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Antoine Garapon Ioannis Papapoulos STC g nos Estados Unidos e na ai} Ore cruer ew Ler sipycor FRANCESA E Common Law EM UMA PERSPECTIVA ComParabDA Re pe Conan Bees Roberto Kant de Lima aS Sens ‘www lumenjuris.com.br ‘EDITORES Joio de Almeida Jovto Laz da Silva Almeida CConseo Cassa [vate Marin a Cosa ‘anton Carlos Martins Soares ‘Asquato Zimmermann ‘Cosseso Boron ‘Alesandre Freitas Cara ‘amiton Basan de Carvalbo ‘ta de Beto Gueios Souza erat Robert Bteacour. ‘Aurio Wander Bastos (Ce Fores Elida Ségain| (Grstlano Chaves de Farias livia Lages de Casto Carlos Haan Adriano piss ani Alves Matas lpi Donizet Gisele Cian Emerton Gare Humberto Dalla Bernardin de Pino aur Hassan Choke Jot Thetonio Mendes de Aled J iy Norcent Filho Jost Fenande de Casto Farias Francis de Asis M. Tavares Joot Ribas Vier Geraldo LM. Prado ie Feira Boros {Ghherme Peas de Moraes Le Paulo Ves de Crvalho Gusxavo Sénichal de Gofiredo Marcallo Cito 1. Leon Lopes de Olvera (Omar Gama Ben Kaos. oto Cris Souto Rafe Bareuo Fou dor Santos Carvalho iho Sergi Demoro Harton Tiel Aagénio ChamonJonior Manoel Mess Peiinho Marcellas Poste Karna Marco Autlio Bezerra de Melo ‘Masso Juruona Villa Soto [Neon Reread Paulo de Bessa Antunes Ponlo Range Ricardo Minimo Gomes Ferraz Salo de Caralho Sérgio Andeé Rocha “Tiss Nametala Sar Jorge Vitor Gameizo Drummond io de ero Minas Geis enero us de Ane, 10 Lop Gt Roe Tenet Brito Malo, 1238, ‘CEP 2011-000 Ceao (CrP 20180-000- Bar Brew ee de asi =) Belo Horizonte MG ek GI) 259-219 Fax B28 Te OH SH-0907 ‘ara Avenida as Amdocs, 4200 La uhie UOnventade Esto de St om Dr, ot Perobs, 249 = te SO506 (Comper To Jobim CEP 22680011 (CEP 41770235 - Coun Ara fn ie lo de anlo- FD Sadr = BA Te (1) 331-9646 ‘Te 262.2548 / 3150-1980 eek ‘Sip Paulo ‘Ro Ura, 287» Canin 62 Fev Cela Vaete, 8 ~ CEP: A085 010 {Cap gonta 10 Conta Fore Age RS ‘ilu lenenting~ So Pal ‘el 3212-6590 Teer (11) 3908200 ge feo Prats Re Cann Se, 32 ~ Tero ean santa Rain (CHP. 2S 29 Sea Lio ANTOINE GARAPON ‘Membro da comissio de redacto da revista Esprit, Antoine Garapon dirige 0 Instituto de Altos Zstaos sobre a Justia, Publicou, entre outros, Le Gardien des promesses, Bien juger, Eee sera justice, ‘ainda Des crimes qu'on ne peut ni punit 2i pardonner, 7 Ioannis PArApoPOULos Juristaformado ne Grécia, na Franca e nos Bstados Unidos, Teannis Papadopoutos tem wm cargo 20 IHEJ stitato de Altos Estados sobre a Justica), 6 professor na Universidade Paris I “eno IBP Paris. Publicou principalmente Prtiques juridiques Intexpretatives oe herméneutique literate e La Peine de mor. JULGAR NOS EsTADOs UNIDOS E NA FRANGA Cultura Juridica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada ‘Tradugdo: Prof Regina Vasconcelos Revisio: Prof Mirian Alves de Souza Prefacio & tradugao brasileira: Roberto Kant de Lima Preficio de Stephen Breyer, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Eprrora LUMEN JuRIS Rio de Janeiro 2008 Copyright © 2008 by Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos Categoria: Direito Constitucional Propugho EorrontaL Livraria e Editora Lumen Juris Lede, ALLIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA ino se responsabiliza pelas opinides emitidas nesta obra. 1 proibida a reprodugao total ou parcial, por qualquer reio ou processo, inclusive quanto is ceracteristicas _grificas e/ou editoriais, A violacio de direitos autorais, constitui crime (Cédigo Penal, art. 184 e §§, ¢ Lei n* 10.695, de 1/07/2003), sujeitando-se & busca e apreensio e indonizagses divereae (Lei n#9.610/98). ‘Todos os dizeitos desta edigdo reservados i Livraria e Editora Lumen Juris Leda Impresso no Brasil Printed in Brazil | Sumério Preficio & Edict Brasileira Preficio Agradeciment0s cen : Introducdo ~ Uma Fratura Cultural Interna no Ocidente Cepia 1-0 que 6 una Calr Jura. : Um modo de produgo da verdade. Uma configuragao da politica Capitulo I-A Common Law. : Anterioridade do direito ou primado da politica? Lei ou precedente? Ideal ou regra do jogo? Capitulo III O Acesso a justica Prep Pblica ou Bem Aliendvel? ‘A negociacio da "declaragio de culpa". A abordagem econdmica da justiga. © hhabeas-compus ¢ 03 condenados inocentes Captelo IV ~© Proceso Judicifro: Momento ox Mecanismo Process? fay in court ou uma etapa? Relatérios postos & prova ou revel da verdade? Um jogo sério Capltulo V— A Prova: Verde ou Verosimilhangs? Formalidades processuais ow inquitigio? A variagdo dos regimes de verdade: os padroes de prova Flexibilidade e evotugdo da prova Capitulo VIO Juiz: Arbitro ou Investigador? Concentragao ou separacio dos poder. Figura moral ou érbitro social... Personalidade ow funciona’. Cento VE~O i nt asin ou rat Polis valores do i american Métodos de selecio do juiri 2 18 23 2B 32 36 9 56 78 76 86 ” 101 101 107 16 123 123 128 134 “a7 8 159 ‘Anxoine Garapon ¢ loannis Papadopoulos ‘A capacidade do iri para decidir casos complex0s norm Capfculo VIII -0 Julgemento: Silogismo ou Opinio? (0 julgamento, uma obra pessoal. Opinito dissidente e regra do meen (otare decisis). Remedies ¢ injungdei : CCapieulo IX— A Jastiga: Servigo Pablice ot Fram? wo..-sesn nn 0 “contencioso de interesse public Gepromotor Pivads” (Primte Attorney Generale © amicws curiae. A Agio Goletiva (class action) Capitulo X— A Pena: Multa ou Reabilitagao? Liberdade ou dignidade? 7 ‘A grade das penas (sentencing guidelines)... Acpena de morte Capitulo XI - Concorréncia, Convergencia ou Didlogo de Culturas? A concorréncia. : Convergéncia 0 didlogo Conclusio... ‘Um aceaso desviado & verdade ‘As formas intrincadas da politica... 164 m m2 178 185 197 199 208: 212 219 220 230 240 245, 246 253 260 267 268 m Prefacio & Edigao Brasileira Tomei conhecimento de uma parte do notivel trabalho de Antoine Garapon através de meu colega e amigo, Daniel dos Santos, do departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa, com quem mantenho, desde 1996, através do Programa de Pés-Graduago em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, relagées académicas de intercdmrbio, todas muito proficuas para ambas as partes. A indicagao certamente se deveu ao conhecimento que Daniel dos Santos tem de meus interesses comparativos, explicitados no campo empirico pelos diversos textos que, desde 1989, tenho publicado sobre as culturas jurfdicas bra- sileira ¢ dos Estados Unidos, em uma perpsectiva antropolégica, isto é, acen- ‘tuando suas diferencas, ao invés de suas semelhangas. Alguns destes textos, inclusive, encontram-se reunidos ¢ publicados nesta Colegio (Kant de Lima, 2008). Estes interesses sio andlogos, em perspectiva e metodologia,a alguns dos muitos interesses de Antoine Garapon, com a diference que os dele, neste assunto, se dirigem ao campo empfrico da Franga e dos Estados Unidos. ‘Como ja dissemos, entio, nessas ocasides trata-se da: .) questéo da aplicago do método comparativo a investigagio no cam- po do direito, tal como é concebido, teorizado e praticado pela Antropo- logia contemporinea. Isto porque o método comparativo, como tem sido usnalmente empregado no campo do direito brasileiro ~ propondo-se a fazer comparacées, no por contrastes, mas por semelhangas que, muitas vezes, sio apenas semanticas ~ retira de seu contexto as instituigdes juri- dicas que pretende comparar. Fmbora a tradigéo do método compérado tenha estado presente na ciéncia do século XIX, como estratégia para atin- gir generalizagdes ~ e, neste sentido, destacave tragos semelhantes entre instituigdes ¢ culturas que apresentavam acentiadas diferengas entre si — a partir da segunda metade do século XX, a coruparacio passou a destacar diferengas entre as realidades comparadas (por exemplo, Dumont, 1997, 2000; Geertz, 1978). Assim sendo, no caso de saberes como 0 Direi:o ¢ como a Antropologia, que lidam com manifestagées culturais locais, ainda que regionais on nacionais, ao se abandonar 0 enfogue das diferencas presentes em cada formagio histéri- co-cultural especifica, deixa-se de conhecer as particularidades do objeto estu- dado como meio eficaz de compreensio das especificidades presentes no con- texto cultural em que fatos ¢ instituigdes atualizam sua existéncia particular. Deste modo, airiflexao emprestada por alguns autores ao método comparado na atualidade enfatiza que a comparagio oferece procedimentos relevantes para, por meio dela, melhor conhecer as especificidades ~ ou as diferengas — que caracterizam as realidades locais, regionais e nacionais estudadas (por exemplo, Geertz, 2002). Torna-se, entio, 0 método comparado, tanto um procedimento relevante para conhecer as particularidades de fatos ¢ de instituigées dentro dos sistemas ¢ de culturas investigadas, como apresenta reconhecida eficécia na apreciagio de peculiaridades préprias is instituigdes juridicas brasileiras, quan: {do eomparadas as de outros paises. ‘A pritica do antigo método comparado, que privilegia as semelhangas, tem levado o campo juridico a graves distorgées de entendimento ¢ torna pos- sfvel, por exemplo, identificar falsas semelhangas entre o trial by jury do direi- to dos Estados Unidos da América e a instinuiggo do Tribunal do jr do direi- to brasileiro; ou entre o status civitatis da Grécia antiga e a cidadania brasileira do século XI; ou, ainda, entre o instituto da discretion da polfcia ¢ dos District Attomeys (promotores) dos Estados Unidos e a discricionariedade administra- tiva de nosso servigo piblico. A comparacio por semelhangas torna-se, ainda, presa de concepgées evolucionistas naturais ultrapassadas, quando procura semelhangas entre as instituigdes da antiguidade com as atuais, considerando serem os instizutos de épocas e de formagées histérico-culturais muito distan- ciadas, unilinearmente vinculados, na maioria das vezes, por ficticia descen- déncia. De hé muito a busca das “origens” foi abandonada, tanto pela cigncia natural, como pela ciéncia social, em face do alto prego do investimento mate- rial e humano desta busca ¢ das incertezas quanto aos resultados dela abtides. este modo, torna-se duvidosa a intengio de compreender e de explicar as rea lidades sociais presentes, pelo passado, como se elas mantivessem continuidade. Isso nido quer dizer que nao se encontrem tragos do passado em instituigdes do presente, especialmente se esto inseridos na mesma formacio histérico-cultu- ral, mas esses tracos nio podem ser analisados como meras “sobrevivéncias” do passado, pois so dotados de significados contextuais e temporais distintos. Em suma, a Antropologia contemporinea ~ ciéncia que lida exemplar- mente com sistemas da vida humana social e culturalmente organizados de ‘maneira bastante diferenciada ~ nos ensina que, pelo método comparativo, contrastam-se as diferengas das realidades comparadas, contextualizando-as, para buscar equivaléncias entre institutos aparentemente distintos e desseme Thangas entre aqueles que, aparentemente, ou nominalmente, se assemelham. | i Mais: nfo se trata de valorizar positiva ou negativamente as evidéncias empsri- fas encontradas, julgando-as a partir de uma referéncia nica, etnocéntrica, tas de compreendé-las através de sua propria teia de significados. Assim, para Compararmos, por exemplo, o due process of law do direito anglo-americano Como devido processo legal positivado pela Constituigdo Federal de 1988, no or 5*, inciso XXXY, ou, ainda, o principio da igualdade em ambos os sistemas, indo 6 suficiente levar em conta somente o nome de institato, f indispensével vonsiderar o que ele significa na ldgica do sistema juridico de cada sociedade e nna forma como este instituto é atualizado na pritica juridica local ‘Nao se trata, ainda, de avaliar os objetos comparados, ou seja, se © direito norte-americano é melhor, ou pior, do que o brasileiro, mas de assinalar que mos apresentam marcantes diferencas entre si, por pertencerem a sistemas jndiciais distntos,vigentes nos respectivos estados soberans & gue pertencem. Por esta raz8o, quando de maneira equivoca, um destes sistemas ¢ segmentado em partes, para que estas sejam incorporadas a0 nosso ou a outro qualquer sis- tema, como fim de, supostamente, buscar-se “aperfeigoamento” de um deles, fs efeitos deste transplante tornam-se imprevisivels¢ resultam pouco esclare- cedores para ¢ comparacio empreendida ‘Sem o exercicio da comparacéo incorrerfamos no grave equivoco de fazer generalizagbes incorretas ¢ de apontar continuidad:s entre intituigbes que, ou Sofreram descontinuidades ao longo do tempo, cu passaram por alteragdes, tenham sido clas registradas, ou ndo, entendendo que os institutes so equiva- lentes 6 porque tém nomes semelhantes, Para comparar institutos de sistemas juridicos diversos é necessirio, portanto, primeiro contextualizé-los nas respec= {ivas tealidades ¢ inveotigar 6 significa com que se atualizam nas préticas politico-juridicas dos respectivos ordenamentos. $6 2 partir deste exercicio ¢ {que a comparacao pode ser proficua e esclarecedora” (Amorim, Kant de Lima e ‘Teixeira Mendes, 2005, p. X1-XV). "Apés ter contato com o trabalho deste juiz-antropélogo. fiquei conhecen do pessoalmente 0 colega em Missio de ‘Trabalho que realizei em 1999 no ambito de um convénio CAPES/Cofecub, apresentado que fui a ele por meu interlocutot frances, 0 saudoso Professor Iseac Joseph. A parti dat, foi sempre ‘com entusiamo que me debrucei sobre os trabalhos de Garapon ~ pelo menos dois deles traduzidos para a lingua portuguesa (Garapon. 1997, 2001) © que davam conta de uma sensibilidade antropolégica de rarissima presenga no campo éa Antropologia do Dircito, vinda de um de seus mais ilustres juristas ‘ontemporineos, tomando como objeto de andlise empirica, como jé menclo- nei, um de meus campos de trabalho ~ a cultura juridica dos EVA ~e acrescen- tando-Ihe outro, o da cultara juridica francesa. Esta convivéncia esporidica foi cultivada através de agradaveis e descon- trafdos encontros que tivemos em Paris, em seu seu local de trabalho, 0 Institute des Hautes Etudes sur la Justice, ou almogando em seus arredores, ¢ teve como consequéncia intercimbio de conhecimentos que se estendeu a ‘meus alunos ¢ aos colaboradores dele ~ que incluiram, em uma dessas ocasides, o préprio loannis Papadopoulos, co-autor do livro que aqui se apresenta ~ além de amivel convite, formulado conjuntamente com M. Thiérry-Pee para que eu publicasse, com meus colegas brasileitos, artigo referente a nossa pesquisa sobre jiaizados especiais criminais, & época da finalizagdo de uma de suas etapas (Kant de Lima, Amorim e Burgos, 2001), Nestes encontros também ficou patente nosso interesse académico comum em formas processuais de producio da verdade, que jé haviam desper- tado minha curiosidade desde meu trabalho de campo com a justiga criminal brasileira, na década de 80 ¢, a dele, com as questoes tesricas e priticas que @ Uniio Européia veio trazer ao direito processual dos paises que a ela pertencem, Porque, como me disse ele nessas ocasides, a consenstializagao do chama- do direito material é de relativa simplicidade, tanto no que se refere a matérias civis e administrativas, quanto ao que se refere as questdes criminais. ano que tange ao processo, entretanto, as dficuldades sio bem maiores: cada pa(s tem 0 seu processo, a sua maneira de produzir verdades judicisrias e de estabelecer formas processuais regulares, desde o due process of law adversirio da tradigio anglo-americana até os métodos inquisitoriais e acusatoriais presentes na tradi ‘slo da civil law. ‘A questio que se coloca, entdo, é a de descrever e analisar os processos ¢ 0s papéis dos diferentes agentes do judiciério na common law ¢ nas diferentes verses da civil law, por exemplo. Como establecer critérios de equivaléncia para que cidadios europeus se sintam justamente processados em tradigées pro- ‘cessuais tdo diferentes como essas? Como estabelecer equivaléncias entre os resultados dos processos judiciais, ou entre os papéis desempenhados por juizes, promotores, defensores, acusados ¢ testemunhas, em sistemas tdo dispares? Cortamente, essas questdes, como aquelas que tenho sistematicamente evantado para a tradicao judiciéria brasileira, permanecem sem resposta defi nitiva, Mas olivro que ora se publica ¢ um passo de suma importincia neste tra- balho comparativo, uma vez que, inclusive, contou no 96 com a experiencia de ‘campo do préprio Garapon, que fez observaciio participante na Franga e treba Iho de campo nos EUA, mas também com a arguta contribuigde de Toannis Papadopoulos, advogado greco-americano que contribui na confeegio dos capi- tulos referentes a sua prépria pritica processual nacional. Acesta boa nova, que a Editora Lumen Juris concordou em apoiar, publi- cando-o na colegio que dirijo com Michel Misse, juntou-se 0 fato de que 0 autor aceitou nosso convite da Associagio Brasileira de Antropologia para vir a0 Brasil participar da 26* Reuniio Brasileira de Antropologia, a ser realizada de 01 a 04 de junho de 2008, em Porto Seguro, BA. Nesta ocasiao, olivro seré devi- damente lancado e debatido entre os antrop6logos e, espero eu, também seca acolhido entre aqueles juristas que se interessam por uma perspectiva compa rativa do campo juridico, o que petmite, certamente, um olhar mais rico e dife- renciado sobre suas proprias priticas e teorias. Niterdi, 05 de maio de 2008, Roberto Kant de Lima Pesquisador de produtividade/CNPq e Gient'sta do Nosso Estado/FAPERJ Referéncias Bibliogréficas AMORIM, Maria Stella; KANT DE LIMA, Roberto e BURGOS, Marcelo. administration de la violence quotidienne au Erésil: Vexpérience dés tribu- naux criminels spécialisés. Droit et Cultures, Revue Semestrelle Anthropologie et d'Histoire, L’Harmattan, Paris, 2001 (niimexo hors-sére), p. 199-227 AMORIM, Maria Stella; KANT DE LIMA, Roberto; TEIXEIRA, Regina Mendes. Inrodugto, Im Ensaios sobre a igualdade juridica: acesso @ justiga cri- minal e direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. XE XXXVI. DUMONT, Louis, Homo aequalis: génese ¢ plenitude de ideologia econdmica. Sto Paulo: EDUSP, 2000. 280p. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus:o sistema de castas ¢ suas implicagées. Sio Paulo: EDUSP, 1997. 413 p. GARAPON, Antoine. Bem julgar- ensaio sobre o ritual judicisrio. Lisboa: Instituto Piajet, 1997. 345p. GARAPON, Antoine. © juiz € a democracia: 0 guardiio das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 270 p. [RTZ, Clifford, A interpretagio das cultures. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989. 323p, GEERTZ, Clifford. O saber local: novos cnsaios em antropologia interpretativa Petrépolis, RJ: Vozes, 2002 3665p KANT DE LIMA, Roberto. Ensaios de Antropologia e de Direito. tio de Janeiro amen Juris, 2008, 289p G i | | Prefacio Por que nos interessamos pelo direito de um pais estrangeiro? Porque isso se torna necessério quando vivemos ou trabalhamos em outro pais. O que tem acontecido com uma freqiéncia cada vez maior: o mimero de pessoas que se expatriam aumenta, as empresas exportam bens ou servigos e os investidores encontram muitas dificuldades com relagdo aos procedimentos jurfdicos no estrangeiro. Um escritério de advocacia americano (ot francés) que conhece 0 direito francés (ou americano) teré melhores condigées de aconselhat seus clientes nacionais. A necessidade de compreender o diteito estrangeiro cresce, assim, na medida em que as viagens ao exterior, as comunicagSes e o comércio internacional se intensificam ¢ os negécios se globalizam, ‘Ao mesmo tempo, e pelas mesmas razbes, 0 direito de cada pais incorpora uum niimero crescente de normas internacionais. Tratados comerciais podem. engendrar um direito interno que se aplica diretamente e que pode integrar préticas comerciais transnacionais, assim como a lex mercatoria. Uma lei nacio- nal ~sobre a propriedade industrial, por exemplo ~ pode procurar se harmoni zar com 08 direitos de outtos paises visando expressamente priticas estrangei- as em suas disposigSes ou implicitamente na exposigo de seus motivos. O desejo de compreender o direito estrangeiro ultrapassa, entretanto, 0 camércia, No decurso dos ‘iltimes cingliente anos, vem sc desenvolvendo um. ‘consenso, agora quase mundial: 0 direito nao pode se contentar em facilitar as trocas comerciais, ele precisa também proteger os direitos fundamentais da pes- soa humana. Textos juridicos, constituigdes nacionais e tratacos internacionais exprimem esse consenso que os advogados tentam pér em pritica nos tribunais nacionais ¢ internacionais. E os jutzes de diferentes paises retomam formula- bes idénticas em circunstincias andlogas para julgar os mesmos problemas juridicos, como a coexisténcia de ragas, a imigragao, as condigdes de produgio, (08 constrangimentos econdmicos, as preocupagées ecoldgicas, as tecnologias modernas, a comunicagZo de massa instantanea, ¢ até mesmo o terrorismo. Por isso 08 advogacios ¢ 0s juines de um dado pafs podem aprender com as construgdes ¢ as solucdes jurfdicas inventadas por seus colegas estrangeiros. O estudo de outros sistemas juridicos ajuda a compreender melhor o préprio sis- tema: como € ele, como deve ser e em que pode se converter. Um exame paralelo dos casos e das solugées que Ihes foram dadas revela-se cada vez mais ttl. © Conselho de Estado questionou se uma estudante mugul- odia evocar um direto fundamental que Ihe permitisse manter a cabeca Pippen eng na lade ala Tamm a Suprema Come dos Fxados Unidos precisou decidir se um soldado judeu da aeronéutica tinha o direito fun damental de usar um quipi2 A Corte Européia dos Direitos do Homem conce- dew as préticas homossexwais privadas uma protegio juridica fundamental’ E a Suprema Corte chegou 2 ama conclusio idéntica referindo-se diretamente & decisio da Cotte Européia dos Direitos do Homem.4 Por ocasiao de um caso recente sobre a liberdade de expressio e a regulamentagao do financiamento das ‘campanhas politcas levado 4 Corte Suprema, ambas as partes invocaram em apoio de suas teses a sentenga Bowman v. United Kingdom, proferida pela Corte Européia dos Dizeitus do Homem em relagio a um caso similar ‘Accada dia cresce a necessidade de um estado minucioso e de uma compa- ago aprofundada entre os sistemas juridicos. Consideremos, por exemplo, 05, recentes esforgos das cortes penais internacionais para criar um procedimento penal comum, Ele seria inspirado nos sistemas de inquiriglo que encontramos ros pafses de civil law ott nos sistemas acusatérios nas nagdes de common lav? Ou seria ele o fruto da combinagao de ambos? Uma integragio como esta exige juristas capazes dle compreender no apenas um, mas 05 dois sistemas, que so bem diferentes. Por exemplo, um jurista da common Jaw que se alarme com os amplos poderes do juiz de instrugio, deveré compard-los com o poder pratica~ mente incontroldvel exercide em common law nao pelo juiz, mas pelo promo- tor. Bate decide mais de 90% dos cats peais através do ples bargaining, ou ja, por uma negociasio da declaracao de culpa O confronto entre os méri- {chloe diferente procedimentas penis no pode neligenciar esa Tealiade Consideremos também 0 impacto maior que 0 direito francés da respon- sabilidade civil comegou a exercer em common Jaw sobre as agées de respon sabilidade delituosa, sobrerudo no que concerne & atuagio do perite, No decur~ s0 de um caso francés recente, La ligue contre Je racisme et I'antisémitisme c Yahoo!, Inc,’ por exemplo, associagdes lutando contra o anti-semitismo move~ ram uma agdo judicial contra um servidor mundial para que fosse impedido de 7 Connell d'Eat, 27 novemire 196: req ne 170207 17ODOR; Ligue islmique du Nore 2 re fe 170208; Me Mime. Wisandane are, 172636, Me Mine, Jou. 2 Goldman v. Weinberger, 475 US. 503 (1986) 3. Dudgeon v- United Kingdom; 45 Bor, Ck. LR. (1981) (que considerouinsuficientes sjustiicagtes “leads pra penalizar a yelages homossexaspivadas entre altos consencientes) 4 Lawrence v. Texas, 1288 Ot 2472, 2481 2009). aun 5 Bar. CUHLR, Recueil des agement et décisions de 1988, 19 fevrier 1998. 6 US.Dept offastie, Surcebook of Crinsna JsticeStcsics 1998, (5.17 «5.42, p AUG e432 (1999) 7 ‘Tribunal de grande instance de Pais, 22 maio 2000, ordonnance n* O105306 (citda em Yahoo! Inc Le Ligue contre le raceme et Fentiémiieme, 169 F.Supp. 241181 (N.D. Cal, 001), propor aos utilizadores franceses da Internet o acesso a um site que vende abje- tos nazistas, bem como aos demais sites pré-nazistas. O direito francés profbe, com efeito, esse tipo de acesso, contrariamente ao direito americano, O tribunal francés consultou Yahoo! sobre a possibilidade ~ a um custo razodvel ~ de isolar os utilizadores franceses barrando-lhes @ acesso aos sites litigiosos dos outros internautas, principalmente americanos, O modo pelo qual 6 juiz francés se informou sobre as condicaes técnicas de chegar a esse resulta- do nfo pode deixar de impressionar todos aqueles que desejam melhorar a efi- cécia da justice. juiz apoiou-se no relatério de um grupo de especialistas, reservando a Yahoo! o direito de contesté-lo em parte ou em sua totalidade. O resultado foi répido € finalizou em um acordo, néo de fundo, mas relative a varios dados téenicos. A Gri-Bretanha introduziu recentemente uma reforma da perfcia que Fevela uma boa compreensio do sistema francés 8 Essas reformas se revelaram eficazes e, portanto, populares.) Nao est4 exeluido que juristas americanos se dediquem ao estudo simulténco das reformas inglesas ¢ do sistema francés para tornar a pericia mais eficaz e adaptada & variedade dos casos.10 A comparacio aprofundada dos sistemas estende-se também ao direito constitucional, Por ocasido de uma recente conferéncia no Canad, alguns jut 2es pertencentes a diferentes jurisdigies francéfonas através do mundo puse- ram em questo o principio de “fraternidade”, perguntando-se se ele exercia um papel significativo em seus sistemas de civil law. Muitos consideraram que nio. ‘Um principio similar parece, todavia, ter atuado em um caso recente em que nossa Suprema Corte teve de julgar se a discriminacio positiva (affirmative action) violava o principio de igualdade gerantido pela Constituigdo dos Estados Unidos (equal protection of the laws). Esta diltima frase era compativel com a preferéncia concedida a alguns na selegio dos estudantes para uma universida- de do Estado? A universidade podia levar em consideracao positivamente a ori~ 8” Verloide Woot, Fina! Report, Aces o Justice, cap, XII (26 de utho de 1996) 8 Ver The Lond Chancellor's Dept, Civil Justice Reform Evaluation, Emerging Findings: An Eaaly valuation of the Civil Josie Reforms (maxgo 2001; The Lord Chancellor's Dept. Civ Justice Reform Bvaluation, Pnther Findinge A Cntinaing Bvalistion ofthe Civil Jostice Reforms gos 02002), 0 Ver, por exemplo, Stephen G. Breyer, "The Imerdepondenceof Science and Lave’, 82 Judicature 24 Gulho-aposto de 1998); Mark 8. Frankel, "The Role of Science in Making Good Decision" (10 ‘de junio de 1998) (testemunho diane do House Commitee on Science [Comisio da Camara dos Representantesrelatvamente }Cigncial; American Anociation for the Advascement ef Science [AAAS ~ Associasio Americana para © Avango da Cinta), Court Appointed Scientific Experts [CASE ~ Pertos cientifics nomeados pees tennis} (projet demonstative fnanciado pels National Confrence of Lawyers and Seietists [Conferdneia nacional de advogados © cents lum comicé mista da AAAS eda American Bar Association {ABA, Asvciag dos foros tnericans) ‘gem étnica de um candidato oriundo de uma minoria com o objetivo de ter um corpo de estudantes mais “diversificado”, incluindo, por exemplo, um mimero significative de negros? ‘Trés séries de argumentos militavam, entre outros, a favor da constitucio- ‘halidade da affirmative action. Os primeitos invocavam o principio de igualda- der a diversidade racial é necesséria para compensar a discriminacéo passada. Os segundos se apoiavam no principio de liberdade: uma universidade tem liber- dade para buscar a diversidade porque a Constituisao Ihe reconhece wma mar- igem de apreciagdo na escolha de seus estudantes. Os terceiros, enfim, se funda ‘vam em um princfpio préximo da “fraternidade” ao afirmar que a interdigdo de toda discriminagGo positiva em nome do principio de igualdade (equal protec- tion clause) teria graves conseqiiéncias, tanto no plano administrativo como social. Representantes das forcas armadas, de empresas, sindicatos e da admi- nistrago sustentaram, com efeito, diante de nds, que uma tal interpretacio impediria de ter um corpo de oficiais, executivos ou funciondrios em que os membros de diferentes grupos raciais tivessem todos um papel importante. A homogeneidade racial de todos os titulares de fungdes de autoridade que resul: taria disso acabaria por dividir a sociedade, engendrar tens6es ¢ arruinar a legi- timidade que a democracia exige para funcionar, Bste iiltimo argumento teve um papel importante na decisio da Corte Referindo-se ao funcionamento pritico da democracia ¢ insistindo sobre a “soli- datiedade social”, ele se aproxima do principio de “fraternidade”: de qualquer forma, sua similitude om relagio a este timo permite aprofundar a comparacio. Jalgar nos Estados Unidos ¢ na Franca propoe comparacoes ¢ explicagbes indispensiveis para todo: aqueles que se engajam na via que eshocei aqui. Este livro explora os sistemas de common lawe de civil Jaw, principalmente os fran- 1s ¢ americanos, ¢ desvela as raizes que explicam as similitudes ¢ as impor- tantes diferencas que moldaram esses sistemas de modo tao diverso. A discussio ineugurada por este livro testemunha um conhecimento profundo do direito em seus detalhes por parte de seus autores. Seu conhecimento intimo desoes siste- ‘mes manifesta igualmente seus contextos culturais. Estou convencido de que escas comparagies se revelaréo cada ver. mais tteis para os profissionais, Este livro deve igualmente anunciar ¢ inspirar futuros estudos de direito comparado. Stephen BREYER Juia da Suprema Corte dos Fstados Unidos Agradecimentos Este livro beneficiou-se com varias viagens, estdgios e discussées. E impos sivel nomear todos aqueles que nos acolheram, abriram as portas de suas biblio- tecas, nos deram acesso a suas jurisdigdes ou, simplesmente, ouviram com aten- ‘Gio a exposi¢ao do nosso projeto. Meus profundos agradecimentos a todos eles, mais particularmente a: Jim Apple, Wallace Baker, john Bell, Michael Butcher, Gwenaéle Calvés, Raymond Coulon, Anne Deysine, Myriam Ezratty, Duncan, Fairgrieve, Joélle Godard, Jim Hackler, Robert Jacob, Francis E. MacGovern, Bron McKillop, Michael King, Denis Lacorne, Pierre Legrand, Horatia Muir- Watt, Michel Rosenfeld, Daniel Rowland, Stephen Sedley, Ruth Sefton-Green, Jean-Yves Toullec, jim Whitman, Também expressamos nossa gratidio a Katherine Fischer Taylor © Universidade de Chicago, a David Tait e & Universidade de Canberra, a Mark ‘Tushnet ¢ & Universidade de Georgetown, a Bernard Jackson e lan Campbell ¢ A Universidade de Liverpool. Agradecimentos particularmente calorosos devem ser enderecados a Stephen Breyer, que aceitou redigir o preficio, a Lea Perez cujo apoio foi inde- fectivel, a Guy Canivet que nos abriu as portas da Corte de Cassacio, a Paul Garapon que aceitow reler o manuscrito e, enfim, a Trevor Brown, cuja presen ‘sa amiga nos acompanhou e apoiou desde o primeiro dia. Introdugao Uma Fratura Cultural Interna no Ocidente Uma das conseqiiéncias inesperadas do final da guerra fria foi, sem divi- da, o afastamento dos dois Ocidentes: a “Velha Europa", de um lado, e © Nove Mundo, essencialmente os Estados Unidos, de outro. A globalizagio exacerba, deste lado do Atlantico, o temor velado de uma americanizacio: nio $6 de uma dominacio politica, como também ~ e principalmente ~ de uma opressio cul- tural, avibuide a um capitalismo desenfreado, do qual 0s americanos setiam 0s campedes. Ora, a justica é um elemento-chave dessa cultura que consideramos responsivel pelo aumento do niémero de processos ¢ por detrés da qual vemos perfilar-se 0 espectro de uma sociedade contenciosa, na qual as pessoas abrem um proceso contra os seus médicos por erro de diagndstico ou contra seus pro~ fessores por assédio sexual. Alids, e888 obsessio por dinheito ¢ essa Fixagio em abrir processos se unem em um “mercantilismo” generalizado do mundo. Esse sentimento de uma fratura interna do mundo ocidental foi ainda acentuado pela guerra do lraque ‘A influéneia dessa cultura & geral em todos os setores do direito: cla se ‘encontra tanto nas priticas penais — pensemos na recente introdugio da decla- ragio de culpa em nosso arsenal juridico ~ como no direito econdmico com a chegada do “governo de empresa”.! Todos os juristas (com excegio, natural- mente, dos lawyers americanos que impuseram em quase todos of lugares sa manera de tabalhar nivelando com sua oferta a demanda de direito) tm a sensagio de estar vivendo uma espécie de aculturacio juridica generalizada em razio da competigio & qual se entregam 0s sistemas juridicos. Hoje, deve-se temer menos as diferengas entre sistemas juridicos do que 1s mal-entendidos entre as culturas ou sea, as divergéncias ndo assumidas por serem desconhecidas. Fsses mal-entendidos sio ainda mais dficeis de perceber considerando que as distancias nio sio visiveis ao olho nu do comparatista Acreditamo-nos parecidos, mas somos diferentes; pensemos que as mesmas coi- 4 se encontram por detras das palavras ~ que um judge & um juiz, que o trial ‘TOs ditemas juices de common law protegetia mais o acinisas maortris do que o ia ‘mae continents (La Porta, Lopez de Silanes Slefer, "Ceypoate Ownership Around the Word”, Tourn of Finance 542, 199). ‘Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos 6 um processo, por exemplo ~ sem compreender que elas procedem de repre- sentagées coletivas muito diferentes. E ainda mais plenas de virtualidades por rio serem ~ ou s6 muito raramente ~ explicitadas. De onde a urgéncia de um trabalho de explicitagdo dessas diferencas, que nao deve constituir apenas um objetivo académico, mas considerar sua preméncia em virtude da globelizacéo. Nosso objetivo é dissipar esses mal-entendidos identificando, analisando e justificando cada uma das praticas em seu proprio universo. A dissipacio desses mal-entendidos passa primeiramente pela exposigdo, e mesmo a encenacéo dessa separacio extensa e profunda, Nomear essa diferenca cultural ja significa reduzi-la, com a condigdo de suspender nosso julgamento sobre um ou outro desses continentes morais e de excluir tanto clichés quanto injarias. N3o pre~ tendemos nem exasperar essas diferengas, como acontece com freqiiéncia nos dois lados do Adlantico,? nem negé-las. Trata-se de duas maneiras de reduzir ssa fratura: dramatizando-a pela metafora da guerra ou, ao contrério, minim zando-a pela hipétese — aceita com excessiva rapidez ~ de uma convergéncia dos modelos. “A compreensio, lembra Paul Ricocur, € uma aventura perigost ‘em que todas as herangas culturais correm o risco de afundar em um sincretis- mo vago"3 Contra a guerra das culturas ou 0 concerto das nagdes propomos um ter- ceiro modelo: o do dilogo. Este didlogo requer, primeiramente, um reconheci- mento miituo, ou soja, entre outros aspectos, o de assumir a relatividade de sua cultura em ver de afirmar categoricamente a sta superioridade. Masa common Jaw e a cultura juridica francesa compartilham igualmente uma mesma heran- ‘ca democritica. O antiamericanismo comega quando um interlocutor néo reco- hece mais na América uma versio do texto democratico, e stm uma imensa falsificagio de um original que estaria guardado em sua terra natal, ou seja, na Europa. Se esse didlogo quiser evitar as armadilhas do angelismo universalista ou do positivismo universitirio ele deve se colocar sob os auspicios da demo~ cracia que, s6 ela, poderd arbitré-lo. E um dialogo assim que desejamos esbocar aqui, vendo nessa fratura menos um perigo do que uma inacreditével riquez ‘uma fonte inesgotivel de reflexio e a ocasiio de uma perpétua interpelacdo recfproca 7 Gomo Robert Kagan not Eitaos Unidos ou Le Monde diplomatiquena Panga 3 Pau Ricoeur, Histoire et wévté, Pais, Sail, 3 ed. 1964, p 299 Capitulo I O que é uma Cultura Juridica? Toda abordagem da cultura juridica é logo ameacada por dois defeitos simétricos: 0 primeiro consiste em se interessar apenas pelo Direito, o segundo, em desprezé-lo. Quando buscamos no Direito a chave da fratura interna do mundo ocidental isso ndo significaria que estamos Ihe atribuindo uma impor- tancia demasiada? Pode-se considerar um acaso 0 fato de a progressio da com- mon Jaw caminhar no mesmo passo que o capitalismo? Nao estaria cla acompa: nhando objetivamente uma extensio infinita da esfera mercantil, 20 passo que 0s direitos continentais estariam mais preocupados em preservar uma esfera pliblica? Nada mais~ nem mesmo a religito! ~ parece resistir ao “mercantilis- mo do mundo", do qual a common law seria um dos vetores Faced ascendéncia do business, & qual esta reduzida a common law, a cul tara jurfdica continental se mostraria mais preocupaia em subtrair certos bens a0 comércio. Um exemplo disso seria 0 crescimento, nos direitos continentais, da idéia de dignidade, o que exclui um certo niimero de bens da esfera mercan- til. O fato ¢ igualmente manifesto no ambito do dire to administrativo ~ com 0 célebre julgamento do Conselho de Estado sobre o “langamento de ano”? ~ e do dielto privado, no qual a liberdade contratual fo: recentemente controlada por este novo conceito jurfdico Ora, a nogio de dignidade é praticamente T Fe Legendre ir), Le Fagonnagejurdgue du march es aligon aux fat Unis, Pris, Mile ‘et une Nuits, 2002. cleat : 2 Neste jlgament dutado de 27 de otro de 195 (Coma de Marana Org), 0 Cosel de Era deco qu satrap “ana o andor qual sere thon prs ce expect -dores, atinge a dignidade humana. . a oe 3. "Principio pobitv por exclinci, servndo os wloe june mais miners, digaiade se sania esencilmente a ordem ae eae parslre po limo da iberdade de one {ar elavanente a determinado oho (nateriGae de ubisgo, aremesi de ant, elenen- {ced is private) ou cm determina conte socal (dition mori ade trabalho do ‘clo conte Ee foimene surge em um conte tn qe ess ena ono on, ‘esata scare una apo vn preedees xs do omer jee rin- tino ds dgtae ¢mobibeado porque permite dcr legcnamente a expanab contemport= ‘es do nego, que nto poser conta ploconteGdotndcinl da orem public ner; 2 ftir os bone comme” (They Reve, Ojectvarion subjection cena. Cpe ‘ler urdqu? sa Christophe Jamin, Deis Moreau (i), a Nowvele Crise ds conto Pari Dale, 2008p. 9) [Antoine Garapon e Toannis Papadopoulos ignorada na common Iaw, ela nfo estd presente nem no que diz respeito & pena rem, sobretudo, no direito contratual. : Podemos adotar uma leitura de tal forma ideol6gica que resuma as tensbes entre common law e direito continental a uma luta subterrinea entre a comer- Gializagio generalizada do mundo, de um lado, € o humanismo, de outro? As coisas ndo slo tdo simples: Marcel Hénaff observa que “os Estados Unidos, onde 0 sistema é o mais desenvolvido, é também 0 tltimo pals ocidental em que a pena de morte foi mantida e éaplicada do modo mais severo, Pode-se supor que esta manutengio constitui o sltimo refigio da divida simbélica; pede-se, em ‘suma, que os condenados & pena capital testemunhem por suas mortes 0 fato de ‘a vida ndo ter prego, quando, em ontras situagdes, este prego é constantemen- te definido © negociado no mercado” * Em cada cultura podemos, pois, encon- trar uma esfera subtraida da troca mercantil, embora ela néo assuma a mesma forma, Ou melhor, é a justiga que, no universo de common law, se confiaré 0 cuidado de designar o que nio tem preco ¢ o que faz parte do reconhecimento étuo, Eo que testemunha a atuagio da Suprema Corte dos Estados Unidos no reconhecimento das minorias. A extensio da esfera comercial, que faz do direi- to um bem comercial, vem acompanhada, neste pais, da promocio da justiga / como principal instincia de reconhecimento. Também a justiga no tem 2 mesma posigdo em uma ¢ outra cultura, "A neusagdo de comercalizacio do diteto deve, pos, ser compreendida pelo que ela &: uma injéria duplicada por um profundo desconhecimento da Cultura de common lasv, A boa justiga nio se faz através de pracessos de inten io, Nem tampouco a boa ciénci hice Protescantee 0 Espirito do Capitalsmo [Léthique protestant et esprit du capitalism], procura uma explicagio para a fratura cultural na cisio entre a Reforma e a Igrcja Catélica. Sua tese, bem conhecida, foi objeto de miltiplas objegdes, Entre outras cxiticas, replicou-se que a separasio entre esses dois uni- vversos culturais é bem anterior ao nascimento do protestantismo, Por qual ravéo 1 Reforma implantou-se particularmente no Norte da Europa enguanto 0s pai- ses latinos permaneceram fiéis a0 catolicismo? Alguns autores opsem o Norte uutbano e modernista ¢ 0 Sul agricola e tradicionalista, o espfrito urbano indivi- ualista ea solidariedade camponesa, Mas esta explicagao nao & totalmente satis fat6ria: algumas grandes cidades mercantis francesas e alemés permaneceram "Marcel Heal, Le Priv de avi Le don, argent, i philosophic, Pais Sui 2002p. 316. 5 Max Weber. Lehigue proesane et Fxprie dt captalisme, tadusio do ale, nase apeesen tapho de lable Kalinovek, Paris, Hammarion, 201 Jidgarnos Bsados Unidos na Franga (Caltur uriica Frances © Common Lawem uma Peapectiva Compara catélicas e, reciprocamente, algumas regides rurais se uniram a Lutero. “Outros arimetros devem ser Jevados em conta, afirma Marcel Hénaff, como 0 fato de que a Reforma protestante tenka se difuundido essencialmente nas zonas que escaparam & tradicéo do direito romano, Poderiamcs entio compreender que @ ‘oposicao entre protestantismo e catolicismo deve-se menos is divergéncias dou- trindrias que a uma cesura na formagio do liame social cujas raizes antropolégi- cas ainda devem ser exumadas. O primeiro se fundzmenta mais na interdepen- déncia e na légica das necessidades, o segundo no reconhecimento do status ¢ no engajamento das pessoas (0 que permanece préximo das formas tradicionais de comunidade e surge entio como um déficit de modernidade)".S Em lugar de, como fazem os marxistas, reduriro direito a uma superestru- tura, Marcel Hénaff tem 0 métito de reabilité-lo como fator explicativo desse fosso cultural. Propée inverter a relagao tradicional entze o direito e a religiio, postulando que o primeiro influenciow tanto a segunda quanto o inverso. Hipétese audaciosa, mas exigente, que desejamos levar a sério. Em que aspec- tos a common law pte favorecer, mats do que o dirsito romano, a extensio dos bens comerciais e, conseqiientemente, o desenvolvimento econémico? Em que aspectos ela preparou melhor o terreno para a modemidade do que o modelo conconente, ou seja, o direito civil codificado? So estas quesiées que ainda reforcam 0 interesse pela questio da cultuta juridics. Depois de ter cativado iniimeros juristas ~ e nio dos menores, se pensar- ‘mos em Montesquieu, Michelet ou Tocqueville -, a abordagem em termos de cultura pouco a pouco caiu em desuso em razdo das intengdes dissimuladas que Ihe eram atribuidas e por causa da sirgimento dos ‘pensamentoc cicteméticoo”, a comecar, certamente, pela sociologia do direito, A sociologia se construiu em reagio a esse empreendimento, mostrando que o direito é mais tributério das forgas sociais que do espirito nacional. Com o risco de enterrar depressa demais as diferencas especificas de cada tradicio: depois de ter se concentrado (como a antropologia juridica americana a propésito da resolucio dos conflitos) nas caracteristices comuns de toda organizagio social, se redescobre a necessidade de compreender essas diferencas Uma dinamica A cultura fascina na medida em que nos escapa. Procuramos capti-la? Ela foge. Defini-la? Ela se mostra rebelde a todo aprisionamento em um con- ceito. Procuramos quantificd-la? Bla se dissipa sob os algarismos. Nao seria, © Warcl Mena, Le Pin. op cits p 378 ‘Antoine Garapon ¢ Ioannis Pspadopottos alias, a imprecisio que nos cativa nesta idéia que exprime mais intuigdes que conceitos, mais hipdteses que certezas? Talvez seje o que impulsiona algumas pessoas a buscar a pedra filosofal, 2 diferenca, a marca otiginal que explica- ria todos os tYagos. A cultura imprime em cada um de seus membros uma marca fundamental, que continua a marcé-lo mesmo quando jé nao é perce bida. E por isso que, na realidade do direito, ela parece corresponder to somente a um imagindrio, (Os franceses nio cessam de referir-se a “lei republicana’, embora 0 papel do Parlamento tenha sido infinitamente reduzido pela Constituigao de 1958 a [ei suplantada por textos de origemn burocrética, de carder bem pouco repa- Dlicano. Simetricamente, o papel da common law diminui em virtude da eclo- siio da legislacio, tanto nos Estados Unidos como na Gra-Bretanha. Assim, até ‘mesmo o contrato, antes dentro do dom{nio da common Jaw, encontra-se agora submetido nos Estados-Unidos a0 Uniform Commercial Code; ¢ os partidarios, nna Inglaterra, de um direito das obrigagées que codificaria as regras jurispru denciais de Tort e de Contract sao cada vex mais numerosos. ‘A cultura 6 aquilo que é dado, 0 “ja presente”, o sentido depositado no espirito dos membros de um mesmo povo, na maioria das vezes de modo inconsciente. A cultura trabalha sempre inconscientemente; devemos com- preendé-la como um instivuidor. Por isso ela tem sua sede na mente dos atores (de todos), e nao apenas na dos juristas. Essa entrada na cultura juridica pelo vviés da consciéncia juridica seria apenas folclérica se nossas democracias no acolhessem um niimero cada vex maior de estrangeiros que ndo compartilham dos suesties pressuposten cullurais. Como um chins pode compreender wma audiéncia no gebinete do juiz de menores? A situagio das democracias contem- pordneas, todas elas confrontadas com uma imigragio massiva, confere a esta abordagem uma atualidade inédita £ precisamente porque a cultura age inconscientemente que ela ¢ dificil de delimitar, Aqueles que a compartilham nao sentem a necessidade de dizé-lo, © os demais nfo a vem. Buscar a cultura juridica desperta a desconfianga em relagio 20 que ela diz de si mesma porque essas representagdes profundas impregnam igualmente a autocompreensio que os intelectuais criticos tém de seus sistemas, inclusive da filosofia do direito, Por exemplo, o papel que o pen- samento de Legendre atribui ao texto é caracteristico de um jurista continental «, além disso, francés. Ele sucumbe a uma cultura mais do que dela se libera. Reciprocamente, a leitura de Dworkin é extremamente érdua para alguém que no conhece o dircito constitucional americano ¢, sobretudo, 0 estilo das deci s6es da Suprema Corte. Julgar nos Exados Unidos ena Fraga Cultura fridca Pangesa¢ Common Lxwen uma Pespectva Compara Tensio entre fidelidade a si proprio e criagao ‘A cultura juridica néo seria senfo a versio moderna do que se entendia coutrota por tradigdo juridica ou mentalidade de um povo? Lembremos a defi nigéo de Jhering ao se referis ao espirito do direito romano: “Enquanto as regras se revelam de imediato, enquanto as instituigdes ¢ as definigdes do dircito denunciam a si préprias em sua aplicagio pritica, as forcas motoras do direito se encontram escondidas no mais profundo de sua esséncia fntima. Elas s6 agem poco a pouco e, embora se iniltrem em todo o organismo, em lugar algun se mmanifestam de uma maneira suficientemente evidente pata que se possa neces~ sariamente percebé-las |... Nao se trata de regras, mas de qualidades, de tragos de caréter das instituigdes jurfdicas, idéias gerais que por si s6 ndo so susceti- veis de aplicagdo alguma, mas que exerceram wma influéncia determinante sobre a formagio das regras praticas do direito”,” A cultura juridica seria o tlti- mo avatar do que Montesquieu inaugurou com 0 Espirito das Leis, ancestral de ‘uma familia de nogées que giram em torno dessa mesma realidade obscura: 0 cespirito objetivo” em Hegel, a “totalidade significante” de Dilthey, a “cons- cigncia coletiva” segundo Durkheim, a “cultura” para a antropologia america-| ra, ¢ 0s “sistemas simbélices” segundo 0s antropdlogos estruturalistas * ‘A.abordagem em termos de cultura juridica apresenta riscos: ela pode con- denar a0 imobilismo, a uma concepgio “Fxista” de nossas instituigbes e & resig naglo, seno & preguica intelectual (torna-se cultural tudo aquilo que néo se pode explicar de outro modo). Ainda estremecemos com a Jembranca da “revo~ fucéo cultural” chinesa: podests mudar tudo atravé da Tei, calvo, precisemen- te, acultura... Como testemunha a ambighidade do procedimento de Savigny ¢ de toda a escola histérica alema do século XIX e de seu famoso volksgeist, que manteve o nacionalismo juridico. Esta abordagem, radicalmente antimoderna, nnegava toda idéia de um direito autonomo, Para Savigny, a idéia de cultura é antindmica de toda legislagio: o espfrito do povo deve se desenvolver esponta- neamente, sendo 0 direito tio somente a sua formalizacio secundaria. A iden- tidade no 6 percebida senio como a busca do mesmo, de uma idade de ouro em que a identidade comum nao era maculada por nenhuma dissidéncia nem pela construgdo de um espaco de deliberacio democratica onde ¢ postulada, por definigdo, a capacidade de se desarraigar de sua propria cultura FH won Jhering (1886), L'Bspric du dof romain dens Jes diverse phases de son développement, tial. De Mealenaece, Solon, ed, Reedtad por Fern’ eitore, 199, p46. \8 Vere ese napito Vincent Descombes, Le Iastttions du sens, Pars, Mint, 19%, p. 287. Antoine Garapon e Toannis Papadopoulos ‘Uma visio “fixista” da cultura juridica manda nada mudar sob pena de desnaturagio.? “Eu considero o direito de cada povo, dizia Savigny, o chefe da escola histérica alema, como um membro do corpo desse povo, mis no como ‘uma vestimenta, arbitrariamente cortada e que pode, também arbitrariamente, ser titada e trocada por outra”.!° Uma tal concepeio da cultura juridica e de sua imbricagao na histéria significa, para Hegel, confundir “o set-aqui insignifican- te com 0 efetivo, isto é, 0 que existe enquanto atravessado pela Razdo nele se realizando”.1) E nesse aspecto que o culturalismo é antipolitico, que ele nega a liberda- de dos povos e até mesmo o peso da histéria. A cultura nlo é uma disciplina cexagerada, alvez nem seja uma disciplina: ela ¢ atencio dada a uma atitude profunda, ainda mais plena de significados em razio de nio termos consciéncia de estarmos a ela sujeitos. Menos uma substincia que um campo de tensdes ‘A. uma concepgio determinista da cultura é preciso opor uma visio mais dindmica, interessada tanto por sua unidade como por suas divisdes, suas ten s6es internas. ‘A cultura judicidria francesa, ou seja, 0 espaco intelectual no qual os jul es foram formados e no qual eles evoluem, ndo & homogénea. O sistema fran- cés parece, i primeira vista, encarnar 0 modelo burocrético mais puro, O mono- litismo de fachada esconde uma combinagdo bastante original dos modelos burocrético e profissional que repousa sobre a figura tipicamente francesa do grande servidor do Estado. Na Franca, quando se fala de justica pensa-se ime- diatamente na ordem judiciéria, Esquecemos que existe uma outra justica, mais discreta: a justiga administrativa, composta pelo Conselho de Estado, cortes administrativas de apelagio e tribunais administrativos, A andlise do funciona~ mento desta justiga revela estar ele bem mais proximo do modelo de common fee que do modelo de direito continental, mesmo se sua matéria ~ 0 dircito { administrativo ~ Ihe é amplamente estrantha “Sao muitos as pontos comuns entre o Consetho de Estado € a magistratu- ra inglesa, Sua histria, primeiramente: 0 caminho que vai do centro para as, 5 aint ane neni mini Julgar not Estas Unidos e a Franga (Calta Juridica rancess © Commen Law em uma Perspectiva Compara provincias (as Cortes Administrativas de Apelagio s6 foram criadas hi alguns anos) contrasta com 0 processo inverso seguido pelo judiciario (tendo a Corte de Cassacao surgido séculos apés 08 parlamentos provinciais); seu surgimento no centro do Estado de direito, o que, segundo Blandine Barret-Kriegel, deveu~ se, na Inglaterra, aos juizes ¢, na Franca, aos funcionérios; seu modo de reer famento que incorpora além dos melhores da Escola Nacional de Administragdo alguns membros da fina flor da fungio piblica no meio da car- || Teira ao termo de um processo ~ o escrutfnio externo ~ sem nenhuma transpa~ réncia e explicitamente politico; seu mimero reduzido de membros, permitin= do que todos se conhegam ¢ instalando uma autodisciplina muito eficaz; a fra- queza da hierarquia interna, e até mesma a inexisténcia de uma carreira em aio do pequeno niimero de escalées e a auséncia de promogio que néo seja Por antiguidade: no se faz carreira no Conselho de Estado, pertence-se a cle ou niol A natureza do direito produzido, nas dois casos, um direito de origem jurisprudencial, um judge made Jaw; seu alto grau de imersio em uma corpora ‘fo: 05 barristers para 08 juizes ingleses, a alta fungio piblica para o Conselho de Estado. Bsses dois corpos de juizes desafiam os critérios racionais de uma boa justiga: quando se poderia temer que essa proximidade constituisse um empeci- ‘ho para a independéncia é justamente o contrivio que acontece, Nio existe juiz Inais independente em relaglo aos barristers que o juiz inglés, ou drbitzo mais imparcial no que concerne aos funcionérios que o Consclho de Estado. A auto- ridade do Conselho de Estado nao parece softer da auséncia quase total de sta ‘uo, nem da presenga em seu seio de alguns homens politicos com envergadura nacional ou da confusio entre a funco cantencinsa @ a fungio de conaclho, que Poderia com razio alarmar um observador distante: muito ao contrétio, essa Proximidade da coisa politica parece lhe dar um conhecimento {ntimo da maté- Tia, ¢ essa fraqueza orginica se transforma em forga politica. ‘Todas as nossas democracias conhecem hoje um aumento das medidas de seguranga. A cultura de common law est4, pois, impotente para explicar 2s divergéncias profundas entre a Gri-Bretanha € 05 Kstados Unidos a propésito a pena de morte e a razdo pela qual algums paises continentais adotam grades de penas. Parece, todavia, que a cultura protestante deu aos Estados Unidos uma base de justificacio que falta a outros paises, sobretudo a Franca. O discur- So puritano permite justficar essa reviravolta inacreditavel que continua ~ mas até quando? ~ a chocar os paises de cultura mais politica como os paises euro- peus. O papel da cultura deve ser compreendido de maneira mais modesta ¢ ais justa: ela ndo dita nada, nlo constrange a vontade politica, nao paralisa os determinismos sociolégicos, jamais imuniza completamente contra as derivas ais graves, mas, sim, as favorece ou impede, as prepara ou retard ‘Antoine Garapon @ Ioannis Papadopoulos Assim, a cultura no dita solugio alguma ~ ela estabelece a tela de fundo conceitual sobre a qual os debates passam a ter sentido, A cultura permite por a nu um fundo conceitual, descobrir um vocabulirio para o qual ainda nio exis- te dicionario, uma gramética que nao julga prematuramente os enunciados, mas ‘que possibilita 0 retragar de sua génese A cultura como espaco onde afrontar o desconhecido A abordagem cultural pode cristalizar uma pritica, consagrar uma contin- géncia histérica revestinda-a do hibito sagrado de elemento de cultura de um pats, da Franca em particular, esquecendo que ela 0 resultado dos acidentes, da histéria. & dificil, por exemplo, encontrar uma linha coerente de evolugio do processo penal de common law. O processo que percebemos hoje data do final do século XIX. John Langbein mostra que antes as investigaySes eram fei- tas por justices of the peace de modo bastante investigativo.'? Os advogados intervinkam pouco, ou até mesmo deixavamn de intervir, o que impedia 0 aper~ feigoamento do direito da prova, tal como o conhecemos hoje. Mas néo deve mos tirar conclusées definitivas. Em oposigio a essa canonizacio de uma cultu- ra, nos esforcaremos em retragar as evolugdes recentes do direito americano ou dos projetos de reformas em curso, como a iniciada em conseqiéncia do relaté- rio Woolf na Inglaterra ‘Um outro modo de se precaver contra o risco de imobilismo ¢ compreen- der que uma cultura nunca esté sozinha, que ela se coloca opondo-se, se encon- tra distinguindo-se, como os Pilgrims que quetiam escapar da perseguigao reli- soca, Dafo interesse de uma andlise conjunta da cultura judietaria de common Iw e de civil law. Seria, com efeito, muito arriscado isolar uma cultura, consi- derando o quanto as culturas se definem reciprocamente. Um exemplo disso é a surpresa, e mesmo o aborrecimento dos britinicos ou dos americanos diante da expressio “cultura anglo-saxa", na qual eles nio se reconhecem; todavia os niio angléfonos percebem facilmente uma unidade entre os juristas de common law que escapa a estes ltimos. 1B Vera ese respite John Langbein, The Oxgins of Adversary Criminal Justice, Oxford, Oxford University Peso, 2002. "0 estilo aeusstéio do proces penal ¢ em grande parte wm produto do inicio do século XIX. Até a metade deste século, 2 fase prévia do provesto consistia essencialmen- teem uma espcie de inveulgagio fortemente marcada por eracos inguisivos,condurids por tagitados Justice ofthe Pens), Néo havin gore de advogodos: 86 muito raramente os advoga- de apreseneavam # acusagio, ees adhogador de defers nto foram admicides nos procesos por rime {ordinary felony) antes de 1887" (Witjan R. Damarks, "Suuctures of Autborty and Comparative Ciminat Procedure, Yale Law foural, 1975, ¥- 84, p. 542 nots 150) Julge nos Extados Unidos ena Franca Cultura estica Francesa e Gommoa Law em um Perspectiva Comparada A cultura juridica sera aqui analisada menos como um montimento a cele~ brar que como o lugar de onde cada sistema juridico parte para o seu encontro com os demais. Tentar captar uma cultura judicidria em si leva & apologia ou & caricatura, Por isso, em lugar de buscar a cultura no sujeito (espirito, mentali- dade), na histéria (tradicdo), na identidade e, mais geralmente, na profundida- de (0 génio ou a alma de um povo), em suma, em lugar de partir de uma con- cepeio imével, n6s preferimos substituir a subjetividade pela relacio, a historia pela atualidade, a identidade pela mundializagdo, a ideia de profundidade pela idéia de cireulo. A capacidade de apreender 0 novo é uma prova para cada cultura, com a condigio de defini-la ndo como o conservatério da identidade, mas precisa~ mente como a matriz cultural de onde partimos. “Ha [aqui] para a humenidade duas maneiras de atravessar 0 tempo: a civilizagao desenvolve um certo senti~ do do tempo que constitui a base de acumulagto e de progresso, ao passo que a ‘maneira pela qual um povo desenvolve sua cultura esté baseada em uma lei de fidelidade e de criagio".!9 A cultura &0 micleo de sentido a partir da qual inter- protamos a vida ¢ gragas ao qual cada povo tenta resolver os grandes enigmas que sto a violéncia, 0 mal e a morte A cultura judicidria € um fenémeno total, sendo assim passivel de uma explicagao econémica (0 mercado do direito), histérica (a cristo do Estado de direito), lingiifstica, e até mesmo geopolitica (a estabilidade politica é, como se sabe, uma das condicdes do desabrochar do liberalismo). Ela é com certeza 0 produto de tudo isso e, a0 mesmo tempo, mais do que isso. f uma forca que impulsiona para a unidade, 2 coeréncia na qual a histéria tem um peso deter minante, mas que nao explica tudo, Assim, no é nosso objetivo descrever uma cultuta ~ nio havera exposi $0es sobre as grandes instituigdes de common law ~ mas compreender a sta dinamica, ou seja, o que a poe em movimento, o que a torna tio forte no con- texto atual. Para isso, ¢ preciso sair do direito: nao é contentando-se em com- parar as leis e as solucées juridicas que avangaremos nessa compreensio. Montesquieu lembrava que no basta “comparar cada uma dessas leis a cada ‘outra; é preciso consideré-las juntas e comparé-las em conjunto”.M4 Limitar uma cultura & soma dos textos em vigor pode levar a um grande contra-senso, por- que esse dircito dogmatico pode estar bastante afastado da realidade sociologi- «a; hé 0 risco, portanto, de colocar em paralelo as praticas vivas e as letras mor- tas. Depois de ter comparado os direitos e, em soguida, os procedimentos, é iF Paul Ricoeu, Mitoire at Vt op city p. 297 M4 Montesquieu, pri dee fi, 1. XIX. ea, XL “Antoine Garapon ¢ Toannis Papadopoulos inecessirio it mais além e compreender as variagSes entre as préticas juridicas para capiar o seu cern. "A comparagio dos direitos, dix Pierre Legrand seré cultural ou néo exists”! Identificar as forcas motrizes que dio a cada cultura o seu dinamismo obrign pois, asair do direico. Propomos, a titalo de hipstese, buscé-las em dus jeeqoer: a cultura juridica deve, por um lado, ser abordada como um modo de ~) 1 producto da verdade e, de outro, como ume configuragao do politico. Um modo de producio da verdade Comeceinos pela distingSo candnica de Tawrence Friedman! entre cults sa jurdica externa e interna. A primeira considera a posigio do juridico em um dado pais ~ neste sentido, pode-se dizer que a cultura francesa é mais politica sate rca conaderando que olga la reserva. jut € rao, AS cons are cee cameseana no tem, por exerplo,o mesmo peo simbélca tubes ances prottuao é um pacto a que todos podem fazer rferén- cia, no outro, ela organiza o fancionamento dos poderes piiblicos. © pacto fun- Gdador na Franca néo € juridico e sim politico: ¢ a Repiiblica. Se fosse preciso adorn eee alente francs para a conséeuigdo americans, develan0s ( raeente na Declaragio dos Direitos do Homem e do Gidadio, Enquanio na rae snes em presenga de um meceismo semipaitico, semiinstituco- nal, sensivel através do estilo dos julgamentos, nos Estados Unidos o julz inter- preta essa referéncia comum ao final de uma petigéo de cidadaos que podem recorrer de sua de ‘0. Por essa razi0 0 Couselly Constitucional no é com \ pardvel a Suprema Corte americana. Aquele que diz o direito é, em um caso, 0 ri pete da consti, no out, os doutore ie fem fro legisla ae eres constonm ama tora de inveressegerl 1 nas duas cule To eine cod nantive que conta 0 estar jnts, as, mim 88, &0 juz fundado na constituigéo, no outro, a politica, através da idéia de direitos do (omen ¢ do cidadio e de Republica. ficil comparar um advogado americano com um advogado frances (0 sninece te sdvegados, pun remueragao, sua aac, etc.) as para com erred gare os advogados americans ocupam ma clara americans ¢ preciso comparé-los com aqueles que, na cultura francesa, exercem uma fungéo- fandloga, ou seja, 08 altos funcionérios. A quem foi confiada a investigasio refe- 5 “Fie Lequand, Droit compos, Paris, PUP “Qe sis", 1999, p. 118 Seren tiiedmon, The Legal Sycers A Socal Science Ferepetie, New York Russell Sage Heep, 1975 « mais enecnimenve ocaplrlo Vil: °On Legal Cte’ 223 e5% Julgae noe Betados Unidos na Franga Cultura Jorfdes Francesa © Common Law em uma Perspectiva Comporala rentea0 escindslo do Rainbow Warrior? A um alt funcionério, le fine ques de npercidade ed suid, mas em ctu vers ‘uma delasvalorizando o espirito de sintese, ea outra a capacidade anaitica. Chas carnegie enne ar ifenecs profs ui, una Opus de proa em torno da qual ela se organiza. Van Caenegem! identifica asim txés juvistas que tém a incumbéncia de nararo dveto, ist 6 de transformarregras Asratas em um discuso vive os jufzes da Inglaterra, o legisador na Franca © o professor na Alemanha, A comparagio nio deve ser estabelecda nominal- meme (aproximando o que temn 0 mesmo nome, o avocate o lawyer), mas de mnodo fmcional, esiabelecendo quem preenche em cada cultura uma fungio simile. No imagindrio americana, o equivalene do juz de instrsio francs poderia muito bem sero lawyer um e outro se apresentam como figuras muito ativas, como os verdadeiros motores dos sistemas judiciios, Os dois mantém uma mesma relago com aregra~ como aguilo que simultaneamente permite e Timita a agdo ~ mas um & magistragoe o outro advogado, Em uma das culturas um personagem piblico ~o juz ~ que age, a0 passo que na outraé am ator privado, Se para os franceses a Repablica significa agi juntos, para os america- hos a Constitucao € 0 que permite que cada um aja por sua conta e que posa "fue su iberdade. Camparemos agora as duas figuras do ju: em um caso | cle & muito avo e enquadrado por regras no outro € 0 guardiao da regra e nfo age, propriamente falando, Cultura juridica interna A cultura jurfdica interna 6 constivulda pelas aticudes, crengas, racioc!~ nios, percepgées, valores mais ou menos explicitos, comuns a um grupo de pro- Reson do nit, Asano juntas de common at a cara oad audiéncia, a0 passo que seus homélogos Franceses estio voltados pata 0 texto ¢ © processo. H interessante comparar, como exemplo, 0 que cada cultura torna opaco ou transparente, o que ela escalhe formular ¢ 0 que ela conserva impli cito. Poderiamos adiantar que a cultura de common law privilegia 3 transpe rena ea cultura continenal 0 sega, mas iso seria inerat: 0 proceso de nomeagio dos juizes ingleses foi, até recente data, muito opaco, enquanto que ‘ concurso de acesso i Escola Nacional de Magistratura ~ instituigio tipicamen- te francesa que repousa sobre a grande escola, a promogdo, a prova de cultura TRE van Catmegem, Jes Legltrs and Profeors. Chapes fn Buropesn ‘Cambridge (RU), Cambridge University Press, 1987. fA ee eee [Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos sgoral, etc. ~ é bastante transparente. Cada cultura escolhe formular ou ocultar momentos diferentes do processo judiciério. A cultura juridica anglo-saxt tende a formular as regras, algumas vezes até mesmo sob a forma de guidelines cu de cédigos étivos, ou seje, de cartas de comportamento que se revelam muito importantes na pritica do direit. Da mesma forma, a cultura judicidria é mais concentrada em certas insti- ‘uigdes mais embleméticas que outras. O Conselho de Estado e o juiz de instru- do representam, sem duivida, dois pilares da cultura judicidria francesa, 20 esmo tempo em que mostram a sua pluralidade. Se um mesmo pais pode con- ter virias culturas judiciérias, uma mesma cultura pode, pois, abarcar varios pat ses (0 que torna problemitica a nogio de tradigio juridica nacional!®), Assim como a lingua ou a religido, a cultura juridica ~ no caso, a common law ~ dé a tum conjunto humano uma certa unidade, para além das fronteiras naturais ou politica, O fato de os juristas de lingua inglesa insistirem sobre as diferencas de direito substancial, de a Bseécia, sobretudo, reivindicar-~ com raz3o —uma parte da heranca do direito romano, nao impede que pertencimento dessa cultura a0 império da common law predomine, Talvez.m razdo de suas tegras processuais ‘erem inteiramente similares as da Inglaterra: 0 processo, muito mais de que dircito substancial (embora esta distingdo nio seja pertinente para os common Iawyers), parece ser o conservatério dos particularismos culturais. Cada cultura judicidria tem igualmente uma vertente popular, que se revela mais claramente através de artes aparentemente muito afastadas do direito, como o cinema, o teatro ou a literatura, e mesmo as séries televisivas Filmes francesee @ amaricanos mostram dois imagindrios bem diferentes, que rio procedem nem da mesma relagio com a verdade (aqui, uma espécie de transcendéncia que contrasta com a idéia de verossimil que caracteriza as cul- turas de common lau), nem da mesma relagio com 0 dinheiro (0 advogado na Franca, na maioria das vees, é representado como um ser venal, interesseiro € sem escripulos), nem, enfim, da mesma relagdo com 0 proceso (os axgumen. tos do proceso sio vistos pelo cinema francés como artificios obstruindo a manifestagao da verdade). Os cineastas parecem ser fascinados pela imagem do “pequeno ju", imagem esta alimentada, ali, pela imptensa francesa: o juiz.de instrugio, ainda mais valorizado quando se opde & instituigio judiciéria injusta ‘com uma determinagéo que, se for preciso, pagaré com a prépria vida, Em con trapartida, encontramos muitas vezes um advogado sem escripulos wtilizando todas as possibilidades do processo para fazer triunfar interesses privados. “Y-38” Pack lena, Lagal Traditions of cho World. Sustainable Diveriy in Law, New York, Oxford University Pres, 2000, i | Julgar nos Estados Unidos ma Prange ‘Cutara Juridica Francesa © Common Law em uma Perpoctva Comparada Assim, para perceber as representagdes populares da justia, o conhecimento de Daumier ou de Courteline€ mas precios que letra da doutrna jriica, A menos que se tenha a coragem de abrir obras mais cientificas, como 03 traba- thos de Chantal Kourilsky-Augeven, que tenta captar as representagéies da jus- tiga entre as pessoas comuns.!9 Praticas da verdade ceme de toda cultura judicisria deve ser definid é ser definido, para além da anedo- t2, dos detalhes ou dos estados intermediérios, como um mode de produgio da : verdade. “As préticas judicidrias, assegura Michel Foucault, a maneira pela qual entre os homens, se arbitra os erros ¢ as responsabilidades, 0 modo pelo qual, na hist6ria do Ocidente, se concebeu e definiu a maneita pela qual os homens podiam ser julgados em fungéo dos erros cometides, a maneira pela qual impés- sea determinados individuos a reparacio de algumas de suas ages e a punigéo de outras, todas essas regras ou, se preferirem, todas essas priicas regulares, naturalmente, mas incessantemente modificadas através da histéria, me pare~ oes a formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, conseqilentemente, relagdes entre o homem ea verdade qu: merecem ser estudadas” 20 rancor, ) A ranio pura nio existe. A verdade no & senio 0 resultado 4 ‘ = do o resultado das quests, que Ihe sio colocadas.B eoube a Foucault retragar a oposiio entre o regime da Prova ¢ o da investigasio, que é apenas histérica, tendo cada um maxcado & sia maneira as grandes cultura judicidrias contineutl e anglo-saxa. f verdade que a prova ritual dos juramentos foi substitufda pela investigagZo, mas isso sito impede que as cultura anglo-sxis a verdade sja mais 0 restido de uma apresentagio de provas, enquanto que no continente latino e catdlico el / tributitia de uma investigasio. Se act! A verdade produzida pelo processo nao é da ordem da razio cientifica: ea é tributéria de um caminho particular, Trata-se da questio subjacente aos deba- tes engendrados pelos decretos da Corte Buropéia dos Direitos do Homem (CEDH) relativos tanto ao estatuto do comissério do governo como & posigio do advogado geral na Corte de Cassagdo, Estes tiltimos se encontram no centro de ‘um dispositive ao mesmo tempo racional e simbélico, que concebe a verdade Tinages et usages cu droit chez les gens ordinates", Droit et Cltures 8, 2002 (org. Cham we nar Cuteanes, 48, 2002 org. Chanel ‘Michel Foucau, "La vérté et ls formes juridiques" Dis et Sots 1, 1954-1975, Pai, Callin 2001, p. 1411 =e tne on ani apd Ce fe ee ae ‘como uma elaboragio coletiva e no como o produto de um combate com armas ‘mente vista como um paternalismo do Estado. Faz-se necessdrio ligar esses dois {guais Se considerarmos que na cultura judiciéra francesa a verdade judicidria fendmenos que explicam o papel tdo particular do Estado na Franca @ elaborada na continuidade de um processo, € nfo na emogio do momento, A audécia de Foucault consiste em mostrar a ligagao entre um modo de ‘compreende-se inclhor que a deliberagao seja secreta ¢ que o advogado geral ou produsdo da verdade e a constituigao de uma subjetividade, Tomar mais rica a { comissézio do governo representem aqui um papel preponderante. O julga- ‘comparacio entre as regrasjuridicas propriamente ditas acrescentando a obser. nento dado por meio de uma tinica frase e a recusa de qualquer opinido dis vvagio das praticas penais permite estabelecer um lago com a subjetividade, ou dente significa mais do que um estilo judiciério, eles assinalam uma verdadeira seja, com uma concepcio do individuo. A comparagio deveria estender-ce a centtalizagio do pensemento ¢ trazem a marca de um jacobinismo que penet?a oe ee ee 4 produdo da razdo: centralizagdo que se encontra no que poderiamos chamar, ye rama ieee ha pa falta de melhor, de confuséo dos poderes ou, se preferirmos, auséncia de conflito de intecesses, Se tomarmos 0 exemplo do Conselho de Estado, do papel {que incumbe ao presidente de audiéncia, ¢ mesmo a0 julz de instrugto ou 20 juiz de menores, constatamos por toda parte que papéis diferentes ¢ mesmo Contraditérios se concentram nessas pessoas: aconselhar ¢ julgar (Conselho de igualmente necessério perceber as priticas hospitalares ou psiquiétricas, assim como as diferengas com relagdo a0 custeio da anorexia. Percebe-se que a jurisprudéncia americana é muito mais categérica a favor da soberania do individuo em relagio a0 seu Corpo que sua homéloga francesa. As préticas punitivas ou sanitirias — interes Estado), elucidar os fatos e julgar (presidente de audiéncia), instruir quanto & aaa La ee ue cs bee Profundo em uma sociedade: a relacao. procedéncia ou improcedéncia dos fatos alegados ou imputados juz de instra- ae ea ae alee 4), proteger e reprimir (juiz de menores). : ttregio que deve se relacionado com a posiio do Extado, Na Franc, seo Tima tal concepgao ~ extensiva ~ da cultura judicidria apresenta 0 méri- Possivelmente mais do que ale, ele & 0 grande organizador simbdlica da nacao to de nao se restringir ao direito, abarcando também as praticas. Préticas pro- ‘Uma tal concepcio ampliada da cultura judicidria de um pais, que englo- fissionais, como faz John Bell?! em relagdo a culcura judicidria francesa, inte- ressando-se nao 96 pela jurisprudéncia como pelos métodos de trabalho dos iiferentes juristas de nosso pais. Talvez seja necessério ampliar ainda mais 0 ‘campo e se aproximar da sociologia para completar as jurisprudéncias penais pela observagdo das priticas punitivas. Nao é somenre o quantum das penes Gue varia entee as cultures, mas também a criagio de novas penas (0 retorno ba ni apenas as priticas dos tribunais como também as realidades sociais, per~ mite estabelecer um elo com uma questio de ordem antropolégica, « saber, a estratégia de controle da violencia. Na Franga, a questio no se coloca nos mes- ‘mos termes, considerando que o Estado detém monopélio da violéncia legiti- ma ha virios séculos, Nos Estados Unidos, a consumagio de direito, de um lado, € 0 processo de acusac: . de outro, talvez sejam destinados a afastar da violén- cia, purgando-a através do combate judiciério, A célebre Primeira Emenda da Constituigao americana, assim como a estrutura do adversary trial (processo de acusagie), pode ser interpretada como um amortecedor da violéncia politica, E preciso que se possa expressar 0 édio com palavras para néo se afrontar com os \_Bumhos ou, o que € pior, com as armas. NY das shame sanctions nos Estados Unidos, por exemplo), assim como 0 maior gu menor Zigor em sua execugdo (muitas penas nfo sio executadas na Franga {ye mitas maltas ndo sto papas: parece que o que importa nio éa efetividade 2 sim a notificagio). Como explicar a incrivel divergéncia entre a populagéo Fo 2 penal americana e as taxas de encarceramento na Europa? Talves. pela dife- ‘ i | 4 & Fenga entre uma cultura bastante impregnada pelo protestantismo, que valo- | A oposi¢ao de Friedman entre cultura juridica externa e cultura judicisia interna revela-se demasiadamente estética: ela deve sor superada para que se Possa compreender que esses dois estados da cultura juridica de um pais for mam um sistema. Essas formas de verdade influenciam igualmente as expecta- tivas normativas de uma comunidade jurfdica. & na medida em que os proces- sos se conformardo & esta maneita de produzir enunciados verdadeiros que a epinido de um povo poders se reconhecer neles. Nesse sentido, a cultura judi- Cidria funda a autoridade da justica em wm dado pais. 8° | siza a igualdade, e uma outra, catélica, mais sensfvel & idéia de dignidade. A “As prticas puntivasfancesasrevelam de faro uma sensbildade particu | lar em relacio & dignidade, como demonstrou de modo bastante convincente James Whitman,?? e uma preocupacio com a re-insergio, que pode sex facil- FT Patchage, par décsion administrasive, John Bell, French Legal Cultures, Londres kero 200 p. syn PRE iam Husk Jace: Comin! Paine an she Widening Divi Berwecn "Aen nd Burope New York Oxfed Univers Pes 2008, [Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos Uma configuragao da politica .dade podem ser lidas como um smentais sio expresses” 2? O que abitam a mente de alguns indi- [As instituigdes ¢ as priticas de uma socie “genero de linguagem no qual suas idéias funda esta linguagem exprime nao slo as idéias que he ‘viduos, e sim idéias comuns a uma sociedade e que, talvez, nao estejam escritas fem parte alguma. As instituigdes, diz Ricoeur, “constituem sempre um signo abstrato que exige ser decifrado”. Para alcangar 0 micleo cultural ¢ preciso cavar até a camada de imagens e de simbolos que é 0 “réve éveillé” [sonho des- perto} de um grupo histérico. ‘Vamos tontar formular aqui essas idias-ag0es, esa filosofia implicita sub: jacente as priticas judiciérias, desde a concepsio da verdade, da Iegitimidade tdos juizes ou da realizagio de um processo, para descobrir um dogma que, na Inaioria des veues, ndo est escrito em parte alguma. F isso no é necessério, de tal forma ele parece evidente. Essa filosofia nio ¢ cientifica, mas antes de tudo pritica, cla se encontra in action e nio in the books ‘Nio é, pois, consultando as obras de filosofia ou examinando o direito positive que descobriremos a cultura jurfdia, e sim restabelecendo sua ligagao Com o politico. Abordar o direito sob esse grande angulo leva a situar a cultura fem uma histéria mais longa e mais densa, Pierre Ronsavallon’® distingue o pol tico, ou seja, a mancira de viver o poder e a lei, o Estado e a nagio, a igualdade ea justica,a identidade e a diferenca, a cidadania e a civilidade, em suma tudo ‘o que constitui uma Pélis para além do campo imediato da competigao partida- ria, da agin governamental e da vida ordindria das instituigdes, ou seja, 2 poli- tice. Talver ganhdssemos em estabelecer uma distingio similar entre o direito postivo e a cultura juridica, Esta dé Aquele o substrato sob o qual ele cresce Quando o chanceler lord Kilmuir declara que “o essencial de nossa concepgd0 da conduta humana, das relagies sociais ¢ da propria sociedade esta contido nos prine'pios da common law ingles” 2° ele ve refere a alguma coisa maior que © direito, ainda maior que os principios: cle esté de fato designando uma cultura 1D diteito ¢ aquilo que inscreve a agdo politica em uma continwidade his- térice fazendo com que se comunique com a energia dos fundamentos contida fem um texto juridico. A cultura ~ politica ou juridica, nesse estigio pouco permite reencontrar a unidade do direito, na qualidade, simultanea- importa ~ FA Ghai Toyor, Hoge p. 382 (tado por Vincent Descombes, opt, 9-295). 34 Paul Riconat, Histone er Vit op. ct, p. 296 JS preee Ronaaallon, Pour une stoi concepsuelle da poltiue, Pai, Sil 200. Je Ll Klesan, "Tse Migration ofthe Common Law", The Law Quatrly Review, 76, 1860, p40. xr rte ban ts Undone a Fang tra Jeridica Francesa © Common Law ems uma Perpectiva Comparada mente, de produto ¢ de produtor do politico. Deve-se considerar ao pé da serena de Jean Cazbonnier quando afirma que a verdadeira ee Fraga no sil. x0 so Coie ci [ele os franceses foram buseay os i “ela Constitaigo" da Inglotera? © dene pal wn hevien cae meio de restabelecer a fiiagio dessa cultura juridica com a politicn pang tendo o “estado foes da concn cole. none ssim entendida, a comparasio das culturasjordicas completa a hi da polis tntndo saan no opugo ogee ch armory Cee de um caminho pivilagindo:aspritias do process A ponicpedo cm oe ‘e, de modo mais geral, 0 trial? americano é no minimo tio in a ni 9 voto: é um dos meios privileyiados de autogoverno,?8 porns pans reencon- O processo como lugar de visibilidade do politico Mo: mais do que um monumento, ae la 60 fundamento que trangtiliza no momen- cla judcia ¢ © meio que permite aos homens, s regis absratase aos Procedimentos de se starem sum meio anbiente que mio é mad em si sendo ¢ condisdo do pleuo desenvolvimento de todo 0 ret, Bl nunca se revela 80 em. quanto nos lugares, formas e momentos em que se realiza a jus i conc. tur se manifesta primeiramente nos simbolos fe dee eae onctos:na Fraga eno Estados Unidos, os dosti do proceso penal no 7 os isa. Nao basta comparar as diferentes prescrigées rituais os smolos (que bs vezes so énticos, como aetéuad Justiga eas bala S20. procso também compreender qu a relago entre ada calaae as for imbdlicas nao ¢ idéntica, O ritual do processo nos paises latinos de cul ‘3 catélicanio pode ser o mesmo que no mundo de common law. Em um cas © pocen encanto psa oe cena Proximo de uma sesso de parlamento “ BF Ver inf, expiato W. 28 Robert P. Bums, A Theory of che Tris Princeton (New Jerse), 29 Pierre Rosanalion, op. ce, p13 Hiered eia ec Anvoine Garapon e Ioannis Papadopoulos ‘Em lugar de constitufrem apenas um campo para a comparacio das solu «8es juridicas, as préticas do processo nos oferecem um laboratério tinico onde se desvela, através do uso das regras jurfdicas, a cultura politica de um povo, Néo hh lugar mais revelador da intimidade de uma sociedade que um processo ~ nele se tornam claras as representagées coletivas em ago, uma filosofia em movi- mento. O processo faz parte de um “nivel bastardo”® simultaneamente evento social ¢ lugar de criagio intelectual. Este momento é privilegiado porque uma sociedade que julga esta sempre sob o dominio de uma forte emocio que faz ceder as barreiras convencionais da sociabilidade, que perturba o jogo clissico das instituigdes. Isso se aplica a todos os processos, tanto aqueles que decidem de modo categérico uma controvérsia constitucional nos Estados Unidos quanto a processos hist6ricos como o de Maurice Papon na Franga, passando pelos pro cessos mais comuns. Esse por & prova proporciona uma ocasito privilegiada de descobrir a politica, permitindo "uma hist6ria das aporias, dos limites e dos con- tornos” 31 Observando as molas culturais em ado e os recursos tanto juridicos como simbélicos mobilizados, seri possivel ver desenhar-se indiretamente o que feriu a consciéncia coletiva, para retomar a expressio de Durkheim. Restabelecer, pois, essa filiagio entre o process0 e a politica é ainda menos incongruente quando se considera que os processos tendem hoje, em nossas democracias, a tornarem-se precisamente uma das formas privilegiadas da politi a. O processo tende a assamir uma importincia cada vez maior na medida em que se da a retragdo da politica, Poder-se-ia pensar que sempre foi assim na cul- ‘ura anglo-americana, mas esta afirmacio deve ser tomada com precaugdo, Se, ‘como veremos, 0 processo ocupa na cultura americana ura lugar descuuhecido ana Europa (Gra-Bretanha inclusive), isso nao impede que o ativismo judiciério ¢ a eclosiio dos litigios sejam concomitantes daquilo que se constatou no Continente. ‘Essas duas fungBes da cultura juridica ~ produgio da verdade e configura- ‘lo da politica ~ apresentam uma caracteristica comum: elas nao pertencem & juurisdigao de um julgamento racional. Ninguém pode pretender deter a verda- de sobre o problema do mal ea resolucio da violéncia, nem sobre a maneia de organizar a coexisténcia humana. £ proprio da cultura construir “mentiras liteis” para fazer face as “verdades ausentes”, para retomar a expressio de Nietzche. ff mais ficil encontrar indicadores objetivos, comuns © confiveis para evaliar a performance da pesquisa cientifica, a competitividade das empre~ sas ou o nivel educacional do que para captar a forga de uma cultura juridica. 50 Tad, p.3. Sided, p37 ‘82 Ene Durcheim, De In division da tava social, Pais, PUP, 10 ed, 1978, Fulga 008 Estados Unidos e ma Franca Goltura Judie Francesa « Common Law em uma Perspetiva Comparade Espera-se que a cultura jurfdica produza certezas em dominios onde, pre- mente, nao pode haver certezas porque essas verdades devem responder 30 enigma do mal, ao desafio da violéncia, is aporias da coexisténcia humana. Por isso nos concentraremos na parte mais expressiva da justiga, a saber, 0 proces- 0 penal ou as questdes constitucionais que, como seu nome indica, interessa a constituicéo mesma do estar-juntos. O que explica igualmente a importincia que damos aqui 2 religito para compreender essas culturas. Essa escollia se jus- ‘ifica por duas razdes: primeiramente porque essas quest6es que a cultura assu- me~a produgio de uma verdade ¢ a coexisténcia humana ~ foram, por muito tempo, 0 apanigio da religiéo. A medida que as sociedades democréticas se lai- cizam essas competéncias sio transferidas para o direito, Se o poder politico rei- vindica a exclusividade de definir uma politica econémice e de assegurar a defesa externa, ele se mostra bem menos interessado ~ sobretudo nos Estados Unidos — em solucionar questées delicadas como o aborto ou a pena de morte. Os tribunais devem hoje encontrar solugées racionais, utilizando os fracos, recursos do direito e das regras processuais, para problemas ~ pensamos aqui ‘entre outros na adogdo por pate de casais homossexuais ou na bioética ~ que ram outrora questées do mbito da religiao. Nao 6, todavia, das religides enquanto tais ~ prineipalmente a catélica ea Protestante ~ que trataremos aqui, ¢ sim da marca que deixaram na sociedade civil e que, muitas vezes, ndo passa de uma caricatura do que elas sio para seus adeptos ou seus tedlogos. Nosso objetivo é apenas o de captar nelas uma sensi- bilidade mais ou menos difisa que passou para os costumes e de ver sua ligacio ram uma filasafia politica, como entre o puritanismo ¢ o libetalisiuy polity, ou ainda entre o catolicismo e o centralismo jacobino. Capitulo II A Common Law Por que algumas culturas sio mais voltadas para o direito que outras? Como justificar a repartigio das culturas ocidenvais entre culturas juridicas e cculturas politicas? O caso da Inglaterra ¢ da common law deve ser analisado como uma excesdo, cuja origem deve ser buscada em uma histéria politica ori ginal que muito cedo consagrow a anterioridade do direito em relagiio ao gover- no, © que se traduziu pela preferéncia dada ao precedente e no a lei como vet culo do direito, Mas nem a histéria politica nem 0 funcionamento juridico podem esclarecer inteiramente o mistério que essa cultura ainda constitui para muitos espiritos civilistas. Atualmente, embora @ common law represente uma parte cada vez mais reduzida do dircito positivo desses pafses, ela nZo deixou de estruturar a mentalidade dos juristas e a relacio politica com a autoridade. Anterioridade do direito ou primado da politica? A idéia cardinal de que procede a common law é a da anterioridade do direito, que devemos entender tanto em um sentido politico ~ como a suprema- cia da rule of law ~ como hist6rico, As razdes dessa particularidade precisam ser bbuscadas na histéria particular da Inglaterra, que induziu a consegiténcias deter- ‘minantes nas relacdes entre o direito de origem judiciéeia e a lei parlamentar. Rule of Law versus estado de direito Como tradutir pare o francés termos to essenciais quanto zule of law ou due process of law?! Traduzir rule of law por Estado de direito no seria exato.? Frank bain recuse sucessvamente“procedimento leg’ "procedimento legal regu” ou “proce ‘mento legal convenient para chegr & frmula “conform aos prinepios gras do decito™ que talvexsinds soja demasiadamente restriza, visto que no leva em conta nem oierese geal nem ‘ consigndia cleiva Finalmente (chegaremos 8 mesma concasie a poptsite de le of fa) tral mais exaa seria “conforme a0 diet", «que nao noe fz avangat mito adv proces 4 sible geen fe Hearts ects Poe 3 Vera este respeta aprofundado estado de Daniel Mockle, "Lat de doi ta tori de le rule of lw, Les Cahiers a dit, v.38, 4, décembre 199, [Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos © Estado de direito implica a idéia de uma autolimitagdo que se opde ao Estado de policia, no qual o diteito nfo passa de um instrumento do poder que pode impor obrigagbes, sem, contudo, estar ligado por normas superiores. Uma solu- Go consiste emi renunciar a tradugio, mas resta entdo a escolha do género, que pode induzir a0 erro. Por isso Pierre Legrand prefere o masculino ao feminino para common law, com 0 objetivo de evitar a confusdo com a lei.* O Canada, que dispoe de urn cesouro inesgotével em matéria de traducio juridica, traduz rule of Jaw por “primazia do dreito” £ efetivamente essa anterioridade do direito que 0 || nerf nop com uma dupa ii de repr ede reglriade Toda 0, prblica ou privada, deve se inscrever em uma forma previamente definida, que a purga assim de seu cardter arbitririo, Neste sentido, & preferivel uma rege injus- ta mas previstvel do que uma justiga dependente da personalidade de um juiz.* Na realidade, a idéia de rule of law esti lignda & cultura prépria da com- ‘mon lew a ponto de encarné-la, © filésofo do direito inglés Joseph Raz,’ por exemplo, recusa toda idéia transcendente da rule of law, lembrando que ela no pode ser dissociada de uma “cultura do direito”. O que, de resto, coloca uma séria dificaldade para a common law: como exportar essa nogio se ela esté tio intimamente ligada a uma histéria e a uma cultura? E possivel propor a outros povos que aceitem essa concepcéo quando eles ndo a experimentaram concreta ¢ profundamente em suas histérias? E muito dificil conceber essa primazia do direito fora daquilo que consti- ‘ui a sua condigéo indispensivel, ou sefa, uma justica forte, independente e res- peitada. A rule of laws6 tem sentido em funcao da centralidade da funcio juris dicional que se desenvolveu na histéria inglesa, Importancia do processo com eqiidade, do fair trial, que se percebe no apenas no funcionamento das insti- tutigdes como no imaginério, O vocabulério politico da nosdo (fairness, open and fair hearing, absence of bias, audi altera partem), todo ele procedente do contexto judicidrio, dele se emancipa para invadir a ago coletiva por inteiro fazer da rule of law um “diteito natural processval” Seria um erto limitar a dee ete dc suman oer on Soin gear peneenr enero emer neg onl ba fe pi cee ogee cae caer oe eee Fae ee wn peers caprca aalyte de NN ‘Sobretudo a auséncia de arbitririo jé é uma vantagem capital” (John Bell, “Le régne du droit et le Se en cannes esha diet Margen emer Fe oe et poet aed, er Univer Pe 1380 TESST uate hese omni Yk Unety Pon 647 6 Jolgar nos Estados Unides ena Prange (Cultus Juridica Francosse Common Law en una Perspective Compara rule of law a critérios formais e processuais porque ela contém igualmente um ideal do dircito, ¢ até mesmo do sistema social em sua totalidade. Nisso, a nile of law parece ser um dos pilares do liberalismo politico. ‘Uma clara distingao entre liberalismo e democracia se imple para perce- ber tudo 0 que esti em jogo nesse debate. Se o primeito modelo coloca no cen- {to 03 contra-poderes ¢, ao contrério, a ago coletiva do povo, constituido om grande ator hist6rico por intermédio de seus representantes, que define a segunda, Fm um caso, o direito constitui um referente externo desse jogo de equilfbrios e de controles reciprocos, de checks and balances, a0 passo qule, no segundo modelo da democracia, ele esta reduzido ao estatuto de linguagem da soberania, de configuracio técnica da vontade politica Dois roteiros de liberagao do feudalismo A Franga e a Inglaterra safram do dominio feudal através de caminhos opostos, que deram ao direito e aos jufzes posigdes bem diferentes. A common aw tira sua forca da precocidade da constituigao do Estado na Inglaterra, A con- quista normanda deu & terra um proprietério winico ~ a Coroa ~, 0 que permitin constituir uma aristocracia mais racional economicamente e mais organizada adminjstrativamente gracas 4 distribuigio de lotes feudais, O direito moderno inglés conserva a meméria desta origem na limitagio no tempo de toda propric- dade imobilidria, O regime fiscal de propriedade apoiado em um grande rigor cadastral, a estruturagio de um poder desde logo piramidal e a unidade do direi- w auraves das cortes de justica centralizadas em Londres foram realizados sécu- Jos antes de o serem nas demais nagDes européiss, sobretudo a Franca, Na Franca, a estrutura da sociedade feudal s6 péde ser superada com a afir- magio de um poder central que no tardou a se transformar em absolutismo. “Foi uma liberagdo antiliberal ¢ antidemocratica do feudalismo”? que fez com que a Revolucio tivesse a dupla tarefa de democratizar um sistema politico ainda de esséncia absolutista ¢ de liberalizar sociologicamente uma sociedade bastante marcad por ordens, corpos e privilégios, com o risca de arruinar o ter eno propicio ao desenvolvimento de uma sociedade civil autdnoma e de con- tra-poderes. A Inglaterra, ao contrério, conheceu um lento movimento de democrati- zagio das estruturss politicas locas, que teve como um de seus motores a recu~ sa em dissociar o imposto da representagao politica. “No taxation without Pierre Rosavalion, (2 Republique du cenre La fn de Voxception fangs: en collaboration avec Frangois Fret e[acques Julliard), Paris, Calman-Avy, 1988, 163 ‘Annoine Garapon ¢ Toannis Papadopoulos representation”, afirma a Magna Carta desde 1215: nao hi contribuigio ao enri- quecimento coletivo sem o direito & participagio. Foi em nome deste principio, que originou o parlamentarismo inglés, que 0s colonos da América do Nore reivindicaram sua emancipagio de uma Inglaterra que s6 Ihes impunha, sem thes conceder controle algum sobre 0 sett destino. A monarquia francesa, 20 ‘contririo, preferiu exonerar a nobreza ¢ o clero dos impostos a aceitar esse con trole. A imposigio sobrecarregava, pois, a populagio ativa e mantinha uma eli social inativa. Conhecemos 0 resultado: a monarquia precisou multiplicar os privilégios em favor de certos grupos para conseguir novas taxas, 0 que foi extremamente nefasto no plano econémico, Em contrapartida, a politica de “pepresentagao em troca de imposigio” se traduziu por uma concorréncia mais aberta, uma moderacio dos pregos, uma estimulacdo da inovacio técnica e um grande dinamismo comercial, tanto no plano interno quanto no internacional.’ “Desde o final do século XVII a Inglaterra é wm Estado liberal, fundado no direito e nos procedimentos representativos, mas 86 no séeulo XIX tornou-se um Estado democritico, fazendo recuar os poderes aristocréticos por uma cextensio do suftigio politico, J4 a Revolugdo francesa visa realizar simultanea~ mente as duas tapas, a liberal e a democritica, Do que resultou uma confusdo fundamental entre a critica dos privilégios € a rejeigao de todos os corpos inter~ mediirios" assim como uma hostilidade em relacdo 20 controle parlamentar, fo ancestral de nosso poder judicisrio: imobilizar 0 diteito e controlar o poder couberam a um tinico e mesmo érgio, que nao tem legitimidade sento politica ssas duas historias destinam o direito e os jutzes a dois papéis bem dife rentes: em um dos casos, a rule uf law estabiliza as relagdco de uma sociedada civil independente e mercantil, no outro, 0 direito fica limitado a um estatuto de servidao em telagéo a0 poder politico, ‘nica fonte de legitimidade. Dessa forma, podemos ver com maior clareza ~ é 0 que explica detalhadamente Blandine Barret-Kriegel ~ que o Estado de direito na Franga surgiu da adminis tzagGo, enquanto que na Inglaterra ele foi o fruto da aco centralizadora dos jui- es itinerantes, “A Inglaterra é um Estado de direito ‘puro’ ao passo que a Franca é apenas ui Estado de direito aproximado. Na Franca, a centralizagao efetuou-se tardiamente pela via administrativa dos comissirios reais e dos intendentes das financas, contra o quadro da justica, que tinba se tornado um ‘corpo intormedirio rebelde a autoridade central; jé na Inglaterra, a centraliza- Gfo se operou precocemente pela via jurfdica, por meio dos juizes reais, agen- Wer ese respeito Marcel Hénaf,"Lehique catholique ete non-esprit du capitalise’, Revue di ‘MAUS, 15, 200, p. 63 9 Picere Rosanvatlon, La République du centre. op. et p64 Jelgar nos Estados Unidos ena Feanga Culture Juric Prancese e Comman La en ame Perspective Compared tes zelosos da au:oridade mondrquica, Além disso, nao é o juiz que, na Franga, detém a autoricade, mas 0 funcionétio ¢, entre todos os funcionérios, 0 Funcionério do Tesouro,"10 Esse direito, que logo alcangou a sua unidade, nao tem necessidade, ao con- trario do direito francés, de passar pela revolugio da codificagto, inspirada, é vertade, pela filesofia das Luzes, mas igualmente tornada urgente em virtude da preocupacao de reunir os costumes do norte da Franca e o direito romano apli- ado nas provincias meridionais, Mais satisfatdrio intelectualmente, ¢ também mais moderno, esse direito codificado, necessariamente mais abstrato, se mostra ‘mais frégil no momento da glabalizagio. Mais ambicioso porque pretende abar- car todas as esferas da vida coletiva, ee se revela menos eficaz socialmente. Uma centralizagao precoce A cmergéncia da common law, intimamente ligada & historia da Inglaterra, constituiu-se na encruzilhada de um triplo conflito: tensio feudal entre a mul- tiplicidade das jurisdigdes locais ¢ o forte avango do poder real, concorréncia centre regras lacunares de common law e as regras de equity, que supostamente as completam e, enfim, a lata entre um Parlamento cioso de suas prerrogativas recenzemente constituidas ¢ algumas jurisdigdes ja bem estabelecidas. A common law & obta das cortes reais de justiga que aparecem apés a con- quista normanda de 1066, Instituidas pelos normandos e dotadas de meios mais amplos de execugio que as miiltiplas jurisdicdes senhoriais, municipais ou ecle- sifsticas que preexistiam 8 invasto normanda, essas cortes logo terao a preferén- cia de todos aqueles que recorriam a justiga, Desde o final da Idade Média, as jurisdigdes tradicionais somente serao acionadas em relacio a questdes de menor portdncia, Também as cortes reais permanecem, até 1875, jurisdigées de exce- <0, 0 que justifica a raridade das decisées de justica nessa tradigdo e explica que 05 demandantes devem requerer a jurisdigio superior o direito de apelacio. Estamos nos antipodas da concepclo da apelacio no continente, inclusive dian- te da Corte de Cassagio, que deve garantir a todos os cidadios a justa aplicacao do direito. Fssa competéncia limitada das cortes reais, assim como regras proces- suais bastante estritas, tornam impossivel a recepcio do diteito romano e geram um diteito especifico e aplicdvel a todos, a common law. Assim, para um particular, submeter uma questio as cortes reais néo é de modo algum um direito, mas um privilégio, subordinado na forma & concessio de uma autorizagio, de um writ concedido pelo chanceler, ¢, em iiltima andlise, 10” Bide Beckie Bra es nines Fars Pay, 1969. 128 ‘Antoine Garapon ¢ Toannis Papadopoulos {i existéncia de uma agio possivel. Bsa caracteristica & crucial para compreender © papel do juiz que, nesse sistema, no esclarece os fatos apresentados pelas par- tes ou decide a respeito da solugio que faz parte da competéncia do ji, mas #e contenta em déterminar os pontos processuais e decidir da aceitabilidade dos writs, E neles que esta contida toda a autoridade real, e nao em um direito exter no devendo ser aplicado com precisio a todas as situagdes similares, O direito substancial é secundério, ele se insinua nos intersticios processuais. Esta situagio perdura até 1832, data em que as formas de agdes séo abolidas. Na Inglaterra, até 0 século XIX, 0 essencial consiste menos em conhecer a solugdo que a justia dard a um litigio que em ter acesso as juridigdes encontrando a formula de agdo por meio da qual ela poderia ser aceita, Historicamente, desde o surgimento do sistema de common law, 0 procedimento juridico teve wina importéncia parti- cular em relagio & base do direito. Os writs, ou seja, 0s casos limitados de aber- tura de recursos judicidrios, continuam, mesmo apés a sua aboligdo definitiva em 1873, segundo a célebre expressio de Maitland,!! “a nos governar dos seus teimulos”: com efeito, eles formataram 0 espirito do diteito inglés estabelecendo no processo e no na base o seu centro de gravidade, justificando por prineipic o siléncio do juiz em certos casos e impregnando profundamente o trabalho dos \ advogados pleiteantes, dos barristers. ~Essas restrigdes de acesso & justica engendraram. um outro tipo de acées {que tinham o objetivo de atenuar a rigidez. da common law que, ademas, con cernia essencialmente ao direito da terra, Quando um litigio nao podia sex jul- gado, o tinico recurso era o de apelar para o rei, fonte de justica, capaz de dar prova de eqiiidade e de remediar 0 mau funcionamento de suas cortes. Pouce a pouco, essas decisées, tomadas em consideragio das citcunstincias da espécie, foram se tornando mais e mais sistematicas e constituiram um corpus separado: as regras de equity atenuam, em nome da lei moral e da consciéncia, as insufi- ‘cincias da common law. Temos aqui uma diferenca substancial em relagéo aos istemas de direito romano-germanico, em que a intervencdo da ordem publi- ca 0u dos bons costumes se faz. no quadro dos principias mesmos do diteito. 0s Judicature Acts de 1873-1875 puseram termo a extrema complexidade desse sistema dual, causa de grande ntimero de conffitos entre os dois tipos de jurisdigées. A totalidade das jurisdiges inglesas tornou-se competente para aplicar tanto as regras de common law comoas de equity. Masa distingdo entre (05 dois tipas de direitos continvou sendo fundamental? Certas matérias fazem TW Frederic W, Maitland, The Farms of Action at Common Lave, AH, Chaytor © WJ. Whitaker (eds), Cambie, 2c, 1948, p.2 12 Ver nfa no cpitalo Vii, que spresnt alguns exemplos dese fato no dicit americana conter= porinea, : Julgae noe Bstaos Unis © Franga (Catmya Juridica Francesa © Comnan Law em ama Perspectiva Compara parte das regras de common law, outras, das regras de equity, outras, enfim, sio misias, Nio se trata mais de uma diferenga de jurisdigdo e sim de dois ramos do direito, cada um dos quais abrange certas matérias ¢ se caracteriza por certos procedimentos, A claboragio de regras de common law pelas jurisdigies reais comeca, portanto, bem antes do momento em que o poder Iegislativo do Parlamento s¢ afirma, Blackstone lembra que 0 Parlamento é soberano, com a condigio de respeitar ~ primo ~ a “velha Constituigao” da Inglaterra, que se confunde com # existéncia imemorial da common law que garante aos ingleses ~ secundo direitos imprescritiveis que nenhuma legislag2o poderia questionar. A conti nuidade historica é uma construcio ideoldgica que tem por efeito privat o rei da possibilidade de conceder ow outorgar liberdades que essa constituigia ime- morial da common law sempre reconheceu. A anterioridade da common law acarretou virius conseqiiéncias, tanto a favor como em detrimento do poder parlamentar. Primeiramente, a formula: io de normas pelo Parlamento pareceu necessariamente como uma usurpagio em um campo que no era o seu, como tances outros golpes contra 0 domfnio de competénca da common law. Preocupadas em salvaguardar a autoridade da jurisprudéncia como fonte primeira do dircito, as jurisdigées logo passaram a ter o habito de optar por uma interpretagao estrita das disposicées legislativas. A fim de forcer as jurisdicdes a respeité-las, foram editadas de maneira precisa detalhada. Ainda hoje, em certas matérias, acs olhos de um civilista habitua~ din ans prineipins gerais, nada se parece menos com um eédigo do que uma cole ténca de leis, um statute book anglo-saxzo, A anteriotidade da common law néo trouxe apenas desvantagens para 0 Parlamento inglés. Este direito costumeiro, de origens pretensomente imemo: Fiais, fornece, com efeito, um poderoso argumento aos parlamentares em sia uta contra as pretensdes absotutistas da monarquia. Era, com efeito, tanto téc nica quanto politicamente, dificil para 0 rei enfrentar um direito tio antigo, t3o respeitado e descentralizado, Isso deu & common Jaw uma das suas caracteristi «cas mais evideates para um estrangeiro: a imagem de uma garantia politica pro- tegendo os cidadiios de toda intrusio arbitréria do poder, assegurando-Ihes liberdades fundamentais, a comegar pela propriedade, considerada no mundo britdnico como a base dos direitos do homem, Essa fungio seré retomada e pro- Jongada na cultura americana pela Constituigio.!? 13 Ver soe exe pont Kom Tony Weir, ‘uweiget, Hein Kot, An inteciction #0 Compartive Law ex ora Clarendon Pres, 3 ed, 1998, p. 155 ‘Antoine Garapon e loannis Pa lopoulos ‘A common law se orgulha dessa longa histéria sem maiores choques, como foi o traumatismo da Revolugio para o diteito francés. Ainda mais que esse cen- tralismo herdado da conquista normanda lhe confere uma grande autoridade, sem torné-la com isso autoritéria, Esta passa por uma série ininterrupta de deci~ soes particulares que devem muito 20 prestigioe 2 inteligéncia dos jurists. Centralismo descentralizado, Forga no autoritéria, arcafsmo se adaptando 4 modernidade, prestigio sem pretenséo, tais s80 os paradoxos que constituem ‘o mistério e 0 sabor da common law inglesa. Sua implantagao no Novo Mundo ~e principalmente na América ~ acelerou uma democratizagdo que tardava na Inglaterra. A sintese americana Embora os Estados Unidos se tenham construfdo parcialmente sobre @ base de uma cultura juridica de common Jaw, nela introduriram importantes modificagées. Os pais fundadores estavam, com feito, impregnados de Buminismo, sobretudo dos ideais franceses da Revolucéo. Os testemunhos dessa influéncia so abundantes. a comecar pelos c6digos civis adotados por alguns estados. © génio do direito americano estaria, na opiniao de alguns, nessa combinacio construtiva dos dois grandes modelos ocidentais: 0 diteito civil €a common Jaw.!4 Limitar-nos-emos a destacat as grandes originalidades que formam essa sintese americana. A primeira é, incontestavelmente, a Constituigio, que se apresenta como o grande texto juridico american ~ ou 0 Xinico. “A tinica verdadeira lei na América é a Constituido, 0 resto nao passa de regulamentacdo”, gostam de afirmar alguns juristes americanos. Viria dai a importincia inédita da Suprema Corte dessa nacio que, diferemtemente das demais, jd nasceu democritica? O fato é que a hist6ria do direito americano esté intimamente ligada a essa instituigao, sem equivalente em nenhum outro pais do mundo durante quase dois séculos, de qualquer modo sem igual na Inglaterra, onde os juizes tm um papel central, porém mais afastado da polit ca, O que nao impede que essa importincia da fungio judicidria seja inspirada nna common law. ‘A Suprema Corte dos Estados Unidos logo adotow jurisprudéncias ou muito audaciosas ou muito conservadoras, mas que nunca provocaram a indi- ferenga. A common law foi regenerada por escolas de pensamento tipicas do pragmatismo da cultura juridica americana, como 0 realismo juridico ou TH” Grant Gitmore, Ages of American Law. New Haven (Connectcu), Yale University Press, 1977p. 10, Julgar nos Btades Unidos ema Franca (Cultus Jurdica Paneess e Common Law em ums Perspect Comparada sociological jurisprudence, os critical legal studies e, mais recentemente, 0 movimento Jaw and literature. Essas escolas manifestam uma grande abertu- ra do pensamen‘o judiciério, que realiza, de algum modo, a teoria da common aw conferindo-lhe uma flexibilidade, uma reatividade e uma importincia politica que fazem dela uma instituigdo central da vida americana, em perma- nente didlogo com as evolugées da sociedade. Os Estados Unidos acentuaram ainda a aberture do pensamento judicidrio a outras disciplinas como a socio- logia, a psiquiatria, a medicina e, Jast but not least, a economia. Um dos pais do movimento law and economics, o juiz Posner, se inscreve nessa tradigao de uma grande sensibilidade das decisées de justica em relacio a0 néo direi- to, que é bastan:e desconcertante para os civilistas. O juiz americano dé uma grande importincia & argumentagio e a uma narragio do direito, que nto tem equivalente em civil law. Através desses julgamentos, alguns deles bastantes populares, o juiz americano constréi de maneira reflexiva uma comunidade politica de interpretacao. A idéia de civil rights vem completar a trilogia, depois da Constituigao da Suprema Corte, Constitui também uma terceira novidade em relacao 8 com- mon law tradicional, Na Inglaterra, a idéia de direitos subjetivos permanece por muito tempo deslocada:)5 a perspectiva de um direito abstrato e geral, que nao std inscrito em uma relagdo, nio entra na mentalidade essencialmente prag- mnética do common lawyer. Ela se instalaré muito tardiamente e serd preciso praticamente esperar pela recente incorporacdo da Convengao Européia dos Direitos do Homem pelo Human Rights Act'6 para que ela se veja plenamente reconhecida na Gra-Bretenha. Essa idéia tornou-se muito importante no ima- ginario juridico americano, até constituir praticamente o seu centro de gravi- dade, 20 lado, heje, da “politica dos direitos”. Carol Greenhouse identifica as seis caracteristicas que marcam a relagio dos americanos com o direito, Primeiramente, “os americanos se identificam fortemente com o direito, mas nao com os direitos"? na medida em que eles expressam em termos jurfdicos suas aspiracdes, reivindicagées e seus julgamen- tos sociais, Contrariamente ao que se pensa, eles nfo recorrem mais & justica do que os outros paises compardveis. Em terceiro lugar, os americanos consideram 08 procedimentos juridicos a essSncia do direito, Tendem, aliés, a ver o direito come “um conjunto de procedimentos que eles estimam (ou estio prontos a ek Glonn, Lal Traditions. op cit, .219, 16 Human Righs Act de 1998, que entros em vigor em outubr de 2000 17 Carol |. Greenhause, "Perspectives anchropologigue sur Tameéicansation dy drok, Archives de Philosophie du ra. Paris, Dall, 2001, 45, p50 [Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos considera) justos.}8 Em outros termos, nao julgam o direito antes de tudo por sua substincia, mas, sim, por seus elementos processtais”.19 Em quarto lugar, os fmericanos se consideram “mais como agentes do direito, que como Ihe deven do obediéncia". Em outras palavras, eles se veem como “individuos racionais, Getentores de direitos e representam, portanto, como uma extensio de seu proprio bom senso ecaréter” 20 Em quinto lugar, considerando que os america- hos associam o dircito aos procedimentos ¢ a uma extensio de sua autonomia pessoal, eles tendem 2 “julgar a eghidade processual dos resultados mais pelos procedimentos que os produziram que por seus efeitos auténomos”, Enfim, os mericanos consideram “a vida social ao mesmo tempo juridica (no sentido em {que isso € coerente com um comportamento de obediéncia tei) e (contudo) perfeitamente livre"! les véem, com efeito, a verdadeira fonte do direito no povo, € nio no Estado. 'Rssas diferengas no que diz respeito & common law nao aproximam, toda via. a cultura juridica americana da Europa, bem ao contrario. Se jé houve um Consenso politico na América, ele deve ser procurado na simuleanea e profun Ga hostilidade em relagio a uma burocracia piramidal ¢ profisionalizada eum ddireito concebido como uma disciplina técnica, ou seja, em relagao & esséncia do modelo poltico hierérquico continental 22 ssa diferenca entre a common law da Inglaterra ¢ 0 direito americano ~ sem contar as que distinguem os demais sistemas do Commonwealth, como & ‘Africa do Sul, 0 Canad ot a Austria ~ sfo tals, que se torna perigoso, ¢ mesmo exagerado falar de uma cultura juridica tnica, Temos consciéncia desse risco {que, entretanto, assumimos postulando que sob essas divergéncias incontesté- Veis, subsiste uma base comum, que continua bem diferente dos procedimen- tos do dizeito civil continental, talvez. mais perceptivel para um olhar externo que sente a sua unidade profinda para além das divergéncias de superficie. Lei ou precedente? ssa anterioridade do direito se traduz tecnicamente pela doutrina do pre~ cedente. Segundo a célebre frase de Geldart, se todas as leis do Reino fossem TE Faw E tyler, Why People Obey the Lay, New Haven (Connecti, Yale University Pres, 1990. 19 Carol Greenhouse, art. ci p50 20. Ibid, p. 5 2 bid 32 Samus P Huntington, “Pareigns of American Pobtics", 89 Political, Scences Quarey, 1, 1974, 20-2, Jule nox Exdos Union a Fraga Cl Justia Rane Conman Laven une Pespeeiea Compada suprimidanglatena anda pose um sistema de : sintem dedteito2 A common law surg, na idebogin dos arnt ingles ean tempos memoria ea sempre existiu €, no ertanto, nfo tem passado ~ é sempre cont a ee sempre contempordnea da questio Cédigo versus Judge Made Law: duas fontes do direito Nos sistemas de direito romano-germanico, a Tei é a fonte primeira do dircito. A codifcagio aumenta consideravelmente a forca da lei, hierarquian. do as suas dspesiqdesc a reagrupand em um conjunte exaustivo e coerent em sum, ravional. A codificagso ¢ certamente a técnica mais eatacteristica dos ios da fia romani, Longe de sex una simples oltre de repr c6digo & um edifico legislative que pretende ser oespello de una péls harmo. hom, Hle deve ormecer ciao un material lel20 qualsja sempre por sivelrefevir-s, eset, para o juz, um guia precioso para perceber, através da ds posicio dos principios e da classificagdo das regras, a intenga parietal somente a lei constitu o direito, de qual os julzes sto apenas o¢ porta-vozes. _Tsso no significa que a jursprudéncia nao exerga papel alg ~ 2 reps, gevsis por definigio, demandam ser aplicadas. “Indicador” de normas, ojaiz 0 é ainda ‘mals namesidaem gue ¢colocado na obrigacio de se pronunciar, sob pena de denegasio de justica, Ainda que a regra de direito possa, pois, ser uma rep enale dh doutina ou enunciac plo legisadr e apt a dig 4 con dtd ao ela ndo dene de ter une rel obiatra com am tga part, Aa eta es ndipensve! taba deiner, pe aor cer que 0 jiz modifique de maneita considersvel o alcance da let cptid, nines asm como tlm cit oman pemdniacoe [| loa qual toda questi jd esta julgada pel situ um sistema ada pelo cédigo, Este constitui um sistema fxhado mn quetata questo deve em torn neonatal Newest teorkcaente auto-sfcient,ajurisradenci no considered 1ouma das fentes formais do divcito, eno lign f 2 em principio, as jurisdi Ess ocala do ui ~ mono quando cle es efetvanent odio = contrasta com a common lav, na qual a juisprudéncia ¢ fonte primeira Aico, Oat ingle fo prfindamente mateo plac, date 9 "a perfodo de formagio, de poder legislative real no seo da Patlamento e pele de emo, slativo real no seio do Parlamento e pelo pode das Cotes Reis de justia. common law designate desas egras, suscetlve's de serem subsimidas a partir de decisées particula fundamento da common le se encontra, poranta. negra de panedants Un regra do precedente. Uma — WW, Geldare, Blements of rglish Law, Oxford, Oxford University Pres 8 ed 1975, Antoine Garapon e loannis Papadopoulos ‘ver que uma decisio foi tomada, a mesma deve se repetir em todos os casos de cespécie similates por todas as jurisdigBes. Mas se uma situago quase semelhan- te apresentar algumas diferencas minimas, duas solugdes se abrem entdo para 0 juiz: aplicar a regra preexistente se isso Ihe parecer adequado, ou, a0 contririo, distinguir os dois casos de egpécie a fim de estatuirlivremente. Fm casos muito excepeionais, a jurisdigio suprema pode tomar a diregdo oposta da jurisprudén- cia. Se a regra do precedente, do stare decisis, vem por objetivo garantir uma certa seguranga juriica, a diferenciagio e essa inflexo dao 8 common Jaw uma relativa flexibilidade Somente o suporte central da decisto ~ designado pelo nome de ratio deci~ dendi~ term realmente autoridade. As observagdes incidentes do juz, as moti- vagdes pedagégicas da decisto ~ 0 obiter dictum -, assim como os argumentos dos juizes cuja opinido no prevaleceu ~ opiniio dissidente ~ no engajam as jurisdigdes subordinadas mas tém um valor de persuasdo importante, O prece- dente jurisprudencial emanando das jurisdigSes superiores estabelece um lame coin aquelas que Ihe sio subordinadas e exerce nos outros casos um poder de infludncia que nio se pode menosprezar. Em um sistema de common law, a abordagem das questées juridicas ¢ politicas tende, portanto, a legitimar o que possui um cardter antigo, consueti, dindrio, santificado pelo tempo, O direito & menos uma série de disposigoes legislativas, de que seria possivel identficar a data de promulgagio ou os auto- res, que uma pritica, um uso registrado na meméria coletiva, uma obra comum produzida no correr do tempo, cuja perenidade c a auséncia de modificacao fundamental reforcam 0 crédito. ‘© que &a obra da vontade para os direitos romano-germinicos & confiado 2 sabedoria do tempo e & experiéncia acumulada no outro modelo, que traduz © ptofundo ceticismo dos anglo-saxdes quanto & possibilidade de um conheci~ mento racional das realidades humanas e de sua antecipacao em um texto que as organize, A regra jurfdica deve trazer solugies concretas pare problemas revelados pela prética, ¢ nfo substituir regeas de conduta confumdindo-se com a moral, como no continente, O direito néo é um edificio que reproduz bem ou ‘mal a desejada harmonia do mundo: ele é& um catilogo ~ nfo limitador ~ de agies juridicas. Dai uma espécie de desconfianga em relacao a idéia segundo a qual a razio humana poderia aspizar a substituir esse conjunto compésito de regras patticulares e experimentalmente testadas por um edificio tinico de regras estabelecidas sobre prineipios a priori. Bm um sistema de common Jaw, a regra que constrange, a legal rule, se encontra, pois, no nivel do caso de espé- cie em relagio ao qual ela foi produzida Talgar nos stages Unidos ma Franga Cltura Jaridice Francesa e Common Law en umn Perspectiva Compara Isso ndo significa, todavia, que 08 procedimentos ou as instituigdes, uma ‘yea legitimados pela experiéncia, sejam inacess{veis a toda modificagdo ou evo- luo, Ao contrério, o movimento da common law nunca pira e as regras so precisadas na medida em que novos casos se apresentam, obrigando os juizes a inflectir suas decisées para levar em conta noves particularidades. Existem, pois, inovagdes, embora nenhuma delas possa ser validada a prior: caberd as _geragdes futuras, apoiando-se sobre a experiéncia, decidir se elas foram titeis ou pertinentes, Assim, o sistema juridico evolui insensivelmente ~ sein que jamais hhaja um questionamento de sua totalidade — em pontos particularese no a par- tir de principios, pela consideracao da inadequacio entre as exigéncias da justi- sa.¢ 0 presente estado de certas regras. A.common law nao remete, portanto, a uma técnica de interpretagdo, mas um método de distingio a partir de casos de espécie jé julgados.‘rata-se aqui de um sistema aberto, em que o papel da jurisprudéncia nao é apenas aplicar, mas extrair regras de direito. Nessa perspectiva, as disposices legislativas apa Fecem como excegdes, Elas nao serio plenamente integradas 20 sistema sendo quando tiverem sido retomadas e reafirmadas pelas Cortes através dos casos de espécie, condicéo normal de elaboragao da common law. Direito académico versus direito na prética -Apesar da crescente importéncia dos casos préticos nos programas univer- sitérios, a aprendizagem do diteito romano-germinico reside principalmente na assimileyau de uti eoria, de um conjunto de principios ou ce regras de fando que regem miiltiplas matérias. O jurista romano-germénico v8 no direi- to principio mesmo da ordem social, que cle busca apreender, enquadrar atra- vés desses principias, que serdo postos em acio por aqueles que praticam 0 direito, Sua atitude deixa as vezes transparecer uma espécie de desprezo em. relagio a0s procedimentos, que diz respeito aos que exercem o dircito,¢ no aos | verdadeiros juristas. Convém, antes de tudo, ditar 20 juiz @ solucao do litigio, ¢ || nfo regulamentar com muita minticia 0 procedimento e as provas. O juiz 6 tio- somente o instrumento, o servidor de uma infinidade de textos ¢ de regulamen. tages. A doutrina efesua aqui um indispensivel trabalho de sistematizagio e de anilise. Se a doutrina nem sempre constitui o objeto de um recoahecimento] |) ,explicito como fonte formal do direito, ela exerce uma influ€ncia considerdvel | Iisobre o legislador, 0 juiz, o advogado ou o estudante. , A.aprendizagem da common law se assemelha, ao conttirio, &assimilagio de uma técnica, & aquisigao de uma competéncia pritica. Encontramos aqui o Pragmatismo anglo-saxio ¢ a desconfianga do common lawyer em relagao as ‘Antoine Garapon ¢ loannis Papadopoulos grandes formulas: de que vale, com efeito, a afirmagio de um direito se, na pra tica, é impossivel pé-lo em pritica? Ser, pois, acentuada a idéia de que s6 se pode estatuir observando as formas de um processo regular (due process of law, | fair trial) e de que a administragio da justiga talvez importe mais que a justiga la mesma, Em um dos casos, 0 direito é um resultado, no outro, um processo. (0 que explica o destaque do procedimento em common law e do direito subs- tancial no direito continental. Em common law, a grande figura do jurista nfo ¢ o professor université~ rio, mas o juiz, que saiu das fileiras dos que praticam o direito selecionado por seu desempenho profissional. O trabalho doutrinal ¢ aqui menos generalizado e também menos necessirio, A extensio das decisdes, sta preciso ¢ 0 héhito de a ela anexar as opinites minoritarias dos jufzes fornecem o exsencial ~e ainda ais — das informacdes necessirias a sua interpretagdo. A doutrina busca menos 1 claboragao de grandes teorias que a classificagdo das decis6es de modo a extrair as evolucées jurisprudenciais. Juizes ¢ advogados preferem apoiar seus posicionamentos sobre a jurisprudéncia que sobre as posigdes doutrinarias. FBsse pragmatismo transtorna a forma de raciocinar do jurista francés. Quer nos voltemos para o procedimento de inguirigao ou para o3 métodos de ensino do direito, encontramos uma mesma visio clerical da norma, nos antipodas das tendéncias do diteito contemporines. Se 0 processo de acusasio, coneebido como uma competigio entre duas tess, estimula a imaginacio, provoca a argu rmentagio ¢ secreta a autodefesa, © processo de inguiriglo exerce, ao contririo, tum efeito anestesiante. Se o método dos casos desenvolve a busca de argumen- tos, 0 ensino ex cathedra exige uma aprend wget silenciuns ¢ veverente, Ideal ou regra do jogo? Embora a histéria nos revele as diferengas mais marcantes, ela nao nos desvela o segredo da longevidade e da resisténcia dessa cultura juridica de com- ‘mon law. Além disso, a atual convergéncia de solugdes juridicas dadas a iniime- 108 desafios comuns oculta as grandes divergéncias que subsistem entre 08 pen samentos. Mirjan Damaska explica as diferengas de procedimento entre a tradisio de inquirigéo ¢ de acusagéo, opondo o modelo hierarquico 20 modelo coordena- 0.2% Ble confirma assim, de modo convincente ¢ detalhado, o lago profundo entre o procedimento penal e o tipo de autoridade politica: procedimentos de sss” Mirjam R, Damaske, The Paces of Justice and State Authority. A Comparative Approach to che Legal Process, New Haven, Yale University Press, 1986, Tulgar nos Estados Unidos e na Fronga (Gutara uniica Francesa © Common Law est win Perspectiva Compared inquirigio e de acusagio seriam o reflexo da oposig lexo da oposigio entre a democracia ¢ 0 liberalism. Mas a abordagem 6 vitima de suas qualidades: talver Ihe falte um pouco de substincia para penetrar verdadeiramente nas culturas Jesse Pitts observa que nenhum desses dois modelos convéim realmente para a Franca. O po de auordae que mela pratca seria menos sintese dses dois mode jos aue “2 coexisténcia de um autoritarismo limitado de uma insureigao, Vien contra a autoridade"26 A telagdo poricular que os franceses mantem || com a hierarquia emissora de regras engendrou o que ele denomina “comuni- dade delingiente’, ou seja, grupos que se caractetizam por win grande fecha- reno em relago ao exterior, um gualarismo ciosoe pea corspragio do silencio, Ha, na Franga, um grande miimero de grupos como esses - da inspesdo das finangas a CGT —, que se mutrem da “falta de realismo das diteeivas emiti- das pelas autoridades.” Esses grupos andmicos constituem, de alguim modo, | contrapartida socioldgica do modelo hierarquico centralizado | Por essa razio, quaisquer que sejam a justeza e a pertinéncia da oposicio de Damaska, ela deve ser complementada por uma abordagem cultural que nao fique apenas nas regras, mas que observe a mancira como elas sio recebidas por cada povo. £, portanto, na relagao de cada povo com a regra de dirvito e, reci-~ Procamente, na posicio do direito face ao real e aos individuos que fo 8 individuas que formam esse | Povo que devemos buscar a marca originaria de cada cultura juridica - Lei sagrada versus regra do jogo A palavra direito no tem exatamente o mesmo sentido pata um jurista de civil awe de common law, Para a mentalidade continental eaves art dea do qual ¢ preciso se aproximar, sob pena de ver a sociedade retornar 4 desor- dem, a inseguranga ¢ até mesmo a0 caos. A sociedade deve ser organizada do exterior, de cima, por uma vontade politica que Ihe dé forma. Sem texto jurfdi: co que contenha essa vontade, sem essa formulagio, nio hé referéncia comum porsve.O dirt continental é por esncia pole: se uma sociedad no for ‘organizada por uma vontade dirigente que a discipline, ela estari amea pelo cas ot pela insta, Nectar, o cdg ea sempre asocia so nome de um grande legislador (Sélon, Justiniano, Napoledo) que “da” 2 lei. A Bees “Contin ete nimi et changement sein dela France bourgeois” As chore. France, teadurido do inglés, Paris, Seui), 1963. a sei Sankey Hotfmann, “Parsloxes de a communauté pique feangaie, . politique aneste™, nA fa rechenhe. opt Fa Jeose Yin, att p28. 26 ‘Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos democracia francesa, desde a Revoluglo, mantém uma grande desconfianga em relacio a grupos intermediérios. Nao se quer que haja ninguém entre o Estado 20 cidadio, Aceitar a arbitragem espontinea dos grupos socais significa, para © Bstado, capitular diante de sua tarefa de justiga e aceitar as relagdes de forca, 1 alas means que ele deve combats ase de a Ie sr to venerada esté no que se espera dela, ou seja, nBo tanto que regule as relagGes sociais, mas que defina o que deveria ser. O direito deve dizer o ideal. De onde a distincia, rui- tas vezes grande, entre 0 direito anunciado ¢ o dircito vivenciado, que descon- certa tantas de nossos colegas anglo-saxdes. 1" Fisa ineficicia do direito, que espreita os palses de direito civil, resulta nao a auséncia de leis, mas do caréter demasiadamente abstrato e, 3s vezes, inapli- vel do diteito. Concebida como um ideal, a lei na Buropa continental se satis~ {fe com matipls avnjos qu, emt, devem peameneceroaos pra ido ameagarem 0 direito por inteiro. O objetivo da lei nao ¢ tanto a sua aplica~ {( cio real quanto seu alcance simbélico. “Uma regra rigida, uma pritia flexivel”, jf dizia Tocqueville, Tomemos 0 exemplo do segredo da fase de instrugdo: nin guiém ox quase ninguém ainda o respeita na Franca ¢, no entanto, hé uma ‘epulsa em suprimi-lo pura e simplesmente. Ele é mantido enquanto ideal, mais do que como regra a ser respeitada, Dessa lacuna resulta a coexisténcia em nossos paises entre um direito abs- rato raramente aplicado e um dircito vivenciado, freqentemente negociado, ue se aparenta mais @ um costume, jamais formulado, mas muito respeitado: ‘um direito vergonhioso, o dos acordos com os representantes do Estado, | Aelayio com a ei deve ser distinguida da relagio com a ragra. x fran~ |. ceses tém uma grande consideracdo pela lei e nem tanto pela regra (poderiamos dizer esquematicamente que se dé exato inverso na cultura de common law), Enguanto uma tem um contetido, a segunda é mais um método. f possivel sinpultaneamente devotar um grande respeito 3 lei e transgredi-la. “A atitude dos franceses face & autoridade, no decurso de sua historia, observa René Remond, participa de uma dupla heranca contraditéria: 0 culto pelo Estado e ‘uma inclinagdo & contestacio" 28 Por que razio as culturas catélicas so mais transgeessivas? 0 direito procede, portanto, de uma separagio mais ou menos radical centre 0 ideal e a realidade. O jurista deve fuzer entrar a realidade no ideal por intermédio de regras, ou seja, de categorias. Mas quem faz. 0 anjo arrisca fazer aabesta: a abstracio do direito serve tanto aos especialistas que recitam cinon JB Rend Remond, La sie fansite et Fautoi®™ Migrants-Fonaton, 1998, 182, p- 8 Julear nos Fstados Unidos ena Panga CCaltur Juridica Francesa e Cammnon Law em via Perspectiva Compras ¢ guardam o templo do diteito como aqueles que instrumentalizam essa con- cepso pare protegerse de danger do concret, do re isa relago com o direito é complexa porque procede, ao mesmo tery de uma ideleagio én regrae cea grande ciniomo, O cir no ¢levade sério enquanto tal. Deseja-se manté-lo afastado das coisas concretas ele é man- tido no alto, negando-Ihe a capacidade de mediatizar as relagées humanas, O direito tem uma virtude sagrada, mas nio estratégica. A abstracao positivista que isola o direito tanto da realidade sociolégica como da interrogacdo filosOf ca, esté, certamente, afastada das realidades, mas protege os operadores sociais, quer se trate do alto funcionério ou do engenheiro. O corolirio dessa idealiza io da regra é que ela nao pode se comprometer com as coisas vulgares:o direi~ to prefere no ver. O exemplo do “secret défense", questao que nos mergulha no centro da soberania, & muito revelador: j4 que o juiz é externo ~ como 0 direito ~ no se pode confiar nele ~ ele é, pois, mantido & parte. Se na Franca a lei se assimila a algo transcendental, o direito se aparenta no universo da common law a uma regra do jogo. £ mesmo comum a utilizagio das metéforas relativas ao esporte, como atesta a famosa regra three strikes and {you are out? ~ expressio do baseball ~ adotada em 1994 pela Califérnia depois, do assassinato de uma menina por um reincidente. As representagées anglo. americanas do diteito esto, com efeito, nos antipodas: a regrajuriica deve ser respeitada, aplicada, sob pena de tornar o jogo absurdo. Ela nao ¢ a expressio do soberano, mas uma referencia comum, o que explica que o contzole de cons: titucionalidade tenha sido aberto aos cidadios americanos a partir de 1803, Se a lei € objeto de respeito, nao o & de deferéncia, Menos investida pelo simbéli- co ¢ pelo identitério, a regra ¢ suficientemente maleavel para ser suscetivel de ser questionada pelos jogadores. cultura de common law postula que todo grupo social secreta espontaneamente normas e que o papel do diteito consiste menos em decreté-las do que em constaté-las. De onde a idéia de que o juiz.de common law “descobre” o direito. Vemos @ proximidade cultural com a idéia liberal da “mo invistvel” ¢ da auto-organizacio do social. O verdadeiro legis- lador da common law ~ se esta expressio tem um sentido ~ néo é nem o poder politico nem, contrariamente 20 que se pensa, os juizes que, embora posstindo uma grande erudicéo dos precedentes, no se véem como depositirios de uma vontade prépria, mas do senso consum.%® =~ WF: protbigio de rornar publica 29 Rega que prevépenas fas bars tncia do delito 30 Vera cose respeito Pierre Legrand, ep. itp. iquerinformagio que tena rela com a defesa nation vers aps 2 arcelra condenagio, lus que 68 ipo ‘Antoine Garapon e Toannis Papadopoulos 0 direito é imanente a um processo histérico continuo ¢ o fruto da parti- cipagdo de todos: no somente dos especialistas que o elaboram, mas também dos cidadios que, por sua agio, 0 fazem crescer da raiz, das profundezas da vida social. A commén law no encontra sua fonte em outro lugar que nio seja na ‘vida em comum da sociedade, mais precisamente em uma conviecio sempre re- atualizada compartilhada pelos membros dessa sociedade, a saber, que-o presen te 86 existe como o prolongamento do passado.8! Por isso a common Jaw, mesmo gasta apds séculos de legslagio, continua a exprimir uma forma de solidarieda- de social, ou seja, uma maneira de estar juntos, Nesse sentido, ela é inalterdvel. Dois projetos diferentes ‘A comparagio entre a common Jaw e a civil law torna-se ainda mais pro- Dlemitica porque esses direitos nfo apresentam a mesma estrutura: um se apte~ senta como um sistema de normas, © outro, como uma seqiiéncia ininterrupta de solugdes priticas. Chegamos agora ao que constitui o cerne da diferenga de cultura, a essa marca originaria que di ao direito um aspecto tao diferente. O direito romano traz nele, em seu projeto mesmo, a preeminéncia e a incondi- cionalidade do poder soberano, “O soberano é 0 centro do qual provém 0 coxpo do Estado, Ao mesmo tempo, sua administragao torna-te o sistema de execucdo de suas decisées. O Bstado encarna a coisa publica, que nao é 0 corpo dos sujei~ tos, mas, sim, o que os envolve e thes assegura a esfera do espaco publico.”22. 0 poder soberano ¢ refletido © prolongado por um poder do direito sobre 0 mundo. Por isso ele é concebido como um desdobramento do mundo em cate~ gorias © em palavras, 20 termo de um empreendimento total e organizador: 0 dircito se assimila a uma construcao simbdlica, do mesmo modo que a religiao ‘com sua teologia e sua liturgia. Inversamente, a common law ndo pretende de ‘modo algum reorganizar o mundo, mas prope um caminho para modificar um ponto dessa realidad. O dominio do real no se faz, como no outro sistema, através de um logos performativo e coerente, mas por uma atengao a0 que esta mais préximo da realidade de maneira a encontrar nos préprios fatos uma solu- (io prética para atenuar a injustica. Como podemos perceber, a divergéncia de cestratégia para controlar o real é muito profunda. E, todavia, tudo decorre dela € pode a ela ser relacionado. (© direito civil € concebido como um quadro légico, organizado ele ‘mesmo em categorias, no interior do qual todas as regras ~ do menor regula a 82. Marcel Hénaf, "Véthique catholique." art ct p 62 Julgar noe Estados Unidos e ma Franca (Cutar Juvidice Francesa e Common Law esa utna Perspective Compuads mento até a norma fundamental — tio em interagdo. Enquanto a organizacio ‘em categorias € a principal operacio mental do jurista de civil Jaw, ela nfo tem sentido para aquele de common law. Um olhar atento verifica que as catego vias do direito francés so tudo menos racionais: como explicar que o direito penal se encontre dentro do direito privado? Na realidade, essas categorias, a comegar pela summa divisio entre diteito privado e direito publico estao liga- das 4 histéria da Franca. J. Jolowicz, em seu manual de direito ings destina- do a estudantes franceses, reconhece a “escassa importincia do assunto” das Aivisdes do direito, elemento, entretanto, essencial da aprendizagem do jovem civilista% Para Holmes, @ common Jaw “no tem nada a ver coma légica, ¢ sim com a experiéncia’! Enquanto o direito romano-germinico acentua a racionalidade de um conjunto de principios gerais, colocados a priori e apre- sentados de maneira Iogica e sintética no interior de um cédigo, a esséncia da common law reside de preferéncia no respeito do cariter hist6rico e continuo do direito; um direito concebido como o produto de uma longa evolugio, sem Tuptura ou revoluglo, prova de sua sabedoria e de suas faculdades de adapta~ s0. Ao produto da racionalidade e da vontade, opdem-se 03 efeitos da tradi io e da regularidade. Para os romano-canonistas, 0 projeto do dircito ¢ fazer corresponder ~ se ccessirio pela forca ~ 0 real com um mundo ideal definido por regras coeren- tes. A estética tem aqui um papel importante. Esse direito beneficia mais os especialistas que os atores. O direito anglo-saxao caminha junto com uma socie= dade de iniciativa privada, em que o direito é feito para os atores sociais, 20s quais é mais importante fornecer pontos de referéncia do que tegras precisas Em um dos casos, 0 que estd em primeito lugar € 0 poder que insti: no outro € a sociedade, ou seja, atores sobre os quais se deposita confiangs. Por essa razio, no primeiro caso 0 direito &, sobretudo, “proibitivo” e, no outto, facilita- dor. O jurista diz “nio" em direito romano-germénico, ao passo que 0 lawyer deve facilitar a aco, torné-la possivel. Podemos, pois, explicar a paxao legife ante francesa por uma desconfianga em relasio aos atores privados ou, se pre- ferirmos, pelo reconhecimento de um monopélio da verdade que, cedo ou tarde, retorna ao Estado, Reconhecemos aqui a marca da Igreja Catélica, Fora do Estado no hi salvagdo. Vemos ainda a dicotomia entre o direito inglés, que confia nos jurados, e 0 diteito francés, que é um direito de especialistas. No momento em que todo 0 mundo é obrigado a se tornar jurista contra a vonta, 2 TA Jolowice. Droic anglais, Paris, Dalloe, col “Pris, 1986, p. 77 4 Oliver Wendell Holmes, The Common Law, Boston, Lite, Brown & Co. 188) ‘Antoine Garapon ¢ Toannis Papadopoulos de, porque o direito ¢ a witima das linguagens comuns entre estrangeiros, 0 direito nio pode mais ser apenas uma questao de especialistas. Torna-se muito delicado comparar a common Jaw e o direito civil que, conseqiientemente, no tém a mesma forma ou a mesma configuragio: um € pragmitico ¢ reativo, 20 passo que o outro é abstrato e sistemitico. Um direito modesto A Lei na Franca se reveste sempre de um sentido, mesmo na auséncia de qualquer aplicagio: ela é um significante comum. Alguns chegaram mesmo a falar de um fetichismo da lei, que perpassaria a cultura francesa, do Parlamento, que produz mais leis que seu homélogo inglés, até os palicios de justiga que a inserevern em letras latinas em seus frontées. A common law 6 mais modesta ela ndo se apresenta como um edificio de normas de comportamento em con- corréncia com as regras morais, mas como um catilogo de acdes que podem prosperar e de um repertério de solucdes. Os direitos de que dispde um homem, Jembrava hé pouco tempo um alto magistrado inglés, Sir Nicholas Brown Wilkinson, nio sio, na realidade, senio aqueles que se encontram protegidos pela abertura de uma acio.% O inglés, escreveu Emile Boutmy, tem conscién- cia da impoténeia humana para abarcar um espaco e um tempo consideriveis; ele sente a necessidude de considerar as coisas de um modo pouco extenso e por graus, de proceder por curvaturas de raio amplo para que a locomotiva nio corra o risco de tombar em uma curva muito fechada.% O juiz inglés desconfia espontaneamente dessa tentativa de sujeigao da realidade por parte das catego~ vias abstratas do direito, que Ihe parecem vs. O diteito “visa a fazer com qua o mundo doe fatoo exteja em conforma decom um mundo ideal, a transformar o mundo tal como ele ¢ em um mundo tal como deveria ser. [0 direito] projeta diante dos fatos tais como eles si0 0 horizonte de valores aos quais esses fatos sio instados a se juntarem ¢,[..) nesse sentido, ele é uma forca de transformacio sempre A frente desses Fatos? 37. A doutrina civilista define 0 direito como o conjunto das regras destinadas a reger ‘os homens que vivem em sociedade, A regra do diteito é “ama regra de condu- ta humana, para cuja observagio a sociedade pode nos constranger por uma “Kingdom of Spain v, Christie, Manson & Woods Lid (1986) 1 WLR, p. 1120 a 1129, citado por Geoffey Smut, “Rélsme et 'fficacté dans le deat anglais de coniras, La Nowell Crise ds contrat op. eit p76, 36 Fimile Bourmy, Ew une peycholgie politique ce peuple anglas au XINe sce, Pats, Arman Coin, 190, 837 Alain Spice, Cig du choi le travail, Pais, PUP. 1994, p 236, nora 2 2 Julgar nos stados Unidos e na Franca (Gultura Juridica Francesa e Common Law em wins Perepectiva Companda pressio externa mais ou menos intensa’s38 essas definigdes do direito cothidas 20 acaso nos manuais de direito destinados aos estudantes pelos nossos metho- res juristas convergem ao menos em um ponto: o direito deve “roger” (raiz que remete 20 poder do rex) comportamentos (0 comportamento é secundério), isto & conformé-les (no sentido préprio do termo, Ihes dar forma). A prépria Horatia Muir Watt 0 constata: o direito nio é percebido pela cultura inglesa como aquilo que deve reger 0 comportamento dos cidadios (essa idéia, muito lavina, ainda tem suas raizes na religito): ele é um método para resolver os con- Aitos ou, mais exatamente, pata regular alguns deles, Ele ndo tem verdadeira- mente nenhuma dimensto moral, no sentido de pretensio a governat os costu- mes. A fora da common law esté no fato de que ela nio busca set 0 decalque, ou mesmo a concorrente das regras morais — menos ainda que as regras de equity. A regea de direito na common lawnio 6 compreendida como decorren- te de uma ordem fixa ~ ainda que ela seja decidida pelos homens coletivamen. te, mas como um meio de "tornar aceitavel a vida comum, de tornar eficazes as relagies, de assegurar a paz publica’ 2° Um direito insepardvel da vida Seo direito codificado basta a si mesmo no sentido em que tende a enun- iar um conjunto de regras coerentes entre si, a common law é insepardvel do fato, “Toda decisdo deve ser lida & luz dos fatos sobre os quais ela se funda”, lem- brava recentemente um juiz inglés.*° A common law nao apela para um prin- cipio sob 0 qual se acomoda o fato do processo, mas a um paradigma factual (0 fatoe de tal caso ve agoemelham aqueles de um outs ja julygdo? sta &a ques- tio, Nao se forga os fatos a entrarem dentro de um principio abstrato, mas se amplia 0 aleance de decisées singulares, Esse direito no cai do céu mas corre de litigios em litigios. Como lembra Pierre Legrand, a common law recorte idéias indutivas auténomas que 86 podem operar no interior de esferas factuais bem delimitadas, ou seja, no plano da casuistica e do heterogéneo, do fragmen tirio e do disperso, mais do que no plano dos universais, aos quais nos conduz © pensamento abstrato. Em outros termos, a common law procede por “trans aso", o que significa que ela privilegis um “processo mental que consiste em BH ean Cisbonnier, Dai ivi, Imraducton, Pais, PUR, col. "Thémis, 27 ed. 2002,» 66 39° Marcel Nena, "éthigue catholique. at ets p 40 O juz Glidewell em Masterson vs: Holden, (1986) 3 ALL ER 99, p43 etado por Pierce Legrand op. ct,» 8A, 41 Pez isgeand, op. cit p. 87 Y ‘Antoine Garapon ¢ Ioannis Pepadopoules passar de um caso particular a um outro caso particular sem a intermediagao de ‘uma definiggo geral” «2 Na common law o direito contém a vida, mas nfo a precede: é por isso que ele se concede como incitador ou corretivo, ao passo que no outro caso | ele é proibtivo e punitivo, Assim, remedy ~ lteralmente: 0 remédio ~ 6 fre qientemente traduzido em francés por sano. Enquanto o remédio faz parte da metifora médica, a sangdo remete & punigio, corrige um desvio de com- portamento com uma conotagao moral mais forte, Essa tradugo marca bem a diferenca entre uma ordem juridica que se concebe como um catélogo née definitive de remedies para remediar certas injustigas em relagio as quais & possivel agir, e uma outra que pretende organizar o mundo através de um edi- ficio coerente e exaustivo de regras reunidas em um cédigo que sanciona todo desvio, Dai decorrem igualmente duas relagées com a transgressio: a relagio ‘com uma ordem ideal é necessariamente inadequada. Observem um processe ‘© um trial: 05 dois observam um ritual que ndo tem a mesma significacio; em ‘um caso, sio as formas que tornam a ago produtiva e asseguram a confron- taco de dois pontos de vista sobre a realidade; no outro, as formas cerimo- niais celebram o poder ¢ a reordenagdo do mundo.*3 De onde, igualmente, duas atitudes diferentes em relagio ao novo: um conjunto auto-cocrente de regras proporciona uma visio mais estética das normas, 20 passo que um direito processual estard mais aberto a uma evolucio dessas normas. Os direi- tos romano-germanicos constituem conjuntos mais coerentes, mas também ‘mais fechados, nos quais toda questio deve encontrar uma solugdo por inter pretacdo de uma regra juridica preexistente; os sistemas de common Jaw se ‘mostram, a0 contririo, mais abertos na medida em que oferecem um método para resolver qualquer tipo de questio. Conceber 0 direito como uma ordem, como um sistema, induz os juristas franceses & generalizacdo, e mesmo a espiritualizacao, calcados mais ou menos conscientemente em um pensemento religioso visando 0 bem ¢ no apenas z funcionalidade, como a common Jaw. A cultura jurfdica francesa age assim como uma forga que tende a unificar e categorizar nos palses de direito civil, ou seja, a estabelecer categorias ~ como 0 contrato e a boa fé~, a0 passo que a com: ‘mon law continua sendo uma forga de fragmentagdo, Podemos, por exemplo, considerar muito arguto aquele que for capaz de dar uma definicao exaustiva do BTeid, 9 m2 45 Nos nos permitimos uma remissio a Antoine Garapon, Bio jugr, Feo sur le rite jdicoze Paris, Ole jacob, 1997, em pasticlar ao capitulo VI sobre a comparacio entre o proceso fan tse proceso americane, [olgar nos stats Unides e na Franga Clara Juridica Paneesae Cammen Law em sina Perspecive Compania estoppel, ainda mais que nao existe apenas um, mas varios.!# © aparecimento de categorias gerais © abstratas, independentes dos fatos que as justificam, isto 6 existentes em si, assusta os juristas de common law. Isso pode Ihes causar uma certa vertigem porque, para eles, & 0 fato que condiciona possiveis agdes (e, algumas vezes, nenhuma ago seté factivel, nao havera remedy algum: ha bura- cos na cobertura juridica da realidade). O que talvez explique a dificuldade de acess0 ao juz, com muito mais poder que seu colega de civil Jaw: se combinar mos 2 forga do direito de common law com a generalidade que existe na civil law, estaremos preparando um verdadeiro inferno (iss nio seria mais ou ‘menos o que acontece nos Estados Unidos?) Cada sistema deve apresentar aberturas, ainda que seja para respirar, mas 0s orificios ndo se situam nos mesmos lugares, Em virtude da pretensio univer sal ¢ moral do direito na cultura de direito romano, os “orificins” se encontram na distincia que separa o direito ¢ o real, ou seja, na falta de efetividade, nas transgressdes, na nio aplicagio do direito. Dai decorre igualmente um “jogo”, no seritido fisico, na aplicagao da lei: “As leis sao aplicadas aos inimigos ¢ inter pretadas para os amigos”, dizia o jurista italiano Gioletti, Esta frase choca pro- fundamente um jurista de common law que prefere leis maledveis que benef ciem de facto 0s poderosos, os quais dispdem de meios para pagar bons advoga~ dos. A common Jaw se dobra mas nio rompe. Cada sistema cria seu préprio equilforio: as malhas apertadas dos direitos latinos tém como contrapartida uma magistratura profissional, menos respeitada, ¢ uma taxa superior de falta de efe- tividade do direito (“A Itélia ¢ uma ditadura temperada pela inobservancia das lois", dizia a respeite do faseisma italiano Gaetano Salvemini) Fee relacia des- contraida com o direito, tao caracteristica da cultura latina, exerce ~ para além de seu aspecto folclérico ~ uma verdadeira fangao, permitindo a reintrodugao da iniciative individual ¢ da liberdade. A correspondéncia total entre o direito ea realidade 6 evidentemente impossivel. Na cultura de common law, 0s orifi- ios estao no interior do direito: a idéia de remedy significa, ao contrario, que |h& casos para os quais nio se dispde de nenhum remedy e, portanto, casos nos quais 6 preciso se resignar, néo 20 nio-direito, mas ao siléncio do direito. As regras de equity vém dat. 0 esioppe, io dif de entander pars uma mente ances, so basis na iin de ura ats ‘aso, de un consentimento, de um zeconhacimentoimplicto que "impede que uma pessoa con teste a verdade de slegaéesformalmente fies por ela, ou de fats em telag as uae ind sua evena por palaveas ou por sua conduta”- Ee se busta a dela de que 0 queoeo ele mesmo ‘pralson or meios que tera pod invocas. Tratz- te menes dma Snerdigo de wna plbi= ‘0 do que de ums privacio da qual érespensével.O terme & rramente empregado isola, mas se decompe em uma erie de casos hipotdicos (mais do que em uma série de categories propia mente dia) estoppel by representation, estoppel per rem judiitam, ‘Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos Um direito para o individuo Depois da relagéo com o poder e a realidade, ¢ em diregio a relagio com 0 individuo que-devemos nos voltar para perceber os “pardimetros” de cada cultu- ra juridica. Se a common law supde um sujeito livre, autinomo, suscetivel de escolher o que melhor Ihe convém, as culturas juridicas continentais colocam a instituigdo antes de tudo. Esse estado de espirito é facilmente perceptivel na for- magio do jurista de um lado e de outro da Mancha: enquanto que na Gri- Bretanha os estudantes sdo convidados a defenderem pontos de vista como fu 0s advogados, o exercicio por definigdo das faculdades de direito francesas & 0 comentério de sentenga, por meio do qual o aprendiz jurista é convidado a entrar no sistema juridico adarando o ponto de vista do juz, e mesmo do Estado. Jesse Pitts refere a cultura francesa ao catolicismo francés, distinto dos catolicismos europeus, pelo fato de que ele tem como questio central nfo a ‘morte, a danacio, como na Espanha, nem uma moral puritana como na Irlanda, ‘asa Igreja que, sé ela, permite que o individuo atinja o mais alto valor. “Fora a Igreja nao ha salvacio!”, pode-se dizer em um universo em que a organiza~ «0 € divina, As conseqiéncias de uma tal doutrina ainda podem ser facilmen- te lidas em uma cultura em que 0 Estado ocupot o lugar deixado vago pela Igreja. O laco politico tem primazia sobre o dizeito. A instituigdo ests sempre em primeiro lugar em relacao ao individuo. Se para um puritano protestante a salvacdo ¢ buscada individualmente, nao é sendo por intermédio da Igreja que © catdlico realiza sua salvacio individual. Assim, toda aco sé tem verdadeira- mente sentido em um coletivo. Mesmo a justiga permanece uma faculdade da aso coletiva, “Pouco importa que a ey sejaeffcaz ou mesmo impecavel de um. ponto de vista moral imediato, 6 necessério que transpareca claramente por detrds dela 0 lago do individuo com a tradigio sagrada, nica fonte do bem em. um mundo de pecado e de desordem. Aqui nés descabtimos as rafzes do forma- lismo francs, a necessidade de encadear os raciocinios e de fundar, por dedu- sao, uma ordem hierétquica, a insisténcia na unidade do poder central e um sentido rigoroso do lugar e do status das coisas ¢ dos seres" «5 A common law 6, pois, concebida como um instrumento ofertado aos ato- res privados, considerados ~ e até mesmo exigidos ~ por ela como auténomos. © que esté em primeiro Iugar & a acio individual, o ato como wm fato e no a categoria, que é secundaria. Os comportamentos esperados so antipodas: em Jum caso, a iniciativa e a responsabilidade sio estimuladas, no outro, clas sto limitadas e até mesmo castradas. Em um caso o jurista esté presente para tornar Bese Fie, op cit. 271 | I common law exté ordenada a uma agdo, Julgae nos Estados Unidos © na Franga ct Frances e Common Law em uma Perpectiva Coonarada com o duplo sentido de un agir priva do ede uma acto na justica, uma se construindo em conexdo coma entre Neo A Por acaso que 0 estoppel éinicialmente uma nogdo processual: ndo somente as relagdes socsis sio concebidas a maneira de relagBes processuas de lane de negocio, de bargain, em que a lberdade & muito maior do que no inca Siu) como também ws relagbes processuas so concebidas como una agde, O dlreito inglés etd mais interessado nos fatos ese destaca em umn mode-de rele fo encamado pela relacio processual, © direito esté associado a uma a homens que agem: mesmo quando eles a ou 0 rei, s80 sempre nomeados por suas trata, Isso ¢ vercadeiro inclusive no que formado em direito romano fica surpreso ssa individual porque nio hé sendo agem em nome de todas, como o xerife ualidades e no por uma fungZo abs- dia respeito & justiga, na qual o jurista 20 verificar que os juizes falam na pri- meira pessoa, A justica diz respeito aos homens, como todas as coisas, , 8 as coisas, Em con- \apartida, a mencalidade anglo-sexi tern dificuldade em perceber entidades abstratas, categorias (0 que se verifica ‘Mesmo uma categoria como o Estado per de muitos ~ e, ne verdade, um pouco sus tanto na filosofia como no direito), manece um pouco misteriosa aos olhos pera + Be Comm pated Isso explica porque, no direito francés, os $08 nio si = , 8, 08 compromises nio sio muito.” preciados, diferentemente do ditcito anglo-americano que fieqientemente Dis os afores em preseisa para que encontrem uma solo, uth agreement {pensemos, por exemplo, na caga: a atitude francesa consiate em esperar que 0 direito sentencie uma solugio, enquanto © direito europe requer 0 transigin), Para um contineatal o acordo jamais tera a beleza de uma regra de direito, mesmo que ele tenha uma eficdcia que a A desconfianga em relagao ao indivi do) se traduz pela mulkiplicacio dos artificios, aborrecinentos Precaucées regra nao pode alcanyar iduo (potencialmente pecador e culpa- Fre lt sitwalmente denuncinda pelo poder politico em um grande pro. {rama que simplifica as medidas adminis Mas eseas regras asstratase gerais compli ‘0 da administragdo ou da justiga. Por isso, a ustiga, Por isso, para que possa fancionara miquina “) Erscise fazer uso de uma certaliberdade em relagio as regras editadss weiter Aitos afixados, as regras processuais estab trativas, mas no deixa de manté-las, icam e retardam o bom funcionamen. elecidas. “O préprio funcionaro, pri ‘Antoine Garapon e Toannis Papadopoulos sioneiro de um universo legal-racional, preso em suas normas, s6 encontra fautonomia para “interpretar” 2 regra.[...) O sistema funciona através da cum- \ plicidade e dos geertos. 6 SD) HE Yous Meny, La Corruption del Republique, Pais, Fayard 1992, p- 317. Capitulo III O Acesso & Justiga: Prerrogativa Publica ou Bem Alienavel? © proceso no ocupa o mesmo lugar na cultura juridica americana ou francesa, Para convencer-se disso basta identificar a forga que o poe em ado. Por detras de cada ritual se oculta, com efeito, uma energia inicial que configu ra 0 processo ¢ organiza as etapas de seu desenrolar. Na cultura francesa 0 motor é 0 poder piblico, a0 passo que em common law ele é a agio de uma parte, ou metho, de um individuo. Através do espeticulo que ele oferece, o processo penal francés reconstr6i 1 soberania politica una e indivisivel. Em contrapartida, 0 processo de common Jaw organiza, segundo uma encenagao bem diferente, a capacidade (agency) de tum cidadio, a quem oferece um quadro processuat adequado para agiv. A aber- tura e 0 desenrolar do processo esto, pois, normalmente nas mis das proprias partes. Quando o Estado participa do processo, ele ¢ assimilado a uma parte pri vada, No contexto mais especificamente americano o processo pe em cena a utopia politica éo pafs, dando a cada um todas as chances possiveis (his day in court} para defender os seus inceresses diante de um juz imparcial e de um jini vompesto por seus semelhantes (a jury of his pees). Na common Jaw, em que a forga motriz do processo & constituida pelas partes privadas, ndo causa surpre- se o fato de # metéfora econdmica subentender 0 raciocinio institucional até mesmo no contaxto penal, ao passo que a cultura judicideia francesa nao pode conceber a pilosagem de sua justiga sendo em termos de pollticas piblicas de acesso a justiga, processa penal americano gera, em raze mesma de seu formalismo, um cespago de negociacio entre as partes, “a sombra do dircito”, no infcio da audién: cia piblica. Convém, portanto, nos determos em primeiro lugar no que concer- ne & pritica do plea bargaining, no que ela revela da concepsao do processo ¢ insistir em seguida em uma teoria tipicamente americana, a abordagem econd- mica do direito que, nos seus excessos mesmos, revela um imagindrio que é antipoda da cultura européia, sobretudo francesa. A anilise econdmica chega ‘mesmo a considerar os direitos das partes ~ tanto substanciais como processuais = como bens des quais elas podem dispor livremente em funcio de seus inte- resses. De preferéncia a rejeitar em bloco esta abordagem econémica por meio Antoine Garapon ¢ foannis Papadopoulos de argumentos morais, indicaremos os diferentes argumentos em presenga para dar uma idéia dos debates doutrinarios do outro lado do Atlantico. Tais debates ros interessam ainda mais se considerarmos que o direito francés iré em breve instituir algo equivalente ao plea bargaining, néo sem suscitar um clamor de indignagio entre os profissionais judicidrios que estimam que essa implantacao vai de encontro a uma cultura judiciéria continental que deve continuar a ter seu eixo no interesse puiblico de dizer a justica A-*negociacio da declaragao de culpa” (plea bargaining) O plea ‘© procesto de common lav, fortemente formalizado, é construido inteita- mente em torno da plea inicial, locuglo introdutora da insténcia. A plea ¢ 0 per- formativo judicisrio das partes, ou seja, 0 ato de linguagem pelo qual clas produ- zem efeitos reais sobre o mundo.! Ea palavra piiblica que ao mesmo tempo cengaja a responsabilidade dos homens e determina o curso do processo jurisdi- cional. No processo penal de common law essa exigencia¢ inflexivel: um scusa- do deve imperativamente, por ocasifo de primeira audiéncia aberta ao piblico (arraignment), se declarar “culpado”, “no culpado” ou “sem contestacao” (nolo contendere) quando nio contesta os fatos de que é acusado. A plea é, pois, a porta de entrada do processo.£ também uma forma processual na qual deverao entrar todes as ages ulteriores das partes. Também a aplicacio do direito mais sagrado nos pases de common law, ode ser jlgado por um jr de pares, depen de da escolha da plea inicial do acusado: se cle se declarar “nao culpado” ters direito a esse julgamento, ao passo que ao se declarar “culpado” ou "nolo conten dere” ele renuncia de facto a esse direito, Sendo assim, 0 acusado deve pesar bem suas primeieas palavras em uma audiéncia publica: essa escolha determina irre- versivelmente a continuagao do processo e, finalmente, sela a sua sort. ‘O contraste em relago ao processo penal francés & surpreendente. Este se inicia, nas audiéncias do tribunal criminal, pela leitura publica do ato de acusa- ‘gio. O tom é assim dado pelo Estado e nao pelo acusado. Além disso, o relato & freqiientemente escrito no presente, sem nenhum precaugdo gramatical ov sintética que introduza qualquer tipo de distancia com relagao & versio oficial {Sobre ospesformativosc saa” fora clocudra vero iro elssica da hlosfaanaliicaanglo-sma de). Ati, Quand die cst fre Quando dizer € fer, intredugio, adugao ¢comentire de Giller Lane, posicio de Frangoie Recanat, Pan, Sei, co “Points Es", 1998 Julgat nos stads Unidas na Franca Gulun unica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada dos fatos, a tal ponto que um observador profano poderia pensar que 0s fatos ja estdo estabelecidos, A locucio de abertura francesa significa, de algum modo, que 0 relato jé foi urdido pelo Estado, que @ orquestracio do espeticulo se fez anteriormente, 20s bastidores, sem a participagao ativa das partes privadas. A ‘inica interlocucio possivel ao acusado em um tal contexto de constrangimen- to €a construgio de um contra-telato? que sustente exatamente o contririo do que é afirmado pela acusacio. A diferenca de poscura é imensa entre uma decls- ragio pessoal que assume livremente a responsabilidade de seus efeitos ~ pro- cessuais e substenciais ~ e uma guerrilha semantica que tenta, através de efei- tos de estilo, desconstruir umm relatdrio offcial. Uma vitéria do pragmatismo sobre os princfpios constitucionais? A partir do final do século XIX, 0 nimero cada ver. maior de questacs penais nos Estados Unidos tornou inadequado © formalismo da plea, Era preci- so construir um sistema que petmitisse gerenciar melhor os inputs da justica Foi assim que comegaram a se desenvolver — primeiro is ocultas, ¢ depois aber- tamente ~ as praticas de negociagao entre a acusacio e a defesa para que esta aceitasse uma “declaragio de culpa” em troca de algumas concesses por parte do procurador. 0 jogo, puramente pritico, era, todavia, essencial porque o aces 0 4 justiga corria 0 risco de ficar bloqueado por muito tempo pelo excesso de ages judiciérias ¢ a impossibilidade de tratar todas as questées por meio de um full trial, ou seja, um processo diante do ji, dispendioso em tempo e dinkei 10. A plea bargaining surgiu como uma espécie de mercado negro para atenuar as falluas de wun sistema de trocas cuja regulamentagdo nio conseguia mais regrar convenientemente o fluxo da oferta e da procura3 2 Paradoxalmente.a expresso “conta-rlto”(countrstorytllng& de ovigem american. Fol ei «da por Richard Delgado (Stoeytlling for Opposition and Others APs for Nawatve™, 87 “Michigan Lew Review 2411, 2414 (1989), un dos representantes do snoviment doutrinal amers ano da ‘arcatividade juries” (Legal Storytelling). De acordo com esse movinent, ox eon relatos vémm dos ousdersexcluids da Lingagom juides(notadamente minorat) que proce am dedlocar ou subveter os telat naprtrion. Sobre este tema, not permis teinter JoannisPapadopondos, “Guerre et paix en droit et hittérate” (Guerra e pat em deta e erat ‘al, Reve interdisciplinaire d'études juridiques, 1999, 1° 42 “Les. grands couants de Prheeméncutque juridique”, p 181 e. Sobre as origens ca plea bargaining ver iv recente de George Fishes, Plea Begining: Tur ‘A History of le Bargaining in America, Stanford (Calsfornia), Sand University Press, 2003, ‘amb Lawrence M. Fiedan & Robert V, Portal, The Roots office Cries Ponaneat in Alameds County, California 1870-1930, Chapel Ifill (North Carlina). University Now Carolina Pres, 1981, p. 175-181, e Lavronce M. Friedman, “Plea Bargaining in Histories Perspective", 13 Lan and Society Reviow 247 (197). Sabre plea bargaining aria, ver Mila ‘eumann, “A Nete on Pea Bargaining and Case Presure’,9 Law and Society Review 515 (1975) Antoine Garapon e Ioannis Papadopoutos Em um mundo ideal, que colocaria frente a frente dois personagens dota- dos do mesmo poder de negociagio, que disporia de recursos ‘limitados e onde fos eros judicidrios seriam desconhecidos, a plea bargaining nio existiria. Ninguém teria interesse em negociar (crade off) seus direitos para adquirir uma certa seguranga juridica se pudesse confiar na capacidade do sistema judiciério em distinguir os culpados dos inocentes e em punir cada um na estrita medida de seu desmeérito moral (desert). Mas o excesso de casos de audiéncia ea falta cronica de meios da justica penal abrem furtivamente a porta para uma justiga ‘com duas velocidades: uma justiga para os happy few que podem se permitir o uxo de um processo na forma devida diante de um jéri, com advogado pago e todos 0s direitos de defesa previstos pelo Bill of Rights, ¢ uma outra para os pobres, para as minorias racials ¢ os deficientes mentais ~ na grande maioria dos ‘cas09 ~ cuja sorte é freqiientemente fixada durante uma discussie informal nos bastidates do palicio, sem que disponham de nenhum meio de defesa ‘Com o aparecimento da plea bargaining nos corredores dos parquets, as consideragdes pragméticas foram gradativamente tomando a frente dos grandes principios constitucionais do Bill of Rights, que garante um leque de direitos processuais aos acusados. A Corte Suprema fala de “claro reconhecimento dessa pritica outrora clandestina”.4 Ela preconiza que o procurador disponha de mar- sens consideraveis para negociar, se ndo quisermos que a pritica da plea bargai~ ining “retome As trevas de onde ele recentemente surgiu”.5 Essa imagem mos- tra que a clareza moral da plea inicial gerou seu dupto subterrinco sob a forma da plea bargaining Pisequndo + definigho dada pelo dcionério juridico Black's a plea bargain {ou plea bargeining) & “um acordo negociado entre wm procurador e um acusa~ Go 20 termo do qual o acusado se declara culpado por uma infrago menor, ou por uma das acusagdes, em troca de uma concessio, por parte do procurador, Irabitualmente de uma pena menos severa ou do abandono das demais acusa- «05"& Ao termo de um processo mais ou menos informal, selado pela apresen- tagdo de uma convengio escrita a ser homologada pelo juiz.em audiéncia pibli- ca, 0 ministério piblico e 0 advogado da defesa entram em acordo sobre uma pena inferior 4 pena maxima prevista pela lei em troca de uma rentincia do acu- sado a um processo com jirie aos direitos de defesa que fazem parte dele, Embora relativamente recente em common law, a plea bargaining jé esté solidamente estabelecida como uma das principais ferramentas da politica ~The dentro Hays 94 US 957, 352178 Tie us a7 5 097) Stes Bs Law Donny. 7 ay SP Mint), Wes Gn, 5 woe ba Julgarnos Estados Unidos e na Frans Cala Juridica Prancesse Common Law em una Perspectiva Compared penal nos Estados Unidos, de forma que mesmo os criticos desta instituigio parecem estar finalmente resignados & sua existéncia na paisagem juridica norte-americana. Para seus defensores, essa ferramenta permite economizar 0 recurso mais precioso do promotor, ou seja, o seu tempo. Todos 0s processos evitados the pecmitem consagrar tempo e energia a outras questées mais impor~ tantes, eas lstes de audiéncia ficam menos sobrecarregadas. Jé 0s acusados evi- taro o tempo ¢ os custos ~ materiais e psicolégicas ~ de um processo, redi 0.0 risco de receber penas méximas Essa eficécia da plea bargaining, com a qual todos se beneficiam, explica porque a grande maioria das questdes penis nos Estados Unidos é regulada desta forma: segundo as siltimas estatfsticas disponiveis do Departamento de, Justiga, 95% das questoes em nivel federal ¢ 94% em nivel estadual ter com uma declaracio de culpa seguida diretamente por uma pena? Una pritica dupla reconhecida pela suprema corte A Corte Suprema, na sentenca Brady v. United States de 19708 explica assim o sentido dessa instituigao; “A declaracio (de culpa] é mais do que 0 reco- nhecimento de uma conduta passada; cla € o consentimento do defensor para que um julgamento de condenagdo seja pronunciado sem processo — uma remtincia ao direito de processo diante de um jtiri ou de um juiz. A rentincia 20s direitos constitucionais néo apenas deve ser voluntaria como deve ser esclare~ Cida e se fazer com conhecimento de causa, tendo em conta circunsténcias per- tinentes e conseqiténcias aferentes.” Segundo o artigo 11 do Cédigo Processtal Penal Federal (Federal Rules of Criminal Procedure), 0 juiz nfo é de modo algum obrigado a aceitar o acordo sobre a pena estabelecido entre o Ministério Piblico e o advogado de defesa, Ble pode recusé-lo se lhe parecer que o acordo 1ndo recebeu o consentimento esclarecido do acusado. A plea bargaining nio é, com efeito, uma relagio bilateral entre dois contratantes, mas uma relagio triangular, sem reciprocidade de obrigagées. Embora a participagio ativa do acusado 20 se declarar culpado engaje a sua responsabilidade, 0 mesmo nfo acontece com 0 promotor no que diz respeito ao montante ajustado da pena, jé que é 0 juiz, eno o promotor, que estatui in fine. Os verdadeiros contratantes sfo 0 acusado e 0 juiz, de quem o promotor é, de algum modo, o agente. Se 0 F Verret tice Statistics, US. Department of usc, Felony Sentences in Sate Courts, 988, 1p. 8:9 2001) celatado in Ronald Weght ke Marc Miler, "The Sreening/Batjuning Tradeol 35 Stanford Law Beview 29,30 n. 1 (2002), 8 Sentenga Brady v. United Stats, 397 US. 742,748 (1970), ‘Ancoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos Jireito de declarar-se culpado se manifesta incontestavelmente pela livre von- tade das partes no processo, o juiz, ao triangular a relagio acusado-promotor, controle 0 seu exercicio a fim de garantir que cle nao seja prejudicado.? iz-se em geral ~e provavelmente com razo — que a plea bargaining € filha do pragmatismo anglo-saxio na medida em que esta forma de justica se adapta abertamente as necessidades urgentes dos fatos, deixando de lado os grandes principios do direito, A passagem supracitada da sentenga Brady mostra, no entanto, que essa declaraczo de culpa tem dois aspectos: um puramente factual € outro normative, que no & o menos importante dos dois. O aspecto factual se refere ao “reconhecimento de uma conduta passada” ou, em outras palavras, i ‘confisse piblica de culpa por parte do acusado, Na cultura juridica americana, info é tanto a concordncia entre os fatos realmente ocorridos ¢ os fatos publica ‘mente declarados que interessa ao sistema judicidrio, mas a adequagio entre um relato verossimil sobre as circunsténcias do crime e o relato do acusedo, Esta cul tura judicidria ndo é obsedada pela verdade factual em si; ela se preocupa mais ‘com a verossimilhanga ¢ a aceitabilidade dos relatos dos participantes.!° A partir daf, pouco importa se as coisas nio aconteceram exatamente da mancira descrita no acordo realizado entre o Ministério Piblico ¢ 0 acusado, depois homologado pelo juiz; basta que o acusado teste os fatos com conhecimento de causa. 10 aspecto normativo da plea bargaining se refere 8 “remtincia {do acusado] 20 seu direita 20 processo diante de um jiiri ou de um jui2”. A declaragio de culpa, como ato de linguagem, ndo se refere unicamente a fatos passados, mas olha igualmente em diresao a0 futuro (forward-looking). Trata-se de um per formativo, e no de uma simples declaragdo que se limita a avalizar 0 relato ofi- cial do crime e manipular o acusado na rede dos direitos e das obrigagSes que constituem a atividade juridica. O sujeito da declaracio de culpa ¢ simultanea- mente um narrador de hist6rias e um titular de direitos, Ambos, relatos e divei- tos, sio negociados livremente, Ora, no processo american, nao basta que 0 relato do acusado ¢ 0 relato do promotor se encaixem; contrariamente & culeu- ra judicidria francesa, a concordancia dos fatos nio é o que se busca primordial- snente.Figualmente preciso que essa avestacio sejaseguida de wm auséntico ato de vontede que remuncie provisoriamente a certos direitos, a comegar pelo ‘direito a um processo piblico. Na cultura juridica americana os fatos consti =| tuem a matéria para a construgio de relatos, ao passo que os direitos sio pontos Ge referéncia que orientam o sujeito e guiam sua agio, J Baie ee puadono da trangolagi, ver Robes F. Scott & Wiliam J, State, "Plea Bargaining Contac’, 10 Yale Saw fourmal 1909, 1954-1955 (1992). 10. er ini, capiulo V Julyat nos Btadot Unidos en franga (Cultura Juries Frances © Cortmon Law ean ua Perapectiva Compara Uma ameaga para os inocentes © maior escindalo do plea bargaining concerne, todavia, aos seus efeitos sobre os inocentes. Certos acusados inocentes sio, com efeito, tentados a aceitar um reconhecimento de culpa em troca de uma pena mais leve que a pena devi- da Baa ance, aparentemente aber, se expla plo metodo rico. Os acusados inocentes sio naturalmente mais "iscofdbicos" (risk avert) - avert) que 0s act sados culpados que, no final das contas, no tém tanto a perder, Eles temem os imprevistos de um processo que pode terminar em uma condenagio, Assim, um inocente fica mais inclinado a aceitar um deal de pena reduzida proposto pelo promotor do que a se langar num processo incerto.!2 Ora, a condenacio de ino: centes contando com o sett consentimento é moralmente inaceitivel e social- ‘mente perigosa. Ela, no minimo, dé testemunho da irviséria confianga que essas pessoas depositam em sua justica, a0 mesmo tempo em que fere seriamente a cre~ dibilidade plbtica de uma insttuigio judicidria e de um direito processual penal que permitem que um tal horror se produza, Se nenh a bum sistema de justiga pode funcionar em longo prazo sem a confianca dos cidadios, a justica de common Jaw, mergulhada em uma cultura contratual e liberal, no pode de modo algum permitir que isso aconteca, jé que se Funda sobre a capacidade dos individuos de regrar racionalmente suas préprias questdes fora da presenca tutelar do Estado, A sociedade inteira repousa sobre uma confianca reciproca entre concidadaos que se materializa por uma enorme importancia dada as relagdesjuridicas. Nio seria muito dificil encontrar na prépria cultura de common law os argumentos para contestar esse desvio. i certo que as regras processuais, estrita- mente aplicadas, dio a todas a capacidade de se beneficiarem de suas 2utonomias no fair-play.'$ A liberdade contratual supe, entretanto, um quadro juridico levado extremamente asério eassegurando a cada um a possibilidade de se com portar como “homem honesto” (honest man), s6 devendo pagar as dividas que pessoalmente contraiu e usufruindo livremente dos frutos de seus talentos e de seu trabalho, O estatuto juridico das pessoas nao pode ser modificalo senao por ST-Ve inane csc ps : Se ae ea Cined tae iceie orice Seat aalea ed somes induce ele on ett twas a enc cons - ‘na préxima sega. rararatn eae Antoine Garapon e lounnis Papadopoulos meio de suas préprias ages, ¢ as Categorias que atribuem um lugar a cada um na relagio jurfdica devem ser claras e peremptérias (clear-cut) e produzir efeitos, [As distingdes, por exemplo, entre credor e devedor em direito civil, ou entre jnocente e culpado em direito penal séo rfgidas. Na common law tradicional nao se brinca com essa regra bisica. E, portanto, inaceitével que todos os direitos processtiais possam ser livremente alienados por seus titulares sem que existam meios de ordem piblica, ndo negocidveis, de coibir os excessos. “Um processo minimamente civilizado, lembra a Suprema Corte na sen- tenga United States v. Mezzanato,§ 6 requerido pela sociedade, sem considerar ‘o que deseja 0 acusado ou o que esté pronto a aceitar.” Em suma, wim regime de negociasio livre de bens pressupie que alguns bens primérios ndo sejam alie- ndveis. Esse limite para a possibilidade de negociar encontra facilmente seus findamentos na cultura anglo-americana e sua tradigao de liberalismo politi- co!5, Para 0 modelo dos direitos (rights-based model), com efeito, os direitos de gue dispomos constituem certamente titulos (entitlements) que, todavia, nfo cestio inteiramente disponiveis para seus detentores. Assim 0 direito ao proces- 50 € 05 direitos de defesa, reunidos sob a bandeira do due process of law, sio absolutos e inalienaveis, Eles no podem ser negociados ou mercantilizados, qualquer que seja 0 beneficio previsto para seu titular ou para outras partes. O processo penal existe no no interesse dos justiciéveis, mas no interesse piibli- co de nio privar ninguém de sua liberdade, salvo quando sua culpa foi judicia- riamente estabelecida. A presungio de inocéncia e os direitos de defesa, que constituem 0 eixo de todo processo penal, nao tém prego € nao podem ser tro- cados por uma promessa de maior utilidade ou bem-estar coletivo. Na terse logis do filésofo do direito Ronald Dworking, os direitos sao “trunfos politicos” (political trumps) que os individuos possuem e que prevalecem sempre sobre as consideragdes de utilidade social ou de politica piblica.!® ‘A abordagem econémica da justiga Apesar da importincia do “modelo dos direitos", a referéncia tedrica dominante nos Estados Unidos para compreender o plea bargaining ¢ incontes- tavelmente hoje 0 movimento law and economics, uma corrente doutrinaria Th SIS US. 196, 204 1999). 15. Pare o"modelo dos direitos". ver Ronald Dworkin, Prendre les droit au sviews, tad. de Mazi Jeanne Rosignol & Frédésic Limare, yey. e pres, de Frangoiwe Michaut, Pais, PUB, col ‘évichan’, 1995 (ed oF, 1977), penepalmentep. 164-168, 265-771, cap. Vil “Prende es dois au strien (p. 279 ess) pas, 1 ip as Julyor noe Erdos Unidos Fraga ‘Calusa frida Frameset © Common Law e uma Peripectiva Comparada multidisciplinar que tenta aprender as instituigdes juridicas com a ajuda da anilise econdmica, Para a teoria econdmice do direito, sao of eritérios da esco- Iha racional e da eficigncia econdmica que explicam o comportamento de todo ator em seus contatos jurfdicos. Toda instituigao juridica, inclusive o dominio penal,” deve ser analisada segundo © modelo do contraro, © contrato é, com efeito, a melhor ferramenta para aleangar 0 “optimum de Pareto”, ou seja, uma transagio que melhore a situagao de pelo menos uma das partes, sem: agravar a situagio da outra. Assim, para a corrente “direito ¢ economia’, os direitos sd0 titulos (entitlements) dos quais cada um pode dispor livremente vendendo-0s ou trocando-os a fim de melhorar a sua situacdo. Isso pressupée, naturalmente, 2 autonomia contratual mais ampla possfvel e, poranto, a recusa de toda restri ‘io indevida trazida do exterior em relagio & capacidade de cada um no senti do de alienar seus titulos e seus outros recursos.18 A aplicagio da abordagem econémica ao plea bargaining Aplicada ao processo, a teoria econdmica parte da constatagao de que todo acusado tem 0 direito de declarar-se nao culpado e de desfrutar de um proces- so na devida e boa forma, Reciprocamente, o promotor tem o dircito de reque rer a pena méxima para um dado delito: em um sistema acusatério, é de seu interesse maximizar as condenagGes, Em uma tal situagGo, existem certamente circunstincias em que cada uma das duas partes no processo dé mais valor a0 titulo da outra parte que ao seu. Se esta hipdtese ¢ exata, todas as condigdes para ‘uma troca contratual esto reunidas. O acusado pode egociar e trocar © seu direito de ir a processo pelo direito do promotor de requerer a pena maxima Todo proceso penal apresenta uma vantagem, ¢ essa incerteza é um tisco para cada uma das duas partes do proceso, 0 acusado e © promotor. 0 acusado corte 0 risco de uma condenagio pesada; jd 0 promotor assume o risco simétti- co de um processo custoso e lento, suscetivel de finalizar em uma absolvigzo. Ji que nao se pode saber antecipadamente qual das partes usufrui compatativa- 17” A prieiraapicacto do raclocnioeeontmico em dieito penal fl falta por Gary S Becker, "Crime and Punishment an Economic Approach", 76 foul of Political Economy 163 (198), ‘literatura de "disito« economia obtore um dasenvalimentoconsdertvel. O rsvinento di oe desu prpria revista que retne as divers tendéncias,o Journal of Legl Studies. ar una boa ‘nrodugio ver Cento Vejanovsi, The Economie of Law: Aa introductory Tent andres estate of Economic Afr, 1990.0 represenante mis conbecido odefensor mais incasvel do movi ‘srento é incontestavelmente a ui federal americano Richard Posner; ver, em particle, Richard ‘Posner, The Boonomic Analysis of Law, 4 ea. Boson, Lite, Brown & Co, 1992, Pra a pee entasio suscinta do credo e da metedeogia do movimento ver, do mesmo ator “The Law end Economics Mouvement”, 7 Papers and Procedingr ofthe American Kennomic Review | 987) m Ancoine Garapon e Ioannis Papadopoulos mente de mais vantagens na gesto desses riscos, 0 contrato se transforma na melhor maneira de repartir racionalmente o risco entre elas. Basta para isso que as duas partes se ponham de acordo sobre um “prego” penal a pagar (ou seja, uma pena a expiar), que & a tarifa que cada um esta disposto a pagar para reduzir os seus riscos.19 Pelo mecanismo da plea bargaining, 0 ministério piiblico pode obter o nfvel de exceléncia de sangio penal pelo menor custo em vista de libe- rar seus limitados recursos para outras questdes, o que prodtuz uma taxa mais alta de dissuasio global do sistema juridico, j& que as audiéncias ficam reservadas para as questdes mais dificeis e mais “visiveis” pela opinio puiblica. Ao molar suas ofertas de penas em fungio dos supostos custos do processo, das probabil dades de triunfar na audiéncia e da antecipacao da pena que serd verossimilmen: tc imputada, o promotor racional pode tirar o melhor partido dos recursos pibli- cos que se encontram 4 sua disposicio. Reciprocamente, 0 acusado racional que procura minimizar a sua pens se saird melhor aceitando um oferecimento infe- rior pena provavelmente dada, ignorando — evidentemente ~ a possibilidade de uma absolvicao.”® Na teoria, portant, a ples bargaining é um contrato “ganha- dor-ganhador” que nao somente permite que cada parte minimize seus riscos pelo menor custo como aumenta a utilidade social da instituigdo puiblica Seri que a analogia estabelecida entre a negociagio da declaragao de culpa © 0 contrato & perfeita? A resposta de um dos principais tedricos da corrente “dixeito ¢ economia”, o juz federal Frank Easterbrook, é negativa2! As relagdes entre 0 promotor ¢ o acusado nao tém, na verdade, nada de um verdadeiro “mercado”, no qual os custos de transagdo nao ultrapassam os ganhos previstos pra cosa transagio e as partes contmatantes tém sempre a possibilidade, no caso de uma oferta desinteressante, de procurar o competidor ou de esperar por uma oferta melhor, prestando seus servigos, nesse meio tempo, por um prego abai- xo do desejado, O contexto da plea bargaining nao apresenta nenhuma dessas caracteristicas. O promotor dispde de uma posigdo monopolista: 0 acusado que no estd satisfeito com a sua oferta ndo pode dirigir-se a um concortente. AS duas partes negociam sob a pressio do tempo (um dos interesses da plea bargai- ning é a rapider) e sombra de uma grade de penas que se assemelha a uma fixagio administrativa dos pregos.2? GB Baecwe tema da pe como “io preg a yp ver cpio 29. Renvoarpumentoesnvaviono args clic dae ederal ean H, aero, “eal Pwedre oa Markt Sen 2 Jal of Lea Seis 299 (983 21 OjusEouricok eu om pre de ss peceente anv econ da ple burgenng {eer mp noua 21) eum arg ala “Pls Barings Compromie' 1O1 Yae La Journal 965 (190) 22 Bid 197. Seb prc hs pont (eens guideline) erp; p26. Julgar nos Estados Unidos ma Feengt (Cultura Juriice Francesa © Common Law em uana Perspect Compareda Esse sistema de negociacdo da pena entre duas partes nao apresenta os ‘mecanismos “naturais" de que dispée 0 mercado para encontrar um ponto de equilfbrio na determinacao dos pregos, falta-lhe eficiéncia, Os mercados sio dotados, com efeito, de mecanismos de adaptagio através da sinalizagio de qualquer desvio em relagio 20 ponto de equilfbrio dos precos em razio de mudancas na preferéncia dos consumidores ou nos custos de produigio. Os mer cados estimulam, em conseqiiéncia, os agentes racionais ¢ interessados no sen- tido de que eles reajustem, por seu comportamento, os precos em diregio a um onto de equilfbrio entre a oferta e a procura. A plea bargaining nao tem nada de um mercado livre, ela é um sistema de regulagio adminiscrativa com todas as suas falhas.23 Mesmo se a negociagao da declaracgo de culpa tem lugar em ‘vm ambiente semelhante ao de uma negociagao contratual, o promotor, final: mente, no é mais do que um “burocrata que fixa pregos"2s em fungio dos inte- resses de sua prépria atividade e de sua agenda politica. Como veremos, o pro: motor, que é a parte capital do sistema, s6 é submetido a um tinico tipo de ins tigacto para reajustar suas préticas e, portanto, as tarifas penais: uma instigagio de ordem politica, ¢ ndo econémica Easterbrook estima, entretanto, que toda negociagdo amigivel, como @ plea bargaining, & necessariamente melhor que um proceso penal, jd que as partes diretamente interessadas dispem, por definico, de mais informagoes ¢ experincia que o juiz ou 0 jiri. Blas esto, por conseqiiéncia, mais aptas a dis cernir e promover seus préprios interesses em um quadro de livre negociagdo do que em um quaéro formal, cereado de regras processuais complicadas que excluem um certo mimero de informagées pertinentes, Para ele, a solucio para © problema do deficit de eficiéneia da plea bargaining seria eeformd-la no sen~ tido de uma maior liberalizagdo, de uma desregulamentagio visando alinhé-la a0 modelo do contrato.25 Entretanto, a abordagem econémica da justiga nao é hostil por principio a toda forma de ajuda social, Seus partidérios no se opéem 2 uma ajuda jurisdi~ cional para 05 carentes: tudo depende do balanco custos/beneficios que se pode extra. Assim, Easterbrook acredita que ¢ irracional (no sentido econdmico do termo) para uma sociedad como a América, que se considera apaixonada pela liberdade, pagar uma miséria aos defensores piblicos quando cada contribuin- te paga 20.000 délares por ano ¢ por detento.%S Seria mais racional renmunerar BB Quo cona econdmica neoeldsics denomina regulatory furs, 24 Stephen J. Schuthofe, "Criminal Justice Discretion at 4 Regultory System’, op. ct, p. 6; of Frank Easterbrook, "Criminal Procedure asa Market System op. itp. 290 25. "Plea Bargnining 9 Compromise, 10} Yale Law Josrnal 1969, 1973 «passim (1992), 26 Ibid, p 1974, Sobce cx problemas colocedos peo sistem americano de remuneragi dos defen: 1s plo ver Vivian Berger, La rélité del pine capita sux Etats-Unis: defense bl, ue Antoine Garapon e Toannis Papadopoulos 0s defensores piiblicos pelo prego de mercado, j4 que a melhoria do nivel dos servicos da justica reduziria assim as despesas de manutengfo do sistema carce- rario e os prejuizos do aprisionamento e da ociosidade dos detentos, Nio se deve, pois, caricaturar @ abordagem econémica do direito, que nio é tao insen- sivel quanto se pensa em relagio as dificuldades dos fracos. Mesmo se a plea bargaining nao é um verdadeiro contrato, ela representa, para os autores liberais, um compromisso itil, um recurso (second best choice) em favor do acusado, oferecendo-the a possibilidade de vender seu dircito de defesa ao Estado em troca de uma oferta de pena mais atraente. Os partidévios radicais da corrente “direito © economia” vao mais longe, afirmando com Easterbrook que “os direitos que podem ser vendidos t8m mais valor do que aqueles que devem ser consumidos"2” (da mesma maneira que ¢ preferivel dar dinheiro em espécie ou vales aos pobres em lugar de fornecer-lhes diretamen- te uma habitagio subvencionada ou uma eduicagio gratuita?®). Para um Easterbrook, os dieitos individuais se encontram dentro de um tinico cesto, que contém as fraqueras € os trunfos de cada um, e com o qual se caminha no grande mercado que & a vida. Esta visio se opée, portanto, a0 paradigma rival no seio da common law, 0 “modelo dos direitos’, para o qual os direitos indivi- duais sio constitutivas de um sujeito que s6 pode construir seu “plano racional de vida” sobre a base inabalavel de um certo niimero de direitos.29 As criticas internas da anilise econémica do direito As culticas ditigidas a essa defesa da plea buryaiiing n20 vay abandonar & terreno da analise econémice do direito, o que demonstra @ profunda ancora gem do paradigma econdmico na cultura juridica da common Iaw.% Blas acei- tam eliminar a linguagem deontol6gica da moral para acentuar que a teoria econdmica do direito ¢ incapaz de conceber as relagdes juridicas entre as pes- Tice palidide ot danger @exdcation de personnes Innocent, fn Toanals Papadopoulos e Jaoques enti Rober (org), La Tene de mort droit, histoire, anchropoogie,philsophic, Paris, Ediions Panthéon Asus, 000, p. 28 es, princ)palmentep. 31-38 2 Ibid, p15 28 Encootease case argumento na bills decals econdmica neoliberal de Chicage que é livra de Milton Fredinan, Capitation and Preedam, Chicago, University of Chicago Pres, 1982p. 89-0 29 im Rawls estates se chare a “prioridade da justia”. em ura sociedade usa as Uberdades Ade base io consderadas como ireversiveis as direitos gaantios pela jastiganio esto seo 4 egecagder polticas nem aoe ellculos de inereses soins. (Théorie de la justice, tend (Catherine Auda, Pars Sell col. “La cxplee des kes" 1887 (od ong 1971, p54) 30 sts extica foram desenvolvidas pa primeira vex por um criminals mit reserva em xl ‘od plea bargaining, Alber Alschulr "Phe Changing Plea Bargaining Debate" 69 Cliforie Law Feview 652 (1981). Julgar nos Exados Unidos ena Frama (Calvo Juridica Francesa € Commen Law ems uma Peepectiva Compared soas de outro modo que nao seja as relagdes bindrias. Para a andlise econdmica do direito, a negociagao se desentola sempre entre duas partes, pretensamente comhecedoras de seus ativos e passivos e capazes de fazer as melhores escolhas para defender seus interesses. A teoria econdmica do direito tem necessidade dessa concepeao bindria para aplicar - ou até mesmo colar ~ 0 modelo do con- tyato a todo ato juridico. O terceiro é eliminado do quadto, o que nao é total- mente exato. Como demonstrou Stephen Schulhofer, toda negociacio se desen- volve & sombra de um eventual conflito, que deverd entdo ser resolvido autori~ tariamente pela justica.3! Em outras palavras, a sombra da lei est sempre por detrds dos negociadores; cada parte negocia sabendo pertinentemente que em «caso de ruptura das conversacoes a lei geral tomari as rédeas. As partes néo podem, portanto, ser consideradas inteiramente “livres” para confeccionar um acordo sob medida porque elas jd interiorizeram o regime de direito comum. A visio contratual da plea bargaining nao leva suficientemente em consi- deragao o que os economistas chamam de “exterioridades” do contrato.%? Para a teoria econdmica do direito, um contrato, para ser eficiente, deve “internali zar" plenamente 0s custos da relagéo transacional entre as duas partes. Ele deve reparticlos entre os contratantes e ni “exteriorizé-los”, ou seja, rejeité-los em diregio & coletividade. O exemplo clissico é um conteato de exploragéo de uma mina que provoca a poluicdo de um rio adjacente, Embora 0 contrato possa ser benéfico para os contratantes (proprietdrio e explorador), ele gera, ainda assim, uum grande custo social sob a forma de prejufzo causado a um bem pablico (0 meio ambiente). Este custo é, portanto, rejeitado para o exterior do lago contra ‘ual para ser hnalmente assumido pela sociedade, ou mesmo pot todo o plane {@, © que cria um “efeito de Iucro” (em outras palavras, um enriquecimento indevido) para os contratantes, No contexto da plea bargaining, o tempo ¢ 08 recursos consagrados aos processos e as condenacées sio bens piblicos essen- ciais com efeitos que transcendem a transagio voluntéria entre 0 promotor ¢ 0 acusado, A condenacéo de inocentes nao ¢ simplesmente um risco como 0s ‘outros, contra o qual cada um deve se assegurar através de seu préprio poder de negociacio. Bla dé um golpe muito duro no erédito de uma instituigdo central, ajo prego & quase incalculével, ¢ acarreta graves e perversos efeitos ou “exte- ioridades” que deverio ser suportados pela sociedade, mesmo que os interesses fem curto prazo das duas partes no processo sejam preservados. Ao se instituir um processo puiblico instaurando direitos processuais e substanciais socializou- 531” Scalioter, Sepa J. "Criminal justice Disretion ata Reglatoty System", op, cits p75 52 Para uma anise do problema das “exerordadat”no conte ds plea bargaining er Sephen Slusho, “Plea Bangaining as Disaster”, 101 Yate Law furnal 1979, 1981-1991 (1992). [Antoine Garapon ¢ loannis Papadopoulos «0 isco de se ver inocentes no banco dos réus. A questio das “exterioridades” abre uma brecha no modelo economista da plea bargaining convocando, para participar da relagio contratual bilateral, o terceiro sob a forma de valores fociais ou de bens piblicos. Estes no tém preco, propriamente falando, mas produzem efeitos econdmicos amplamente difundidos na sociedade. ‘Outros criticos demonstram que a plea bargaining nio € racional, mesmo considerando os critérios do modelo econdmico do direito. A plea bargaining indus primelramente a um contexto de constrangimento (duress), viciando 0 consentimento do destinatirio da oferta de uma pena, ou seja, do acusado.%8 A ‘chamada “escolha" do acusado em aceitar o deal é, na realidade, iluséria, por- que o acusado & tentado a aceitar em bloco uma oferta “para pegar ou largar", sobretudo quando nao dispée de recursos financeitos ¢ ndo pode pagar um bom. advogado para negociar tm acordo melhor. Ora, para a jurispradéncia ameri ‘cana nenhum vicio de consentimento em razdo do constrangimento pode ser invocado, como podermos verificar na sentenga Bordenkircher v. Hayes.¥4 © promotor tinha, com efeito, proposto a Hayes que, s¢ ele aceitasse se declarar cculpado de um delito de falsificagio de documento, receberia uma pena de cinco anos de prisio; sendo seria requerida a aplicacio da lei para os delingten- tes reincidentes, o que provavelmente acarretaria ums pena de reclusio crimi nal perpétua. A partir do momento em que Hayes estava plenamente conscien- te dos termos da oferta e que o “constrangimento” no qual se encontrava néo cera de responsabilidade do promotor ~ que nio o havia cm absoluto ameagado =, mas sim uma conseq{igneia de sua propria ficha judicidria, a aceitagao da plea bargaining nio foi considerada viciada pela Cort. ‘Objetou-se igualmente que a plea bargaining ¢ um contra abusive (unconscionable contract) que ¢ estabelecido, no direito americano, em caso de retencio fraudulenta de informagées essenciais ou de grave desequilfbrio no poder de negociagao das partes.35 Na plea bargaining, todas as informagses titeis para a escotha do acusado passam necessariamente pela intermediagio de seu advogado, em conteto direto com os servigos do Ministério Pablico. Ora, ¢ sistema da plea bargaining induz os advogados seja & resignago seja, o que € pior, A conivéncia de interesses com o promotor. Stepheu Schulhofer demons ‘rou que no sistema americano existe com freqiiéncia uma divergéncia de inte- resses entre 0 advogado e seu cliente, assim como fortes incentivos financeirot BY Ver oer Soot & William J, Stunts, “Pen Bargaining as Contec, op cit, p. 1919-1821, BH Sentenga Bordenkircher v. Hayes, $34 US.357 (1978). $35. Um cana epic seria o conrace de adeso, Ver a sentenea dx Core Suprema de Nova Jerr Henninger + Bloomlelé Motor, In, 161 A, 24 68 (NT. 1960), em matéria de responsabilidad ‘cil em rzio de produs deficuosos, Julgarnos Estados Unidos ema Franca (Cul Juries Francesa © Common Law em uma Pesepectiva Comparada para que 0 advogado regule a questio de modo amigvel o mais rapidamente possivel e a baixo prego. A maioria das questdes negociadas através da plea bargaining concere aos acusados pobres, cujos advogados sio defensores palblicos remunerados ~ quando 0 sto ~ com base em indenizagées ajustadas de inicio eridiculamente baixas. A partir do momento em que as tarifaspraticadas silo as mesmas seja para os acordos amigaveis como para os processos, 0 defen sor pliblico no vé nenhuma utilidade marginal ~ ou, em outras palavras, no ganha nada a mais - em levar 0 acusado a ji’? Ele se dispensa, com isso, da obrigagio deontolégica de procurar e interrogar ativamente testemunhas de defesa, de preparar uma linha de defesa capar de passar pela prova do contra~ interrogatério (cross-examination) no processo, ¢ até mesmo da argumentagio final.88 O advogado tem, pois, interesse em aconselhar seu cliente a aceitar a primeira proposta do promotor. A partir dai, hé 0 risco de as informagbes for~ necidas pelo advogado ao seu cliente serem incompletas, 0 que afeta o equilf brio da negociago entre as duas “partes contratantes”. A plea bargaining agra- vaainda mais 0 problema — jf bastante sério — da representacao juridica insufi ciente dos pobres nos Estados Unidos. Se acrescentarmos & incompeténcia dos defensores pilblicos as capacidades limitadas de raciocinio e de julgamento de muitos acusados indigentes, & quase corto que haverd um mau acordo. A rela Gao entre advogado ¢ cliente nio é a relagéo contratual e voluntéria postulada pela teoria econdmica do direito, mas, sim, uma relagao de forga infestada de conto de nares jana explictadse que difimente pode er conto la por uma terceira instancia © obstéculo da teoria econémica do direito é finalmente representado pelo advogado de defesa, cujo comportamento nao corresponde de modo algum a seus ptessupostos. © que ¢ ainda mais preocupante se considerarmos que 0 advogado & a peca-chave do processo anglo-americano,5? que é ele que conduz ativamente todo o processo, jé que o juiz permanece & parte. A reunio de pro- ‘Stephen -Schulhofr, “Criminal Justice Discretion at a Regulatory 5 1 8. Regulatory System" op. cit, p.5¥-0,¢, do sean a “Pe Brinn a Cater opp 1981591. Vor em gm Alb 'W yy Rts The Dts rey’ Roe in ie ain B Yl ao 11957, rea nogio de “wilidede margin’, que tem sia oxigen on losofa ultra de Jeremy estan ve ifs epl p28 ce ese problema, ver Stepien f.Schuofer, “Efectve Asistance onthe Assembly Line", 13 New York University Review of Law & Socll Cage 197 140-143 (198). ™ Sobre papel der pratcante do dirito ingl na ht astoncmizagio ds comsn Iw cm ‘elagio an diveko romano, ver RC. van Caenegem,Jodges, Lepistors, ad Professors op. ct A pcan ove a de gue Iter to jae ram ln sh Common 20 paste gue o dra romano fo cra plo profesarss de dito co dite cs pel leiindr aps a Revolgio, eri p67 es. Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos vas, o interrogetério e © contra-interrogatério das testemunhas, as mogdes de processo, o ato de defesa inicial e a argumentagao final diante do jr, tudo isso 6 posto em movimento pelos advogados. Quais s4o as garantias iltimas da qua- lidade de suas contribuigées nesse sistema? Essencialmente duas. De um lado, a reputagio profissional com que os advogados se preocupam muito nos tribunais dos paises de common Jaw. A exceléncia profissional*® se verifica na maneita pela qual o advogado explora as miltiplas possibilidades que the sio oferecidas pelas regras processuais em common law. O capital de reputagio do advogado, embora néo quantificdvel, o incita fortemente a preparar cuidadosamente os seus casos. O segundo fator deve ser buscado no que diz respeito ao controle dos confrades, certamente mais rigido que na Franca. A preocupacio do advogado ‘com a sua reputagao profissional e a forte normalizagao das praticas pela “pres- io dos pares” (peer pressure) constituem 03 melhores antidotos contra a coni- véncia de interesses nas culturas de common law. Ora, esses dois reguladores rio fancionam no contexto da plea bargaining. Primeiramente, a maior parte dos “clientes” do sistema nao tem dinheito, o que induz uma justiga a duas velo- cidades: um sistema para os ricos, para os quais existe um verdadefro mercado de concorréncia, ¢ um outro sistema para os pobres, que ndo so propriamente clientes, mas usuarios de um sistema de assisténcia social, Além disso, a repu- tagio é adquirida mais na audiéncia pablica, que poe prova as qualidades pro- fissionais, do que nas obscuras negociacoes, inteiramente desconhecidas do piiblico, que ocorrem nos corredores do parquet ‘A teoria econémica do direito no deixou de identificar essa dificuldade, ‘que chama de problema dos agency costs # preciso encontrar um melo para que 0 mandatario (agent) seja incitado a agit em fungao do interesse de seu mandante (principal) e nao de seus préprios interesses. No contexto do dircito penal, esse problema nfo se apresenta unicamente entre 0 advogado (mandata- rio) ¢ seu cliente (mandante), ele esta igualmente presente entre o promotor € seus “clientes”, isto 6, a sociedade. Com efeito, no sistema mais difundido nos Estados Unidos, os promotores sio eleitos no nivel dos condados, das cidades e dos estados. Assim, 0 interesse prioritério do promotor ¢ a sua reeleigio ou, para falar em termos econdmicos, a maximizagio de sua maioria eleitoral, o que Alexis de Tooqueile observ gu nos Estados Unidos da América, sociedade que jamais conhe suo feudalisino os jursas (que ele denomina“eystas") conser a verdadeira classe aistocr tc da secede, eo eles que trmperam at adores da democrci; ver Aleis de Tooquevile, De 1a damecrti en Amérique. pate Il cap. VI “De ce qui tempe ax Brat Unis a tyrannie dela majorite’, in Oovvtes, Pris, Gallimard, col "BiblithtaedeIn Piiade", 199, p. 302-810, 410 problema dos "agency cost ao contexto do ples bargaining & abordado por Stephen | ‘Schulhofer, "Pla Bargaining a Disaster, op. et, p. 1987-1991, Julgar nos Estados Unidos e na Fraga (Cultura juries Francess¢ Common Law em uns Perspective Compared pode vir a determinar a sua “agenda’.#2 Assim 0 promotor racional postulado pela analise econémica corre o risco de ser mais estimulado por seu desejo de apresentar a seus eleitores um placar honroso de condenagées (pelo menos nos cas0s mais mididticos), de evitar que suas requisigées sejam negadas pelo tribu- nal, de manter boas relagdes com advogados influentes, ou ainda de freqiientar ‘05 meios do poder local do que pela preocupagio desinteressada em relacio a ‘uma boa administragio da justiga € & maximizagdo da taxa de dissuasio do sis- tema penal em longo prazo.#3 Em um sistema que permite que 0 Ministério Pablico negocie livremente e caso a ca30 06 acordos sobre a pena dos acusados hi 0 risco de indugao a concessies excessivas, a acordos feitos em virtude de razes puramente politicas ou, a0 contrério, de levar a0 tribunal casos que teriam beneficiado de ser objeto de uma mediagio ou de uma plea bargaining.# ‘Aos agency costs vem acrescentar-se o problema da incerteza dos efeitos issuasivos da plea bargaining sobre os delingiientes potenciais. Esse sistema, discriciondtio, semiconfidencial e gerado no caso-por-caso no Ministério Publi co, aumenta necessariamente a incerteza em toro da “tarif" penal que o delin- aiiente tem de pagar no caso de se decidir a passar 20 ato.45 Se o candidato & delingiéncia ¢ “riscofibico”, a dissuasio é aumentada por essa incerteza; por ‘outro lado, se os compradores de crime sao “riscéfilos” (0 que com freqiéncia & ‘© caso, principslmente entre os “menores”) a incerteza sobre a proposta final de ena, combinada com o poder discriciondrio total do promotor, diminui propor cionalmente 0 efeito dissuasivo do sistema penal. provavelmente por essa razio que, nesses titimos anos, o legislador, tanto o federal quanto 0 estadual, tende a instaurar sistemas inflexiveis de penas (centencing guidelines) assim ‘como penas mfnimas automaticas para certas categorias de infragdes.46 Se os problemas levantados pela plea bargaining sio tio importantes, por- {que entio nao aboli-la pura e simplesmente? Robert Scott ¢ William Stuntz tra- ‘zem uma resposta, sempre do ponto de vista de “direito e economia’, em favor da manutengao dessa institui¢io.4? Eles sustentam que, paradoxalmente, os 42D nogio de “agenda sering” Hxags da ordem do ds"), que conota a decisi de exatuit 08 nfo sobre'uma questo, ¢ central na socologa da direito« na cifcia politica americana. Ver, entre toutos, H.W. Perry J, Deciding to Decide Agends Setting in the United States Supreme Cour, Cambridge (Massachasets), Harvatd Univesity Pret 1991, 9.57. 43 Ver no geral, Allert W. Alschler, "The Prosestor' Roe in Pes Bargaining”, 36 University of Chicago Law Review 50 (1968), ‘44 Sobre ese problemtcs, ver Stephan J. Schulhofr, “Criminal Justice Discretion atu Regulstory Syston”, op. cit, p 32 e “Plea Bargaining a8 Disses”, op city p 1987-1986, 45 Ou, expresco om termos econdancos, se ele decidir “eomprar” um crime, 46 Ver Sephen jSchulhofr, "Criminal Justice Discresen a2 Regulatory System”, op cit, p48. Sobreos sentencing uidelines, wer if, capseloX,p. 255 49° Robert E. Sot & William Stunts, op cle p. 1982-1934, ‘Antoine Garapon ¢ Ioannis Papadopoulos efeitos de uma aboligao da plea bargaining se fariam sentir, sobretudo, em rela~ 0 aos inocentes e aos pobres. Ela aumentaria, com efeito, o niimero de pro- ceessos €, por conseguinte, também a taxa de erros judiciérios, pelo menos na ‘média, Para Seott e Stuntz, 0s inocentes que se recusam a declarar-se culpados, que vao a processo e recebem finalmente as penas mais pesadas sio as verdadei- ras vitimas da situagéo atual; além de tudo perderam toda capacidade de influir sobre 0 processo. Geralmente os promotores s6 realizam investigacdes se esti- ‘marem que tém boas chances de ganhar o processo. Ora, 2 partir do momento fem que © nimero de erros judicidrios aumenta em razo da multiplicagio dos processes (sem 0 acréscimo proporcional do orgamento da justiga), a possbil dade de absolvicio torna-se menos custosa, o que levard os promotores a tomar mens precaucdes antes de encaminhar os inocentes ao tribunal. Enfim, a abo- ligdo da plea bargaining e © aumento consecutive do ntimero de processes reforgario o poder dos advogados sobre os seus clientes, jf que as competéncias dos advogados si0 mais necessérias por ocasifo de um processo do que em rela- io a um plea bargaining, Haveria mesmo um problema de justica distributiva, ja que a abolicio da plea bargaining e 0 aumento dos processos reduziriam automaticamente © riimero absoluto de inocentes condenados, mas isso ao prego de condenagtes mais severas para aqueles que, todavia, o fossem. Para Scott ¢ Stuntz, & mais justo ver um maior mimero de inocentes sofrendo penas mais leves em conse- qiiéncia de uma plea bargaining do que ver menos inocentes condenados @ penas mais severas ao termo de um processo, porque ¢ sempre mais justo difun- dir 0 mais amplamente possivel os prejutzos, sobretudo quando eles sfo injus- tos, © argumento € bastante provocador e, na verdade, absurdo. Se levarmos raciocinio desses autores até as tiltimas conseqiiéncias, o acusado inocente, a quem seria interditado todo bargain, mas que seria absolvido pelo tribunal, se encontraria,entretanto, numa situagao pior do que se tivesse disposto do poder de negociar sua declaragao de culpal Ele teria sido constrangido a enfrentar 0 rigco de um erro judicidrio na audiéncia e o de uma pena mais severa, em lugar de optar por uma plea bargaining sem correr esses riscos.*8 habeas-corpus e os condenados inocentes © que & a inocéncia? A resposta varia segundo as culturas juridicas. Enquanto no direito francés trata-se de uma questdo puramente factual, no {Stephen Schuthofer critics ena ese de Soot e Sunt ver Stephon J. Schulhofer, “Plea Bargaining ss Disaster, op cit, p 19811987, Tulger nos Bxadoe Unidos a Hranga Cultura Judie Francesse Common Law ern uma Peripectiva Comparada direito americano tudo depende do tipo de declaragio inicial escolhida pelo acusado, Se ele se declarar “culpado” ou nolo contendere, a questio seré consi- derada julgada e se passard diretamente 4 determinago da pena; se ele se decla- rat “nio culpado”, a questio de sua inocéncia seré amplamente tributaria das regras processuais juridicas que sera preciso seguir para que o jari dé um yere- dicto de condenasao.# Para a cultura juridica francesa, a questio da :nocéncia é direta: ela se resume & questio de saber se tal pessoa cometen ou nao uma infracio penal Certamente & preciso respeitar 0 processo no interesse de uma boa administra~ fo da justica; mas 0 seu objetivo é fazer surgir a verdade nua na audiéncia, 0 resto ndo passa de acessério, Na common law, a inocéncia se apresenta de outro modo. Existem, alids, dois modos: a “inocncia factual" (ou nua) (actual ou bare innocence) e a “inocéncia juridica” (Jegal innocence). A primeira ¢ definida como “a auséncia de fatos que oferecem a base da condenagao de um acusado", 80 passo que a segunda é definida como “a auséncia de uma ou de varias bases processuais ou juridicas para a mamutengdo de uma pena pronunciada contra tum acusado".5? Para o direito americano a inocéncia se resume®! & persisténcia deuma ditvida razodvel a0 final de um processo oGfitraditsrio'diante de um tri bunal. A inocéncia é, nesse caso, sinénimo da impossibilidade processual de estabelecer a culpa de alguém. Tudo 0 que © due process of law (0 processo equanime) exige & que seja impossivel sustentar legalmente a culpa de alguém para além de uma ditvida razodvel, ao termo de um processo durante o qual 0 acusado terd tido a possibilidade de exercer plenamente seus direitos & defesa.5? Em um sistema juridico que se concentra prinepalmente na observincia de regras processuais estritas para determinar a inocéncia ou a culpa de uma pessoa, a “inocéncia factual” pode apresentar graves dificuldades quando se revela a posteriori, muito tempo apés 0 estabelecimento formal e definitive da culpa de um acusado ao termo de um processo equinime. O problema torna-se verdadeiramente explosive no caso de condenagio a pene de morte em razio do catéter irreversivel desta pena. Verificou-se, em 1992.59 que nada menos que vinte e trés inocentes foram executados nos Estados Unidos durante o sécu Sobre questo das repes do proceso, que é uma constante em cman lw, ver inf expt V. 50 Encontamas esas definigbes no dim jridico Black, que tere antoridade Ver Bryan A. Garnet (ed), Blak’ Law Dicionnay, eS. Pau invests, Wer Group, 199, verb “ino 51. Se, evidentemente, no houve ples barging slads por uma declrug de culpa 52 Sobre o esttuto de prove "pars ale dle wind eivida rzoivel theyond 2 reaonable dou), vee ina, epitalo Vp 130, 58 Ver o esudo de Michael 1, Radelt, Hugo Adam Bods & Constance E. Putnam, in Spite of Innocence Rrroneous Canvierons in Capital Cesee, Boston (Massiciictts), Northeastern University Pres, 1992, . 282-356, que obeeve grande repercusio, Antoine Garapon ¢ Toannis Papadopoulos lo XX. Na maioria dos casos, provas que inocentavam detentos no “corredor da morte” foram descobertas em conseqiéncia de novos testemunhos, da retrata- ao de testemunhas de acusagao, da confissio do verdadeiro culpado ou enfim ~e isso com caila vez maior freqiiéncia ~ através de testes de DNA que nio exis tiam por ocasido do processo, Muitos estados americanos, porém, s¢ encontram enredados em prazos restritivos que impedem uma alegagio de inocéncia fac- tual decorridos alguns anos do julgamento definitivo.5+ Uma tnica abertura é possivel para se prevenir contra os erros judiciérios: 0 habeas corpus. O direito americano transformou progressivamente a natuteza ¢ 0 objetivo original do habeas corpus. Na common law inglesa, da qual o habeas corpus foi desde logo um dos pilares, esse processo permitia 0 controle, por parte de um juiz, de toda restrigdoilegal ou arbicréria da liberdade individual pelo poder executi vo. O habeas corpus autorizava o juiz inglés a se implicar em uma boa adminis- tracéo da justica (inclusive corrigindo a qualquer motnento eventuais ertos judi- cidrios). Ora, na culeura juridica americana, o centro de gravidade do habeas co ‘pusse deslocou furtivamente, tornando-se, em vez. de garantia tltima da liberda de individual, um remédio 2 posteriori para a violacéo dos direitos constitucio- nalmente garantidos das pessoas. Em outras palavras, 0 habeas corpus americano tornou-se uma via de recurso para vencer a rigidez das regras processus. No direito americano, o habeas corpus é normalmente um recurso do direito que obriga a autoridade estatal que detém uma pessoa a Jevé-la diante de um tribunal a fim de assegurar que sua detengio nio infringe a Constituiga0 nem as leis federais. No entanto, o habeas corpus nao é uma via de recurso ‘como as demais: € wn meio de ataque “culateral” contra uaa condenayio a un pena de detencio ou de execucao capital que se revestiu da autoridade da coisa julgada.% Para compreender 0 seu papel, serd stil passar pela concepgdo das vias de recursos na cultura de common law. A principio, o veredicto de um juiri no pode ser objeto de uma apelagio de novo que reexamine os fatos € 0 direito em audiéncia piblica: 6 possivel um exame das quest6es de direito suscetiveis de por em dtivida o cardter equi- nniune das regras processuais seguidas em primeira instincia ou em apelagio. Na common law, a questo da culpa ou da inocéncia ¢ tradicionalmente regulada ‘em primeira inst&ncia, no nivel do trial, que é um momento tinico e solene que ‘concentra todas as energias ¢ 0s recursos dos atores do processo.56 Observa-se SA Veras divers lopslges do etados nese matéra na sentenca Hemera v Cling, 505 US. 380, 410 n. 101982), que disctiremos mais adie 55 Ou se, aps enor as vias de recursos “dizetas" come apelagi. 36. Vee Merrere. Collins 505 US. 390, 401 (1993), que etomaa formelagso de semtonga Wainwrigth Sykes, 433 US, 72, 90 (1977) 0 trial dante de ua ebual de Estado 6am aconteimento deci= Julgar nos Estados Unidos ea Franca (Cultura Juridica Francesa © Cemman Lawem uma Perpectiva Comparada aqui uma nitida diferenca na temporalidade do processo francés e americano. © processo francés é de algum modo sempre adiado, postergado; ele é um elo na longa cadeia do estabelecimento da verdade judicidria, uma etapa precedida de um longo processo de instrugdo anterior seguido de uma série de vias de recursos posteriores, A palavra que diz o direito na Franga nunca é definitiva, clase encontra constantemente um passo a frente de s: mesma, Na cultara ja dica americana, por outro lado, a verdade judiciéria tem uma ancoragem tem- poral muito mais forte e evidente: a culpabilidade ou a inocéncia é pronuncia- da no momento preciso do veredicto, no final do tial. A Double Jeopardy Clause da Quinta Emenda & Constituigao dos Estados Unidas’? afirma clara- mente que um veredicto de absolvigio em primeira instancia ¢ irtevocavel. Acuada entre, por tum lado, os procedimentos da determinagio da verda- dee, por outzo, a irreversibilidade do julgamento, a ctltura judiciétia america- na precisava criat um antidoto contra os “grandes erros judiciérios" (findamen- ‘al miscarriages of justice). Daf a exploracio do habeas corpus, que serve de cescapatéria para a rigidez processual e temporal da common law. No federal mo americano, o caminho do habeas corpus torna-se mesmo tentacular em razio da multiplicagdo das instancias de controle jurisdicional das condenagées penais. Ele se serve das duas ordens de jurisdi¢do cue existem nos Estados Unidos, a dos estados e a do Estado federal. Apés esgotar as vias de recursos diante das jurisdigées do Estado e, depois, diante da Suprema Corte (cujo acio- namento, entretanto, é discricionério), o condenado pode intentar um pedido de habeas corpus que ser primeiramente examinado pelos diferentes graus de jurisdicio do estado e, depois, pelos diferentes escaloes da jurisdicio federal (tvibunais de primeira instincia e cortes federais) e, em iltima instincia, pela Suprema Corte (no caso de aceitagio do pedido).58 Além disso, o julgamento de uum pedido de habeas corpus nunca ¢, em principio, irrevogivel: se, por exem- plo, as condigées de detencao ou os meios de execusio da pena deixam de estar conformes & Constituigéo ou as leis federais em razdo de uma mudanga de juris- prudéncia das cortes federais, o detento pode entrar com um novo pedido. Em ‘Svo-e de grande impoctinca’, i que “os resume de soiadadkeaiveram concenvades hase momento e ness gar afi de qu sejadecidia, ns ies da fliblidade humana, «questo da ‘ulpbidade ou dainocénca de unde evs cidadtoe™ Sobre trelcomo um momento nic, vet Jia, capt IV, 57 Chis do plo pergo" equivalent ao principio jurdico continental oon bin idem: “Ninguéon ‘eri expos, pelo mesmo crime, soles due weres ma smaaga ga ven ou to seu copa 58 Pelasentengs dada ao cso Brown v. Allen, 44 US. 43 (1953), a Suprema Core smo oscen 2 do habeas corpus federal aurorizando os wibunasfederaia rexstinas de novoosjlgumenos es tribonas dos estads relatvos aoe dzits eanineionskment prontidos dos acusadon, ‘Antoine Garapon e Toannis Papadopoulos ‘matéria de pena de morte, sobretudo (em que o detento evidentemente nao tem ais nada a perder), freqiiente vermos varias séries de requerimentos de habeas corpus. ‘A questio da inocéncia revela assim um primeiro paradoxo da common Jaw, principalmente em sua versio americana, que € uma cultura ao mesmo tempo rigida e maledvel em suas regras processuais, limitada e aberta em sua temporalidade, A principio, os acusidos tém a sua sorte fixada desde a leitura da primeira sentenga e, todavia, a multiplicacio das garantias processuais © a imbricagio das ordens de jurisdicao fazem com que os prazos da justica penal sejam, possivelmente, os mais longos do mundo ocidental. Os abjetives de “finalidade” (finality) dos processos contenciosos e de economia dos recursos judiciarios sio levados a sério, mas esto em tonso permanente com a busca de Justiga substancial que ordena, de algum modo espontaneamente, mecanismos para contornar de modo equinime a rigidez das regras juridicas.6° A inocéncia aponta igualmente para um outro paradoxo: a cultura juridi ‘ca americana € simultaneamente respeitosa e desdenhosa em relagdo aos fatos No pais onde nasceu 0 pragmatism filoséfico, o fato é rei; nenhuma constr ‘¢20 metafisica que ndo tenha ligacio com a realidade é aceitavel. E, no entan- to, 08 fatos “nus” no sio reconhecidos como tais (cognizable) pelos tribunais, como atesta o exemplo da inocéncia no direito de habeas corpus: ela deve estar revestida do manto do direito, como ilustra o caso Herrera v. Collins de 1993.1 Nessa sentenca, a Suprema Corte lembra que o papel das cortes federais estatuindo em habeas corpus nao é 0 de comgir exros de fato, ou seja, errosjudi-

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