).
6 1 . Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo. Ed. Naz.
VII, 1 83 : "Posso bem vos ensinar coisas que não são nem verdadeiras nem
falsas; mas as coisas verdadeiras, ou seja, as necessárias, ou seja, as que
não podem ser de outra forma, ou todo espírito mediano ou sabe-os por si
só ou é possível que os saiba um dia."
268 INDIVIDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

experiência, elevá-la à categoria de certeza. Também aqui,


portanto, as leis obj etivas, as medidas fundamentais rigoro­
sas que determinam e dominam todo o acontecer da natureza,
não são simplesmente inferidas a partir da experiência, mas
são colocadas como "hipóteses" à experiência, que depois são
comprovadas ou refutadas por ela. Esta é a nova relação entre
"entendimento" (discorso) e sentido, entre experiência e pen­
samento, sobre a qual repousa, para Galileu, toda a ciência
da natureza: uma relação que, como vemos, é rigorosamente
análoga àquela que, para a teoria da arte do Renascimento,
existe entre a imaginação do pintor e a realidade "objetiva" das
coisas. A força do espírito, do ingenium tanto artístico quan­
to científico, não consiste do fato de ambos agirem com uma
arbitrariedade irrestrita, mas sim do fato de nos ensinarem a
ver e a conhecer o "obj eto" em sua verdade, em sua suprema
determinação. No artista e no pensador, o gênio encontra a
necessidade da natureza. Séculos ainda teriam de transcorrer
até que este pensamento encontrasse sua formulação teórica
rigorosa, antes que a "crítica do julgamento" pudesse cunhar
a proposição de que o gênio é aquele dom natural através do
qual a "natureza no sujeito" dá sua regra à arte . Mas o cami­
nho que leva até esse objetivo está claramente traçado agora62.

62. Não tratarei em detalhes da oposição entre a "espontaneidade" do


gênio e a "objetividade" da regra, tal como a estabeleceu a poética do Re­
nascimento. O leitor interessado na exposição e no julgamento de tal opo­
sição poderá encontrar apoio num material recente contido na obra de Edgar
Zilsel, Die Entstehung des Geniebegr!ffs (Tübingen, 1 926), e numa tese de
doutoramento defendida em Hamburgo, de autoria de Hans Thüme - Bei­
triige zur Geschichte des GeniebegrifJS in England (introdução). É bem ver­
dade que, também nesta problemática, também na disputa entre imitatio e
inventio empreendida, por um lado, por Policiano, pelo jovem Pico della
-

Mirandola e por Erasmo, e, por outro, por Cortese e Bembo - nunca se che­
gou a uma delimitação clara e precisa dos princípios; contudo, a filosofia
do Renascimento já antecipa essa formulação precisa que depois, através da
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 269
'\.

E somente através desse caminho é que o Renascimento


conseguiu suplantar tanto a magia e a mística quanto todo o
complexo das ciências "ocultas". A conjunção da matemática
e da teoria da arte conseguiu aqui o que não foram capazes de
conseguir a entrega à observação empírico-sensível e o mergu­
lho afetivo e imediato no "âmago da natureza". Surge agora a
nova idéia de natureza, verdadeiramente moderna, que na obra
de Kepler sobre a harmonia do mundo aparece em sua forma
mais perfeita como síntese do gênio artístico e teórico do Re­
nascimento. O próprio Kepler expressa essa relação em ter­
mos puramente platônicos: para ele, as leis da harmonia são
as determinações essenciais que encontramos no mundo

mediação da psicologia e da estética inglesas, exerceu suas influências so­


bre Lessing e Kant. Giordano Bruno já expressa de forma arguta que a poe­
sia não nasce das regras, mas as regras da poesia, pois existem tantos gêne­
ros e tipos de regras verdadeiros quantos são os gêneros e tipos de poetas
verdadeiros (Eroicifurori 1. Opere ital. [Lagarde], p. 625). No mais, é com
razão que Panofsky (op. cit. , p. 38) sublinha que o "verdadeiro Renascimen­
to" desconhece tanto uma oposição entre gênio e regra quanto entre gênio
e natureza, e que justamente o conceito renascentista de idéia "expressa de
modo particularmente claro a conciliação dessas duas noções que, por certo,
não constituem opostos irreconciliáveis, à medida que mostra que a liberdade
do espírito artístico está assegurada e, ao mesmo tempo, subordinada às exi­
gências da realidade". Tais afirmações estão em perfeita consonància com os
resultados de nossa pesquisa: eu só não afirmaria, como Panosfky (op. cit., p.
56), que o pensamento do Renascimento "empirizou e aposteriorizou" a idéia
artística em geral e a idéia de beleza em particular. A mim me parece que o
elemento característico e distintivo reside, muito mais, no fato de ambas - a
teoria da natureza e a ·da arte - se aterem ao a priori da idéia e, não obstante,
por força desse mesmo a priori, colocarem a idéia numa nova relação com
respeito à experiência. Pois é a idéia matemática, o a priori da proporção e da
harmonia, que é apontada como base comum tanto da verdade empírica
quanto da beleza artística: a idéia "inata" do número e a idéia "inata" do belo
levaram Kepler - conforme ele próprio não se cansou de enfatizar - à formu­
lação das três leis fundamentais do movimento dos planetas.
270 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

empírico, no mundo visível e sensível, pela simples razão de


que tudo o que é visível é criado a partir de "arquéticos" eter­
nos da ordem e da medida, da aritmética e da geometria. Mas
também Galileu, o grande cientista analítico, incansavelmen­
te voltado a distinguir rigorosamente o empírico do metafísi­
co, o lógico do estético, também ele tem consciência da exis­
tência de uma raiz comum para o espírito artístico e o científi­
co. Para Galileu, o espírito artístico e o científico representam
dois modos diversos de se conferir forma, sendo que à força
formadora que vive nos grandes artistas ele atribui, sem hesi­
tação ou inveja, a primazia sobre a observação puramente teó­
rica. Na mesma passagem em que audaciosamente equipara
o intelecto humano ao divino, Galileu - a fim de demonstrar
a nobreza do espírito humano - baseia-se sobretudo na pro­
dutividade do artista plástico que, para ele, é infinitamente
superior à do teórico: "Quando passo em revista os muitos e
maravilhosos descobrimentos da humanidade nas artes e nas
ciências, e penso no meu próprio conhecimento, que não me
faculta encontrar nada de novo, mas sim e tão-somente com­
preender o que já foi encontrado, sinto-me confuso por tanta
estupefação, abatido pelo desespero, e quase chego a me
considerar infeliz. Quando contemplo uma estátua magnífi­
ca, digo a mim mesmo: 'Quando aprenderás a remover de
um bloco de mármore aquilo que lhe encobre a essência? A
revelar a forma magnífica que ele oculta? Ou a misturar
cores diversas e aplicá-las sobre uma tela ou uma parede de
modo que elas representem todo o reino do visível, como
um Michelangelo, um Rafael, um Ticiano?"'63. Novamente
se nos revela aqui, no domínio da teoria da arte e da teoria da
experiência, um tema fundamental com o qual já nos tínha­
mos deparado no âmbito da especulação ético-religiosa. No-

63. Galileu, Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo, Ed.
Naz. VII. 1 1 8 .
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 27 1

vamente, o espírito do homem se nos revela como um se­


gundo criador, como um "verdadeiro Prometeu sob as or­
dens de Júpiter". Constatamos, então, que o Renascimento -
a partir de perspectivas e de caminhos os mais diversos -
sempre retorna a essa imagem que, para ele, evidentemente
significa mais do que uma simples alegoria; uma imagem
que, para ele, se transformou em símbolo do que ele é e
almej a como movimento global de idéjas.
E ao mesmo tempo que descobre esse novo conceito de
natureza, no momento mesmo em que realiza tal descobri­
mento, o Renascimento experimenta um novo enriquecimento
e um aprofundamento de sua consciência histórica. Pois agora
ele possui um novo acesso ao mundo do pensamento grego
clássico; agora ele reencontra o caminho que leva da filosofia
helenística do final da Antiguidade até o idealismo de Platão.
Não se trata, n esse processo, de uma simples apropriação do
legado de idéias genuinamente platônico, mas de uma verda­
deira anamnese da doutrina de Platão, de sua renovação a par­
tir dos fundamentos mesmos do próprio pensamento. A fim
de tornarmos claro e visível esse processo, basta que nos re­
cordemos daquela célebre passagem do Fédon de Platão, na
qual se descortinam diante de nossos olhos os temas mais pro­
fundos e a gênese peculiar da sua doutrina das idéias. Também
para Platão, o acesso ao seu princípio fundamental estava atre­
lado ao fato de ele desbravar um caminho absolutamente novo
de investigação do ser, que significasse uma ruptura com to­
do o método da filosofia pré-socrática. Também Platão - con­
forme ele próprio nos relata - teria desejado veementemente,
em sua juventude, conquistar essa sabedoria que chamamos
de ciência da natureza; teria considerado magnífico conhe­
cer as causas através das quais tudo existe, através das quais
tudo nasce e perece. E, como os filósofos da natureza, tam­
bém ele teria tentado satisfazer esse desejo deixando-se
guiar pela percepção; também ele teria tentado compreen-
272 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

der diretamente as coisas com os olhos, os ouvidos e com


cada um dos sentidos. Mas quanto mais avançava por esse
caminho, tanto mais se aguçava a sua consciência de que a
verdade daquilo que é 'tÕlV OV'tffiV n à.Afít'}eux [tôn ónton he
alétheia] (a verdade dos seres) não poderia ser obtida por
essa via. "Depois de me ter fatigado de observar as coisas
diretamente, achei que deveria me precaver para que não
ocorresse comigo o que freqüentemente ocorre com os que
observam o sol durante um eclipse. Muitos acabam estragan­
do os próprios olhos quando, em vez de olharem para a ima­
gem do sol refletida na água ou em qualquer outro meio,
olham para o próprio astro. O que percebi foi algo semelhante
e tive medo de cegar por completo a minha alma, se conti­
nuasse voltando meus olhos diretamente para as coisas e ten­
tasse alcançá-las com cada um dos sentidos. Cheguei à con­
clusão, então, de que deveria buscar refúgio nos pensamentos
e neles tentar contemplar a verdadeira essência das coisas.
Mas talvez essa comparação, da forma como a formulei, não
esteja de todo correta, pois de forma alguma quero admitir que
aquele que observa o ser nos pensamentos o faz mais em
imagens do que nas coisas da natureza. Adotei, portanto,
essa atitude mental; e cada vez que tomava por base o logos
que considerava o mais forte, estabelecia como verdadeiro
aquilo que me parecia concordar com ele, e como não verda­
deiro aquilo que não. Vemos aqui, com toda a clareza, o cerne
do novo modo de pensar de Platão e sua oposição à forma de
pensar de toda a filosofia grega da natureza. É de todos sabi­
do que Platão também incluiu Anaxágoras nesse julgamento;
que, para Platão, também o vol>ç [nous] (intelecto) de Ana­
xágoras não merecia essa denominação, pois à luz de uma
observação mais atenciosa ele não passa de uma força mo­
triz, de uma simples potência da natureza, portanto. Somen­
te a renúncia à apreensão direta e sensível das coisas da
natureza, somente a "fuga para o logos" leva à contemplação
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJE7V 273

daquilo que é. Para Platão, contudo, essa fuga para o logos


significa a fuga para a matemática. E com isso fica definida
a "segunda viagem", o ôrutepoç 7tÂ.oUÇ [deúteros ploús],
que só pode levar às costas do reino das idéias. Se comparar­
mos essa evolução com_a evolução do conceito de natureza
do Renascimento, veremos como cada uma de suas fases se
repete de modo surpreendente64• Também o Renascimento
envereda primeiramente por esse caminho, isto é, pela tenta­
tiva de apreender a natureza de forma direta e através dos
sentidos. Telesio, ao determinar que todo conhecimento pode
ser reduzido, em última análise, a um contato entre o eu e as
coisas, nos faz recordar imediatamente da ironia de Platão
com respeito àqueles que acreditavam poder apanhar o ser
"diretamente com as mãos", ànpiÇ ta.1.v xepo l.v [aprix tain
kheroin] . Mas precisamente essa aspiração foi o que acabou
por cegar a filosofia da natureza diante da "verdade" singu­
lar da natureza, de sua legalidade universal, reconduzindo-a
às trevas da mística e da teosofia. E novamente foi o retorno
ao logos que deixou o caminho livre para uma ciência da na­
tureza. O que Platão chama de Â.Óym [lógoi] , os fundamen­
tos sobre os quais é preciso se apoiar, Leonardo os chama de
ragioni (razões) que o nosso saber deve descobrir na expe­
riência. E também Leonardo, a despeito de toda a sua valori­
zação incondicional do empírico, não hesita em conferir-lhes
a primazia sobre a observação meramente sensível: "Nessu­
no effetto e in natura sanza ragione; intendi la ragione e non
ti bisogna esperienzia" (nenhum efeito está na natureza sem
razão; preste atenção à razão e não terás necessidade de ex-

64. A esse respeito, e para as considerações que se seguem, cf. a do­


cumentação mais detalhada contida em Erkenntnisproblem3 l, 3 1 4 s. Ali,
porém, a importância que cabe ao fator estético na descoberta do moderno
conceito de natureza ainda não havia sido percebida com clareza suficiente.
274 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

periência)65 As pesquisas de Galilei são igualmente domi­


nadas pelo mesmo tema. Para ele, as leis fundamentais da


natureza não são leis do que é dado de forma imediata, do
que é passível de comprovação através de fatos, mas refe­
rem-se sem exceção a casos ideais, que nunca podem ser
concretizados na natureza em todo o seu rigor. Isso, porém,
em nada prejudica a sua verdade, a sua "objetividade". O
fato de a natureza jamais nos revelar "um corpo abandonado
a si mesmo" de modo algum constitui uma objeção à lei da
gravidade, do mesmo modo como o fato de não se encontrar
na natureza corpo algum que possua um movimento em
espiral em nada fere os princípios de Arquimedes sobre as
espirais. Ao constatarmos essas concordâncias sistemáticas
entre Leonardo e Galileu, de um lado, e entre esses dois e
Platão, de outro, deixa de ter tanta importância a questão de
saber por que caminhos tortuosos da História lhes foi trans­
mitido o conhecimento da filosofia autenticamente platôni­
ca. O fato de Leonardo da Vinci, que viveu na Florença do
Quattrocento em meio à atmosfera do neoplatonismo, con­
seguir permanecer refratário ao espírito do neoplatonismo,
por certo não constitui um milagre menor do espírito tão
rico em milagres desse artista. O que o reconduziu ao Platão
histórico, o que de certa forma o transformou num platônico
a despeito de Ficino e da Academia de Florença, foi o fato
de ele - como artista, teórico da arte e pesquisador científi­
co - viver totalmente sob a égide da máxima de Platão,
segundo a qual µri &iç eicritro à.)'EroµÉtpritoç [medeis eisí­
to ageométretos] (ninguém pode ler em meus princípios que
não seja matemático). Esta máxima, Leonardo a fez total­
mente sua: non mi legga chi non e matematico nelli mia

65. Leonardo, Cod. A tlant. , foi. 1 47 v .


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 275

principi (ninguém que não seja matemático pode me ler em


meus princípios)66. Com plena consciência e total clareza, es­
sa nova relação ante a doutrina de Platão reaparece em Ga­
lileu. Como um fio de meada, toda a sua obra - e em espe­
cial o Dialogo sopra i due mass'{mi sistemi é perpassada -

pelo apelo à teoria platônica do conhecimento. Da teoria da


àvá.µVTIOlÇ [anámnesis] ele extrai a sua noção de a priori,
de da per se. Com essa expressão, que proclama a esponta­
neidade do espírito, a autonomia da razão teórica, foi que­
brado o encanto mágico que manteve aprisionada a filosofia
da natureza do Renascimento. Ao mesmo tempo, processa-se
a abertura para o campo livre do conhecimento objetivo da
natureza e o retomo do Helenismo para a Antiguidade clássi­
ca. "Estamos na era de Fausto", assim resume Warburg, em
sua obra sobre Lutero, a evolução das idéias astrológicas no
interior do Renascimento, "em que o cientista moderno procu­
ra conquistar, entre a prática mágica e a matemática cosmo­
lógica, o espaço mental de reflexão entre si e o objeto. Mais
uma vez se pretende reconquistar Atenas a partir de
Alexandria."67 Esta "reconquista de Atenas a partir de Ale­
xandria" era o objetivo comum a que se voltavam tanto a
teoria da arte do Renascimento quanto a teoria das ciências
exatas. O "espaço mental de reflexão" foi reconquistado à
medida que se retornou ao ÀÓyoç [lógos] platônico e à exi­
gência socrático-platônica do ÀÓyov füõóvm [lógon didó­
nai] (dar razão). Assim, a nova concepção de natureza surge
de uma nova concepção de sentido e de meta do conheci­
mento. A filosofia da natureza do Renascimento havia tenta­
do nada menos do que fundamentar e justificar a magia a par-

66. Leonardo (ed. Richter, n? 3 ) .


6 7 . Warburg, Heidnisch-antike Weissagung in Wort und Bild z u Luthers
Zeiten, p. 70.
276 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

tir da perspectiva da teoria do conhecimento. Segundo Cam­


panella, a possibilidade da magia decorre do mesmo princí­
pio da possibilidade do conhecimento, pois também não po­
deríamos "conhecer" se, originária e essencialmente, suj eito
e obj eto, homem e natureza não fossem uma mesma e úni­
ca coisa. Só podemos conhecer verdadeiramente um objeto
quando nos fundimos nele, quando nos transformamos ne­
le. Cognoscere estfieri rem cognitam (conhecer é tornar-se
a coisa conhecida), define Campanella, e cognoscere est
coire cum suo cognobi/i (conhecer é juntar-se ao cognoscí­
vel), define Patrizzi o ato de conhecer. A magia só é capaz
de expressar o lado prático dessa constelação de fatos, que o
conhecimento representa teoricamente: ela mostra como,
tendo por base a identidade entre sujeito e objeto, o suj eito
não apenas é capaz de entender, mas também de dominar o
objeto; como a natureza não apenas está subordinada à
razão, mas também à vontade do homem. Com isso, a magia
- entendida como "natural" e não como "demoníaca" - trans­
formou-se na parte mais nobre do conhecimento da natureza
e no "arremate da filosofia". Se é que podemos nomear um
conceito qualquer por sua representação e encarnação mais
perfeitas - conclui Pico della Mirandola -, então também não
hesitemos em aplicar o nome de magia à totalidade da ciência
e da filosofia, assim como costumamos chamar Roma de "a"
cidade, Virgílio de "o" poeta, Aristóteles de "o" filósofo68.

68. "Se é verdade que a magia seja a mesma coisa que a sabedoria, é
com o título justo que se quis chamar essa prática de ciência natural que pres­
supõe um conhecimento exato e absoluto de todas as coisas da natureza e que
é como o ápice e fastígio de toda filosofia, do nome próprio e particular de
magia, isto é, de sabedoria, como se diz a Cidade por Roma, o Poeta por Vir­
gílio, o Filósofo por Aristóteles." Pico della Mirandola, Apologia (Opera,
foi. 1 70).
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 277

Mas nem a teoria da arte nem a teoria do conhecimento exato


da natureza poderiam acompanhar a filosofia da natureza nes­
se caminho, pois ambas, contrariamente à observação místico­
mágica da natureza, são dominadas põr uma mesma e única
orientação básica do espírito : o anseio de chegar à forma pu­
ra. Toda forma, porém - seja ela entendida no sentido teórico
ou estético -, exige limitação e vínculo; exige um contorno cla­
ro e bem definido das coisas. Quando se trata de dar forma
plástica à natureza, ou de compreendê-la no pensamento co­
mo algo necessário e submetido a leis, não bastam o panteísmo
e o panenteísmo do sentimento. Ao ímpeto de se deixar absor­
ver pela unidade do todo opõe-se agora o impulso oposto: o
ímpeto da diferenciação, da especificação. Nem a arte nem
a matemática podem fazer com que o sujeito penetre no obj eto
e que este se dissolva naquele, pois só a manutenção da distân ­
cia entre ambos possibilita a existência tanto do espaço plásti­
co, estético, quanto do espaço mental, lógico-matemático.
E essa ação recíproca das duas forças espirituais básica s
do Renascimento produz agora um outro fruto: ela conduz a
uma transformação e a uma reformulação radical da concep­
ção teórica da "sensibilidade". Já vimos como toda a visão de
natureza de Leonardo surge da força primordial específic a
de sua essência, de sua imaginação sensível e exata. Se para Pi­
co della Mirandola a magia havia se transformado no ápice
da filosofia: apex etfastigium totius philosophiae (ápice e fas­
tígio de toda filosofia), em Trattato della pittura, de Leonardo ,
a pintura parece reivindicar para si essa posição de dominân­
cia. Quem menospreza a pintura não ama nem a filosofi a
nem a natureza69• Aqui, na noção de valor e de sentido das ar­
tes plásticas, o caminho trilhado pelo Renascimento aparta-se
também do caminho de Platão, que nelas havia visto quase que

69. Leonardo, ed. Ravaisson-Mollien, foi. 20' (ed. Herzfeld, p. 1 34 ) .


278 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

exclusivamente o elemento "mimético", o elemento da imita­


ção do que é dado, e que, por conseguinte, as tinha rechaçado
como visão autêntica das idéias, por considerá-las arte de
ídolos7º. Para mostrar o quanto essa oposição estava profun­
damente arraigada na essência do Renascimento, basta dizer
que o próprio idealismo especulativo também adota a nova
exigência aqui estabelecida e presta-lhe a sua contribuição no
sentido do seu reconhecimento sistemático. A doutrina de Ni­
colau de Cusa não chegou a desenvolver uma estética indepen­
dente; em sua teoria do conhecimento, porém, ele conquistou
para a sensibilidade, contrariamente à concepção platônica,
uma nova posição e uma nova valorização. Nesse sentido, é sig­
nificativo e característico o fato de Nicolau de Cusa, quando
se refere a Platão e evidencia, assim, os laços que o unem di­
retamente a ele, faça-o justamente naquelas passagens em que
Platão parece mais receptivo à idéia da percepção pelos sen­
tidos; em que Platão parece admitir para ela um valor de co­
nhecimento, ainda que relativo e c ondicionado. N icolau de
Cusa cita as passagens de A República de Platão que põem
em evidência o fato de certas classes da percepção sensível,
justamente devido às contradições internas que encerram, co­
laborarem de forma indireta para os objetivos do conhecimen­
to, na medida em que são elas precisamente que impedem a
alma de dar-se por satisfeita com a mera percepção pelos sen­
tidos; são elas que, precisamente, desafiam o pensamento e se
transformam em seus "paracletos": o contra-senso no sensível
incentiva o espírito a buscar cm outra instância, no domínio do
õuivotcx [diánoia] (pensamento discursivo), o genuíno e ver­
dadeiro sentido7 1 • Mas aquilo que Platão concede a um de-

70. Para maiores detalhes a esse respeito, vide minha conferência Ei­
dos und Eidolon. Das Problem des Schõnen und der Kunst in Platons Dia­
logen. Vortrãge der Bibliothek Warburg, 1 922/23, I, pp. 1 ss.
7 1 . Platão, República, 523 A ss. ; cf. Nicolau de Cusa, Idiota, Lib. III, 4.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 279

terminado tipo de percepção sensível, Nicolau de Cusa o es­


tende a todo o gênero. Essa força vivificante e estimulante não
é própria apenas deste ou daquele tipo de percepção, mas da
experiência sensível como um todo. O intelecto não chega à
consciência do que ele é e do que é capaz, antes de ser impul­
sionado pela força da sensibilidade para o movimento que lhe
é característico. Quando esse impulso determina que ele se
volte para a esfera sensível, isso evidentemente não ocorre pa­
ra que ele se anule no interior dessa esfera, mas para que ele a
eleve até si. Sua aparente descida para o sensível significa mui­
to mais a ascensão do sensível até ele, pois na "alteridade" do
mundo sensível ele encontra agora a sua unidade e sua iden­
tidade próprias e inabaláveis; na entrega àquilo que lhe parece
estranho em essência, ele alcança sua plenitude, o desenvolvi­
mento e a compreensão de si mesmo72. A experiência não mais
constitui a oposição e o pólo oposto à força fundamental do
conhecimento teórico, à razão científica; ela representa, isso
sim, seu meio por excelência, seu campo de ação e sua con­
firmação. Em Leonardo e em Galileu, a oposição se resolve na
pura reciprocidade. A diferença entre razão e experiência nada
mais é do que uma diferença de direção. "Minha intenção",
afirma Leonardo numa pesquisa sobre o princípio da alavan­
ca, "consiste em, primeiramente, aduzir o experimento, para
depois demonstrar, com a ajuda da razão (colla ragione di­
monstrare), porque tal experimento necessariamente só pro­
duz seus efeitos dessa forma, e não de outra. E este é o verda­
deiro procedimento a ser adotado pelo pesquisador das ações
da natureza, pois ainda que a natureza comece com a razão e
termine com a experiência, precisamos percorrer o caminho
oposto, isto é, precisamos começar com o experimento e, a

72. Cusa, De conjecturis II, 1 6 (para uma visão de conjunto, cf. pp. 72
ss. deste livro).
280 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

partir dele, investigar a razão (ragione)."73 Aqui, como na dis­


tinção e na síntese correlativa do método "resolutivo" (ana­
lítico) e "compositivo" (construtivo) realizadas por Galileu, o
que ocorre, portanto, é um verdadeiro processo circular: par­
te-se dos fenômenos para se chegar às suas "razões", e destas
para se chegar novamente àqueles. Cai por terra, assim, a ní­
tida distinção estabelecida por Platão entre o caminho do dia­
lético e o do matemático74• O caminho "para cima" do dialéti­
co e o caminho "para baixo" do matemático é o mesmo, já que
cada um não representa outra coisa senão etapas diferentes de
um mesmo processo cíclico de conhecimento. E, com isso, a
relação entre a teoria pura e suas aplicações apresenta-se ago­
ra sob uma nova perspectiva. A doutrina do conhecimento de
Platão também conhece uma matemática "aplicada" e a ela
confere uma posição absolutamente determinada na hierar­
quia sistemática do saber. Não seria enganoso afirmar, inclu­
sive, que Platão, através da célebre exigência que colocou aos
astrônomos de seu tempo - a tarefa de "salvar" os fenômenos
celestes por meio de sua relação e de sua subordinação a mo­
vimentos ordenados e rigorosamente uniformes -, foi o pri­
meiro a atribuir um sentido absolutamente preciso e metodo­
logicamente pertinente ao conceito de "aplicação" da mate­
mática à natureza. Não obstante, o conhecimento da natureza,
o conhecimento em torno dos fenômenos sensíveis como tais,
não constitui um fim em si mesmo, mas deve servir tão-somen­
te de réplica à teoria pura. A astronomia não atrai a atenção do
dialético por causa de seu objeto, mas por causa dos problemas
que propõe ao matemático e, por conseguinte, ao pensamen­
to puro. O dialético não tem por meta abismar-se na observa­
ção e na admiração da "colorida obra celeste", mas, sem in-

73. Leonardo (Ravaisson-Mollien E . , foi. 55'; cf. ed. de M. Herz­


feld, p. 6).
74. Platão, República, 5 3 3 C ss.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 28 1

terferir nas coisas do céu, debruça-se sobre as estrelas a fim


de converter de inútil em útil a porção racional de sua alma7s.
A viseira do verdadeiro astrônomo, do astrônomo filosófico,
portanto, não é de natureza empírica, mas propedêutica: seu
objetivo não é o mundo sensível em si, mas aquela "conver­
são" da alma que a transporta do mundo sensível ao mundo
do pensamento puro. À vista de tal noção, o pensamento do
Renascimento significa uma reviravolta decisiva, mesmo nos
pontos em que se retomam, sem intermediação, os temas ge­
nuinamente platônicos. Só agora o mundo da experiência con­
quista a sua verdadeira independência. O conteúdo empírico
e a forma matemática continuam rigorosamente atrelados um
ao outro, mas essa relação passa a ser regida agora pelo signo
oposto, por assim dizer. Não se pode pura e simplesmente abo­
lir o empírico no ideal, destituindo-o, assim, de seu caráter es­
pecífico. Ao contrário: é o ideal que só encontra sua realização
no empírico e, com isso, sua confirmação e j ustificativa. Se
para Platão a teoria do movimento era apenas um paradigma,
um exemplo necessariamente imperfeito das relações mate­
máticas abstratas, agora ela não apenas adquire um valor pró­
prio, mas transforma-se justamente no objetivo a que visa toda
a matemática pura. Para Leonardo, a mecânica é "o paraíso
das ciências matemáticas", pois somente através dela se che­
ga aos "frutos" da matemática76. Galileu representa o ponto fi­
nal dessa evolução e a ela atribui, ao mesmo tempo, sua ex­
pressão metodologicamente mais clara, já que - para ele - o
movimento mesmo se transformou em idéia. O movimento já
não mais pertence ao reino obscuro do vir-a-ser, do yévemç
[génesis] platônico, mas elevou-se à categoria de ser puro por
estar subordinado a leis rigorosas e por apresentar como pró­
prias, em decorrência disso, a constância e a necessidade. O

7 5 . Platão, República, 630 A ss.


76. Leonardo, Ravaisson-Mollien E., foi. 8 v.
282 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

movimento e mesmo a própria massa material, entendidos


como objeto do conhecimento, possuem idealidade. De fato,
neles se podem comprovar certas determinações invariáveis,
que sempre se comportam da mesma maneira; neles é possí­
vel demonstrarem-se, portanto, certas leis verdadeira e es­
sencialmente matemáticas77• Somente assim é que a própria
experiência pôde ser elevada à categoria de conhecimento
rigoroso; somente assim foi possível fundar, conforme es­
creve Galileu na introdução às pesquisas fundamentais dos
Discorsi sobre o movimento local, "uma ciência totalmente
nova sobre um objeto muito antigo"7B. Neste resultado en­
contram sua expressão adequada tanto a tendência realísti­
co-empírica do Renascimento quanto a idealista. Se a teoria
da ciência do Renascimento atribui à sensibilidade um lugar
novo, isto ocorre porque pela primeira vez, como teoria, ela
se sente verdadeira e intelectualmente à altura dessa emprei­
tada e porque ela elaborou os meios básicos ideais, graças
aos quais a mera impressão sensível pode se transformar em
intuição pura. Essa mesma orientação básica da observação
e a mesma transição característica deixam suas marcas tam­
bém na cosmologia do Renascimento. A mudança na con­
cepção acerca da natureza do movimento exigiu e criou a
partir de si mesma um novo conceito de mundo. E quanto
mais o problema do movimento se aproxima do foco intelec­
tual da observação, quanto mais claramente ele vai sendo

77. Cf. por ex. Galileu, Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno


a due nuove scienze 1 (Opera ed. Albéri, XIII, 7): "E porque eu suponho
que a matéria seja inalterável, isto é, sempre a mesma, é manifesto que dela
como de afeição eterna e necessária se podem produzir demonstrações não
menos rigorosas que os outros e igualmente matemáticas." O mesmo prin­
cípio é formulado para o movimento por ex. na obra de Galileu contra Vin­
cenzo di Grazia (vide por ex. Opera, XII, 507 ss.).
78. Galileu, Discorsi, Giornata terza. Opera, XIII, 1 48 .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 283

entendido em sua nova forma, tanto mais decisivamente ele


atua no sentido de uma reformulação radical da teoria dos
elementos e da teoria do universo.

A afirmação de que a primazia lógica e c ientífica que o


problema do movimento adquire na filosofia do Renascimen­
to contém o cerne e a origem da moderna cosmologia e en­
cerra à primeira vista um paradoxo histórico. Afinal, essa po­
sição central do conceito de movimento já não estava asse­
gurada desde a Antiguidade? Acaso a concepção aristotélica
de movimento não constitui o ponto nuclear e o centro con­
ceituai de toda a teoria da natureza de Aristóteles? O edifício
da física peripatética estrutura-se sobre o fundamento da dis­
tinção básica que ela estabelece entre as formas primordiais
de movimento. Se é verdade que a formulação dada por Aris­
tóteles ao conceito de Kfvrimç [kínesis] (movimento), no seu
sentido mais amplo, abarca não apenas a mudança de lugar,
mas também a mudança qualitativa (àÀÂoíoxnç) [alloíosis], o
crescimento quantitativo (afü;rimç) [aúxesis] e o nascer e
perecer (yÉVEcrtÇ Kai q>l}opà) [génesis kai phthorá] , tam­
bém é verdade que Aristóteles considera a mera mudança de
lugar, por oposição a todas as outras formas de movimento,
a primeira e a mais importante; comparada com as demais,
ela é a verdadeira 7tpÓ'tEpov Tfl qi>crn [próteron tê physei]
(primeiro por natureza). Pois a diferença que nela se mani­
festa é aquela sobre a qual repousam a natureza e as proprie­
dades dos suj eitos que trazem em si essa mesma diferença.
Os quatro elementos de que se compõe o cosmos - terra,
água, ar e fogo - têm comprovada sua diferença específica
precisamente no fato de que a cada um corresponde um tipo
próprio e específico de movimento. Cada um desses elemen-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 285

sempre virem acompanhados de enunciados sobre um "onde'',


o fato de não nos ser possível precisar as determinações qua­
litativas dos corpos tisicos sem que nos apoiemos em deter­
minações de lugar, tal fato Aristóteles o interpreta atribuindo
ao lugar mesmo uma significação substancial. Os lugares têm
sua natureza e sua singularidade do mesmo modo como os
corpos as têm, ou de modo análogo. E entre essas duas natu­
rezas existe uma relação absolutamente determinada de co­
munhão ou de repulsão, de simpatia ou de antipatia. De for­
ma alguma o corpo é indiferente ao lugar em que se encon­
tra e no qual está contido; ao contrário: o corpo guarda com
o lugar uma relação de causalidade real. Cada elemento tisico
procura o "seu" lugar, o lugar que lhe pertence e que lhe cor­
responde, e foge de um outro lugar que se lhe opõe. Assim, o
lugar - relativamente a certos elementos - parece dotado de
forças, mas não daquelas forças que poderíamos definir co­
mo de atração ou de repulsão no sentido da mecânica moder­
na. Com efeito, não se trata aqui de grandezas tisico-mate­
máticas que possam ser graduadas segundo um princípio de
"mais" ou de "menos". Em vez de valores relativos de gran­
dezas, o que temos aqui são valores absolutos de existência.
Na estruturação de sua cosmologia, Aristóteles coloca a si
mesmo a questão de saber se a tendência, em virtude da qual
um determinado elemento tende ao lugar que lhe é natural, não
poderia ser concebida como uma propriedade passível de uma
graduação quantitativa; uma propriedade que, por exemplo,
apresentasse um grau diferente, a depender das diferentes dis­
tâncias em que o elemento se encontra em relação ao seu lugar
natural. Contudo, as premissas fundamentais de sua tisica e de
sua cosmologia obrigam-no a negar expressamente essa inda­
gação. Parece-lhe um contra-senso o fato de um corpo pesado
ser tanto mais atraído para o centro do mundo quanto mais
próximo dele ele estiver, pois a distância como tal é uma
284 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASC1MENTO

tos tem seu lugar natural na estrutura do todo, lugar em que


cada um alcança a perfeição e a plenitude que lhe são pró­
prias e para o qual, portanto, cada um tende necessariamente
a retornar, quando dele se separa. Dessa tendência funda­
mental resulta o movimento em linha reta para os elementos
terrestres, ao passo que a substância indestrutível e perfeita
dos corpos celestes admite a revolução em linhas circulares
puras como única forma de movimento que lhe sej a adequa­
da. Graças à sua natureza, graças à sua gravidade absoluta e
original, o elemento terra tende ao centro do mundo, ao
passo que o elemento fogo, em virtude de sua leveza absolu­
ta, tende a se afastar dele. O elemento éter, contudo, de que
se compõe a substância celeste, desconhece oposições desse
tipo. Nele reina a pura e absoluta uniformidade; a unidade do
"motor'' divino, que revoluciona a esfera celeste, deve ter sua
imagem na forma dessa mesma revolução que, por conse­
guinte, não pode ser de outra natureza, senão rigorosamente
regular e circular.
Assim, para Aristóteles, o movimento transforma-se em
fundamentum divisionis, em princípio de divisão por excelên­
cia do mundo, tanto em sentido tisico quanto em metafisico.
Mas o movimento só pode servir como um momento original
de determinação do ser à medida que ele próprio é conside­
rado em seu aspecto puramente qualitativo, ou seja, como
determinação absoluta do ser. O que Aristóteles vê no movi­
mento não é, portanto, uma relação meramente ideal, passível
de definição no interior das duas ordens universais do espaço
e do tempo. Para a concepção básica do sistema aristotélico,
tal relação de modo algum bastaria para assegurar ao movi­
mento uma significação real, ontológica. O movimento ficaria
prisioneiro da esfera do abstrato e matemático, do meramente
teórico, e não poderia caracterizar, que dirá definir exausti­
vamente, o "quê" concreto, a essência do objeto natural. O fa­
286 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

da quando se trata de se estabelecerem os efeitos que decorrem


da "natureza" de uma coisa, de sua essência. Esta essência e a
tendência ao movimento por ela condicionada são próprias de
cada corpo de uma forma absolutamente inalterável; indepen­
dentemente, portanto, de uma circunstância tão exterior e ca­
sual como a maior proximidade ou distância: "a opinião se­
gundo a qual os corpos simples teriam na natureza diferente
segundo eles estarem próximos ou distantes de seu lugar pró­
prio é ilógico. Pois qual diferença pode fazer se lhes dizem dis­
tantes de tal distância ou tal outra? Sua diferenciação deverá ser
proporcional e aumentar em razão do distanciamento. Porém
na forma permanece a mesma"79. Nessa passagem encontra-se
formulada com todo o rigor o pensamento fundamental da físi­
ca das "formas substanciais". Se a física moderna atribui a cer­
tas relações invariáveis o significado verdadeiramente objetiva­
dor e realizador, se toda a determinação da existência e dos
acontecimentos físicos repousa sobre tais relações, entendidas
como expressão das leis universais da natureza, de tal modo
que os termos singulares de tais relações - corpos e lugares
- só se tomam definíveis através dessas leis, para Aristóteles
vale a relação inversa. A natureza, a qn)mç [physis] e o dooç
[efdos] dos lugares "em si" e dos corpos, dos elementos "em
si", determinam a construção arquitetônica do cosmos e a
forma dos acontecimentos que se desenrolam em seu interior.
A física escolástica sempre se ateve a essa premissa fun­
damental. Duhem mostrou como no séc. XIV - no interior da
física escolástica, portanto - um novo espírito começa a ga­
nhar vida; como particularmente os tratados de Alberto da
Saxônia formulam certos problemas que, se considerados ex­
clusivamente do ponto de vista da forma como são formula­
dos, preparam o caminho para a cosmologia moderna, para as

79. Aristóteles, Oepi crupavou [Peri ouranoü] (Sobre o céu) A 8 .


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 287

teorias de Kepler e de Newton80 • Uma solução para tais proble­


mas só seria encontrada, porém, depois que o fundamento da
tisica aristotélica fosse demolido; depois que a doutrina do
lugar e do espaço fosse abalada em suas bases mais profundas.
No âmbito da filosofia especulativa, o tratado De docta igno­
rantia assinala a verdadeira ruptura nesse sentido, pois ataca o
cerne da doutrina aristotélica. A importância do tratado de Ni­
colau de Cusa para a cosmologia não reside propriamente no
fato de nele se ter renovado a doutrina do movimento da terra
vigente na Antiguidade, particularmente em Pitágoras, mas
sim no princípio a partir do qual tal renovação se processa.
Aqui, pela primeira vez, o princípio da relatividade do lugar
e do movimento é formulado com todo o rigor; e esse pensa­
mento não aparece senão como mero corolário do postulado
mais geral que domina a teoria do conhecimento de Nicolau
de Cusa. A fim de determinar o conceito de verdade objetiva,
Nicolau de Cusa precisa aprofundar-se especulativa e filosofi­
camente nos princípios da medição, pois todo conhecimento
não lhe parece outra coisa, senão um caso particular da função
universal de medir. Mens (mente) e mesura (medida) estão
intimamente relacionadas: quem compreender a essência do
medir terá compreendido também, e ao mesmo tempo, o ver­
dadeiro significado e a profundidade do espírito. Mas essa
relação de interdependência entre os problemas traz consigo
uma outra conseqüência. A autêntica doutrina da medida - a
cosmografia e a cosmologia matemáticas - passa a depender
do modo como se considera a relação de princípios entre
"sujeito" e "objeto". Quem quer encontrar as medidas verda­
deiras, as medidas objetivas do Todo, precisa voltar-se sobre­
tudo para o processo e para a forma básica da medida em
geral; precisa dominar plenamente as condições da medida.

80. Cf. Duhem, Études sur léonard de Vinci, seconde série, I I , 82 ss.
288 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Contudo, uma condição essencial de toda medida, particular­


mente de toda comparação espacial e temporal, consiste, para
Nicolau de Cusa, do fato de que primeiramente se devem to­
mar como fixos e imutáveis determinados pontos. Sem um
posicionar de tais pontos fixos, sem a determinação de certos
pólos ou centros, toda e qualquer descrição de movimentos
fisicos seria impossível. Mas se, por um lado, tal posiciona­
mento é imprescindível, por outro o princípio da docta igno­
rantia exige que nós a entendamos exatamente como tal; que a
consideremos uma determinação hipotética e ideal, e não uma
determinação absoluta e ontológica. O espírito que mede não
pode prescindir de pontos e centros fixos, mas a escolha de tais
pontos não lhe é prescrita para todo o sempre pela natureza
objetiva das coisas; ao contrário: o espírito tem plena liberdade
para escolher tais pontos. Nenhum "lugar" fisico desfruta aqui
de uma condição de supremacia natural em relação a qualquer
outro. Aquilo que se encontra em repouso do ponto de vista de
um observador pode ser visto como em movimento do ponto
de vista de outro, e vice-versa. Com isso, perdem o sentido os
conceitos de lugar e de movimento absolutos. Se um observa­
dor encontra-se no Pólo Norte da Terra, e outro no Pólo Norte
da esfera celeste, ao primeiro lhe parecerá que o centro é o
pólo, ao segundo que é o zênite, e ambos terão razão em consi­
derar como centro o lugar em que se encontram e em relacio­
nar todo o resto a este centro. A tarefa do entendimento consis­
te em relacionar uns com os outros todos esses diversos aspec­
tos sensíveis e de uni-los "complicativamente" numa só coisa:
uma tal redução, porém, revela o mundo como uma roda den­
tro de outra roda, como uma esfera dentro de outra esfera, que
em ponto algum possui um centro que desfrute de uma condi­
ção de primazia em relação a qualquer outros 1 .

8 1 . "Desenvolve estas diversas imagens de maneira que o centro se­


ja o zênite e vice-versa, verás então no meio do entendimento (de que a dou-
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 289

Comparado com o mundo aristotélico e seus lugares e me­


didas fixos, tal relativismo pode parecer à primeira vista uma
dissolução completa de tudo. Mas também aqui o aparente ceti­
cismo do princípio da docta ignorantia não faz outra coisa
senão preparar o terreno e servir de veículo para a elaboração
de uma tarefa inteiramente nova e positiva. No sistema da fisica
peripatética predomina um certo encadeamento recíproco dos
elementos fundamentais: os lugares são definidos pelos cor­
pos, os corpos pelos lugares que lhe pertencem. A esfera espa­
cial divide-se aqui do mesmo modo e segundo os mesmos pon­
tos de vista da esfera material. Assim como as coisas se divi­
dem em eternas e mutáveis, em perfeitas e imperfeitas, uma
diferenciação análoga perpassa o mundo do espaço. Do mesmo
modo como no mundo das coisas as propriedades não são inter­
cambiáveis, também no mundo do espaço não o são as posi­
ções: um abismo intransponível separa o "alto" do "baixo",
o mundo celeste "superior" do mundo sublunar "ihferior". A
supressão de tal divisão parece, a princípio, ameaçar toda e
qualquer tentativa de se fixar um ponto no espaço, toda e qual­
quer delimitação nítida e clara. O ãnetpov [ápeiron] (infinito),
não apenas no sentido daquilo que não tem fim quantitativa­
mente, mas também daquilo que não pode ser determinado
qualitativamente, parece ter-se convertido novamente em se-

ta ignorância somente se serve) que é impossível descrever o mundo e seu


movimento e figura, pois ele aparecerá como que circulo no círculo ou
esfera na esfera, não tendo parte alguma um centro ou, se se prefere, uma
circunferência." Cusa, De docta ignorantia II, 1 1 ; para a significação his­
tórica e a influência dessa doutrina cf. esp. E. F . Apelt, Die Re.fórmation
der Sternkunde, Jena, 1 852, pp. 1 8 ss. Para a relação sistemática que existe
entre a metafisica e a cosmologia de N icolau de Cusa, o leitor poderá lan­
çar mão das reflexões contidas na Tese de Doutoramento de Hans Joachim
Ritter, recentemente defendida em Hamburgo : Docta ignorantia. Die
Theorie des Nichtwissens bei Nicolaus Cusanus (Leipzig, Teubner, 1 927).
290 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

nhor do 11Épaç [péras] (limite); o caos parece ter-se convertido


em senhor do cosmos. Mas é precisamente neste ponto que se
instaura urna nova exigência, positiva e infinitamente fecunda.
O novo princípio do conhecimento, que ganha vida na filosofia
de Nicolau de Cusa, a nova norma da certeza que aqui se esta­
belece, destrói a imagem do mundo aristotélico com seus cen­
tros fixos e suas esferas que se interpenetram, e o faz justamen­
te à medida que entende essa imagem como simples imagem.
Mas precisamente a partir dessa destruição se faz cada vez mais
premente a tarefa de reconstruir toda a ordem do ser e do acon­
tecer a partir da própria força e com os meios próprios do inte­
lecto. O intelecto precisa aprender a mover-se em seu próprio
meio, no éter livre do pensamento, sem a ajuda e o apoio dos
sentidos, a fim de - em virtude desse movimento - assenhorar­
se da sensibilidade e elevá-la até si mesmo. Com isso, inverte­
se a ordem dos problemas, se a comparamos com a fisica aris­
totélica e escolástica. Aquilo que para esta servia de ponto de
partida, transforma-se em meta e em ponto final da observação
cosmológica. Uma vez reconhecida como princípio a relativi­
dade de toda a determinação espacial, deixa de ter sentido a
questão de saber se podemos ou não chegar a pontos fixos do
universo; a única coisa que nos resta perguntar agora é se, a des­
peito das constantes interações e da variabilidade infinita em
que nos encontramos, podemos fixar leis que regem tais varia­
ções. A determinação de um "lugar" qualquer pressupõe agora
um sistema de regras universais do movimento e só pode ocor­
rer no interior desse mesmo sistema. Sobre a unidade de tais
regras repousa a unidade do universo como universum con­
tractum (universo contraído), pois justamente o que diferen­
cia aquela unidade "contraída", que chamamos de "mundo",
da unidade absoluta de Deus é o fato de, naquela, a identida­
de nunca se apresentar como uniformidade substancial absolu­
ta, mas tão-somente como identidade relativa e sempre em rela­
ção à "alteridade". Somente por meio da diversidade é que se
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 29 1

pode compreender a unidade; somente por meio da transforma­


ção é que se pode compreender a constância. E essas duas
determinações não se distinguem entre si no sentido de que se
repartem em esferas distintas do universo, numa das quais reina
a transformação e na outra a unidade e a uniformidade. Uma tal
distinção espacial estaria em contradição com o princípio con­
ceituai da correlatividade, tal como definido agora. No cosmos
de Nicolau de Cusa não há mais uma única existência indivi­
dual que não traga em si, num amálgama indissolúvel, essas
duas determinações: a da "unidade" e a da "alteridade", a da
perenidade e a da constante transformação. Por conseguinte,
não há lugar aqui para uma parte isolada que se encontre "fora"
das outras, "acima" ou "abaixo" delas; o que vige aqui é o prin­
cípio de que "tudo está em tudo" (quodlibet in quolibet). Se se
reconhece o Todo como um conjunto de movimentos que inter­
vêm uns sobre os outros segundo leis fixas, não mais pode
haver neste Todo um "acima" ou um "abaixo"; nada pode haver
nele de eterno e necessário que se separe do que seja temporal e
casual. Ao contrário: toda a realidade empírica é justamente
caracterizada pelo fato de ser a coincidência desses opostos. Tal
coincidência, como inter-relação qualitativa, só pode ser ou não
ser; ela não pode existir ora em menor, ora em maior grau.
Desse modo, existe entre as partes do mundo a mesma relação
simbólica que Nicolau de Cusa vê entre o mundo e Deus.
Assim como o máximo absoluto tem sua imagem no máximo
relativo, assim como a infinitude absoluta de Deus tem sua
imagem no caráter ilimitado do universo, também a totalidade
do mundo se reconhece em cada um de seus elementos; tam­
bém a constituição deste todo reflete-se em cada determinação
específica e em cada um de seus estados particulares. Ainda
que a parte em hipótese alguma possa ser o Todo, ainda que não
possa abarcar em si a completude e a perfeição desse Todo,
ainda assim cada parte tem o direito de representar em si tal
perfeição. Essa concepção metafisica fundamental dá origem,
292 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

em Nicolau de Cusa, ao novo conceito cosmológico de un ifor­


midade. Tal conceito toma-se viável graças ao princípio da
docta ignorantia, pois, aumentando-se ao infinito a distância
entre o mundo empírico e o mundo da forma "absoluta", as
diferenças no interior da realidade condicionada, sensível e
empírica, se relativizam e acabam por se suprimir. Cada parte
do cosmos é o que ela é sempre em relação ao Todo; essa rela­
ção, porém, é concebida agora de tal modo que a supressão de
uma única parte é suficiente para destruir a função do Todo. É
dessa relação de reciprocidade entre todas as suas partes, e não
de um impulso que lhe é conferido a partir de fora, que nasce o
movimento do cosmos: do momento em que se compreende
que esse movimento é a manifestação da inter-relação das
coisas, de sua própria "realidade" imanente, portanto, o movi­
mento não mais carece de um impulso externo, de um motor
divino. É na totalidade, na diversidade infinita de movimentos
e na lei universal que, não obstante, os abarca a todos como
princípio unificador, que o conceito de natureza se determina
e se esgota: a "natureza" nada mais é do que a "complicação"
de tudo o que ocorre no e através do movimento.
A pedra fundamental de uma nova dinâmica estava assim
lançada. Mas é claro que o pensamento especulativo, que em
Nicolau de Cusa havia assumido essa tarefa com espantosa se­
gurança, não era capaz, por seus próprios meios, de chegar a
uma solução para o problema. Antes de ser alcançada, a me­
ta que se podia vislumbrar a distância precisava criar para si
mesma, e paulatinamente, os meios, as formas de pensamen­
to que lhe fossem adequados. Nesse sentido, Kepler figura co­
mo o criador de um novo conceito de ciência, não apenas por
ter concebido concretamente as leis fundamentais do movi­
mento dos planetas, mas sobretudo por ter-lhes dado uma fun­
damentação metodológica e de princípios. O lugar, enfatiza
Kepler, não é em si nada de determinado e de dado; toda de­
terminação espacial é obra do espírito: omnis locatio est mentis
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 293

seu mavis sensus communis opus (toda determinação de lu­


gar é obra do pensamento ou, se se quer, do senso comum) 82.
Tal é o princípio que governa tanto a astronomia teórica de
Kepler quanto sua ótica e sua teoria da percepção, e que reúne
todas as três numa unidade intelectual. Só a partir daqui é que
se pode entender plenamente que ccntribuições prestou ao
pensamento moderno o estabelecimento do princípio da
relatividade do lugar e do movimento. Este princípio revelá
que se havia chegado a uma nova relação fundamental entre
"natureza" e "espírito", entre "objeto" e "sujeito". Surge en­
tão, com toda a clareza, o fator ideal que está presente em
toda posição do obj eto, em toda objetivação espacial. Justa�
mente devido ao fato de o objeto não mais poder ser visto co­
mo uma propriedade imediata das coisas, justamente por ele
ser considerado pura relação, é que se impõe a tarefa de con­
ferir a esta relação uma posição precisa no conjunto do co­
nhecimento da natureza e de entendê-la em sua "estrutura"
peculiar e característica. A relação entre o "local" isolado e
o "espaço" também sofre uma transformação radical. Quando
Aristóteles reúne todas as determinações locais singulares
num espaço total unificador, ele o faz pensando essa relação
fundamental mais no sentido físico do que matemático. Com
efeito, a ligação de que se trata aqui deve ser pensada mais no
sentido concreto do que ideal: o espaço único que tudo abarca
contém em si os lugares específicos, seus elementos. De um
modo geral, existe entre o lugar que um corpo ocupa e este
mesmo corpo uma relação absolutamente concreta e real.
Aristóteles compara a relação que aqui se verifica com a re­
lação que existe entre um recipiente e um líquido que é ver­
tido para dentro dele. Assim como o mesmo cântaro ou odre
pode conter ora vinho, ora água, o mesmo lugar pode ser ocupa-

82. Kepler, Opera, ed. Frisch II, 5 5 .


294 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

do ora por um, ora por outro corpo. O que chamamos de es­
paço não é evidentemente nem a matéria de que se compõe o
corpo nem o corpo mesmo. De fato, em ambos os casos tra­
ta-se daquilo que é contido, enquanto n o conceito de espaço
pensamos muito mais naquilo que contém. Este último, por
sua vez, também não deve ser entendido como os limites do
corpo, ou como sua forma, pois a fo rma do corpo acompa­
nha-o em seus movimentos, de sorte que, se a víssemos co­
mo expressão do espaço, o corpo não se movimentaria no es­
paço, mas com o espaço. Assim, o espaço só pode ser deter­
minado como os limites do continente em relação ao contido.
O local de cada corpo em particular é c aracterizado pelo li­
mite interno do corpo mais próximo que o contém; quanto ao
espaço como um todo, este deve ser concebido como os limi­
tes das esferas celestiais mais periféricas83. Nesse sentido, é
evidente que os limites mesmos devem ser entendidos como
linhas geométricas, e não como algo material. Não obstante, po­
rém, a totalidade dessas determinações geométricas parece-se
mais com um simples agregado do que com um sistema. Com
efeito, o 'tÓ 7tOÇ KOt\Óç [tópos koin ós ] , o espaço "comum'',
de modo algum deve ser interpretado aqui como a condição
para se estabelecerem os espaços particulares; a relação do
espaço comum para com os espaços particulares, considera­
dos estes como os que contêm o sensível, é análoga à que existe
entre os espaços particulares e os corpos. Cada lugar em parti­
cular, cada tõwç 'tÓ7tOÇ [ídios tópos ], envolve o corpo específi­
co que ele abarca como se fosse uma casca. E nessas sobrepo­
sições, nesse envolver sucessivo, o espaço "comum" nada mais
significa do que a última casca, a mais externa de todas, além
da qual não pode existir nem espaço nem corpo. Pois o con­
ceito de "espaço vazio" não possui qualquer sentido no siste-

8 3 . Cf. Aristóteles, Física, IV, Caps. 5 - 7 , De coe/o, IV, 3 .


A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 295

ma da fisica peripatética: visto que o espaço só é entendido


como uma determinação pertinente ao corpo, como os limi­
tes desse mesmo corpo, ele necessariamente está atrelado ao
corpo, de sorte que onde não há corpo, não existe sequer a
possibilidade de haver espaço . Um espaço vazio seria como
um continente que nada contém. Nada menos do que uma
contradictio in adjecto (contradição nos termos). Por conse­
guinte, também a continuidade do espaço transforma-se de
uma determinação ideal-geométrica numa espécie de deter­
minação material. Assim como chamamos de contínuo o
mundo dos corpos, pois na vizinhança imediata de cada corpo
existe sempre um outro, de sorte que em ponto algum se veri­
fica uma lacuna, também na ligação entre os lugares indivi­
duais e o espaço total não se pode pensar num hiatus. A conti­
nuidade do espaço não busca os seus fundamentos - como é o
caso, por exemplo, nas teorias idealistas do espaço - na
"forma" e no "princípio" do espaço, mas decorre daquilo que
ele é substancialmente; daquilo que ele é como substrato.
Diante dessa concepção geral, uma das tarefas mais es­
senciais da filosofia e da matemática do Renascimento consis­
tiu em se criarem passo a passo as precondições para um novo
conceito de espaço: substituir o espaço-agregado pelo espa­
ço-sistema, o espaço como substrato pelo espaço como fun­
ção. O espaço precisava ser despido, por assim dizer, de sua
materialidade, de sua natureza substancial; ele precisava ser
descoberto como estrutura linear ideal, livre84• O estabeleci­
mento do princípio geral da homogeneidade do espaço foi o

84. Panofsky demonstrou recentemente que essa descoberta ocorreu


não apenas na matemática e na cosmologi a , mas também nas artes plásti­
cas e na teoria da arte do Renascimento. Seu trabalho mostra-nos também
que a teoria da perspectiva antecipa aqui os resultados da matemática e da
cosmologia modernas. Cf. sua palestra Die Perspektive ais symbolische
Form (Vortrãge der Bibl. Warburg, IV, 1 924/25).
296 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

primeiro passo nesse sentido. Na fisica aristotélica não havia


lugar para uma tal noção, pois nela existe entre os "lugares"
a mesma diferença radical que existe entre os elementos fisi­
cos. Se um dado elemento tende, por sua própria natureza, a ir
para o alto e outro elemento tende, também por sua própria
natureza, a ir para baixo, isso implica dizer que este "alto" e
este "baixo" possuem uma qualidade determinada e própria,
uma qn)mç [physis] (natureza) específica. Se, ao contrário, o
espaço não for pensado como quintessência de tais proprieda­
des dadas, mas for construído como um todo sistemático, a pri­
meira exigência que se coloca é a de que a forma dessa cons­
trução obedeça a uma lei única e rigorosa. Em princípio, as
mesmas construções devem ser possíveis agora de todos os
pontos do espaço; cada ponto deve admitir a possibilidade de
ser pensado tanto como ponto de partida quanto como ponto
de chegada para toda e qualquer operação geométrica possí­
vel . Tal postulado, que já havia sido entendido em sua gene­
ralidade por Nicolau de Cusa, só chegou à sua realização efeti­
vamente concreta com a teoria do movimento de Galileu. En­
tende-se agora por que Galileu sempre retorna a esse problema
central na crítica que faz à filosofia e à fisica peripatéticas.
Com efeito, nele se processa nada menos do que a total inver­
são do conceito de natureza vigente até então. A "natureza"
não mais significa o mundo das formas substanciais nem a
causa do movimento e do repouso dos elementos; a natureza
designa a regularidade universal do movimento, da qual não
se pode subtrair nenhum ser em especial, qualquer que seja
a sua constituição, pois é somente através dela e em virtude
dela que ele se insere numa ordem universal do acontecer. À
medida que primeiramente concebemos essa ordem como
ideal-matemática para comprová-la a seguir na comparação
com os dados da experiência sensível, percebemos que existe
uma ligação cada vez mais forte entre ambas. Tal ligação não
está sujeita por princípio a nenhuma espécie de limitação: no
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 297

mundo de Galileu não existe qualquer limitação que impeça


que o "ideal" se aplique plenamente ao "real", que impeça que
o "abstrato" tenha plena validade para o "concreto". Assim,
para Galileu, da necessária homogeneidade do espaço geomé­
trico resulta a homogeneidade do mundo. O movimento dei­
xa de ser um quale específico, que se apresenta sob formas dis­
tintas em corpos de diferentes constituições; o movimento pas­
sa a ser determinável, então, por uma mesma lei de medida e
de grandeza, universalmente válida. A união, a síntese de mo­
vimentos não segue mais outro princípio senão o da síntese
de números puros ou o da combinação construtiva de diferen­
tes operações geométricas. Enquanto o pensamento se ateve
aos pressupostos fundamentais da física artistotélica, uma tal
combinação não era possível: em Aristóteles, existe entre as
formas de movimento não apenas uma oposição real, mas tam­
bém uma espécie de oposição lógica. É bem verdade que Aris­
tóteles reconhece, paralelamente às formas básicas de movi­
mento que se opõem - o linear e o circular -, também um mo­
vimento "misto", que participa de ambas; tal "mistura", porém,
Aristóteles só a concebe para os casos em que o sujeito do mo­
vimento não é único nem homogêneo; quando o que se move,
portanto, não é um corpo simples, mas um corpo constituído
por elementos de diferentes tipos. De outra parte, se retornar­
mos ao que é verdadeiramente simples, a cada "natureza" de
um elemento corresponde um e apenas um movimento: atribuir
a tal elemento vários movimentos seria negar a univoc idade
de sua própria determinação. De fato, um corpo simples ao
qual se pudesse atribuir tanto o movimento em linha reta quan­
to o circular, tanto o movimento centrípeto quanto o centrífugo,
seria - do ponto de vista da física aristotélica - algo tão absur­
do quanto um galho de árvore constituído de ferro, por exem­
plo, pois seria preciso imaginar reunidas nele duas formas
substanciais opostas. Galileu, ao contrário, inverte essa regra
aristotélico-escolástica expressa na frase operari sequitur es-
298 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

se (o agir segue o ser). Em vez de deduzir a forma da ação


a partir de uma suposição dogmática sobre a forma do ser, Ga­
lileu parte das leis empíricas da ação para, através delas, che­
gar indiretamente à determinação do ser85 • E essa sua con­
cepção da forma do agir, por sua vez, é condicionada e sus­
tentada pela sua noção fundamental acerca da forma do saber.
Para ele, a unidade da natureza, a unidade da physis decorre
da unidade da tisica que, por sua vez, está garantida pela uni­
dade da geometria e da matemática. Como existe uma axiomá­
tica universal da medida, da determinação exata e empírica de
grandezas, também o mundo do que é mensurável não possui
qualquer oposição que não possa ser superada. As mesmas
normas básicas ideais devem nos servir para entendermos a
queda da pedra e a revolução dos astros e para determinarmos
o mundo terrestre e o celeste. Uma vez mais, tal inversão de
perspectiva nos permite aferir, tanto do ponto de vista da sis­
temática quanto da história, a importância decisiva da questão
do método para a problemática do ser. Na Idade Média, o dua­
lismo metodológico, a oposição entre teologia e tisica, refle­
te-se num conceito dualístico da matéria. Tomás de Aquino
sublinha precisamente o fato de não haver entre a matéria ce­
leste e a terrestre nenhuma comunhão de essência, mas sim
e tão-somente uma mera comunhão de nomenclatura. A con­
cepção moderna, que repousa sobre a premissa da unidade do
intelecto, sobre a noção de mathesis universalis (matemática
universal), tal como Descartes a fundou, não tem outra alter­
nativa aqui, a não ser tirar a conclusão contrária: a substân­
cia do mundo dos corpos é uma, porque e na medida em que
o conhecimento empírico e racional, por mais diverso que seja
o seu objeto, está sujeito às mesmas regras e princípios.

85. Para um aprofundamento dessa questão, cf. Erkenntnisprobleml


l, 40 1 ss.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 299

Mas se, de um lado, as normas ideais do conhecimento


matemático são as que passam a exercer uma influência deci­
siva sobre a configuração da física empírica, sobre a formu­
lação do conceito de movimento, por outro também é possível
observar o processo inverso. A nova unidade criada entre a
geometria e a física também surte os seus efeitos no sentido
de que o movimento, considerado idéia matemática, é inse­
rido no tratamento reservado à geometria. Na trajetória entre
a matemática da Antiguidade e a moderna, entre a geometria
"sintética" dos gregos e a geometria analítica e a análise do in­
finito, esse passo representa uma das etapas mais importantes.
Somente através dele é possível chegar-se a uma distinção ní­
tida entre a concepção de espaço e a concepção empírica de
coisa; somente através dele se torna possível transformar o
"espaço-coisa" em puro "espaço-sistema". O espaço da física
aristotélica, que é definido como os limites do corpo continen­
te em frente ao que é contido, mostra precisamente nesta defi­
nição que ele próprio continua prisioneiro dos corpos, que ele
nada mais representa do que uma mera determinação do cor­
póreo pelo corpóreo. Nele não reina, portanto, uma liberdade
verdadeira, seja do movimento, sej a da evolução das idéias.
Não apenas não se pode prolongar uma linha propriamente di­
ta até o infinito - pois o infinito atual encerra uma contradição
interna -, como também o movimento não pode ser conduzi­
do pelo pensamento, livre de restrições, para qualquer direção.
Pois o caráter específico do que se move coloca, de antemão,
barreiras rígidas a isso: determinados lugares e determinadas
direções são adequados e naturais a determinados elementos,
ao passo que outros contradizem a sua natureza. A dinâmica
moderna inverte esse estado de coisas à medida que transfor­
ma o movimento, que ela toma em seu sentido mais amplo e
geral, em veículo do conhecimento espacial, da determinação
de figuras geométricas. As pesquisas de Kepler no campo da
estereometria revelam com toda a clareza essa inversão. Para
300 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

estabelecer a relação de medida entre figuras sólidas comple­


xas, Kepler não opõe entre si as figuras estudadas como se fos­
sem algo pronto e dado, mas observa, em vez das figuras pro­
priamente ditas, as regras segundo as quais se pode pensar sua
origem. Cada figura dotada de corpo aparece agora como a to­
talidade de um número infinito de posições determinadas pelas
quais ela passa ao longo de sua constituição genética; e é ta­
refa do pensamento matemático encontrar um conceito de me­
dida que unifique essa totalidade. Assim, sob esse ângulo de
observação, o círculo aparece como a quintessência de um nú­
mero infinito de triângulos isósceles infinitamente pequenos,
cuj os vértices se encontram no centro do círculo; de forma
análoga, a esfera é pensada e calculada como a soma de um
número infinito de cones. E a pesquisa de Kepler não se esten­
de apenas a tais figuras geométricas básicas e conhecidas: do
movimento de diferentes superficies esféricas e cônicas em
torno de determinados eixos, diâmetros e ordenadas, nasce
uma profusão de novas figuras, cujos volumes ele tenta cal­
'
cular segun do uma metodologia geral86. À medida que, des­
sa forma, o conceito de infinito se revela não apenas um meio
de conhecimento legítimo, mas também absolutamente neces­
sário da matemática, o conceito de mundo e o de objeto de co­
nhecimento passam também por uma reformulação completa.
Com efeito, toda "integral definida" - e a metodologia de Ke­
pler consiste justamente em conceber as figuras geométricas
como "integrais definidas" e reduzi-las a elas - implica de ime­
diato a união de dois momentos, que até então pareciam to­
talmente irreconciliáveis. O infinito, que enquanto fotetpov

86. Para maiores detalhes sobre a metodologia do Stereometria dolio­


rum, de Kepler, cf. Zeuthen, Geschichte der Mathematik im 1 6. und 1 7.
Jahrhundert, bem como Gerhardt, Die Entdeckung der hiiheren A nalysis,
Halle, 1 85 5 , pp. 1 5 ss.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 301

[ápeiron] parece significar o oposto contraditório d e limite,


de rripaç [péras ], é colocado, na nova forma da análise mate­
mática, a serviço da determinação quantitativa, e chega mesmo
a provar-se como um de seus instrumentos mais importantes.
Sua transcendência metafisica transforma-se em imanência
lógica. O conceito de espaço despoj a-se, assim, dos últimos
resquícios de materialidade e transforma-se em estrutura or­
dinal pura. Essa transformação revela-se com particular clareza
na introdução do conceito de coordenadas por obra de Fermat
e Descartes. A geometria analítica de Descartes constrói-se
sobre as bases de um princípio lógico-geométrico semelhan­
te ao da Stereometria doliorum de Kepler. Com efeito, Des­
cartes também não trata as curvas que observa simplesmente
como dados concretos que se oferecem à observação sensível,
mas considera-as nascidas de um complexo ordenado de mo­
vimentos. A forma da curva é analiticamente reduzida à lei de
tais movimentos. O reconhecimento do caráter relativo de to­
do movimento conduz à conclusão de que o movimento, por
mais complexo que seja, é redutível, em princípio, a movimen­
tos elementares, que assumem a forma mais simples quando
os imaginamos percorrendo dois eixos perpendiculares entre
si. As diferentes relações de velocidade que existem entre es­
ses dois movimentos - o que se processa ao longo do eixo das
abscissas e o que se desenvolve ao longo do eixo das ordena­
das - determinam de forma inequívoca a forma geométrica da
curva resultante e tornam perfeitamente reconhecíveis todas
as suas propriedades. Ao mesmo tempo, dentro de um espaço
concebido como um puro sistema de relações, é a liberdade
do pensamento matemático que decide quais pontos serão con­
siderados como estando em repouso, e quais como estando em
movimento. Isto porque de cada sistema de coordenadas é pos­
sível passar para qualquer outro segundo uma simples regra
de transformação, sem que com isso as leis do movimento, sem
que as equações que expressam determinadas curvas sofram
3 02 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

qualquer outra alteração que não sej a meramente formal . E


neste ponto reside precisamente um dos progressos mais im­
portantes da moderna geometria analítica em relação à matemá­
tica grega. É bem verdade que entre os gregos já se encontram
claras alusões à aplicação do conceito de coordenadas; con­
tudo, a observação insiste em se ater rigorosamente a cada fi­
gura dada, o que a impossibilita de chegar a uma verdadeira
generalização. Para os gregos, o ponto inicial das coordenadas
deve sempre pertencer à figura observada, ou então estar em
estreita relação com ela e com suas propriedades geométricas
básicas. Contrariando essa visão, Fermat é o primeiro a criar
uma metodologia livre de todas essas limitações e que permite
tomar como centro do sistema de referência qualquer ponto no
plano da curva. A direção dos eixos de abscissas e coordena­
das também admite deslocamentos e rotações; em vez de coor­
denadas retangulares, podem-se empregar também coorde­
nadas oblíquas. Numa palavra: o sistema de coordenadas des­
fruta de uma condição de total liberdade em relação à curva.
Em sua obra Ad /ocos planos et solidas isagoge, Fermat des­
taca expressamente essa vantagem metodológica de seu pro­
cedimento em relação à Antiguidade, ao definir como sua tarefa
básica "submeter esse ramo do conhecimento a uma análise
que lhe sej a adequada, a fim de que, no futuro, o acesso geral
aos lugares permaneça livre"87. A matemática pura não teria
sido capaz de conquistar por si mesma esse universalismo da
concepção de espaço, se não se tivesse processado por um ou­
tro lado - particularmente pelos flancos da cosmologia e da
filosofia da natureza - um afrouxamento e, por fim, uma dis­
solução do conceito aristotélico-escolástico de espaço.

87. Cf. por exemplo 8. Wieleitner, Die Geburt der modernen Ma­
thematik. Historisches und Grundsiitzliches /: Die analytische Geometrie.
Karlsruhe, 1 924, pp. 36 ss.
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 303

Na verdade, muito antes de se manifestar concretamente


na metodologia das ciências exatas, essa transformação de uma
certa forma já se anuncia numa nova atmosfera e num novo
tom que marca todo o sentimento de mundo. Giordano Bru­
no é o testemunho típico dessa reviravolta na orientação da
observação. O emprego da noção de infinito como instrumento
do conhecimento científico exato ainda lhe é totalmente es­
tranho; com efeito, em sua doutrina do mínimo, Bruno chega
mesmo a combater e a rechaçar expressamente o infinito nes­
sa sua função. Mas, se por um lado ele não chega a vislumbrar
a estrutura lógica do novo conceito matemático de infinito, por
outro ele abraça com todo o ardor de uma paixão a noção do
cosmos infinito. É essa paixão heróica que se indispõe agora
contra o ne plus ultra (não mais além) da doutrina medie­
val dogmática da fé e contra a cosmologia aristotélico-esco­
lástica. A imaginação e o pensamento não devem ser detidos
em seu vôo livre por quaisquer limites rígidos, sej am eles do
espaço ou das coisas. Assim, Bruno não se cansa de voltar-se
sobretudo contra a concepção de espaço como "continen­
te", como o crcõµa neptixov [sôma periékhon] (corpo envol­
vente) da física peripatética. Para Bruno, o espaço em que
se encontra o mundo não é a última fronteira, no interior da
qual o mundo repousa como que embrulhado ou encapsulado,
por assim dizer; ao contrário: o espaço é, isso sim, o meio li­
vre do movimento, que se desenvolve sem entraves por sobre
toda limitação finita e em todas as direções. Esse movimen­
to não pode e não deve encontrar impedimento algum na "natu­
reza" de qualquer coisa em particular ou na constituição geral
do cosmos; pois é ele mesmo, o movimento, que - em sua uni­
versalidade e ilimitação - constitui a natureza como tal. O es­
paço infinito é imprescindível como veículo da força infini­
ta; e esta, por sua vez, nada mais é do que a expressão da
vida infinita do universo. No pensamento de Bruno, esses três
momentos nunca estão nitidamente separados uns dos outros:
3 04 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

assim como na fisica estóica e neoplatônica, nas quais ele se


baseia, também em Bruno o conceito de espaço confunde-se
com o de éter que, por sua vez, confunde-se com o de alma do
mundo. Também aqui, portanto, um motivo dinâmico rompe
e supera a rigidez do cosmos aristotélico-escolástico. Diferen­
temente de Kepler e de Galileu, porém, decisivo aqui não é a
forma da nova ciência da dinâmica, mas sim o dinamismo de
um novo sentimento de mundo. Tanto é que Bruno enxerga em
Copérnico menos o astrônomo que calcula do que o herói des­
se sentimento de mundo: "Quem poderá enaltecer devidamen­
te a grandeza de alma deste alemão que, não se importando
com o julgamento da turba desvairada e nadando contra a cor­
rente das opiniões contrárias, foi o primeiro a fazer triunfar o
verdadeiro ponto de vista ( . . . ) que libertou nosso conhecimen­
to do apertado cárcere de onde só se vislumbravam as estre­
las por pequenos orificios, que percorreu todo o ar, penetrou
no céu e pôs por terra as muralhas imaginárias da primeira,
da oitava, da nona e da décima esferas?"SS Palavras como
estas deixam claro que, para Giordano Bruno, o problema
do espaço não pertencia exclusivamente ao domínio da cos­
mologia e da filosofia da natureza, mas sim e sobretudo ao
domínio de questões éticas fundamentais. Essa relação sin­
gular com a ética nasce do fato de que, para Bruno, o sim­
ples testemunho da percepção empírica ou matemática de

88. Bruno, La cena de la ceneri, Opere italiane (Lagarde), pp. 1 24 ss.;


cf. De immenso et innumerab/ibus, Lib. l , Cap. 1 ( Op. latina l , 1, p. 20 1 ):

"Intrépido, eu surgi, fendendo com minhas asas o espaço imenso


e nenhuma opinião me fixa às esferas
que um erro verdadeiro estabeleceu a partir de um falso princípio
para que nós sej amos verdadeiramente reprimidos sob o cárcere escavado,
como o Tudo é fechado em muralhas de ferro,
pois em mim há um pensamento melhor."
A PROBLEMÁ TICA SUJEITO-OBJETO 305

modo algum afirma a infinitude do espaço, pois nem os sen­


tidos nem a percepção como tais são capazes de conduzir ao
verdadeiro conceito de infinito. Percebemos o infinito com
o mesmo instrumento com o qual também percebemos nosso
ser espiritual, nossa essência: o princípio do conhecimento
do infinito não deve ser buscado em outra parte, senão no
princípio do eu, no princípio da consciência de si mesmos9.
Assim, se queremos penetrar a sua verdadeira essência, não
podemos nos limitar à observação passiva, à mera contem­
plação sensível ou estética; ao contrário: para nos elevarmos
ao conhecimento do infinito, precisamos de um ato livre, de
uma elevação livre do espírito. Neste ato, através do qual o
eu se certifica de sua própria liberdade interior, a percepção
do universo infinito se lhe revela como o pólo oposto dessa
sua percepção intelectual de si mesmo. O conhecimento do
sujeito e o do objeto encontram-se inextricavelmente emara­
nhados aqui. Quem não encontra em si mesmo a paixão he­
róica da auto-afirmação e a extensão ilimitada de si mesmo
permanecerá cego perante o cosmos e a sua infinitude. No
diálogo Degli eroici furori, de Bruno, é a forma da psicolo­
gia e da ética do Renascimento que se revelam como tema
decisivo da nova cosmologia. A percepção do infinito é des­
crita sem exceção como um ato do eu e é exigida, também
sem exceção, como um ato do eu. A idéia de uma pluralida­
de, e mesmo de uma infinidade de mundos, também não era
estranha à especulação medieval, que ponderou sob todos os

89. Bruno, De l 'if!finito, universo e mondi, Dia!. 1, Op. ital. , p. 307:


"Não há nenhum sentido que veja o infinito, nenhum sentido do qual se exi­
ja esse desempenho, pois o infinito não pode ser objeto dos sentidos: e por
isso quem pretende conhecer por meio dos sentidos, assemelha-se a quem
gostaria de ver a substância e a essência com seus olhos e quem negaria por
isso a coisa, porque ela não é sensível ou visível, viria até a negar a própria
substância e o ser."
306 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

aspectos a possibilidade teórica dessa idéia, ainda que - em


consonância com os argumentos a favor da unidade do cos­
mos, apresentados por Aristóteles em sua obra De coe/o -

ela acabe por se posicionar, na grande maioria das vezes,


contra essa idéia9º. E também aqui, na forma de rechaçar essa
idéia, fica evidente a ação de temas que não eram exclusiva­
mente intelectuais, mas também éticos e religiosos. Parecia
que, ao se abandonar a idéia de um único mundo, abandona­
va-se também a idéia de um valor único do homem; parecia
que o processo religioso ficava privado de seu centro único e
verdadeiro. Essa visão fundamental chegou a surtir seus
efeitos até nos espíritos exponenciais dos primórdios do
Renascimento: em De sui ipsius et aliorum ignorantia, Pe­
trarca ainda chama expressamente de "o ápice da loucura" a
tese da infinitude dos mundos e a estigmatiza de heresia fi­
losófica. Pftra Bruno, ao contrário, é a dignidade intelectual
e moral do eu, é o seu conceito de pessoa que reclama um no­
vo conceito de mundo. A proclamação das bases de sua visão
cosmológica revelam, de forma inequívoca, esse pathos sub­
jetivo; em toda a obra de Bruno, a ênfase recai menos sobre
o universo e mais sobre o eu, que tem de engendrar em si
mesmo essa visão de universo. A nova cosmovisão represen­
ta-se, sem exceção, na forma de um novo impulso, de um
ímpeto e de um incitamento absolutamente novos. O homem
só encontra o seu eu verdadeiro à medida que atrai para den­
tro de si a infinitude do Todo e, por outro lado, expande-se a
si mesmo em direção a ela. Nesse ponto, apagam-se as fron­
teiras entre vida e morte, pois somente na morte, somente no
abandono da existência individual é que se pode entender a
verdade autêntica e a universalidade da vida. Nos sonetos

90. Para um aprofundamento acerca da posição dessa questão na ti­


sica escolástica dos sécs. XII e XIII, cf. Duhem, Léonard de Vinci et les deux
Jnfinis ( Études sur L. de Vinci I I ) .
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 307

que integram o diálogo Degli eroicifurori, por certo não foi o


filósofo, mas o poeta Giordano Bruno, quem conferiu a essa
concepção fundamental a sua expressão mais pura e vigorosa:

Poi che spiegat ' ho l ' ali ai bel desio


Quanto piu sott ' il pie 1 ária mi scorgo,
Piu le veloci penni ai vento porgo,
Et spreggio il mondo, et vers ' il cielo m ' invio.

Ne dei figliuol di Dedalo i l fin rio


Fa che piu pieghi, anzio via piu risorgo .
Ch' i ' cadró morto a terra ben m ' accorgo,
M a qual vita pareggia ai morir mio?

La voce dei mio cor per 1' aria sento,


Ove mi porti temerario? china,
Che raro e senza duol tropp ' ardimento .

Non temer, repondi ' io, ) ' alta ruina.


Fendi sicur le nubi, et muor contento.
S' iI ciel si illustre morte ne destina. 9 1

"Depois que e u dei asas a esse belo desenho


quanto mais sob os pés percebo o ar
mais ofereço ao vento minhas plumas velozes
mais desdenho o mundo e me lanço ao céu.

Nem o fim cruel do filho de Dédalo


faz-me desviar (para baixo) antes eu me elevo ainda mais o
[caminho .
Que cairei morto na terra eu bem sei
mas aquela vida se compara à minha morte?

9 1 . Eroicifurori, Dial. III, Op. ital. , p. 648.


308 INDIVÍDUO E COSMOS NA FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

Eu ouço no ar a voz do meu coração


onde me levas, temerário? Volta !
pois raramente é sem dor uma audác ia demasiadamente grande.

Não temas, respondo, a ruína grandiosa


fende as nuvens com segurança e morre contente
se o céu nos destina a uma morte tão i lustre . "

Se, por um lado, a problemática do espaço desemboca


uma vez mais na questão filosófica geral do Renascimento,
isto é, no problema da relação "sujeito" e "objeto", por outro
fica evidente que justamente tal fato faz ressurgir aquela dia­
lética com a qual a filosofia do Renascimento teve de se con­
frontar constantemente. Podemos mesmo dizer que, para ga­
nhar sua expressão mais apurada, era preciso que tal questão
se nos revelasse sob sua forma mais concreta, sob a linguagem
da percepção do espaço. O homem está para o universo, o eu
está para o mundo assim como o contido está para o continente.
As duas determinações são igualmente imprescindíveis para
se exprimir a relação do homem com o cosmos. Assim, existe
entre ambos uma reciprocidade constante, a constante trans­
formação de um em outro. Se a infinitude do cosmos não ape­
nas impõe limites ao eu, mas também ameaça reduzi-lo a nada,
de outra parte está j ustamente nela a fonte de sua constante
elevação, pois o espírito iguala-se ao mundo que ele conce­
be. Partindo dos mais diferentes pontos, a filosofia do Renas­
cimento chega a esse mesmo tema fundamental e em tomo dele
realiza inúmeras variações. "Eu preencho, e penetro, e contenho
o céu e a terra", afirma Deus no diálogo entre Deus e a alma
escrito por Ficino segundo o modelo de Agostinho. "Eu preen­
cho e não sou preenchido, pois sou a própria plenitude. Eu pe­
netro e não sou penetrado, pois sou a própria força de penetra­
ção. Eu contenho e não sou contido, pois sou o próprio poder
A PROBLEMÁTICA SUJEITO-OBJETO 309

de conter."92 Mas todos esses predicados que a divindidade


reivindica para si são atribuídos agora, em igual medida, à alma
humana. Também a alma, ao ser tomada como suj eito do co­
nhecimento, contém a realidade obj etiva, em vez de ser por
ela contida. A primazia da alma perante todas as demais coisas
firma-se com total segurança e de uma vez por todas. O eu es­
tá à altura do cosmos, pois encontra em si mesmo os princípios
a partir dos quais pode conhecê-lo em sua infinitude. Tal co­
nhecimento, porém, não é do tipo meramente abstrato, pura­
mente discursivo; trata-se de uma certeza intuitiva que, longe
de ter sua origem no entendimento lógico, provém do princí­
pio vital e específico do eu e dele brota sem cessar. Diante da
divindade e do universo infinito, o homem do Renascimento -
como o Ganimedes de Goethe - "engloba e é englobado". A
filosofia do Renascimento jamais conseguiu superar a antino­
mia dialética contida nessa relação de dois lados. Seu mérito
indiscutível, porém, reside no fato de ter sido ela a primeira a
identificar o problema e a transmiti-lo, sob nova versão, aos
séculos seguintes, aos séculos das ciências exatas e da filoso­
fia sistemática.

92. Ficino, Dialogus inter Deum et animam Theologicus. Episto/. ,


Lib. 1 (Opera foi. 6 1 O).

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