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DADOS PARA A HISTÓRIA DOS ÍNDIOS CAIAPÓ

Afórto Neme

Pouco se sabe da historia dos indios Caiapó ou Bilrei-


i'os nos dois primeiros séculos do povoamento. Em 1607,
o sertanista Belchior Dias Carneiro, “língua da terra", co­
mandava uma expedição no rumo de sertões desconhecidos ;
para Carvalho Franco ela se destinava à “região dos bilrei-
ros ou caiapós" que compreendia “o Rio Tietê abaixo, indo
para Mato Grosso e para Goiás" C1).
Na bibliografia paulista, essa seria a primeira referen­
cia por ordem cronológica aos Caiapó o em relação com sur­
tan! stas de São Paulo (2X Depois, disso, pouco aparecen i
na documentação até cerca de um século mais tarde, quando
passam a ser continuamente citados, em razão das proezas
que praticam contra viajantes de Cuiabá © também por
causa da guerra implacável que os brancos lhes movem.
Realmente, a maior soma, de informações a respeito dos
Caiapó ou Bilreiros começa a aparecer a partir de 1720,
marcando esta data o início de um período em que eles
são a todo momento apontados como índios guerreiros e
volantes. Não obstante, essa disposição de ânimo dos
Caiapó era já denunciada na segunda metade do século an
tecedente, ocasião em que ocupavam a área araguaiana do
Planalto Central.
A respeito de uma bandeira paulista que desde 1671 se
havia arranchado junto das cabeceiras do Tocantins, infer
mava em 1G76 o padre Antônio Raposo que no ano anterior,
“passando pelo sitio onde se tinha alojado o cabo da tropa
de São Paulo, achou notícia que por seu descuido ou ambi­
I
ção de cativar gentio, o tinha este morto e aos demais da
tropa, e eram duas nações, a dos aruaqueres de língua geral
e melhor gênio, e a dos bilreiros, cruel e belicosa..." P).

( 1 ) F. A. Carvalho Franco, *’DlckcMifcno ao BandclranloK c .HrrúiniHíiiH do


Brazil", ed, Oomlaifio IV Centen&rlo do Sfco Paulo, 6fto Paulo, IVfdl,
pgf*. 101 o 340,
(2 J Veja-ÆB .Nota A. no fim dflate trabalho,
( 3) Carvalho Franco, ■•DiclonArio", clt., ps. tig
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L)ï s f ri b uîçüo geográfica mos — estaríamos cm face de uma nação das mais pujantes
e que apesar de intensamente combatida iria manter-se coesa
Nessa região do atual Goiás, os Caiapó iriam permane­ c forte ainda por um longo período, todo êle marcado de
cer o tempo suficiente para transmitir o seu nome a unia adversidades.
serra, a Serra do Caiapó, e a um rio, também chamado do
Uaiapó, afluente do Alto Araguaia, Em 1723 — meio século A/pwns usos e costumes
decorrido — na sua breve notícia sôbre “o gentio bárbaro
que há na derrota da viagem das minas de Cuiabá”, Antô­ Pelo Paranaiba acima habitam os Caiapó, dizia em 1723,
nio Pires de Campos. mõço, diria que navegando da barra como vimos, António Pires de Campos, de todos os infor­
do Tietê pelo Grande acima 4‘se dá em um rio chamado Per- mantes talvez o mais capacitado. Tratavam-no os índios
uaíba 0 por ele acima habita o gentio chamado Caiapó" (l). por Pai-Pirâ (pai de todos), passara grande parte da vida
Mas pouco depois dessa data, os Caiapó seriam encontrados no sertão, contrataria com o governo c combate sistemático
também em terras que margeiam o rio Pardo, afluente do ao gentio hostil, pondo-se para isso ã testa de uma horda
Paraná, bem abaixo da barra do Tietê mas pelo lado direi­ constituída somente de índios Bororo, sem nenhum guer­
to; terras hoje do Sudeste de Mato Grosso. Em 1727, um reiro branco ; dele diria Pedro Taques que fôra "na praça
capitão Camelo, viajando de São Paulo a Cuiabá pelo cami­ Adonis e no sertão Marte". Valiosa, por tais motivos, a
nho dos rios, informará a respeito do Pardo: "Por todo indicação que nos dá de que os Caiapó eram, no início desta
esse grande rio costumam andar os Caiapós". E no pros­ época de contürbações, um povo nativo tão estável como
seguimento da viagem, ao entrar no Camapuã, não deixará os que mais o poderiam ser, vivendo em aldeias e praticando
de advertir que o riacho é de navegação difícil e perigosa, uma agricultura diversificada, “tste gentio — escrevia o
mas que "o maior risco é □ dos Caiapós" (3). Pai-Pirá — é de aldeias, e povoa muita terra por ser muita
gente, cada aldeia com seu cacique, que é o mesmo que
la além, entretanto, o domínio dos Bilreiros já no se­ governador, a que no Estado do Maranhão chamam princi­
gundo decénio desse século 18 : há indicações de que nessa pal, o qual os domina; estes vivem de suas lavouras, e no
época éles também se internavam mais para Leste, alcan­ que mais se fundam são batatas» milho c outros legumes;
çando terras do atual Triângulo Mineiro. Um alferes de mas os trajes dêstes bárbaros é viverem nus, tanto homens
nome Moreira, sertanista que percorre durante dois anos o como mulheres, e o seu maior exercício é serem corsários
contorno da serra da Canastra, localizava em 1731 uns "cam­ de outros gentios de várias nações e prezarem-se muito entre
pos dos Caiapós” no trajeto de quem caminhasse da pri­ éles a quem mais gente há de matar... e nos assaltos que
meira cabeceira do São Francisco para a estrada de São dão aqui e presas que fazem reservam os pequenos que
Paulo e Goiás, atingindo-a no trecho em que penetrava no criam para seus cativos: as armas de que usam são arcos
território mineiro. Pelo que dizia este sertanista, os "cam­ muito grandes e flechas muito compridas e grossas, e tam­
pos dos Caiapó" ficariam mais ou menos entre as atuais bém usam muito de garrotes, que são de pau.(').
cidades de Sacramente e Araxá, correndo para Uberaba ("*).
Q uso desses garrotes valera aos Caiapó o serem cha­
Vemos, portanto, que esses indígenas encontravam-se mados também Bilreiros pelos paulistas dos séculos 17 e 18,
desde a zona do Pardo e Camapuã, no Sudeste de Mato embora já nesta última centúria passasse cada vez mais n
Grosso, até a área hoje do Triângulo Mineiro, bem para predominar o primeiro designativo, certamente por econo­
Leste; e para cima» até a altura quase da embocadura do mia de linguagem ou por questão de eufonía. Tratava-se
Araguaia. A aceitar-se toda essa amplíssima faixa como de uma espécie de porrete de feitio semelhante ao dos bil­
estância dos Caiapó — e não há motivo para não o fazer- ros (2) e que é hoje conhecido por borduna pelos serta­
( I ) "‘Reluioo SertAnistafl". Cûletflnéa e Iritrôdu^fio de Afonas de Taunay,
nejos da área do Araguaia, antigo dominio dos Caiapó,
cd. Comissão JV CentenAriO de Sivo Paulo, BSo Paulo, 10.54. pff. 1«1
i '4 > -UrJdtah .MonçoeiroB’1, coletânea e introdução de Afonso du Tiiunuy, 4 1 ) Idem, pa- 181.
cl. CoiiiiníAo IV Céntenàrlo de Sfío Paulo, São Paulo. 1954, pflfB. 115-17 (2) uÊHte 6 o gwtlo que uwa de porrete, ou bjLrúF <■ o rjiulr* Irnldoi1 il.
i !i} “HcHtoB BartoDfotM", clt., p<a, 168-HB. todos*' (“Reiutûa MonçoelroB", okt„ pt. Jlñ)
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Descrevia-os Pires de Campos, no prosseguimento de seus jogos, é “o mais célebre o que chamam de touro, cm
sua informação, como feitos "de pau de quatro ou cinco que se disputam uns com os outros as forças na carreira,
palmos com uma grande cabeça bem feita”; “com os quais tomando uns do ombro de outros um grande tronco que
fazem um tiro em grande distância e tão certo que nunca empregam neste ministério” (pg. 494).
erram a cabeça I da caça ou do inimigo J"; “e é a arma de
que mais se fiam" (a). Um viajante de 1785, meio século decorrido dos tempos
de Pires de Campos, dizia em seu relato que os Caiapó
Tal descrição íoi complementada em 1751 pelo Conde “têm suas aldeias" bem perto do caminho do Camapuã ao
de Azambuja, no relato de sua viagem de São Paulo a Coxim, e que "viviam nus inteiramente”. Do caminho, po­
Cuiabá, Os bilrei ros — escreveu — “são uns paus, do ta­ dia ver-se ao longe o fogo das queimadas que faziam, o quo
manho de còvado, pouco mais ou menos, de uma parte denotava a persistência da prática da lavoura.
redondos, por onde ihe pegam: pela outra espalmados, co­ Mas aparentemente contrariando essas informações, o
mo os paus de remos: enfeitam-os, cobrindo-os com seus mesmo viajante afirmava em outro passo que o Caiapó
tecidos feitos de cascas de árvores, de várias córes, à imi­ "sempre anda vagando” (r); e o citado Cabral Camelo,
tação do esteiras ; porém muito ajustados e unidos aos c 1730, registrava a propósito do rio Verde, segundo afluen­
paus" (*). te direito do Paraná abaixo da foz do T’ietê, que nele
Cuanto aos costumes desses indígenas, acrescentava um ‘assistem conmínente os Caiapós, não obstante me afirma
memorialista de 1812 que os Caiapó “têm alguns ritos ju- rem muitos que andam sempre a corso" <s), Um outro
dáicos", admitem a poligamia e o divórcio, “fazem festas e informante, da mesma década de 1730, o sertanista Manuel
ajuntamentos noturnos, cm que cm confuso procuram a de Barros, sujeito entendido em engenharia e muito dado n
propagação" ( j, adiantando ainda, com relação às façanhas perquirição de minas, afiançava que tais índios “guerreiam
guerreiras do Pai-Pirá, que éste sertanista havia feito “bar­ com traição, não têm domicílio certo, nem plantas ou lavou­
baridades espantosas e grande mortandade, chegando até à ras : são volantes e de corso, e se sustentam da imundície
aldeia grande do caiapó..." (’). do mato ; e quando chegam a plantar, trazem o mantimento
consigo, conduzindo-o de uma parte para outra...” (“).
O dado de maior interesse para o nosso caso é a refe­
rência à “aldeia grande”, cuja existência, ao lado dos ele­ Veremos adiante se existe explicação para as contradi­
mentos já apontados ampla distribuição geográfica de ções e inconsistências que aparecem nestes depoimentos,
agrupamentos tribais e uma constelação de cacicados — faz sendo, porém, de advertir desde logo que se um povo chega
lembrar uma organizaçao social algo complexa. a plantar alguma vez, isto significa que a prática da lavoura
participa de seus costumes; só o poderia fazer um povo
O mesmo memorialista acrescentava outras informa­ desde antes afeito à agricultura.
ções, todas a respeito dos Caiapó do seu tempo, já forte­
mente seul turados : “alongam-se nas suas caçadas e cor­ De tudo, em suma, um aspecto bem nítido ressalta, o
rerias até os sertões de Curitiba, numa distância de trezen­ da notável vitalidade da nação Caiapó, da qual o próprio
tas léguas : são valentes e guerreiros ; usam, além do arco informante acima citado não se furtou a dizer: "É éste
e flecha, em que são destrissimos, de certos paus cortados gentio uma nação que nunca íoi conquistada pelos serta-
e rijos, com que pelejam de perto; contam os meses por nistas”. Ao que acrescentava o padre Silva e Souza, fa
luas; fazem as exéquias de seus mortos com danças, e se lando já do seu tempo, serem os Caiapó uma “nação bra­
tingem de negro em as ocasiões do seu sentimento”. Dos víssima e muito numerosa” e que, nas suas caçadas e cor
terias, alongavam-se por distâncias de trezentas léguas.
f8 ) “EtelaLoa fiwc cit., pg. 182,
{4 ) **RúÍôtôtí Mançoúlras*, pg, 1S5. (7) "’Relatos Mcinçoeirœ”, cil., pg. 211, — Relido de Viagem do Dr, Dkoito
í h ) Pudro Lufe Antonio da. Silve, e Sau&R, “Memória sftbre o descobri men :o, Toledo Lara e Ordsnil 4®,
EOTúrrio, etc. dB GalAs*. in 1UHGB, Vol. 12, pp, 494. (81 Idem, pg. 116
* C <i ) Idflin. ibidem, pg 494. ( »> Idem, pg t4tí.

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Capacidade de locomoção Em um periodo posterior, ao que informa Pedro Taques,


o gentio Caiapó "infestava a estrada de Goiás em compri­
Vimos atrás que os depoimentos setecentistas apresen- mento de mais de 200 léguas, desde o rio Uruçanga até
iam os Caiapó como um povo estável e ao incsmoi tempo Vila Boa” (l), sendo o Uruçanga (hoje Orissanga) um dos
guerreiro e volante; mas isto não devia significar
‘M que eram afluentes direitos do Mogi-guaçú e pouco acima da cidade
milis errantes que o normal do gentio, pois a permanência dêste nome, figurando já como Urusanga em carta geográ­
déles por mais de uni século na área do Araguaia, e de outro fica da época (Montezinho). Ainda em 1772, comunicava-se
lauto no circuito do Caniapuá, depõe em sentido contrário. ao govÊmo da Capitania que num sitio chamado Capão, na
altura do rio Jacuí, limites entre São Paulo e Minas Gerais,
Tudo indica que a qualificação de volantes, surgida no os Caiapó haviam atacado moradores, incendiando casas ("),
século 18j. derivava mais da contínua mobilização das suas Por ésse tempo, segundo cartas do Morgado de Mateus, o
facções guerreiras do que do comportamento da totalidade Caiapó vinha transtornando “a navegação do Cuiabá desde
dos componentes das tribos, incluindo velhos, mulheres e Avanhandava até o rio Pardo” e também as “ Campan has
crianças. Acreditamos que enquanto estes permaneciam do Mogi-guaçú” (a).
un suas aldeias, sujeitos apenas a limitadas deslocações Mas ao lado dessas incursões guerreiras, em que de­
periódicas, efetuadas por conveniências próprias (estações monstravam grande capacidade de locomoção, vimos que
do ano, migrações de caça, esgotamento do solo), as hordas os Caiapó permaneceram por longo tempo em suas estân­
combatentes se locomoviam a grandes distancias empós do cias: e, apesar de viverem agora em fase pouco propícia à
inimigo, de presas de guerra e da caça, cari'egando além das estabilidade, nelas se manterão ainda por mais um século.
armas alguns alimentos essenciais. Na área do Pardo, onde eram apontados desde 1727, o Con­
Sabe-se com certeza que os guerreiros Caiapó, favore­ de de Azambuja confirmará a presença déles em 1751, ao
dizer que “todo o Rio Pardo é distrito do gentio Caiapó" (i).
cidos pelo uso tanto de arcos e flechas como das temíveis Em terras araguaianas, “terras domiciliares do Caiapó” se­
bordunas, incursionavam nessa e em épocas posteriores por gundo o padre Silva e Souza, uma expedição de 1773 en­
várias partas do atual território paulista, alcançando zonas contra “arranchamentos de quatrocentas camas e mais”
muito distantes de suas estâncias. Em 1727, o citado Ca­ (pg. 455). Na região do Sul de Goiás e limites de Minas,
bral Camelo, ao falar do ltapura, advertia que “a éste últi­ Saint’Hilaire testemunharia em 1819 que nessa área esta
mo salto dizem que muitas vêzes vem o gentio Caiapó em vam “situados imensos desertos, onde vivem tribos indi
suas jangadas" ('). O mencionado Pai-Pirá afiançava por gênas coaipós” (sic). Os moradores das primeiras po­
sua vez, a respeito dos dois primeiros afluentes abaixo da voações^ mineiras ao longo do caminho São Paulo-Goiás
toz do Tietê, o Sucuriú e o Verde, que “estes dois rios não “já estão muito próximos dêsses selvagens” (8),
têm habit antes nêles, mas s&o cursados e batidos do mesmo
gentio Caiapó** (2), acrescentando que incursionavam tam­ Todos êsses depoimentos, tomados ao pé da letra, signi­
bém pelo alto Nliandui e TaquarL Um autor anônimo que ficam estabilidade e mobilidade espacial concomitantes. A
escreveu na década de 1720 dizia que “de Itu ao Rio Grande aparente contradição entre os fatos e o modo de ver dos
não se encontram fácilmente Caiapós, a que por outro nome
chama Bilreiros”, os quais dificilmente ultrapassam o Rio (4) Pedro Tuques de Almeida Faea Leme, “Nobillarqulft Pauiteta lltetórlí:»
* (lenealófificaHr ed. Martins, São Paulo, 1&Õ3, Vol, II, pg. 1?S.
Grande ; mas “já cm alguma ocasião passaram e chegaram ( &) Idem, Ibidem. Pï. 447.
tão perto de S. Paulo, que tocaram o sino da Igreja de 4 fl) DI., Vol. 7, pgsfc 133-94.
Jundiaí, com cujo som aterrados fugiram**’ (a)+ (7 ) 'llelatos Monçoetros”, ciu pt 191. — Tumbòm aôbra o ria Grande,
dizia. -Tem multa* onça*, etc.; c juntamente ifont-j-a» Calajes" (Ob cil
Plí.
(U) A. Samt'IIllftjr<\ “Viagem ¡4 Província de SAo Paulo1*, od Martina, Him
( 1 ) ¡dim, Pif. llf». PaUlO, !£MC3í pg. 130. '■* De 1810 ft 181(1, indias CitlaiaiN i-.rio hjcííI Iyüuli
< 2 I “Relato* Ser tan lutai”, clt.r pu. 182. desde a parte fronteira da barra do Tietê atê ah lïnedlftçAe» do Urubu
1 3 ) Idem, pff 23fi, punga (D.I., Vol, 4. pga. Í&4 e brh.; Vol. 44, pg&. 117. I'Jlll,
— 111 —
F

Informantes se explicaria, como dissemos, pela permanência percurso direto entre dois pontos, contrariando o costume
do grosso das tribos em suas aldeias e contínua movimen­ de vaguear pelos campos e matos para se aproveitarem de
tação das facções de combate, o que valeria por mais unia frutos e raizes, da caça, do pescado, tudo de aoôrdo com a
prova de vitalidade (?): e o próprio mantimento que estas situação de querências já sabidas e a já sabida rotação das
bordas conduziriam consigo, levando-o de uma parte para estações do ano.
outra, seria antes trazido das aldeias do que produzido em Existem, portanto, bons fundamentos para se admitir
meio das andanças e dos azares da guerra. anterior estacionamento de tais índios em paragens mais
E sabendo-se, — como veremos em seguida — que os próximas dos núcleos povoados do planalto paulistano, infe­
Caiapó tinham sido nos começos do século 17 um povo pací- rência que é reforçada, como veremos, por indícios extraí­
lico e assentado» e ao qual a agricultura não poderia ter dos dc documentos seiscentistas.
sido estranha, a história dirá que na fase seguinte, em que Tal permanência durante parte do século 17 em terras
foram intensamente perseguidos e assediados, êsse povo, ao do Norte e Noroeste de São Paulo, implicando em expe­
contrário de aceitar a derrota, encontrou forças para enfren­ riência acumulada e conhecimento do terreno — dos cami­
tar o inimigo e sobrepor-se às adversidades, ao mesmo tem­ nhos, das moitas, das estâncias de caça, reservas de mel,
po cm que via desmantelar-se progressivamente sua antiga frutos e raízes comestíveis — explicaria as incursões dus
estrutura social, com o abandono, ou mudança forçada, de Caiapó por essa extensa área até fins do século seguinte;
usos e costumes tradicionais. período para o qual, como já vimos, existem várias teste­
munhas que colocam os Gaiapó nas terras banhadas pelo
Antipa estância dos Caiapó baixo Tietê, Mogi-guaçú e Turvo. Ainda em 1788, quase
no fim da centúria em questão, um viajante que tinha olhos
Mas dos depoimentos acima citados colhe-se também a de ver, o naturalista Lacerda e Almeida, falando a respeito
impressão, bem nítida na verdade, de que aos Bilrciros do do Camapuã de Mato Grosso, comentava: “Esta Fazenda ê
século 18 não eram estranhas as paragens que se demoram infestada peio gentio Caiapó, nação robusta que usa de bor­
ao Noroeste do atual território paulista, o que somente se dão e flecha armada na sua extremidade de um espontãu
pode atribuir a contatos continuados, não ocasionais, com de rijo pau cheio de farpas desencontradas .eé tão nume­
essas regiões* E mais acentuada se toma tal impressão por rosa, que só por si faz um grande império, pois principiando
nos parecer evidente que a excursão que fazem até as ime­ ao Norte do Cuiabá, chega a Camapuã, ao Norte de São
diações de vila de Jundiaí, numa ocasião de que ficou me­ Paulo, ao Norte e Leste de Vila Boa de Goiás..C1).
mória, não poderia ter sido fruto de uma viagem às cegas,
por terras inteiramente desconhecidas — se tal hipótese se Isso em 1788. Com referência a tempos posteriores, é
pudesse conceber com relação aos indígenas em geral. Nem de notar que no seu trabalho sobre “A Antropologia no Es­
é de crer que para aí tivessem caminhado desde acima do tado de São Paulo’’, publicado na “Revista do Museu Pau­
rio Grande em marcha batida, numa espécie de viagem de lista’*, de 1907, afirmava Hermann von Ihering o seguinte:
“Von Martins indica que os Caiapós do Mato Grosso anti­
< 0 ) Apesar da notAvel vitalidade dctffla ntófio - implícita, nesta faae dc
gamente viviam também no Estado de S. Paulo, nas mar­
cùïiturbaçÔeF, na dlsposlçtto dc luta e disposição de nfto apenas defen- gens inferiores do Rio Tietê e entre este e o Rio Paranal-
dêr-i-r mas também o tacar; no recurso û maia de um tipo d# wnii
ofensiva; na prïlttca de caminhar tanto por torra como por ríos, em ba” (2 ).
jittngaílELfi: nu éapiãiüade de percorrer grand ea disC-ftnolaa ara prolonKadsui
LnoimfiGs Buerreiras — ob Caiapó encontravam-se nos meados do sócuin O que se encontra na edição original de von Martins,
paa-iaxío em camintiu da “pacificLivflo’’^ cía derrota, da decadência. Diz-se
R-n raJatdrio de Lfl58 que os Caiapó ^uldeadOR rías vlr.lnh ançíis dr
de 1867, é lição um pouco diferente, pela qual os Caiapó são
BenVAnii do Parana! ba instam pela mudança de sua aldeia para a
murgem c!n Paranft fronteira do Tietê, Berta bom aproveitar £bbb sreii ( 1 j Fr*n.elBCo ne Laccrâft e Alnwldfv,. ■“Diêíloa de ViiMpeTfi'". »*d. INL,
àMfld'0 |M£B uõ-Joã sob ’MWlÈ&Qifi (Liberato BittencourT, l*Msxr.i.aJao pLCt do Frot. Sfcrglo Buaixiue de HOihtndtir Imprensa Naciorinl. híu d«
He Azevedo*’, Rio de Janeiro, 1SH0, 2.° el, Dff. Jü endo alguns Janeiro, W44,. pw. BO, — Grifo® noawos,
Caiapó eer/lam nas monções Bant'Ana-Piraoicaba. corn inrimu pana,
“riMsebldU «m alírLii:» vestuário e qulncalhu.int.-i que oh pobreu índios i 2 I llrtitiiinn viHi líu rmg.. “A, AtHroyólosift do ^stndo dü B&Q Piftíilo'*, lU BMP,
Jgviur. de presence (us mulheres" (îoô. cit.h Vol. vii. pr ma.
112 113
I.i.it11 um localizados na região balisada pelos rios Tietê e de São Paulo à testa de urna entrada para fins de preaçâo
Puranaiba e ao Nordeste do rio Pardo, a mesma área indi­ de índios e descobrimento C.1), estando nos seus pianos, ao
cada por Carvalho Franco, apenas pouco mais restrita. Isso atingir certa altura do caminho para a zona a ser pesqui­
porém ao tempo dc von Martins (n), É significativo, entre­ sada, passar por um aldeamento de Calapé e negociar com
tanto, que von Ihering aceite esta localização referida a um eles. Os termos constantes de cortos papéis acostados ao
tempo passado, a “antigamente”, o que coincide com a epi- inventário dêsse sertanista, falecido no ano seguinte, com­
nião do historiador Carvalho Franco, que coloca os Calapé, provam tal intenção. Entre outros, os de um rol escrito
cm 16ütí+ no sertão compreendido pelo “rio Tietê abaixo, quase todo por êle próprio, relativo a transações que ia
indo para Mato Grosso e para Goiás” (♦). F niais recen­ fazendo com seus companheiros de jornada (a). Encon­
temente, o mestre de Etnologia e pesquisador de renome, tram-se aí expressões como: “Devo a Pascoal Delgado nove
Prof. Egon Schadcn, o afirmava categóricamente ao escre­ varas de pano... Mais a meu sobrinho Domingos Fernan­
ver: "Grande extensão do Estado Ide São Paulo L compre­ des um capote de erizo azul para dar ao princi... bilrei-
endida entre o Rio Grande e o Paraná, bem como as áreas ro” / "Rol dos gastos de Diogo Moreira uma espingarda
adjacentes do Triângulo Mineiro, do sueste de Mato Grosso de pederneira... E mais um facão para lhe comprar uma
e do sul de Goiás, constituíam o habitat de uma tribo Jê, peça dos bilreiros, (loc. cit.).
conhecida sob o nome de Kaiapó Meridionais” (5).
Como se sabe, nas visitas às aldeias indígenas, para fir­
Alguns dados relativos ao periodo indicado, colhidos da mar tratados, resgatar “peças”, fazer barganhas, comprar
documentação disponível, permitom-nos confirmar essa im­ objetos ou mantimentos, era de praxe levar o chefe branco
pressão de proximidade e concluir, ademais disso, que os presentes para os “principais”, anciões, tuxáuas, xamãs, em
Caiapó eram tidos então na conta de amigos dos brancos e testemunho de intenções pacíficas, respeito e amizade. No
como tais merecedores da proteção das autoridades, da Câ­ caso acima, além do facão para ser trocado por uma “peça
mara de São Paulo, de tôda a comunidade no seu conjunto: dos bilreiros”, havia o capote de crise azul a ser oferecido
eram indios comarcaos, como na época se dizia a respeito ao “principal bilre iro”. Á tropa levava, para barganhas e
aos que se achavam estabelecidos na periferia ou pouco presentes, quantidades de anzóis de ferro, cunhas, facões,
alérn dos limites daquilo que consideravam a área de in­ escropos, cortes de tarefá azul e de outros panos e peças
fluência do corpo político-social do planalto paulistano. de fita encarnada larga (pgs. 196-98), tudo confiado ao ca­
pitão, que por sinal era também “língua da torra”.
.Relações pacificas com os brancos
*17
Cérea de 15 meses após o início da jornada. Belchior
Um primeiro indício de relação de proximidade entre os Carneiro falece no sertão (3)> Em 26 de junho de 1608
Bilreiros e o povoado nos inícios do século 17 ressalta de eram arrolados os bens que levava, por dois avaliadores
quanto se apura acêrca dos movimentos de uma bandeira designados pelo capitão substituto, Antônio Raposo. A essa
de 1607, aquela a que já nos referimos, chefiada por Bel­
chior Dias Carneiro. No ano citado, êsse sertanista partia (1) I.T., Vol. II. pgs 111 e BEB.: ACMSP, Vol. Il, pg. 236- CiïHt’uniti
fllsser d.aa bancíalràs em geral que o ^eseobrlpientq «ra capa jiam n
apresamento do uentio. Esta fôra ordenada pelo provedor daw Minna e,
comei ocorreu com a maioria das entradas, levava o dupla objetivo do
($) Ctrl Friedrich Phil. v.Marttus, “Beitràce zur Eihnoirraphle uncí Spra- ouro c tía india. O próprio Carvalticf Fra-nco, represen tarado uíéjil espe
chonkunde Amerlka's zuinal Brasilians*',. Leipzig. 1HE7, Torao I. ps. 204. Cié de íjUrtiLi doe Auteres, día a reapethó de cerias iHvrtboipantesi tleatn
Treclio traduzido, a nosso ijodicto, pelo Prof. Herbert llaldus. enerada que chegaram a traaer algum ouro '’©olliido ao acaso" (¡oc 011.1
( 4 ) r. A. Carvilbo Franco. ‘-Dlqiori..lLü*'. cil., 340. — Ê de notar que ( 2} ói>. ele., pg. 106.
também Afonso de Taunay concluía pehi locu-liauiçíki dos Cal&pó OU
Bilre icon na altura do “média Tietó** (AfoiMtó T&linay, -Hletárlfc Geral < 3 i Fizara êle o aau test «liento em H de março de 1(107, “estando dé cu mi
ítiia Blindai ras Paulistas*, ed. H L Cuti tüM. S Paulo. 1934. Vol. 1. nho para tora11, Em 25.12 BIJ8 apóe-lbe o ’•eumpra-He" o vi gario J«uu
PK. 190 >. Pimentel. Neaaia ocaaiâa. ao requerer u poiae Om Ãndlaa d*‘ ucrvlio.
u viúva do sertanista, Hllhría Luífi. expíiu ao govornador: QU». por 1h«-
I h 1 Egon Schadon. 'Os primitivos habitantes do território paulista", in terem trazido “do bltLüu eerift» peça-5 dr> gentia da tvrrn da hh* rudu
'•Invista de História1’1, S, PHUlO, TV IB. I?o4. pg. íSHfi. CJ designativo em que foi '*eii marido tpii' □em.i:-, tom por cupifio-mor pt»r iujuiditit..i i'-
“nierldonala” 6 para distinguir ê®tee caiapó doa Localizados ao norte provedor Dlógo i.le Quad toe a descobri men to cfò ouro n prata e nnçlfc
de □nláa, metais .(loc. Cít .).

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114 115 —
altura já os Bilreiros tinham ficado para trás e com êles do Belchior Carneiro que Deus haja como curador vinte e
os sertanistas haviam feito negócios e resgates, fato que seis peças do gentio tememinó que o dito capitão defunto
comprova a índole pacifica destes índios e põe de mani­ tinha de suas partilhas e seis de casa que são por tõdas
festo que o apresamento dos Caiapõ não era objetivo da trinta e duas...”. Compreende-se: seis índios que éle leva-
entrada. Diz-se num documento datado de 29 do mesmo
junho, lavrado pelo “escrivão do arraial”, que o capitão e Vinte e seis Tememinó que lhe couberam na
aivisao da presa.
substituto ordenara “que se pagasse a Manuel Requexo cen­
to e cinqüenta mãos de milho que vendera ao capitão Bel­ „ 38 ^rOVaS- concorrem> portanto, para mostrar que
chior Carneiro e por sua morte requerer o dito Manuel nessa fase os Caiapo viviam em paz com os brancos e aue
Requexo.,, lhe mandasse pagar visto dar-lhe a mão de estes os procuravam amigàvelmente a fim de resgatar escra-
milho nos bilreiros à razão de dois reales a mão... Com­ nb^\barganhaS e P°ssivelinente comprar mantimentos
preende-se; quando a tropa estivera invernando junto dos „ 0 <™cui.so de guias para andanças mais além
Bilreiros, Requexo vendera a Belchior Carneiro a referida £ademais disso- <lue °s Bilreiros estacionavam
quantidade de milho, gênero ésse possivelmente barganhado ia por certo tempo num mesmo sitio, desde antes de 1607
por Requexo com os próprios Bilreiros e depois cedido ao pelo fato de ter havido trato com êles em ocasião ou oca-
capitão (1 ). siœs anteriores à desta jornada, possivelmente com a par-
Que a tropa tratara com os Bilreiros e em seguida pros­ ticipaçao do próprio Belchior Carneiro. É q que já indicava
seguira viagem, deixando-os à retaguarda, melhor ainda se a sua intenção de avistar-se com os Caiapó e transacionar
confirma por um item do rol redigido por Belchior Car­ com eles, levando-lhes as dádivas de praxe; e mais ainda
neiro, em que diz ter recebido de João Moreira “um facão porque no seu citado rol o sertanista se referia não
para lhe comprar uma peça dos bilreiros a qual peça éle •vn^aente dRSt,nado ao “Principal bilreiro” e ao facão para
tem em seu poder por nome Guaguaroba” (pg. 197). Isto comprar uma peça dos bilreiros”, mas também a umas va­
escrevia o sertanista pouco antes de sua morte. ras de pano e serem dadas ao “velho Temocauna” («) Dro-
vàvelmente algum tuxãua ou xamã da aldeia, referência que
Nao se pode verificar destes documentos se Belchior denota conhecimento e trato anteriores com elementos da
Carneiro faleceu de doença, acidente ou ferimento causado
por índio hostil, mas numa ata de fevereiro de 1609, na
qual se fala dessa entrada, diz-se que o gentio viera "contra No ano seguinte ao da partida de Belchior Carneiro
o dito Belchior Carneiro” ('). Ao morrer, a tropa já havia GX^ed*eao- esta comandada por Martim Rodrigues
assaltado agrupamentos nativos para saques e apresamento, tenorio de Aguilar, sai de São Paulo e vai, ao que tudo
tendo depois disso alguns dos apresados conseguido esca­ ’“dæa’ manter contacto com os Bilreiros. Em agôsto de
par, levando na fuga objetos de resgate. Consta da parte 1608; num certo “pôrto do Rio Anhembf, é redigido o testí
final do referido rol, ao que parece já escrito por outro æ nto de um sertanista que estava em companhia do citado
membro da expedição: “7Logo o primeiro gentio que toma- cabo, pronto a o acompanhar aonde são os bilreiros” (?)
mos furtaram as cunhas e mais ferramentas,.. um negro ÜvanH ipantes deSSa jornada terlam perecido no sertão
I indio J de uma vez levou dez cunhas” (pg. 198).
Wel oficial de 1612: "porquanto não há no,2 da
Não eram, no entanto, índios Bilreiros êsses que a tropa
a tacara e aprisionara, mas Tememinõ, como faz certo a nota que foi na companhia de Martim Rodrigues e se terem t.o-
de entrega das “peças da partilha” do capitão falecido a um
seu cunhado, também participante da jornada (pg. 158): i i',i Dú-’u iiiEilfl a Antônio Rodrigues vsümü dr ntxeuit que m.r dm
pura o velho Tumocaiina a sais patacftÉ u, vara1* (pg. 196).
“Forana entregues a Mateus Luís Grou peças do seu cunha- (7) I.T. Vol. 2, Pff. 359; ver também I.T., Vol 11, pg. 24. Tea lamento
da meetna jornada., redigido em toma .sumriiiii.ii u-h
Aonde suo o& Bilreiros” £ uma indic4$lto valiosa em apcilo do quo
< 4 ) Idem, pgs. JM, 158. totiio® ílHc a respeito do prévio con twclmtnto da luca.íKacík) dûs Cal nió
1 ft ) AOMSF. Vol. IT, PK 23<i. o da permanencia ¿léales cm su a «V/incla,
117
dos por mortos” (A). Não há certeza, porém, quanto à gentio pacífico e amigo. Como no caso de Belchior Car­
identidade de seus matadores; apenas — acrescentamos — neiro, êstes homens teriam ido primeiro aos Bílreiros para
a de que não foram os Bílreiros, Como referiremos adian­ alguns negócios e reabastecimento, seguindo depots empós
te, entende Roque Leme da Câmara que os expedicionarios de índios bravos, pois destes é que, sem necessidade de
chegaram até o rio Pará, contrapondose-lhe Carvalho Fran­ "resgate*’ podiam arrebanhar grandes quantidades, ao preço
co dizendo que “ao certo seria na célebre região do Paraú- apenas dos poucos gastos com alimento, pólvora e chumbo.
pava” (e), É o que nos parece, em face das experiências
anteriores dos paulistas, mesmo porque o nome do rio Pará Traição e violência contra os Caiapó
era dado também, a esse tempo, ao Sâo Francisco (lt).
Depois dessa entrada de 1608, realiza-se comprova-
Entendem os autores sem discrepância que êsses homens damente unia outra, em 1612, esta comandada por Garcia
foram aos Bílreiros ou Caiapó pelo rio Tietê (Anhembi); e Rodrigues Velho e que, ao contrário das anteriores, pouco
na opinião de alguns, teriam morrido às mãos de tais índios. tempo se demoraria no sertão: saída na segunda metade
Mas o fato de estarem num pôrto do Tietê prontos para de 1612, já em novembro do ano seguinte se achava de
partir não queria dizer que iriam necesariamente por via regresso, o que leva a supor não tenha ultrapassado a área
fluvial, assim como nada confirma terem sido cies mortos em que se situava a aldeia dos Caiapó, Mas L7 não foi ape­
pelos Bílreiros, os quais como mostraremos adiante ainda nas por esse aspecto que a tropa de Garcia Rodrigues Ve­
em 1613 permaneciam mansos e pacíficos em sua aldeia lho destoou das que a haviam precedido nos contactos com
recebendo com amizade aos brancos que os visitavam. os Bílreiros. Na sessão da Câmara de São Paulo do último
de novembro de 1613t o procurador do Concelho pedia que
Sabemos que num dos portos do Tietê ( Putribu-Pira- se notificasse "Garcia Rodrigues que ora é vindo do sertão
pitinguí) os homens das entradas também se reuniam para viesse a esta Câmara a dar conta I doj que fêz, ou Idol que
iniciar a caminhada, no rumo do sertão (ll), a pé ou a se fêz dos bílreiros" que havia trazido de sua entrada.
cavalo ; como sabemos que Martiin Rodrigues estivera antes Estava informado de "que os traziam repartidos", e isso
— com um bando chefiado por Domingos Rodrigues — na apesar de os Bílreiros viverem “de paz em a sua aldeia,
região do Paraúpeva: no seu inventário, aberto por não fazendo muito gasalhado aos brancos que lá iam"; Queria,
regressar desta entrada de 1608, constava “uma negra por por isso, que tais índios fossem restituídos à sua aldeia (lT.
nome Guayã digo da nação Guoayá”, escrava "da entrada Por serem conhecidas, deixava de expor as raaões do
de Domingos Rodrigues de Paraúpeva” (ia)> além de um seu pedido, mas já numa vereança de 1608 se havia dito
bom número de escravos Tememinó (*»). que alguns moradores ”se apoderavam de índios que pelo
Dizer que iam aos Bílreiros podia ser simples alegação, caminho se achavam aposentados", o que era prejudicial ao
pois não era proibido procurar para tratos e “resgates” o bem público, "porquanto se êles vinham de pazes a meter
conosco, que mais razão era ajudá-los a vir que não afu­
(8) Çayvalliü FrúoOD, ‘"DÍCÍQK&ITÍCi'’, cdt., ps 15.
gentá-los nem agravá-los”, pois com isto havia o perigo de
(9) I.T.. Vol. 3f pg. 2AS. se transformarem em inimigos; "porque se se tomassem a
( 0) Pulando Cor índias Anwipira, assim chaniudos em ra?Ao do nome levantar seria muita perda desta capitania como é notó­
AftKrtpira, do seu principal, dizia Gabriel Soarea de Souza; taao
dêst.0 rio cto B. Francisco., a que o gentio cíiamã o FaráL ,B’: (Gabriel rio..." (21
de Souza, ‘Tratado Descritivo do Brasil em 11587”, Brasiliana.
BA o Faulo. Ptf. 4 30), Segundo Teodoro Sampaio, o gentio cliamava o Tanto nêste caso de 1608, como no dos Bílreiros de 1618,
ã. Francisco Uimbém por Pirapitlngfc, nome que os portugueses yimpli- se havia tal preocupação com o problema era por se tratar
ílcsvam para “O Pur!V: (Cf. Teodoro Sampaio, “O Tupi na Geografia
Nacional1'. In R.IHGB, 1928. Vo). 54. pg. 331), de comunidades nativas que mantinham relações com os
I 11) V<*Ju-ae naaso trabadla cóbre *"Dols antigos ciurünboe de sertanistas
dcf SíVj Paulo1".
núcleos povoados (São Paulo, Parnaiba) e procuravam a
(J3) J.T., Vol. 2. |jg, ti — Seu inventario foi fiber to em 1012, ’-por aer Ido
fia sertão e se álSfir ssr líi março” (pg. fl). { 1 ) ACMSP, Vol, 51. PR. 343.
< 13) Idem, ibidem, ne. 7 (2 ) Ideiói ibidem. Pt. 223.
119

:iua vizinhança. O problema não existiria se estivessem doutrina, os quais todos estão‘perdidos..(4). Em 172B,
localizadas a distância considerável, fora do campo de in­ ao ordenar guerra contra o gentio que pressionava os arraiais
fluência social, cultural e econômica dos grupos de mora­ de Cuiabá, Rodrigo César de Menezes irá alegar, entre outras
dores brancos tomados em seu conjunto. circunstâncias justificadoras da medida extrema, que “os
que habitam nas vizinhanças destas Minas, depois de esta­
“Virem de pazes a meter conosco" queria dizer exata­ rem com os brancos com bom tratamento, tornaram a fugir
mente nao se esquivarem aos contactos, sustentando antes alguns para o sertão, matando aos brancos que os haviam
uma participação ativa nas relações de vizinhança, donde o metido de paz../' ( ). A isto anotava Toledo Piza, pes­
interêsse dos pro-homens de São Paulo na manutenção de quisador dos documentos do arquivo Público do Estado,
condições de paz, amizade, intercâmbio, condições que ga­ do qual foi diligente diretor, que “a audácia destes indige-
rantiam as possibilidades presentes e futuras da ação íias l os que infestavam Cuiabá e seus caminhos] foi-se
ecumênica a ser exercida pelos núcleos urbanizados sobre aumentando sempre dêsse tempo em diante e tornaram-se
as comunidades nativas. êles temerosos dentro de poucos anos*1 (®), Mas é curial
que na. origem destes repentinos antagonismos estavam as
Não estavam, por conseguinte, os aludidos Bllreiros, ou traições com que os tratavam os sertanistas ou a opressão
Caiapó, que em sua aldeia faziam “muito gasalhado aos física e mental dos padres.
brancos que lá iam”, localizados nas terras distantes do
Planalto Central onde seriam encontrados mais tarde; aí, Os tórraos da ata de 1608, se bem examinados, levam
qualquer que fôsse o seu comportamento, déle nenhum pre­ mesmo a crer que antes dessa data índios até então pací­
juízo decorreria para o bem-estar e a segurança dos mora­ ficos, aldeados em determinado lugar, se haviam rebelado
dores do circuito de São Paulo, pois a uma lonjura tama­ por causa de atitudes desleais de brancos: diz o redator
nha, nem inesmo existiria o perigo de se levantarem. da ata que a êsses que estavam aldeados "pelo caminho”,
“ao longo dêste rio Anhembí”, e que portanto buscavam
Era fenômeno comum entre os indígenas a mudança com sãos propósitos a vizinhança dos coLonos — “vinham
brusca de disposição de ânimo e de comportamento em rela­ de pazes a meter conosco” —, não convinha agravar, “por­
ção aos brancos, mas sempre provocados por maus tratos, que sç tornassem a levantar seria muita perda para esta
agravos, coação mental ou física, o que implicava em pro­ capitania, como é notório”. Esta argumentação demonstra
ximidade e contactos repetidos como condição preexistente. ter havido antes da data da mencionada ata levantamentos
Já nos tempos do padre Manuel da Nõbrega, meados do de indígenas mansos motivados por agravos recebidos. Por
século 16, tais mudanças eram registradas, e em alguns ca­ isso mesmo, o redator acrescenta — “como é notório” —
sos, segundo alegavam os depoentes, sem um motivo per­ referindo-se naturalmente a experiências já conhecidas dos
ceptível para os europeus, melhor dizendo sem um motivo moradores. Não fazia uma suposição no vago, antes apon­
lógico à percepção dos brancos. Relatava o missionário, tava o que podia acontecer, por já uma ou mais vezes ter
por exemplo, em agóste» de 1557, escrevendo da Bahia, que
ui, tendo uns brancos feito certas aleivosias a índios pací­ t 4 ? CfttLús de Anchis La, em Serafim Leite. •‘Cartas do* Primeiros Jt-iuLcaH
ficos, “se alevímtarem todos os daquela parte... e têm já do Brasil’’, ê£l. Coífitssão do IV Centenário du s&o* Paulo, S. Paulo, 1954.
Vol, III, pg, 455. Jfu deixami» comprovado, por Binai. qde a transfe­
feito muito mal” (s). Dos indios de Piratininga, que haviam rência da sede da Vi La de Santo André para o campo de Pirutininwa,
cm 1&G8, rõra possibilitada peia fuga em massa dea indine que estavam
todos fugido depois de anos de doutrinação, escrevia Anchie­ sendo ai doutrinados: fuça que &e verifica sem motivo aparente, con­
ta em 1562 que “os mais déles vivem como dantes, maxime forme eæplièava o padre Luis de Gr& uni expressiva carta, FoeetbOi-
tada porque com o abandono pelos indios das terras dã* cercanías d a
aquêles que tiveram melhor conhecimento das coisas da fé, casa dos Jesuítas» as autoridades locais puderam ocupar a ftrea com n
como os rapazes e moças, que se criaram de pequenos na jiévo rossio dn vila, o que obrigou og padrea, que haviam pedido
por vía di> reino — grande ãtíKliària em l!stra,tinínfia, a optar por outra
piu’iificm (Cf. Mirlo fíeme, -;Nütᣠde Revisão da História de Sin Paulo-’
Anhembl.’sSo Paulo, 1959, pg». 176 s sks. ).
( 3 ) Manual cíj. Nóbregfft, ^Cartas do Brasil e mais «critoB”, Coletânea,
if.troduçûo c notas tio padre Serafim Letti?, ed Universidade de Coimbra, { 5 ) D.I., Vol. 13. Pff. 135,
Coimbra, pp 2Q(j ( 6 ) Tdem, Ibidem, pg. 130. nota de rodapé.
120 121 -
acontecido, “como é notório”. Toda esta hipótese ainda 17 inimigos dos castelhanos do Rio da Prata e Paraguai,
iríais se robustece mediante a informação que aparece na amigos dos portugueses de São Paulo, aos quais vendiam
ata de 1613, acima citada, na qual se diz que os Bi Ire iros indios do Sul, que caçavam, especialmente os Tape; haven­
trazidos por Garcia Rodrigues viviam em paz e em sua do mesmo p repostos dos paulistas vivendo entre éles. Des­
aldeia faziam "muito gasalhado aos brancos que lá iam”. ses e de outros dados sôbre tais indígenas tratamos em nota
E como vimos, destoando completamente do comportamen­ complementar a este trabalho (s), mas os poucos acima
to dos que o precederam < ’), o bando de Garcia Rodrigues indicados revelam que também os Bilreiros do Sudoeste de
Velho usa de violência ou traição para trazer Bilreiros São Paulo eram por êsse tempo aliados e amigos dos pau­
escravizados, sendo por isso o seu chefe acremente recri­ listas, tanto quanto os que então habitavam o território
minado na Câmara de São Paulo. acima do médio e baixo Tietê.
Resumindo, temos que nos principios do século 17 os Mas estes Bilreiros ou Caiapó do Tietê, já em 1671-76,
Caiapó, também chamados Bilreiros, eram um povo pacifico como vimos atrás, eram apontados como uma naçao cruel
e assentado, mantendo relações amigáveis com os brancos e belicosa, tal como dela se iria dizer nos começos do século
de São Paulo. Estes os visitavam com frequência, quando seguinte, quando entra em conflito prolongado com os inva­
em caminho para terras mais distantes, provàvelmente por sores de suas terras. Importaria por conseguinte tentar
necessidades de guias e provisões de bôca. Sua estância averiguar, mesmo aproximadamente, como, quando e por­
ficava, como acreditamos ter deixado demonstrado, em que ocorreu essa mudança.
algum ponto do atual território paulista seguindo-se da vila
de São Paulo ou da povoação de Pamaíba na direção No­ Mudança e deslocação dos Caiapó
roeste. Acreditamos que o procedimento dos homens da jornada
Parece, no entanto, que por êsse tempo — princípios de 1613, aprisionando indivíduos da tribo contra a vontade
do século 17 — havia também Bilreiros na área entre o de pais e cheíes, mesmo que não viesse a repetir-se no
Paranapanema e o Uruguai. Na sua "Relação da Província tempo e no espaço, teria sido bastante para indispor os
do Brasil”, de 1610, o padre Jácome Monteiro referia-se a indígenas contra os brancos; e tudo indica que o inicio da
índios Bilreiros, déles descrevendo apenas os dois tipos de mudança se verificou efetivamente a essa altura, quando
arma — borduna e arpão farpado — que usavam. Não os também se deslocam da paragem que ocupavam. Já a ban­
identificava com qualquer outra parcialidade, nem os loca­ deira que parte em seguida a esta (em 1615>, e que segundo
lizava geográficamente, mas tudo indica que se tratava de os autores seguira no mesmo rumo Noroeste para a área
indígenas situados ao Sul da Capitania, área de que os do Paraúpava, não mais teria encontrado os Caiapó no
jesuítas, tanto os de São Paulo (São Vicente) como os do melo do seu caminho, porquanto é certo que nos papéis
Paraguai, tinham melhor e mais extenso conhecimento. referentes a essa tropa de 1615 não aparece qualquer refe­
rência ou alusão aos Bilreiros (*). E desde então, vários
Os Bilreiros do padre Monteiro seriam os mesmos Ibi- decênios vão decorrer até que sertanistas de São Paulo vol­
raiara a que os jesuítas vinham aludindo desde os tempos tem a perlustrar aquela região e a defrontar-se com os
de Anchieta e cuja identificação seria feita, efetivamente, Bilreiros, já agora, porém, em têrmos francamente belige­
pouco mais tarde, por dois autores de histórias parciais da rantes.
Companhia de Jesus, os padres Baltazar Teles e Simão de
Vasconcelos. De acórdo com depoimentos de jesuítas espa­ O comportamento dos paulistas, que a esta altura se
nhóis, os Ibixaiara eram em fins do século 16 e inícios do voltam maciçamente para as partes do Sul e Sudoeste, pura
os bojudos aldeamentos de nativos reduzidos pelos jesuítas
( 7 ) Hecorde-ae o que dissemos sõbre o prévio conhecimento que Belchior
Carneiro Unha dos maiorais da tribo; c sõbre u expressão “aonde são (8) Vejiv-Mc Nota A, no ílm dôflte trabalho.
«ia BHredrca", que também denota conhecimento anterior do aillo em ( 1 > I.T.. Vol 6. i>u, 106 — Testamento de ¡‘ero Araújo, pwLloipdntv du
queat&o. Jornada, redimido em 26 de abril de 1610.
i
122 123
espanhóis, seria igualmente um indicio das dificuldades sur­ temos apurado sobre o assunto, de acordo com os quais a
gidas a Norueste ein virtude da transformação pela, quai fase de uso generalizado do caminho giraria em turno dc
passam os Galapo. Em conseqüéncia, todo o sertão daque­ 1610; a do abandono, em redor de 1620; isto tudo nos le­
la parte do planalto central, que tanta atração vinha exer­ vando a supor tenham sido adquiridas as terras "em Ca
cendo sóbre os paulistas, fica esquecido pelo espaço de uns pibari” por volta de 1630-40, quando já seria bem conhe­
quarenta anos e somente volta a ser visitado após o recúo cido o fato de estar em desuso a "estrada para o sertão
das reduções jesuíticas espanholas e o adestramento dos dos bilreiros". Esta suposição nos parece de todo em todo
seus índios no manejo de armas de fogo e nas táticas de plausível, em vista do que se conhece sobre o movimento
combate, depois que sucessivos bandos de paulistas são ali de penetração dos paulistas até a época em questão (a).
derrotados e até massacrados.
Note-se, mais, que a expressão “estrada para os bilrei­
Nova referência aos Bilreiros vamos encontrar em 1650, ros” significava, não uma verdadeira estrada (impossível
e referência que vem confirmar não apenas a existência de nas condições de tempo e lugar), mas um caminho de uso
um caminho de terra para a antiga estância desses índios, mais ou menos continuado e com um ponto certo de des­
nuis ainda a efetividade do seu deslocamento em massa para tino; não uma trilha de penetração eventualmente utili­
regiões mais distantes. No ano referido procede-se ao in­ zada por entradistas, mas uma rota bem conhecida e bem
ventário dos bens deixados por um morador do bairro de batida, a ponto de merecer o qualificativo de estrada. E
Pirapitingui, no termo na vila de Parnaíba, bairro mais che­
gado á então povoação de Itu do que ao perímetro urbano como estrada, que nos começos cio século 17 levava a uma
da vila. Sitiante c sertanista como muitos outros, Bernar­ aldeia de índios, aldeia à qual os povuadores iam constan­
do Bicudo teria feito várias perquirições por rumos não temente, não devería ter um percurso muito longo.
identificados, até que em março de 1649t estando para par­ Conciliando o que sabemos acerca de uma entrada como
tir numa bandeira de Francisco de Paiva, redige o seu tes­ a de Belchior Carneiro ao sertão hoje de Minas e Goiás,
tamento, por precaução em vista dos perigos que ia enfren­ passando antes pelos Bilreiros, com a noção ou idéia de
tar. Veio de fato a falecer no sertão, talvez nesse mesmo “estrada" do redator do inventário de 1650, podemos abar­
ano, tendo-se começado a execução do seu inventário em car visualmente a configuração geográfica da situação: a
íigôsto de 1650. Refere-se nessa peça que Bernardo Bicudo estrada partia da área povoada e chegava até a um ponto
possuía, entre outros bens móveis e de raiz, “meia légua de não muito distante, até ao perímetro da aldeia daqueles
terras de matos maninhos em Cajnbari ran estrada velha do indios, seu ponto de destino. A partir daí, do perímetro
sertão para o sertão dos Bilreiros’' (2). da aldeia, haveria urna ou mais trilhas pelas quais o via-
Esta informação em papel de 1650 nos ajuda, antes dc jante poderia prosseguir a caminhada, seguindo avante, na
mais nada, a compreender as expressões das atas de 1608 mesma direção ou com desvio de rumo; trilhas que não
c 1.613, onde a propósito de índios pacíficos estabelecidos a eram, todavia, continuação da estrada, apenas picadas, ou
certa distância das povoações da zona do alto Tietê, rio veredas, sem as características de ordem física e dc uso
também chamado Anhembí, se fala em aldeias indígenas geral que haviam conferido o título de estrada ao caminho
existentes “pelo caminho" e "ao longo dêste Rio Anhembí”. que ia do povoado à aldeia dos Bilreiros. Vemos, assim,
Por outro lado, o qualificativo “velha”, designando cm 1650 que também com relação à “estrada velha" de 1650, direta
uma estrada para determinada parte, denota uma sucessão
no tempo; indica a passagem de um período de não-utill- ( íl ) Vejia-oe o diHBomog & nmtâto em npBsa livw ü® UyviHflu
zação do caminho seguindo-se ã um outro dc uso frcqüente. thi Hisióm cie SSü PfcuicT n« capitulas Xll h XVI, pin Lc hukiiiiiIh.
-Ncj Cumpa ae PlraUniiitfi*”; no* atliiB Úclxiurios dumuiiHií into que nl*
Com relação ao caso presente, estes dois períodos encai­ uh fins da aèdUlla 10 Eodij interfrMe t tôdaê uU'ii.çi’ii'h <.|u& mji Liniar tsiH
xam-se no quadro de tempo estabelecido pelos dados que de SSô Vicente e Uepajs dc ¿51o JTujLü. bei*¡ éõtiHi h . j-hJiMiá ao Fmlini
da Nábreífft, »e voltavam paru u rrfifto do Hule Suiloeiln, nnún
oonatava axictir minai de ouro e prata e onde havia abundinoia do
indiíjw mañoco, lavradores multo upoteeidoo piun ntcravoet como ni.ia
I '1 ) J-T-, Vol, 13. pií. 1151. — Grifos noH&oa CHleeúmcnciH uíC-tn d<iu nirncUiruHh^ Ihlrtdinu
4
124 125

mente ligada à estância dûs Caiapó, a conclusão é pela um período de contactos amigáveis com os colonizadore^,
presença dessa gente em pleno território hoje paulista, se­ em princípios do século 17. É dc notar, primeiro, que cm
guida de deslocação para áreas mais distantes. 1650 se dizia que a estrada para o sertão dos bilreiros era
uma “estrada velha”; e, segundo, que dessa estrada nao
De todos os dados expostos, em conjunção com outros mais se voltaria a falar, depois de 1650, relacionada com os
dc que tratamos no estudo atrás citado, podemos concluir Bilreiros.
que a estância dos Caiapó nos começos do século 17 ficava O qualificativo “velho” com relação a um. caminho pode
cm algum ponto do trajeto que vai da barranca do Tietê, .significar que este está sendo usado desde muito tempo
na altura de Putribu-PirapitinguL à área situada junto das antes, como pode significar que tal caminho já não mais
cabeceiras do São Francisco, área que abrange hoje terras se usa para determinado destino. No caso de que tratamos,
goianas e mineiras, na qual estacionavam então os Tememinó, a aposição do termo “velha” à estrada para o sertão dos
indios que foram apresados por Belchior Carneiro depois Bilreiros quereria dizer que ela já não mais levava ao ser­
de sua. passagem pelos Bilreiros, -e apresados também por tão dos Bilreiros* e isso apenas porque éstos Bilreiros se
volta de 1603 pelos homens de uma bandeira de Nicolau haviam retirado do ponte para onde a estrada conduzia,
Barreto* da qual logo diremos alguma coisa. tendo-o feito com anterioridade suficiente para justificar a
Num ponto indeterminado do referido trajeto, em terras classificação do velho ao caminho em questão — o que
ainda hoje paulistas, morria o caminho que demandava a significaria que bem antes de 1650 tais indios se haviam
estância dos Caiapó, pois tratava-se de uma estrada "para deslocado para outra ou outras paragens, deixando por con­
o sertão dos bilreiros”, uma estrada que levava à paragem seguinte de levar a êtes a estrada que para isso servira
habitada pelos Bilreiros. Mas dessa estância — como já anteriormente. Éste raciocínio, conjugado com fatos já
dissemos — ou de várias parles do sertão em que ela se sabidos derivados de expressões das atas citadas da Câmara
situava, sairiam ramais para diferentes rumos, entre êles o de São Paulo, nos confirma na conclusão de que a deslo­
que levava às nascentes do São Francisco, Ramal este que cação dos Caiapó se processara logo após o contacto que
em certa altura se desdobraria em diversos outros, para tiveram corn a tropa de Garcia Rodrigues Velho, em 1613,
baixo e para cima, alcançando terras do sul da serra da embora nao se tomassem desde logo tão cruéis e belicosos
Canastra e ao norte do Pai'anaiba, as cabeceiras do Araguaia como os depoimentos dariam depois a entender.
e do Tocantins, terras então habitadas* no seu conjunto, por Sabe-se, no entanto, que alguns autóres colocam os Bil­
Tememinó, Amoipira, Goíá e índios de outras nações (*). reiros, já antes dêsse período, junto do Paraúpava, rio que
Recorde-se que Belchior Carneiro, depois de tratar com os seria um dos afluentes formadores do Tocantins, senão o
Bilreiros, prosseguiu em busca dos Tememinó, o mesmo próprio Tocantins C), no planalto central; e isso com rela­
devendo ter antes acontecido com Nicolau Barreto, que ção a algumas entradas, entre 1607 e 1616, feitas pelos men­
arrebanhou Tememinó e Amoipira em grande quantidade (*). cionados Belchior Carneiro, Martini Rodrigues, Garcia Ro­
drigues Velho e ainda, ao que dizem, por Antônio Pedroso
jVQïju e.sZdzicw. dos Caiapó de Alvarenga. Dêsses autores discorda, porém, Carvalho
Franco, pelo que indiretamente se deduz das suas asserções.
Temos, pois, que os Bilreiros ou Caiapó — mais tarde O autor do "Dicionário de Bandeirantes e Sertanístas do
encontrados em paragens dalém Paraná e rio Grande — Brasil” limita-se a situar Garcia Rodrigues Velho, em
teriam sido para, aí deslocados da sua antiga estância após 1612-13, no "sertão dos caiapós”, sem avançar que èle teria
alcançado o sul de Goiás; o mesmo fazendo no caso das
I' 4 ) Vftjift-ae nottQ traba] hr» aâbre 'Oota ftnUepô camüntios de ser tanta tas
de á&o Paulos,
í H i B'iwu bándtalEl. astave am LEW13-4 ‘■’no rio de Gótabihi” (rio dJAfi Veíhs®), í 1) Lê-Be em -ReJutoH HcrtantaquT I Informares dlAdos jicr António Pire-
“ao nortiki e tio do Par-aÊBtlV^ -N'BaW ftettfòu u Ibiiites Qôô povoam og dc Campos): “O rio Araguaia faie barra, no Pwaupabü que <iorr«.« do huI
gentios wjrninUnóRM; dlsendo-BC ainda em um de seuR papéis: “tais quttau slo nci H.!! e na üéífionatruçíiç dê camlritlOH pôr Lim mi/iri rio;
corno 08. miMB que nè»te sertão se repartiram da naçíio comimlnó e “por éste IIIn doa Tõcwntjita ft qué os Pitu 11 Ht kh cïiiirii.'im PüL !.Iinih.ï,,
il Imoll plia" (Voja-se o trabalho citado na nota anterior).
(CL “Rd ti tos SeruintatBíT*. clü.( pgs, iUHt 2l)f1).
127

duas entradas anteriores, unia — a já por nós discutida — são de áreas do Planalto Céntral onde se localizavam as
de Belchior Carneiro, em 1607, da qual apenas diz que em­ "terras domiciliares” dos Caiapó, que estes índios passaram
barcou "no pôrto de Pirapitingui, no Tietê, para a região a hostilizar os brancos mesmo quando não diretamente pro­
dos bilreiros”; outra, em 1608, de Martini Rodrigues
S3 Teno­ vocados ; embora para êles não deixasse de ser uma ameaça
rio de Aguilar, que — afirma — desceu o Tietê com o fim e típico ato de guerra o crescente avanço de mineradores
de atingir o sertão dos Bilrei ros, mas que veio a falecer e sertanistas para dentro das fronteiras do seu domínio.
nesse sertão com quase todos os seus companheiros. Depois Convencem-no da hipótese apontada no caso da tropa
de Garcia Rodrigues Velho (em 1613), diz-se que uma ban­ de 1671 certos fatos ocorridos coin a bandeira descobridora
deira de Antônio Pedroso de Alvarenga é localizada em 1616 do Anhanguera, em 1722, meio século volvido. E ainda por­
na região do Paraúpava, em cuja relação de prêsas, entre­ que a fama, já cm 1671-76, de que os Caiapó eram cruéis e
tanto, só se encontram referências a “carijós” e “gualachos” belicosos só podia provir do comportamento dêstes índios
— índios então situados abaixo do Paranapanema — nada em relação com outras nações indígenas suas vizinhas, por­
sóbre Bilreiros ou Caiapó quanto desde 1620 até agora, 1670, não se registrara pá­
De todos ésses casos, u único em que se chegou a fazer ticamente qualquer contacto de brancos com os Bilreiros.
uma correlação entre Bilreiros e uma região fora do atual E depois disso, nenhum outro teria havido até a época em
que o Pai-Pira, ao recensear seus conhecimentos e experiên­
território paulista foi o acima referido de Martini Rodri­ cias sertanistas anteriores ao ano de 1730, informava dos
gues Tenorio de Aguilar, cuja bandeira é quase tôda dizi­ Caiapó que “o seu maior exercício é serem corsários de
mada em sertão não identificado, mas que o genealogista outros gentios de várias nações” (6).
Roque Leme da Câmara afirma ter sido no Rio Pará (H),
sem que haja entretanto qualquer documento ou indício que Em 1722, um dos componentes da bandeira do Anhan­
o confirmem. guera, o reinol Silva Braga, descreve o encontro que tive­
Em 1671-76, como foi referido, uma bandeira paulista ram com os Caiapó do Araguaia (t:). A êstes índios êle dá
o nome de Quirixá, mas não há dúvida de que se tratava
era totalmente dizimada na zona do Araguaia por duas na­ dos próprios Caiapó: eram indígenas tapuais que usavam
ções indígenas, sendo uma delas a dos Bilreiros. A notícia de arcos e flechas e de porretes; viviam aldeados (pouco
do massacre é enviada a Lisboa, por via do Pará, pelo pa­ mais de 600 almas em 19 ranchos) ; andavam nús, homens e
dre António Raposo, por sua vez encarregado de pesquisar mulheres; cultivavam milho, batatas, cajus, palmitos; pos­
ouro na região Tocantins-Araguaia, a qual éle percorre entre suíam grande cópia de cabaças e panelas» muitas araras e
os anos acima citados. Dizia então o padre Raposo que os periquitos e “uma grande multidão de cães”. Esta descri­
Bilreiros eram uma nação "cruel e belicosa’*; mas atribuía ção coincide em vários pontos com a que nos dá dos Caiapó
o desenlace havido com a bandeira paulista ou a descuido o Pai-Pirá, Antônio Pires de Campos; quem, entretanto,
de sua gente ou a ambição de cativar gentio (4). muitíssimo mais versado no sertão do que o reinol Silva
Queremos crer que o caso sc tenha passado segundo a Braga, não inclui tribo ou nação Quirixá entre as oitenta e
última hipótese; que os Caiapõ não tiveram a iniciativa do tantas que relaciona, numa espécie de balanço geral do gen­
ataque, apenas se defendendo ao serem assaltados pelos ser- tio bárbaro, abrangendo vasta área desde o rio Paraguai ao
tanlstas. Ao que conseguimos apurar, é sómente numa fase Pará e todo o Planalto Central. Tribo ou nação indígena
posterior, cérea de meio século mais tarde, após o desco­ que também não é citada por nenhum sertanista ou etnó­
brimento do ouro de Cuiabá e de Goiás e conseqiiente inva- logo desse e dos períodos posteriores.
Relata o cronista da bandeira do Anhanguera que a tro­
(2) Cf. F. A Carvalho Franco, “DieíonArio* cit. pcs. 42ft. 101» 15 e 34. pa se achava transviada desde que transpusera o Meia
< 3.1 Cf, Roqüb LUib Macedo Lems cia CAinatft, -Nohlllarqula BrasilicnseM,
In BlIiaSP. Vol. 33, pg. 210. — Ver & respeito o que dlsBamoB na
Nota iu cie capitulo ‘■■ÉelaçCea pacíficos com os brancGs’". ( 5 ) -Relateis Bertaniitiuà^, oit*» pjî, 1H1.
( 4 ) Cf, Carvalho Franco; “Dicionário"1» cit., rs. ci. (Ui Ideii, relato de Al f oren Jobí- Fulleóte <1a 9 U va Hrhuii. pgw 122 n 137
128 129
Ponte, tendo falecido ao desamparo quarenta e tantos entre temeroso" de que os queriam matar a todos: “Assim nô-lo
brancos e negros; nao encontravam Indígenas
ma»»™ ou gulMsem. No auge do draespïï^ que os Infor certificaram as índias que se achavam entre nós” (pg. 126),
rastros dogontlo e trataram d. os ragulr,’ “lançtrido adiante Isso ocorria por volta de 1723.
quatro índios a farejar”. 7Nove
“ dias depois chegam a uma Todo o comportamento dêsscs indígenas, que eram mais
serra "cujas vertentes deságuam para o Norte” de 600, assaltados e desalojados de suas casas e da sua
±! ™ HVMam akfel“ «“ 5U“ aldeia, e que a despeito de tudo isso procuram convivência
S daSín °SCaramHSe n° matOf relata 0 cronista, pacifica com seus agressores, não se coaduna absolutamente
com a idéia de gente cruel e belicosa ou guerreira com que
S?° hOS recetoeram com seus arcos e fiel
começariam a ser celebrizados dai a alguns anos. Inferên­
J V 1 Ap 1 tres indígenas chegam a lutar corpo-a-cor- cia que ainda mais se reforça ao nos lembrarmos das rela­
??o sTbriX h6 ”íugiam llitó rnatas; um dêtes ata ções amigáveis que os Caiapó — “gentio de assento”, como
diria o Pai-Pírá — mantinham com os brancos nos prin­
Tiste V:eêuida recebe n0Va pOrreUda de ™ terXiîo tepTî' cípios do século anterior.

lieclias sobre os atacantes, mas sem maior efeito • os très Caiapó guerreiros
TfULdTráoidTT?4 5 e T de/endem’ Limitam-se a rebater e Ë com a entrada de levas seguidas de minerado res.
■í i -T d deia e de seu conteúd°. recolhendo a um deles aventureiros e traficantes, soldados e colonos, nas terras do
dominio dos Caiapó, a partir de 1726, que êstes índios se
aDrisiõnXTi Cüræntes> ®®te Caiapó que haviam conseguido tomam mais agressivos, especialmente depois que contra
aprisionar, depositam em outro o milho encontrado e bata
te que fazem recolher de vinte e cinco batetate grande? êles e outros indígenas do planalto central se instala a guer­
teXno%iXdñ'!c,s í dls‘f"a »*» ““i’6'al ra de extermínio iniciada por Rodrigo César de Menezes logo
tempo, refazendo-se das canseiras. após a sua chegada a Cuiabá. Pode dizer-se que passaram
então a sofrer os efeitos do estado de guerra, a êle se con­
“Nesse tempo — prossegue o cronista — - se
nizado já mais o gentio, buscando-nos e se^doXsX tinha hums formando como condição de sobrevivência.
arco e flecha, e admirando
=’T.PaZ (h)’ trazend0 em muito as nassas armas Ofere
S? dezesX Sabe-se que éste capitão-general havia feito atrair, por
intermédio de pombeiros, um grupo de índios das redonde­
de amizade. Repugnou o cabo a acoltã-lus contraSz^S! zas para convívio com os mincradores e sitiantes de Cuiabá
e que, naturalmente por motivo de opressões e maus tratos,
tea ? e eU fUÍ 0 que mais ° P^ua- êstes índios se rebelaran; e se puseram em fuga, não antes
tea a aoeita-las, dizendo-lhe que na consideração de sermos de saquear quanto puderam e de ferir e matar os que os
u poucos, e estes fracos e mortos de fome, e muito o gen tentaram dominar. Da represália que promoveu contra o
tetas ínteas com as mais que se achavam já pSsas o? gentio, represália para a qual não lhe teriam faltado pre­
díamos facilmente catequizar a todo o mais gentio náo te textos, dava conta Rodrigo César em carta ao rei, datada
a ajuste das pazes. mas a daram-ra» alguns q™ So"^ de março de 1727, na qual dizia ter feito “marchar ao Cabo
rim Í1 0 relSad8lro caminho dos Guaiases” <pe 127'; por que havia escolhido e lhe dei as ordens do que havia de
fim. desçontedo. o gentio desapareceu logo „o íutro ÉUa executar, o que fêz, atacando-os vigorosamente primeira e
segunda vez, e êles resistindo com tanta fôrça e valor que
4 7 > fcrrt podia tj-ataMw dan atuai» aarra» d*. Catiaflcta. du Terra Frita r só depois de verem mortos quarenta e tantos dos seus sc
Douiada-r que lOTïlimn um imico cordão no aluai território ftoiana renderam e foram trazidos à minha presença, que mandei
< « i 1’íimnu 127. Xo texte itgvra -jMtus” por evidente encarto dn Copista
repartir com igualdade, assim pelo Cabo como aos mais
131

companheiros, na forma que se estila, ficando sujeitos à brado ajuste para tal fim entre o governador D. Luís dr
administração dos brancos. Espero que outras tropas que Mascarenhas e o sertanista Antônio Pires de Campos (■’), o
despeço tenham o mesmo efeito” (l). mesmo Pai-Pirã já várias vézes citado e de que se veio a
dizer que praticou ^barbaridades espantosas*’ contra o gentio.
E numa de suas últimas comunicações para o reino, em
março do ano seguinte (1728), acrescentava que havia já Do Pai-Pirá o comando passa a um sucessor e depois a
jlomeado os cabos para novas bandeiras, a fim de “atalhar outros, até que finalmente se extingue, na década de 1770,
tão perniciosas consequências com o remédio mais eficaz, a guerra de extermínio contra os indígenas de Goiás e Mato
como o de lhes mandar dar guerra, ern observância da lei Grosso ; e se extingue, menos por se haver conseguido a
e ordens de Vossa Majestade, em que dispensa [permite! expugnação dos nativos do que pela exaustão das forças
se lhes faça, cativando-os e vendendo-os cm praça pública, que os combatiam, E também porque idéias mais arejadas
i irando-se os quintos para a Real Fazenda de Vossa Majes- já orientavam os governadores e outras autoridades da co­
ta de, e depois de satisfeita a despesa que se fizer com a lônia.
tropa se repartam as peças que sobejarem corn os Cabos e Era o inicio de uma nova fase de transformações pela
Soldados dela, precedendo tirar-se antes devassa para que qual iriam passar os Caiapó, a fase da “pacificação*1.
constando as nações que ficassem culpadas nelas se lhes
fazer a dita guerra... ‘ ' Aduz que a devassa fôra feita co­ Impíicciçoes etnotópícas
mo cumpria e da qual envia cópia; tendo, entretanto, rece­
bido ordem de entregar o govêmu ao seu sucessor, deixa a Partindo de observações próprias entre índios da Amé­
éste o encargo de concluir o que havia principiado rica do Sul e de verificações feitas por Curt Nimuendajú,
que entre tribos do chamado grupo “Jê” — nomeadamente
Não apenas o seu sucessor imediato, mas ainda os três Ramkokamekran, Caiapó. Xerente e Apinajé — encontrara
seguintes < :i) prosseguiram na perseguição aos indios, por­ “uma agricultura mais original do que se tinha suposto”,
que as hostilidades haviam chegado, já no tempo de Rodri­ além de sistemas sociais complexos, pondera Lévi-Strauss,
go César, ao ponto de não mais permitir conciliação; ao em contrário a toda uma corrente etnológica, que o “arcaís­
que se acrescentava o interesse de mineradores, sitiantes e mo dos pretensos Jês pode não ser tão incontestável quanto
governantes ern escravizar o gentio, sob a forma de “admi­ parece" í1). Tomando, portanto, uma posição de dúvida,
nistração^ estabelecida por lei de Sua Majestade de 10 de o autor propõe a hipótese de "regressão*’ da cultura ma­
setembro de 1611 (<). terial e da organização social onde outros veern autêntico
A luta iniciada em 1727 estende-se desde o riu Paraguai arcaísmo, atraso sócio-cultural de "povos que — como diz
ao Mogi-guaçú, abrangendo terras hoje de São Paulo. Minas, Lome — permaneceram na primeira fase do cultivo ” CD.
Goias, Mato Grosso e Paraná (’•); e prolonga-se pela segun­ D.I., Vol. 22, ps, 210
(
da metade do século, pois ainda em julho de 1748 era cele- ( 5 ) Claude Lèvi-SLrausa. k-An tropología Eatrutural’'. trad tic Chaira Samuel
tCata e Êglnardô Firas, t<=v. eín úe Júlio Oèæar Melatt-i,. ed.
Bra&tlelro'*, col, ‘•Biblioteca- Tempo Universitário”, Rio de Janeiro. 1967.
11 ) D.I., Vol, 32, pg. ]«4. -- A citação e úíl pg, U5. Am seguintes aâo do iiiewmo Cap VI,
(2 J Idem, ibidem. pg. aid. a devassa a que alucíe fora feita, por ordem -A Noção de Arcaiamo em Etnologia*1.
BUft <lc 10 2-1728, pelo ouvidor ¡reiaJ Diogo de Lura do Moraes iD J . ( 2) Sfio numeroso^ na fitnálOKOH que entendam terflãn eido os Oaiapó ape-
VoL. 13, pg. 135). Hfta caçadores c coletores, mas çom ba$e no que sabem dessa nriçfin
( a) dflsd* meados do século paissado. Cixeinos apenas Jillian Steward
Cte trc® que ae aeguiram, nt-fc a üXtinção da eaPi tan la. em 174H, ioram (-Native Peoples of South America1', New York, 195S) e Hené Puerai
Antônio da Silva Caldeira Pimentel, António Luís de Tûvora e D Luis (-Di sao mH L atü co h malferieilus ch.fi» les indiens Kayapô dis BrèalL OfcB.tr-ftl*'.
île Maacarenhaa.
in Bulletin do Musée et Institut- d'EUmograiÿiie cie Genebra^ n.° 31,
i * ) Publicada, com outrais determinaçOes réglas sâbre a materia em 1UÍÍ7). quo às aua* observações reunlu as de vftrlos pasquiaadoréE bra
D.I., Vol, 3, pg 70. sileiros. Tala estudos referam-se aos Caiapó do Tocantina e Xingu, qur
< 5 .) Dessa cumpantui trataram. vArioa au torea, entre outros. Pedro Tuques. Coudroau (1B97) reputava dissociadas e dlferençadoa dos Çftlapó do
JOSt* Barbosa de BA, ABçvedo Marques, Machado de Oliveira, J M. P de Aragmala c -Paulistas”. Advlrtu-sc de que os Caiapó nflo são semprv
Ahuienatre, patin Silva e Sousa, a. de Toledo P.ïa, Afoneo de Taunay Gulapó para os Etnólogos, qu» costumam dar umw inalas Oe cada aldeia
<• Carvalho Franco. Alguns comentários se ir-ern em D.I., Vol i¿. um nome diferente, tirado da sit-uaçAo geográfica, do nome do chafe,
Anean» Peí, de ¡hiUhi-.i de Toledo Pisa, entilo Diretor do Arquivo de um traço cultural, segundo aa denominações qi.e ob próprios Índios
Público do Es ludo de Báo Paulo ■ se atribuem
132 133

Referindo-se específicamente a organismos tribais da Ame­ logia e a história "nada, podem uma sem a outra” (a). En­
rica do Sul que hoje parecem muito primitivos, Lévi-Strauss tendendo, no caso destas tribos que hoje praticam uma agri­
indaga, afirmando: "Não podemos também ver neles regres- cultura rudimentar, não ser isto suficiente "para provar qui­
sismos que, partindo de um nível mais alto de vida material se trata de cultivadores principiantes e não de cultivadores
e organização social, conservaram ¿üguns traços como ves­ regressivos, devido a novas condições de existência que lhes
tígios de antigas condições?”*; teriam sido impostas”, o autor reconhece que "a história
de cada, urna, se a conhecéssemos, esclareceria melhor sua
A hipótese é de difícil comprovação pelos dados da condição particular do que a hipótese de um nível arcaico
história particular de cada tribo ou de cada povo, visto do qual fossem uma sobrevivência".
serem muito escassas as informações sobre os nativos pro­
duzidas nos três primeiros séculos da ocupação branca, e Nisso exatam-ente consiste o drama dos etnólogos das
mais ainda as de índole antropológica. Com base em latos presentes gerações, no fato de não possuírem história as
da etnologia sul-americana diretamente observados por êle tribos indígenas que são o objeto de suas pesquisas; no
próprio e por outros, Lévi-Strauss entende sei' possível esta­ fato de serem migalhas esparsas os dados disponíveis sobre
belecer a vida progressa das tribos, não pelos dados histó­ O passado de todas elas e de cada uma, mesmo o passado
ricos, mas pelo enfoque antropológico, por meio da crítica posterior aos tempos que competem à arqueologia e à pré-
interna de traços e complexos culturais e da organização história. Drama que é muito pouco amenizado pelo recur­
social atuais. Assim, para citar apenas uma pequena amos­ so á “tradição oral", sabidamente sujeita a alterações, de­
tra, no caso dos Bororo, que depois de completamente des­ turpações, adaptações, ao contacto já com elementos da
mantelados entre 1880 e 1910, mantêm hoje uma agricul­ cultura ocidental, já com os próprios etnólogos, em razão
tura rudimentar ao lado de complicada cerimônia agrária, da subjetividade implícita nos temas prediletos de suas
compreendendo a benção das primícias pela xamã, deduz inquirições.
êle que a existência dêste ritual implicaria no caráter tra­
dicional da agricultura entre os Bororo. Como essa, o autor Drama mais que sofrido, com profunda influência até
apresenta várias outras situações concernentes a tribos sul- na direção que a Etnologia vem tomando no rumo da So­
americanas que permitem inferências equivalentes, também ciologia e da Antropología Social, ma¡s drama que também
com relação a estruturas e funções sociais. envolve os historiógrafos devotados ao estudo da fase de
formação do povo brasileiro. Sabem êstes muito bem que
De tais inferências, Lévi-Strauss faz ressaltar o núcleo é pràticaincnte impossível de ser traçada até a simples mo­
de convicção que está na base da sua proposição teórica, bilização espacial, espontânea ou não, das coletividades nar
pois, argumenta^ se “o etnólogo, votado ao estudo das socie­ tivas no período de colonização, quanto mais os tipos e graus
dades vivas e atuais, não deve esquecer que para chegarem de aculturação e miscegínações, atitudes, comportamentos,
a ser tais, eítzs tiveram que viver, durar et portanto, mudnr". mudanças psíquicas, sociais e culturais havidas dos entre­
é se naturalmente impelido a concluir que "uma mudança choques com os brancos, com elementos de sua cultura,
que suscita condições de vida e organização tão element si­ com suas alianças, guerras, vícios, traições e felonias.
res a ponto de invocar apenas um estado arcaico. só pode­
ria ser uma regressão". (3) Pg 41, Cap. I. -Introdução: História e Etnologia”, Propomo-nos rno®-
trar — 413 M LévbfttrauHR — que a diferença fundamenta! entre tmihiws
Se é um fato que essas coletividades sociais vivem, du­ nfio é nem de objeto, ném d« objetivo, nem de método; inãa que tendo
o mesmo objetoj que fc û vida íWseiaU o mnœno objetivo, que é umii
ram e, portanto, mudam, o problema recai também no do­ cumpreansíto melhor do homem; e um método onde varia, ¡ipenas- a
mínio da história, a este competindo identificar e explicar dogagem do» pnraagHQa de pesquisa, elus t» dliníngUBm sobretudo p«lw-
escolha de perspectivas eomplemen tarea: a bíRtõrla organizando «-Uh
as causas de uma tal ou qual mudança, embora nada possa dados em relação- ús êsepressões conscientes, a etnologia o reluçfio ftH
dizer no tocante ao processo de regressão sócio-cultural. condiçGc» inconsciente* du vida social. [...] «e o etnólogo cnntiu-
gra principal mente sua análise aos elcinviitõ& inconscientes da vida
E bem ao contrário da atitude da maioria de seus colegas social, seria abaurdo supor que o litetorlaúor o® ignora. 8em dûvidii,
rate pretende, antes de tudo, explicar os fenômenos socials em ninçRci
brasileiros, Lévi-Strauss não desdenha da contribuição da dos acontecimentos nos quais éles se encarnam, e du iniumirn P<du
história, postulando mesmo que, "aí como alhures”, a etno- quai os individuos os pensaram e os vivaram'* (39, 40).
135
— 134 —
. /4\ Anesar das mudanças, nao pci-
Se para uma e para outra, as informações tanto escas­ do de cruenta guerra ( ). P tários entre os quais o
seiam, a etnologia e a história somente ganhariam com a
mútua colaboração. Assim, p. ex., no caso particular de
uma das tribos citadas, os Caiapó, acreditamos que os da­
dos históricos sirvam para comprovar mudanças para pior efeitos regressivos de natureza sócio-cultural.
nas suas condições de vida e nas proprias condiçoes sociais,
mas sugerindo ao mesmo tempo que o problema do regres- São já numerosos os ^¿mpos d^ Castelnau,
õismo talvez exija critérios mais complexos de julgamento. que vêm sendo estudados de^e de
Martius, Coudreau e outros, etnologia depois que se
Conclusões só terem ingressado nos volantes,

Com base nos dados e informações que conseguimos


coligir sôbre a história dos Caiapó, pensamos ser possível ,inS ■“ ,Sɱ ™ * L‘Svl-
estabelecer alguns fatos de interesses histórico e etno-socio-
lógico; até cerca de 1613, os Caiapó eram. índios pacíficos Strauss, um povo em fase dc gAcreditamos que a
nas suas relações com os brancos, embora belicosos em face
de outras nações indígenas; possuíam aldeias em lugares
certos, tendo-as mantido nas mesmas paragens pelo tempo œmpïiem'^problcmk do ponto de vista da Antropologia.
suficiente para que se firmasse a fama de que nelas os
brancos eram recebidos com amizade e bom tratamento ;
em razão da permanência em aldeias estáveis, deviam pra­
ticar a agricultura, da qual existem vários indicios positivos ;
desde um dado momento, a partir do ano acima citado, rea­
gindo a perseguições de brancos, tomam-se errantes e guer­
reiros contra os brancos, mas conservando a despeito disso,
além da índole pacifica, alguns traços de vida sedentária,
como por exemplo a lavoura, que continuaram a praticar
em períodos certos ou nas ocasiões em que os azares da
vida guerreira o permitiam; com a intensificação da guerra
que os brancos lhes movem, a partir do segundo decênio
do século 18, tomam-se mais belicosos.
Vimos atTás que cérea de um século mais tarde, déles 14 ) Ao que parece, a Prime‘ï^cj“n5unto <tó "aragua»» Noiwe
escrevia um sertanista bom observador: “nem têm domici­
lio certo, nem plantas ou lavouras; são volantes e de corso
e se sustentam da imundície do mato; e quando chegam a
cacão: Muchado dOlivelra. Us ■ Morgado do Matou» ainda
plantar, trazem o mantimento consigo, conduzindo-o de uma •Su 1. ~
parte para outra...”
<D QuX úPerciZ’4
De tudo se vê que desde seus primeiros contactos com
um relatório de 195B. -do P ¿ , lnatVidutB em One do
os brancos, os Caiapó, além da transferência de “habitat”,
passaram por processos de mudança, transformando-se gra- vam reduzidos a nn aobrevhent s I Not», ‘'Relatório sôbre a
dativamente de povo pacífico em guerreiro, mas cuja índole nT entre IMM 19 CCarlüS A £ AnUopolo8U’\ Junho-
amigável ficaria comprovada por sucessivas demonstrações Bituaçfto atual doa índios K.ay»P*> •
Dezembro, 11)59).
e pela facilidade com que seriam pacificados após um perío-

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