04 Entrevista
Vik Muniz fala de Stéphane Mallarmé em montagem a partir 38 Turismo Literário
A região da Provença, berço
de ilustração de Cárcamo
seus ilusionismos da do trovadorismo francês
representação
14 Crítica
43 Capa/Dossiê
Lalo de Almeida/Folha Imagem
21 Criação
Conto de Lizete
64 Do Leitor
Cartas, fax e e-mails dos
Mercadante Machado leitores da CULT
24 Ensaio
Reprodução
A segunda parte do texto
de João Alexandre Barbosa
O artista plástico Vik Muniz
sobre Conhecimento proibido,
do crítico Roger Shattuck
10 Biblioteca Imaginária
Lista das melhores obras em
30 Leituras CULT
Os destaques entre os
língua inglesa abre debate lançamentos de livros
sobre o cânone do século
13 Na ponta da língua
As inquietantes e 31 Memória em Revista
Excertos de O Brasil
polêmicas flexões continua..., livro de Álvaro
do infinitivo verbal Moreira publicado em 1933 O poeta Manuel Bandeira
em foto da década de 40
novembro/98 - CULT 1
Uma série de coincidências norteia o Dossiê desta edição da
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA CULT. Ou talvez seja mais apropriado falar em acaso para dar
NÚMERO 16 - NOVEMBRO DE 1998
Diretor
conta das efemérides aqui reunidas: há cem anos, em
Paulo Lemos
Gerente-geral
setembro de 1898, morria Stéphane Mallarmé; há trinta,
Silvana De Angelo
Editor e jornalista responsável
em outubro de 1968, perdíamos Manuel Bandeira. Os
Manuel da Costa Pinto MTB 27445
Editor de arte
dois poetas, é claro, nunca se conheceram, mas a
Maurício Domingues
prosa envolvente de Bandeira dedicou a Mallarmé
Editor-assitente
Bruno Zeni
uma homenagem em forma de conferência,
Diagramação e arte
Rogério Richard
José Henrique Fontelles
proferida em 1942, ano do centenário de
Adriano Montanholi
Yuri Fernandes nascimento do poeta francês. É esse texto que
Eduardo Martim do Nascimento
Produção editorial a CULT publica no Dossiê, unindo as pontas
Danielle Biancardini
Revisão dos dois centenários mallarmaicos. A
Nilma Guimarães
Claudia Padovani trajetória de Mallarmé é uma das mais
Colunistas
Cláudio Giordano singulares da história da literatura. Começa
João Alexandre Barbosa
Pasquale Cipro Neto pelos primeiros sonetos parnasianos, passa
Colaboradores
Heitor Ferraz pela fase simbolista e culmina na
Iury Bueno
Ivan Teixeira
J. Guinsburg
dilaceração da visão horrível da obra
Júlio Castañon Guimarães
Len Berg pura. A busca do Absoluto, da obra
Lizete Mercadante Machado
Mônica Cristina Corrêa pura como uma espécie de religiosidade
Rosie Mehoudar
Capa
Ilustração de Cárcamo
secular, levou Mallarmé ao que já foi AO LEITOR
Produção gráfica considerado um fracasso de realização B r u n o Z e n i
José Vicente De Angelo
Fotolitos poética, Un coup de dés, e aos inúmeros
Unigraph
Circulação e assinaturas textos inacabados (dentre os quais está
Rosangela Santorsola Arias
Camilla Aparecida Lemme Épouser la notion, que a CULT publica
Adilson Roberto Strutsel
Dept. comercial/São Paulo nesta edição, com tradução inédita de Júlio
Idelcio D. Patricio (diretor)
Valéria Silva
Elieuza P. Campos
Castañon Guimarães). O fracasso do
Dept. comercial/Rio de Janeiro
Milla de Souza (Triunvirato Comunicação,
Lance de dados, porém, revelou-se profético
rua México, 31-D, Gr. 1403, tel. 021/533-3121)
Distribuição em bancas
com relação aos rumos da criação não só
FERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/A
Rua Teodoro da Silva, 907 - Rio de Janeiro - RJ literária, mas artística como um todo, no
CEP 20563-900- Tel/fax (021) 575 7766/6363
e-mail: Contfc@chinaglia.com.br século XX. Mallarmé encarnou (e antecipou)
Distribuidor exclusivo para todo o Brasil.
Assinaturas e números atrasados dilemas e novas possibilidades hoje tão pró-
Tel. 0800 177899
Departamento financeiro ximos: crise do discurso e do alcance da lingua-
Regiane Mandarino
ISSN 1414-7076 gem, conjugação entre palavra e imagem, deslo-
CULT Revista Brasileira de Literatura camento do contexto, interferência dos meios e con-
é uma publicação mensal da Lemos Editorial e
Gráficos Ltda. Rua Rui Barbosa, 70,
Bela Vista São Paulo, SP, CEP 01326-010
seqüente incorporação do acaso e do processo no
tel./fax: (011) 251-4300
e-mail: lemospl@netpoint.com.br fazer artístico, dissolução dos limites de gênero o que
se afigurava como uma crise, ou como fim das possibili-
dades criativas, ainda nos surpreende pela infinidade de ca-
minhos que engendra. Reler Mallarmé ensina que o novo o que
perpetua e reinventa a história é um imperativo da criação artística.
2 CULT - novembro/98
Kiko Ferrite/Revista Azougue Filosofia, literatura e psicanálise Mito e poesia 1
O Centro de Estudos da Cultura, vincu- O IEA (Instituto de Estudos Avançados
lado ao programa de pós-graduação em da USP) promove nos dias 4 e 5 de
comunicação e semiótica da PUC-SP, novembro, das 9h às 13h, no Centro de
promove este mês um ciclo de palestras Estudos Japoneses, o encontro Mitopoé-
sobre o tema Filosofia, literatura e psica- ticas: Da Rússia às Américas, com
nálise. As relações de interdisciplinari- conferências e debates sobre a importância
dade entre esses campos serão discutidas dos mitos e das narrativas arquetípicas para
nos dias 7 e 21 de novembro na PUC-SP o pensamento e para a literatura contem-
por Bento Prado Júnior, Berta Waldman, porâneos. A primeira parte do programa
Leda Tenório da Motta, Arthur Nes- (dia 4) vai homenagear o lingüista russo
A psicóloga e poeta
trovski, Cleusa Rios Passos e Maria Rita Eleazar Meletínski, que completa 80 anos
Maria Rita Kehl
Kehl, entre outros. Os debates serão en- em 1998. Sua obra será analisada por
cerrados com a leitura de dois textos iné- Serguei Nekhliudov (Novas tendências
ditos de Modesto Carone. Informações das ciências humanas na Rússia), Jerusa
sobre a programação com Márcio Pires Ferreira (Meletínski e as poéticas
Seligmann-Silva, pelo tel. 011/813-4531. da oralidade), Aurora F. Bernardini
(Meletínski, Campbell e a universalidade
Bienal de Poesia dos mitos), Paulo Bezerra (Meletínski
A Secretaria de Cultura de Belo Hori- uma poética histórica da narrativa), Arlete
zonte promove de 3 a 13 de novembro a I Cavaliere e Homero de Andrade (Os
Bienal Internacional de Poesia, que vai arquétipos literários) e Boris Scnai-
N O T A S
V I K
M U N I Z
4 CULT - novembro/98
Nunca fui muito chegado a definições.
Prefiro trabalhar no espaço que separa uma
definição de outra. É esse espaço que lhes
dá forma diz o artista plástico Vik Muniz,
cujos trabalhos estão expostos no núcleo
de Arte Contemporânea Brasileira da XXIV
Bienal de São Paulo, que vai até o dia 13 de
dezembro. A frase é ambígua, pois indica
como o artista aguça e conforma o olhar
crítico justamente ao trabalhar com suas
fraturas, suas lacunas e corresponde às
ambivalências do trabalho de Vik, um artista
que, ao fotografar desenhos feitos sobre
fotografias, realiza uma prospecção en
abîme dos ilusionismos da representação.
Tal desconstrução do modelo pictórico e
fotográfico possui não apenas implicações
estéticas, mas também um forte significado
político como pode ser visto nas obras
expostas na Bienal, no livro Seeing is believing,
recém-lançado nos EUA (leia texto na página
9 ), e na entrevista com Vik publicada a seguir.
LEN BERG
novembro/98 - CULT 5
Fotos/Galeria Camargo Vilaça
CULT No San Francisco Examiner, em 1990, D. Bonetti já
observava que quase todos os seus trabalhos questionam a arte
enquanto uma entidade separada da vida. Você pode comentar?
Vik Muniz Trabalho com a idéia de representação, essa
tautologia já está implícita. O que importa frisar é que a arte
representativa, mesmo sendo uma cópia separada da vida,
encontra sua força maior quando se altera, na percepção do
espectador, as próprias definições que separam a vida de suas
cópias. A função do elemento ilusório na arte passa a ser a de
uma reflexão sobre a visão. Diante de uma janela, vejo a
paisagem. Diante da pintura de uma janela, sinto que vejo uma
paisagem. É essa separação da imagem que nos põe em contato
com os mecanismos da construção da realidade.
CULT Seu trabalho não é apenas fotografia, não é escultura
mas depende dela, não é mais desenho. Em mais de uma mostra
estavam os pedestais vazios. É uma instalação?
V . M . Eu me vejo como um artista plástico super-
tradicionalista e um fotógrafo ainda mais. É a profana união
dessas duas coisas que dá ao meu trabalho um caráter
contemporâneo. Existe um hermetismo no meu trabalho que
faz com que eu sempre procure estar entre essas duas coisas.
Nunca fui muito chegado a definições. Prefiro trabalhar no
espaço que separa uma definição de outra. É esse espaço que
lhes dá forma.
CULT Sugar children é um novo caminho? Ou apenas uma
variante dos trabalhos anteriores? Elas podem ser vistas como
um comentário sobre a condição humana.
Sem título de 1998, obra do artista plástico Vik Muniz
6 CULT - novembro/98
V.M. Um comentário se torna político por força de sua
intepretação. Meu principal interesse nessa série foi dar uma
identidade material à sintaxe da fotografia, trocando cada
pontinho de retícula por um grão de açúcar. A relação entre a
câmera e o objeto fotografado continua fiel aos modelos
estabelecidos nas séries anteriores: existe uma relação
extremamente intuitiva e pessoal na escolha e no tratamento
dos temas. O que fez de Sugar children um trabalho político tem
mais a ver com os clichês sobre a maneira como crianças do
Terceiro Mundo são representadas do que com minhas próprias
intenções em relação às crianças.
CULT Como se dá esse processo perceptivo a ilusão da
fotografia que você chamou de curto-circuito semântico?
V.M. Um dos grandes desenvolvimentos em psicologia da
percepção e lingüística foi a criação do conceito de formas
ambíguas pela Gestalt, ou teoria da forma. O cubo de Necker
ou o vaso de Rubin, por exemplo, nos indicam que existem
formas em que vários significados podem coexistir, mas tam-
bém que somos capazes de computar um significado de cada
vez, chegando ao extremo de até poder escolher entre um e
outro através de uma mudança de atenção. A fotografia pare-
ce escapar dessa ambigüidade em função de sua fina sintaxe
e precisão. Ela se torna transparente e nessa transparência é
que esconde sua estrutura como artifício. Meu trabalho tenta
devolver ambigüidade à fotografia por meio de um duplo
negativo ilusionístico. O espectador pensa que vê uma foto,
quando na realidade ele vê uma foto de um desenho de uma
foto. Esses curto-circuitos oferecem a ele uma oportunidade
Balanço, obra realizada por Vik Muniz em 1995
novembro/98 - CULT 7
Na imagem da
esquerda, 6000 yards
(light house),
de 1995. À direita,
Eleven eggs, de 1997.
de atualizar sua atitude em relação à realidade, que por sua V.M. Muito dela existe em função dessa separação. Há até
vez se transforma continuamente. aquele samba irônico, gravado por João Gilberto, que fala da
CULT O espectador percebe o curto-circuito, ou depende de madame que não gosta de samba. Se isso acontece na música,
uma percepção mais treinada? imagine nas artes plásticas. Não é lindo que a música popular
brasileira, embora sendo popular, seja também respeitada
V.M. Sempre admirei artistas cuja obra tivesse appeal não pelos mais sofisticados críticos? Isso acontece porque ela tem
somente sobre determinado grupo de amantes da arte, mas tam- uma estrutura formal completamente voltada ao prazer dos
bém a pessoas que nunca tiveram uma educação artística. Esses sentidos. Mas é também capaz de transmitir uma profundidade
artistas dirigem seus trabalhos ao intelecto no sentido amplo, intelectual muito grande. Há um outro samba de João Gilberto,
não a uma faixa especializada da cultura, que, por força de rece- Oba-lá-lá, que se você decidir trocar a letra pela teoria da
ber sempre o mesmo tipo de sinais, está saturada de vícios e relatividade de Einstein, continuará bom e a teoria melhor ainda.
maneirismos. Meu trabalho quer estimular idéias em todo aque- Existem mensagens e também a condição formal, que dá a essas
le que tiver um olho. Essas idéias podem ser interpretadas do mensagens os seus significados. Apreciar o prazer formal da
ponto de vista filosófico ou de puro entretenimento. Elitismo teoria é privilégio de alguns, para gostar de samba é só ter
só serve para separar, cristalizar e reduzir. ouvidos. A música brasileira vive ensinando coisas.
CULT Mas a arte contemporânea continua divorciada do Len Berg
espectador comum. jornalista e crítico de arte
8 CULT - novembro/98
Jogos semânticos com humor e inteligência
As cinco enormes fotos de crianças Foi o crítico Andy Grundberg que publicou,
abandonadas, do artista plástico paulistano Vik na revista Artforum, uma das boas incursões pelo
Muniz, na XXIV Bienal de Arte de São Paulo, trabalho de Vik na imprensa americana. Ele
são o resultado de uma performance, com direito comenta sobre Sigmund (retrato de Freud em
a manipulação de lixo, varredura de rua, sobre grandes dimensões, desenhado com xarope de
fotos originais, sobre uma mesa de luz. Parte chocolate sobre uma superfície plástica, que Vik
desse rescaldo urbano, coletado depois de um lambeu depois de fotografar): Por certo,
baile de carnaval, foi, então, lenta, Sigmund não é apenas uma fascinante tradução
perfeccionisticamente removido até devolver a de procedimentos e materiais alfinete em lugar
imagem das crianças. Aí Vik fotografou o de caneta, xarope em lugar de tinta, plástico em
desenho. As fotos realçam os traços corporais, lugar de papel mas também o retrato do pai da
em poses clássicas, um comentário erutido sobre psicanálise, cujo rosto inconfundível é não só
o vocabulário da pintura renascentista do século prontamente identificado mas traz à tona de
XVIII. imediato a história da psicanálise, uma
Elas integram o que Vik, radicado em Nova descoberta que marcou este século. Diz mais,
York desde 1983, denominou Aftermath, ou citando Vik: Os retratos com chocolate
Conseqüências, fotos que tomam como ponto de começaram com o material e evoluíram para
partida um interesse sobre a estrutura de imagens uma busca de temas apropriados. Freud tinha
políticas. Brotaram de uma série anterior, Sugar tudo a ver porque a peça lidava obviamente com
children, ou Crianças de acúcar, instantâneos sacados desejo e representação. Todo mundo que
em férias na ilha de Saint Kitts, no Caribe, e conheço gosta de chocolate, mas é difícil explicar
fotografados depois de meticulosamente cobertos porque se gosta do sabor de alguma coisa. A
por açúcar granulado, até que se esboçassem psicanálise foi criada para lidar com problemas
rostos de negros caribenhos. dessa natureza, para dar sentido a emoções,
Nem Conseqüências nem Crianças de açúcar instintos e sensações.
sobreviveram após o ato fotográfico. Uma vez Diluição de fronteiras entre técnicas distintas,
clicados, os desenhos foram destruídos, como jogos semânticos em que humor e inteligência
em séries anteriores, que vêm sendo realizadas desafiam, à maneira de Marcel Duchamp, o
por Vik nesta década. Nem suas esculturas em espectador a participar do ato criador, aliados a
arame ou as imagens urdidas com fios de costura citações bem sacadas da história da arte são
nelas ele copiou pinturas de Corot, Goya ou De cima para baixo:
elementos constitutivos da produção de Vik
desenhos sobre areia como fez Joseph Beuys Sigmund (1997, da série Muniz, e podem ser apreciados também com o
Pictures of chocolate),
um dia existem mais. Valentina, the fastest (1996, lançamento do livro Seeing is believing (Ver é
Suas mostras de fotografias em que pedestais série Sugar children)
e Baudelaire (1998)
crer), na abertura de sua exposição no
vazios, reservados aos objetos fotografados mas International Center for Photography, em Nova
destruídos, assinalavam sua ausência atentavam York, inaugurada em setembro. Seeing is believing
na realidade para o fato de que a ele interessa mais traz textos de Charles Stainback, curador da mostra
o registro fotográfico de suas peças, pois eles no ICP, que entrevista longamente o fotógrafo, e
falam mais sobre a natureza da representação. Mark Alice Durand.
A destruição dos modelos após a fotografia Seeing is believing Este livro traça uma linha que conecta a
justifica a essência do ato fotográfico em sua Charles Stainback confusa diversidade da minha produção, dando
relação com o tempo e enfatiza o caráter e outros ao espectador a possibilidade de compreender
performático do meu trabalho, disse Vik em Arena Books (EUA) como uma determinada obra se relaciona ao resto
entrevista à CULT, acrescentando que a 180 págs. US$ 80 do trabalho como um todo, disse Vik à CULT
escultura, o desenho e as peças representam e À venda na Galeria Camargo nesta entrevista, que começou em Nova York e
Vilaça (São Paulo),
sempre vão representar a armação estrutural onde tel. 011/813-5594,
terminou em São Paulo, em meio a fax e ligações
o meu trabalho fotográfico se desenvolve. fax 210-7390. telefônicas. (LEN BERG)
novembro/98 - CULT 9
O cânone
do século
João Alexandre Barbosa
É possível que, a partir de agora, House, buscando, com ela, retomar as curioso volume de ensaios, intitulado The
comecem a aparecer os vários resumos vendagens espantosas da Modern rise and fall of the man of letters. A study of the
daquilo que o século XX foi capaz de Library; e não é, por isso, sem coerência idiosyncratic and the humane in modern
oferecer à tradição literária. Um exemplo que tenha sido o New York Times o literature (The Macmillan Company), cujo
disso é a lista dos cem melhores romances em primeiro jornal a publicá-la, fazendo, por primeiro capítulo é um rico texto sobre o
língua inglesa do século XX, preparada por outro lado, com que a livraria virtual nascimento da resenha crítica em jornais
um grupo de escritores reunidos sob a Amazon.com logo abrisse um site especia- e revistas (The rise of the reviewer),
égide da Modern Library, hoje parte da lizado nas cem obras listadas. assim como de dois volumes antológicos
poderosa Random House, especializada (Diga-se, entre parênteses, que, se não para a Oxford University Press (The Oxford
em publicar clássicos da literatura daquela chega aos cem por cento, está muito perto book of aphorisms e The Oxford book of essays),
língua desde 1917, e por onde se nota que disso o número das obras já traduzidas no além de ter sido o editor do próprio Times
o Ulisses, de James Joyce, figura em Brasil e uma, pelo menos, com um título Literary Supplement entre 1974 e 1981 ,
primeiro lugar e que os outros quatro estapafúrdio, quando se traduziu o este volume contém aquilo que de mais
primeiros são O grande Gatsby, de F. Scott romance de Graham Greene, The heart of importante foi publicado no suplemento
Fitzgerald, Retrato do artista quando jovem, londrino, sejam textos completos ou
do mesmo Joyce, Lolita, de Vladimir excertos de ensaios, sobre a literatura a que
Nabokov, e Admirável mundo novo, de se pode chamar de moderna na área anglo-
Aldous Huxley. americana ou mesmo mais largamente
Como todas as listas desse tipo, esta é européia e com repercussão nos países de
muito discutível e o leitor pode ficar se língua inglesa. E o maior interesse, para o
perguntando, por exemplo, por que o leitor de hoje, está não apenas nos próprios
grande livro de William Faulkner, The textos ou nos excertos publicados, como
sound and the fury, aparece em sexto lugar, Italo Svevo Ezra Pound nos autores que são objeto das resenhas e
ou mesmo o notável e dostoievskiano que, vistos de hoje, constituem, por assim
romance de Ralph Ellison, Invisible man, the matter, que é o quadragésimo da lista, dizer, a tradição moderna por excelência.
está apenas em décimo nono na lista. por O coração da matéria!) A própria estrutura do livro já indica
De qualquer modo, não são muitas as Mas se o leitor desejar uma orientação este sentido de escolha operada pelo tempo:
literaturas nacionais que podem oferecer crítica por entre aquilo que se fez, pelo menos são quatro partes, em que a primeira,
um conjunto de obras tão significativas em língua inglesa, na literatura do século intitulada Twelve writers reviewed, coleta
dentro da literatura do século XX, ainda XX, há um livro que reputo essencial. textos sobre W.B. Yeats, Ezra Pound, D.H.
que, para completar o número redondo Refiro-me a The modern movement: A TLS Lawrence, James Joyce, T.S. Eliot,
dos cem, tenha que incluir o inexpressivo companion (The University of Chicago Wyndham Lewis, Virginia Woolf, W.H.
e enxundioso James T. Farrell, de The Studs Press) que reúne textos publicados no Auden, Marcel Proust, Thomas Mann,
Lonigan trilogy, ou o lacrimoso James Times Literary Supplement desde a sua criação, Rainer Maria Rilke e Franz Kafka; a
Jones, de From here to eternity. em 1902 (uma carta de W.B. Yeats), até 1989 segunda, International focus, trata de
Não é, certamente, uma lista crítica e (um poema de Seamus Heaney). Marianne Moore, Wallace Stevens, Robert
serve antes como orientação para um De fato, editado e introduzido por John Musil, Italo Svevo, Anna Akhmatova,
leitor médio que é visado pela Random Gross que é autor de um importante e Jorge Luis Borges e Konstantinos Kaváfis;
10 CULT - novembro/98
Lista dos cem melhores romances de língua
novembro/98 - CULT 11
Mas é na resenha citada de G.S. Fraser figuras da literatura moderna, acres- Que biblioteca do século XX
que se encontra, talvez, o melhor juízo centando: estará completa se não
acerca do trabalho de tradução de Pound: O sentimento comum a muitos de incluir Um homem sem
É como uma adição durável e uma seus leitores é o de que, de alguma forma,
qualidades, de Robert Musil,
influência sobre a poesia original na língua sua obra marca uma época.
inglesa deste século que as traduções de Por outro lado, não obstante o que há A consciência de Zeno, de
Mr. Pound serão finalmente valorizadas. de fragmentário nos textos das resenhas Italo Svevo, ou ainda os
São poemas, não plágios. incluídas, é notável a recepção imediata que poemas de Kaváfis e a obra
São exemplos que, da mesma maneira, foi dada, desde as primeiras traduções para de Borges?
também podem ser fisgados nos textos que o inglês de suas obras, a Thomas Mann,
concernem aos demais escritores de língua Rilke ou Kafka, sobressaindo textos como
inglesa que compõem a primeira parte do os de Erich Heller ou Michael
livro. Hamburger sobre o primeiro, ou os de Alec
A maior singularidade dessa primeira Randall, dos anos 20, 30 e 40, sobre Rilke
parte está, no entanto, nas resenhas que e, dos mesmos anos, do próprio Randall e
dizem respeito aos quatro escritores de R.D. Charques, Edwin Muir e Anthony
estrangeiros e chega a ser espantoso que Powell sobre Kafka.
Marcel Proust tenha um número de No que diz respeito, entretanto, à
resenhas somente menor àquele dedicado repercussão internacional de alguns
a T.S. Eliot e James Joyce (e neste último autores, ao mesmo tempo em que ratifica
caso, perdendo apenas por uma!). o seu lugar numa biblioteca do século XX,
Desde o primeiro texto coletado, de a leitura da segunda parte do livro,
Mary Duclaux, de 1913, e que trata do International focus, é a grande e inestimável Clóvis Ferreira/AE
12 CULT - novembro/98
INFINITIVAMENTE PESSOAL
Pasquale Cipro Neto
Uma das questões mais polêmicas quando muito distante do auxiliar. A nenhuma razão estilística que torne
da língua portuguesa, sem dúvida, é o flexão, nesses casos, às vezes se torna ultranecessário enfatizar que eram os
emprego do verbo no infinitivo. Dizem necessária, por clareza. Certamente não jogadores e não sabe Deus quem
que o português é a única língua ou era essa a situação do locutor do que queriam ouvir as instruções do
uma das poucas a flexionar o infinitivo, supermercado: auxiliar (queiram) e treinador. A flexão (ouvirem) seria
ou seja, a apresentar o infinitivo pessoal infinitivo (comparecerem) estavam mais do que inútil.
(para eu fazer, para nós fazermos, para muito próximos. Também não era o caso Caetano Veloso, no antológico poema
eles fazerem). do futebolista. O quereres, manifestou bela visão do
Também se diz verbo no infinito, Agora vamos ao que conta. Numa problema. No texto, Caetano mostra as
como fez Vinicius de Moraes num belo frase como O presidente fez o possível contradições do comportamento humano
poema que termina justamente com algo para os deputados aceitarem a proposta, (Onde queres revólver, sou coqueiro (...)
parecido com ...e conjugar o verbo no a flexão do infinitivo é obrigatória, já que e, onde queres coqueiro, eu sou obus.
infinito. seu sujeito (deputados) é diferente do No final do poema, diz: O quereres e o
Não pretendo aqui fechar a questão sujeito do verbo da oração anterior estares sempre a fim do que em mim é de
ou ditar normas cabais a respeito. (presidente sujeito de fez). mim tão desigual faz-me querer-te bem,
Gramáticos e gramáticos já trataram do No entanto, quando se diz Os querer-te mal. Bem a ti: mal ao quereres
assunto, que continua mais aberto do deputados fizeram o possível para assim. Infinitivamente pessoal, e eu
que nunca. Pretendo apenas clarear o comparecer, a flexão do infinitivo não querendo querer-te sem ter fim....
que pode ser clareado. é necessária, já que seu sujeito Caetano se vale justamente do infi-
Lembro-me de um ex-jogador de (os deputados) é o mesmo do verbo nitivo pessoal substantivado (o que-
futebol, hoje treinador, que não perdoava anterior (fizeram). reres, o estares, ou seja, o teu querer e
um infinitivo: Precisamos lutarmos Será errado flexionar o infinitivo o teu estar, o teu modo de querer e o de
para podermos vencermos os jogos que nesses casos? O professor Celso Cunha estar) para, numa demonstração de pleno
vamos disputarmos para conseguirmos tinha uma ótima explicação para isso. domínio do instrumento lingüístico,
nos classificarmos. Melhor não lhe Dizia o mestre que, quando não se manifestar o pensamento de quem fala
revelar o nome. flexiona o infinitivo, se enfatiza a ação no poema. E ainda faz brincadeira com a
Lembro-me também de um grande a de comparecer, no caso. Quando se língua ao dizer infinitivamente pessoal,
supermercado de São Paulo, em que de flexiona, enfatiza-se o agente os misturando elementos gramaticais com
cinco em cinco minutos se ouvia algo deputados, no caso. os da personalidade humana.
como Queiram, por gentileza, compa- Na verdade, é preciso que haja um Como se vê, às vezes, a decisão sobre
recerem ao local.... motivo muito particular para que seja o infinitivo é mesmo pessoal. Às vezes,
É óbvio que, em locuções verbais, o necessário enfatizar o agente. Em textos é meramente gramatical.
infinitivo não deve ser flexionado literários, várias situações podem justi- Até a próxima. Um forte abraço.
afinal, já se flexiona o verbo principal. ficar essa necessidade.
Não é preciso muito esforço para enten- Já em textos jornalísticos, é pouco Pasquale Cipro Neto
der o porquê disso. Mesmo assim, em provável que isso ocorra. Quando se diz professor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e
textos literários é comum a flexão do Os jogadores correram para ouvir as apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da TV
Cultura, autor da coluna Ao pé da letra, do Diário do Grande
infinitivo que participa de locuções instruções do técnico, não parece haver ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo.
novembro/98 - CULT 13
J. Guinsburg
14 CULT - novembro/98
Ilustrações de
Iury Bueno
influxo da realidade do solo em que se suas andanças históricas, um forte veio tidos como representativos e designados
baseia, que é a de uma nação e uma sociedade narrativo e estilos epicizados de lingua- como tendência, corrente, geração,
com características sem par em seu passado, gem que, tratados nos cadinhos da escola, onda, entre outras substantivações
e a de uma luz, que é a de nosso tempo, moderna estética literária e, princi- caracterizadoras.
violenta e inovadora, como este o é. palmente, na fala de seus interlocutores No caso de Israel, poder-se-ia falar
Pode-se falar, sem exagero, numa rica israelenses, homens de todos os dias e de de três tendências básicas da exegese, que
produção israelense no campo das letras. todos os países em seu país, resultou numa aliás não definem nenhuma novidade
Se se tomar por base, por exemplo, nesse produção narrativa no conto e no ro- especial. Uma, de caráter histórico e
pequeno país, os números da população mance que diz da vida e do espírito de sociologizante; outra, que trabalha na
e os das obras impressas, que em todos os Israel atual. intersecção de estrutura e sociedade; e,
domínios se lhe apresentam, ter-se-á, sem Mais do que em outras formas de uma terceira, que colhe os seus critérios
dúvida, um índice dos mais elevados, não expressão artística, na moderna literatura nos procedimentos, nos estilos e nas
só em termos da região, como, prova- israelense articulam-se as representações estratégias poéticas da linguagem cria-
velmente, também pelos parâmetros do mais significativas dessa nova experiência tiva. Eu diria que dois dos principais
chamado primeiro mundo. É claro que judaica, em que ecos muito antigos expoentes da crítica israelense mais
se incluem aí, igualmente, aqueles ressoam no discurso da contempora- recente, Gershon Shaked e Dan Miron,
espécimes que a indústria cultural e as neidade, o qual, por sua vez, os resse- pertencem às duas últimas correntes.
mídias oferecem às massas em forma de mantiza com os sentidos da vivência Mas não vou analisar aqui a natureza de
livros. Mas, nem por isso se pode deixar atual. suas colocações. Cito-os apenas para
de notar a abundância, inclusive qua- * aduzir que, apesar de suas notórias
litativa, de sua escritura na ficção roma- Para dar ao leitor uma idéia algo mais divergências de concepção, ambos, assim
nesca mais ambiciosa e, de um modo particularizada do que seja esta produção como analistas filiados à primeira pos-
particular, na invenção poética. literária do gênio hebreu na Terra da tura, coincidem, não para conceituá-las,
Há quem veja neste fenômeno, e na Promissão e quais os desdobramentos de mas para situá-las mediante um dado
especial popularidade que a poesia goza sua criação ficcional, na prosa e na poesia, pragmático de referência no tempo, em
entre os israelenses, um traço de suas sem contar a literatura dramática, é nomear as duas das três gerações de
afinidades com o mundo leste-europeu. preciso naturalmente recorrer a concei- autores nascidos em solo israelense como
Não há por que rejeitar in limine esse tuações e divisões de que se valem as sendo a da Terra e a do Estado. A anterior,
parentesco, mesmo porque, no Ocidente, abordagens críticas em suas tentativas de que se poderia chamar a dos Pais e que
de um modo geral, o gosto pela arte do enfeixá-las e distribuí-las na diacronia e incorpora algumas das figuras seminais
verso tem ficado cada vez mais restrito a na sincronia. Mas, aqui como lá, seme- das letras neo-hebraicas na Terra Prome-
grupos especializados. Mas cumpre não lhante empreendimento constitui sempre tida, como foram Iossef Haim Brenner,
esquecer o poderoso impulso que o leitor uma redução a conceitos e denominações Schmuel Iossef Agnon, Haim Hazaz,
israelense recebe da tradição literária cujos objetos, por este ou aquele lado, se Dvora Baron, Uri Tzvi Greenberg,
hebraica e da própria língua bíblica. Sem recusam a tal sujeição. Sob este ângulo, Avram Schlonski, Natan Alterman, Lea
pretender analisar o quanto ambas são há sempre uma arbitrariedade ou, se se Goldberg, Ionatan Ratosch, para não
responsáveis por este fenômeno, pode-se quiser, certa simplificação didática que mencionar Haim Nachman Bialik
imaginar que o hebraico está entre pode eventualmente corresponder a um (1873-1934) e Saul Tchernikhovski
aqueles idiomas que, por suas formas de ou outro e até a vários traços pertinentes (1875-1943), que seriam neste caso a dos
estruturação e pelas cargas semânticas a algum tipo de comunhão literária, Avós é um conjunto que foge ao nosso
que neles se depositaram ao longo do estética e/ou cultural segundo feitios foco do momento. Tampouco foi possível
tempo, fazem apelo à literatura poética. determinantes, no plano da história, da encontrar na bibliografia específica uma
De outro lado, é certo que o estro sociedade, da psicologia, da cultura ou nomeação mais expressiva para a leva de
hebreu desenvolveu também, no curso de da mentalidade de grupos de escritores escritores que se apresenta a partir dos
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Fotos/Divulgação
Mosché Aron
Schamir Megued
anos 80 deste século. Fato que talvez tenha se poderia chamar, não de sua mensagem, Para o público brasileiro, os nomes e
a ver com o caráter inteiramente indivi- mas certamente de suas sugestões de leitura as obras que compõem tanto a primeira
dualizado ou irredutível a denominadores e do universo de valores que propõem geração de escritores propriamente
comuns, marcantes e abarcantes de sua positivos, identificados com uma certa israelenses quanto a que a sucede nos anos
produção e de seus perfis literários, onde, idealidade da terra e do homem, na forma 60, continuam sendo, ainda hoje, se não
se a busca é de algum cabide deno- de uma vinculação simbiótica com as totalmente desconhecidos, ao menos
minativo para pendurar nele a nossa modalidades peculiares assumidas pelo pouco familiares. Isto, mesmo se se levar
desorientação, pode-se apelar para o hoje esforço de construção nacional, pela saga em conta que vários expoentes do ciclo
tão abusado pós-moderno... das renúncias pessoais na vida coletiva, dos aqui indicado como inaugural foram
Pretendeu-se que a geração da Terra grupos de companheiros, do Palmach, da objeto de traduções esparsas em revistas
trazia estampada, de maneira indelével, a Haganá, do auto-sacrifício e da luta pela de pouca circulação, de uma pequena
marca do realismo. E, de fato, Mosché independência. recolha Primavera em fogo (seleção de J.
Schamir, S. Izahar (nome literário de Vale assinalar que este é também o Guinsburg, 1952) e de duas coletâneas
Izahar Smilanski), Natan Schakham, Igal momento em que a prosa de ficção ganha mais abrangentes, uma publicada em
Mossinsohn, Aron Megued, Hanokh maior relevo junto ao público leitor 1967 sob o título de Nova e velha pátria
Bartov, quando despontam, a partir dos israelense e, até certo ponto, desloca do (org. de J. Guinsburg, Ed. Perspectiva) e
anos 40, parecem carregar, em sua primeiro plano a poesia, que anterior- outra em 1983, com o nome de A geração
linguagem, temas e modos narrativos, mente ocupava grande parte do cenário da Terra (org. de Rifka Berezin, Summus
este timbre, diferenciando-se de tudo o das letras e projetava-se como a sua Editorial).
que os precedera por uma objetividade e expressão mais inspirada. Isto não Quanto à Nova Onda, outra das
um despojamento que, embora não significa, porém, que tenha havido agora designações correntes da geração do
abandonem a luta pelos ideais da reim- uma solução de continuidade criativa e Estado, uma amostragem significativa de
plantação no solo pátrio e da criação de uma incompatibilidade estética no que sua produção, ocasionalmente veiculada
um novo tipo de homem judeu, o sabra, tange à produção poética. Ao contrário, em português na imprensa judaica local,
repudiam a retórica altissonante da tanto quanto antes, o fluxo do verso veio a ser apresentada pela primeira vez
sionistada e heroificam as suas persona- hebraico não esmoreceu. É então que em livro, por Rifka Berezin e seu grupo
gens e os motivos de suas ações a partir Haim Guri, Benjamin Galai, A. Hilel e da FFLCH da USP, com O novo conto
de um foco interior, de uma subjetividade Amir Guilboa, um pouco mais velho, israelense (Ed. Símbolo, 1978). Foi em seu
que não se pretende ideológica. começam a publicar seus poemas. A eles contexto que o nosso leitor teve acesso a
Entretanto, nesta mesma plêiade en- cabe acrescentar os nomes de Aba Kovner, narradores como A. B. Ioschua, Amós
contrar-se-á um outro segmento que, desde um dos comandantes do gueto de Vilno, Oz, Aharon Appelfeld, Amália Kahana
logo, se apresenta com viés impressionista e de Dan Pagis, entre outros. Carmon e outros mais, ficcionistas de
e lírico. É o caso de Itzhak Oren, Benjamin No conjunto, embora a arte de cada têmpera com uma abordagem e uma
Tamuz e Iehudá Aezrakhi que fazem soar um seja bastante singularizada, pode-se linguagem que lhes recorta um perfil
notas onde se podem captar ecos de dizer que predominam, nesse grupo, as próprio para além das letras hebraicas,
Schnitzler e até do surrealismo. Mas não só vozes do nós, em que pese o fato de na medida em que nos seus relatos a
neles, porque mesmo em Schamir, serem articuladas preferencialmente em problemática específica de seu universo
Schakham e, sobretudo, Izahar não deixa pauta lírica ou mesmo intimista. Como humano no espaço de sua identidade
de transparecer esta atração pela interio- os prosadores, sua dicção desce dos cimos nacional e cultural cruza-se, em escritura
ridade, que se expressa também com românticos e se desfaz da impostação e original, com a do homem moderno em
técnicas do fluxo de consciência, do discurso das simbolizações altiloqüentes, envol- sua projeção universal. E o fato é tão
livre indireto, independentemente do efeito vendo-se num eu que guarda nas dobras marcante que no correr dos anos, em
que tais procedimentos possam ter nos de seus versos as representações do particular nas duas últimas décadas, este
universos ficcionais constituídos e do que nacional e coletivo. cepo de criação sobretudo romanesca vem
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Benjamin Natan
S. Izahar Tamuz Schakham
atraindo a atenção de editores no Brasil e pendência ou a dos Seis Dias, para o Contudo, a poesia de Iehuda Amichai
as obras de Ioram Kaniuk, A. B. Ioschua, Holocausto e, mesmo, bem para trás nos se apresenta desde o princípio em tom
I. Schabtai e notadamente a de Amós Oz longes da Diáspora e da trajetória menor, à paisana, qual elocução corriqueira
(a maior parte das quais em versão de judaica, mas permanece como uma do homem comum a comentar coisas pouco
Nancy Rozenchan) são divulgadas cada espécie de fonte viva da epicidade e do dramáticas, mas essa clave não subsiste tão
vez mais em vernáculo. Por limitada que substrato traumático de experiência logo o ato de recepção se completa, pois
possa ser tal comunicação, ela evidencia vivida. não só as imagens são descoladas de sua
que se trata de um conjunto de roman- Na poesia, com a nova leva de capa familiar e deixam entrever o seu corte
cistas dotado de poder de ressonância criadores, nos anos 60, o processo iniciado irônico, como as palavras aparentemente
intrínseco e não meramente de um efeito anteriormente faz-se mais sensível: um banais, que falam do despoetizado quo-
gerado pelo montante prestígio inter- real deslocamento de eixos, nos padrões tidiano na sua relação com a vida e a morte,
nacional do autor de Meu Michel. culturais e nos parâmetros literários, com o amor e a guerra, convertem-se sem
Do ponto de vista dos recursos de assume também a clara feição de uma gestos maiores em estranhos e pungentes
construção e da economia formal, não há mudança na esfera das atrações eletivas e desmascaramentos poéticos dos chavões
como distinguir por um caráter incon- das afinidades de gosto que se fixam, agora, institucionais, das opiniões consagradas e
fundível esta segunda Onda. Na ver- mais na dicção poética inglesa e americana das gloriolas militares.
dade, se o traço de sensibilização lírico- do que na russa, alemã e francesa, antes David Avidan, ao contrário, chega às
impressionista das personagens e dos privilegiadas. Entretanto, o que pesa aqui portas do transcendente, sem se propor a
cenários se acentua em seu âmbito, ele já não é tanto uma reorientação de linhas de abri-las, quando seu estro enérgico e
figurava, como vimos, na geração da Terra influência, quanto uma modificação de cheio de fé em si mesmo leva ao extremo,
ou, quando não, alguns de seus integrantes estado de ânimo, que refuga o verso ritual pelo absurdo e pela paródia existenciais,
evoluíram nitidamente em tal direção. Ao e épico das grandes questões nacionais e os problemas da vida e do espírito do
mesmo tempo, numa dinâmica que é de públicas e se exprime na preferência pelo homem moderno, ao mesmo passo que
ambas, mas que vai desembocar e se poema curto, de situações circunscritas e tenta libertar seu ego das limitações do
espraiar no terceiro grupo, dos anos 80, personalizadas. A ênfase, pois, transfere- tempo e do espaço. O toque surreal, que
acentua-se nos seus autores e nas suas se do social e coletivo para o existencial e por certo está aí presente, resulta inclusive
obras a estreita desvinculação ideológica pessoal, e encarece um temário profano e da conjugação de um certo prosaísmo
ou programática, seja em nível político, corriqueiro, onde o lirismo, a paródia e o coloquial carregado de elementos verbais
seja em nível estilístico. A opção pela indi- absurdo vasam em linguagem coloquial, da atualidade tecnólogica e comuni-
viduação passa pelo emprego das técnicas em rima livre ou verso branco, uma poesia cacional com um certo fundo clássico.
que, por fragmentação e colagem, des- em essência do viver humano. Assim, algumas das técnicas preferenciais
polarizam figuras, paisagens e situações, Não se pretende, é certo, contrapor aqui do poetar moderno, como a aliteração, a
fazendo-as girar satírica ou grotes- criticamente a geração do Estado à da Terra marcação pelo ritmo e, de outra parte, o
camente em torno dos espectros de sua ou do Palmach, pois não há como deixar de uso da métrica e das rimas acentuadas
unidade ou inteireza de sua organi- concordar com Dan Miron, quando vê permitem-lhe desenvolver uma escritura
cidade perdida. O estranho, porém, é que, nessa divisão mero jargão jornalístico, epigramática e também analítica que
não obstante o estranhamento imagístico mesmo porque alguns dos partícipes do permeia as suas frases de ironia e reflexão
assim suscitado e seu efetivo descom- novo ciclo começaram a publicar já na e que lhe dão a fluência da língua falada
promisso mimético com eventuais mo- década de 50 e se muitos dos poetas do com a musicalidade de versos simbolistas
delos no mundo real, nem por isso se primeiro grupo jamais pertenceram à ou, segundo alguns, neo-simbolistas.
desfaz o laço narrativo com a memória Palmach, um dos nomes exponenciais do Todavia, se se pode falar de um projeto
histórica. É verdade que esta é recuada, segundo, foi membro dessa tropa de elite e poético desta ou nesta geração, é em
retrocedendo da proximidade temporal lutou em várias de suas mais duras batalhas Natan Zach que se há de encontrá-lo, seja
de eventos como a Guerra da Inde- na Guerra da Independência. expresso em teoria do poema, seja em
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Amália Ioram
Kahana Carmon Kaniuk
texto de poesia. Seu ataque polêmico aqui enumerados como citação para um indica a ausência de grupos seletos na
contra Alterman, 1959, é visto como o eventual futuro encontro com o leitor narrativa ou um congelamento interno.
marco histórico e o manifesto estético da brasileiro. Ao contrário, durante todo o curso dos
nova contra a velha poeticidade. Rejei- Mas a fim de não deixar no vazio, sem anos 80, discerniram-se interessantes
tando os valores da bela arte e da arte nenhuma demarcação, o âmbito, a pro- tendências dentro da prosa que não mais
bela, do verso bem-feito e do efeito blemática e as características que o debate eram fruto de um determinado interesse
cerimonial, da reticência sensibilista e da crítico, em Israel, vem atribuindo ao que público. [...] A narrativa jovem sofreu
ênfase exclamativa, reivindica uma poesia se constituiria, na ordenação ora adotada, na década de 80 a influência de uma
da imediatidade concreta e existencial. numa espécie de terceira onda de sua corrente pós-modernista que, talvez, se
Em sua agenda criativa, escrita com a literatura um vagalhão com muita água possa encarar como uma quarta tendência
inflexão áspera e incisiva do hebraico da primeira e da segunda... tentou-se que se incorpora aos três estilos clássicos
israelense, registra-se uma lírica fazer ecoar aqui algumas das vozes e das da prosa.
perpassada de tensão, desalento e des- posturas neste confronto. Elas são de Para Ortzion Bartaná, a literatura
crença que se tecem como sombras professores universitários, escritores e israelense da década de 80 vai sendo
projetadas, não tanto por um exame de críticos militantes que, numa enquete criada dentro de uma confusão que
consciência na meia-luz de um con- promovida pelo jornal israelense Iediot encobre um total desmoronamento dos
fessionário da subjetividade, quanto por Aharonot, se pronunciaram a respeito das sistemas. Obras superficiais e banais
uma lúcida operação crítica a incidir propensões e das perspectivas atuais da concitam a atenção pública, obras revo-
ironicamente sobre a razão de ser. Com produção literária da nação hebraica. lucionárias não a obtêm e seus autores se
esse enfoque, a obra de Natan Zach deu Nurit Govrin, por exemplo, declara: vêem impossibilitados de salientar sua
relevo a uma produção poética que, Marca a década de 80 o surpreendente originalidade. [...] Na poesia, o caos é
iniciada pela meditação apolítica acerca volume quantitativo da literatura he- absoluto, tendo ela perdido o seu papel
do banal na condição humana, trans- braica em todos os gêneros. Trata-se de de guia espiritual que desempenhou na
formou sua perplexidade em politizada uma produção variada e pluralista, na primeira metade de nosso século, tanto
militância literária em prol da esquerda qual se registra uma troca de guarda na linguagem como nas idéias. Na prosa,
em Israel. geracional, na qual todas as guardas con- as tendências contraditórias de realismo
É evidente que, aos três poetas acima tinuam ativas e fecundas. Comprovam e fantasia levaram a uma perda da pauta
invocados, seria preciso somar vários esta abundância os 35 textos de prosa do que é conto e do que é romance e qual
outros, como Dahlia Ravikovitch ou dignos de nota, obras de 30 autores de deve ser a relação com a realidade.
Pinkhas Sadeh, para que se pudesse ter todas as idades no começo da década e os Na opinião de Menakhem Peri, a
um elenco minimamente representativo 65 volumes de prosa produzidos por 60 tentativa de recortar, dentro da conti-
do segundo grupo na ordem cronológica, autores ao final da mesma década [...]. nuidade da literatura, o que corresponde
a assim apelidada geração do Estado. Mas, O signo dominante deste decênio é a au- à década de 80 é um intento alucinado,
no presente contexto, não haveria como sência de uma linha uniforme, não há um algo como procurar interromper a
encompridar o nosso rol em chamadas modelo de escritura prevalente.... corrente de um rio. [...] Mas o signo
individuais, do mesmo modo que, por Gabriel Moked, por seu turno, característico dos anos 80 é o desen-
igual razão, nos vemos impossibilitados assinala que a comercialização e as volvimento de tendências e não uma
de fazê-lo no tocante aos escritores dos relações públicas substituíram, na década coleção de escritores, tendências que
anos 70 e, sobretudo, 80. Narradores de 80, o debate comedido sobre os talvez venham a moldar a narrativa dos
como Iaakov Schabtai, Itzhak Orpaz, problemas da literatura. A idéia de best anos 90. Pela primeira vez, detecta-se o
Iehudit Katzir, Savion Liebrecht, Orli seller popular e a repercussão nos meios estabelecimento de uma igualdade quan-
Castel-Bloom, e poetas como Meir de difusão, fora do âmbito literário, titativa entre ambos os sexos de autores.
Wiseltier, Iona Walach, Iair Hurvitz, tomaram o lugar da avaliação da qua- Verifica-se também o abandono dos
Maia Bejerano, Lea Aialon apenas serão lidade intrínseca da obra... Mas isso não grandes temas sempre em voga na prosa
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Amós Natan Iaakov
Oz Zach Schabtai
israelense. Porém, a abordagem é cada vez a vitalização da dimensão política, cuja e multifacetado, edificando, com isso, uma
mais a do homem na sua qualidade de seqüela é o crescente temor apocalíptico, vertente destacada da criação literária
homem e menos a de atalaia da Casa de e o constante ocupar-se do próprio pro- contemporânea nas diferentes feições de
Israel. cesso de escrever: literatura sobre lite- sua modernidade estética. A que atribuir
Gershon Shaked, escrevendo sobre a ratura. esse resultado? Sem dúvida, em grande
década de 70, a resumiu como sendo a da Hilel Barzel entende que a literatura parte ao valor que o novo contexto atribui
vivência em gris, enquanto a de 80 lhe hebraica da década de 80 deva ser lem- a tal atividade, de modo que, nesse sentido,
parece ser a do surgimento e desen- brada como a da época na qual se regis- cabe considerá-la como um fruto não só
volvimento do grotesco. Sem ajuizar a trou uma mudança significativa: a pas- legítimo mas profundamente repre-
qualidade dos escritores de ofício e sagem do estilo abstrato-simbolista e sentativo do Estado hebreu, da sociedade
novatos, ele encontra nas obras narrativas extremamente imaginário para uma que o constrói e da cultura do povo de
e poéticas, e mesmo na dramaturgia, uma variante que vai em busca da realidade Israel.
chave comum, que reflete o domínio do revelada [...]. O idioma vertical que luta J. Guinsburg
grotesto em nossa vida. Isto não significa por ater-se às fontes clássicas é subs- crítico literário, editor, professor de estética teatral da ECA-
que a linha dos anos 60 e 70, na tradição tituído pelo idioma horizontal que emula USP e autor de Aventuras de uma língua errante Ensaios de
literatura e teatro ídiche (Perspectiva), entre outros
expressionista-simbolista, tenham dei- o modo de falar e expressar-se das
xado de marcar presença, mas a linha diversas vozes, criança, velho, funcionário
grotesca é dominante. Esse império é ou prostituta, psiquiatra ou soldado, pais
sintetizado pelo crítico, nos seguintes e filhos. Aí se perfila uma tendência para ISRAEL EM
termos: Em suma, a era do grotesco. inverter as normas do materialismo TRADUÇÃO
Corrupção grotesca na vida, que origina o agônico que compreende também a
A produção poética israelense foi
grotesco artístico na literatura que, por sua substituição de seus elementos religiosos
transposta para o português espo-
vez, dá lugar a uma postura grotesca, por uma postura metafísica geral, que não radicamente. A uma primeira cole-
bastante ridícula, da crítica. obriga à crença em Deus, ainda que o tânea Poesia em Israel (1962),
Segundo Ruth Carton Blum, a década materialismo abstrato, que predominou organizada e traduzida por Cecília
se caracterizou pela ousadia da expe- anteriormente, não tenha perdido vigor Meireles, somou-se Quatro mil anos
rimentação, pelo colorido de vozes, e tenha ganho inclusive variedade e de poesia (1969), de Zulmira Ribeiro
fenômeno devido ao acesso a influentes transcendência. Tavares e J. Guinsburg e, mais
literaturas estrangeiras (Faulkner, García * recentemente, a edição de Poesia
Márquez, Bruno Schultz) que penetraram Como se vê, nos cinqüenta anos de sua moderna de Israel em Poesia sempre
na consciência dos escritores hebreus existência israelense, a literatura hebraica (1997), organizada por Dan Miron
através de excelentes traduções, embora não só prosseguiu no seu intento de e vertida por vários tradutores, como
o legado de Agnon continue exercendo reimplantar-se no habitat de suas raízes Nancy Rozenchan, Rifka Berezin
forte impacto, ao ver desta crítica. Em sua históricas, como era a sua aspiração etc. Merece destaque ainda o
visão, distinguem-se na década duas milenar, mas também se empenhou em trabalho que Haroldo de Campos
tendências cardiais, conforme a relação do um novo salto, como o que a levou, nos vem realizando nesse terreno, com
transcendente metafísico com a dimensão fins do século XVIII, de uma escritura transcriações quer do legado poético
real-física. Em um extremo, a literatura predominantemente religiosa à laicidade bíblico, em livros como Bereshit: A
fantástica cuja essência está na dimensão crítico-beletrística da Hascalá (Ilus- cena da origem (1990) e Qohelet/O-
trascendente [...] e, no outro, se desenvolve tração), e depois, do Iluminismo aos que-sabe (1993), quer de poemas
uma literatura que alcança essa dimensão padrões artísticos da literatura européia esparsos de alguns dos mais repre-
pelo aferrar-se ao aqui-agora. [...] Dois do séculos XIX e XX em responder aos sentativos criadores do novo espírito
movimentos aparentemente contraditórios desafios da atualidade com uma arte da invenção poética hebraica em
penetram nas diversas tendências, a saber, correspondente ao seu caráter vertiginoso Israel moderno.
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CONTO
MULHERES
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novembro/98 - CULT 21
Acende a lâmpada sobre o espelho do É demais, pensa. Quando você era pequeno tua mãe te
banheiro. A luz ilumina todos os poros do rosto Olha, Ritinha. Vou andar, tá? chamava como? De Chico?
ainda sem maquiagem. Preciso cuidar da pele, Sai para o meio da rua e vai descendo, Merda! Mas a Ritinha, quando encarna.
pensa. Pelancuda e despencada estou fodida. exagera no rebolado. Um carro diminui a Não enche, tá Ritinha?
Pega a pinça, vai arrancando um a um os pêlos marcha no semáforo; vai aproximar-se, percebe Ritinha nem ouve.
que apontam. Já nem dói mais. Como ele que é uma mulher. Droga. Melhor rodear o Meu filho chama Roberto. Por causa do
mesmo, aliás. Não dói? Pára um segundo, o Hilton. Procurar os gringos. Passos. É a Ritinha Roberto Carlos, sabe. Quando fiquei grávida,
gesto cortado ao meio, a pinça no ar. Dói, tem de novo. sonhei que era do Roberto Carlos. Lá em Bom
de admitir. Às vezes a dor volta inteira, aquela Jesus, mulher! Você não dá folga não? Repouso o pessoal pensa que o pai dele morreu,
sensação de peso apertando-lhe a cabeça. Mas tem algo morno na voz, desmentindo a que sou viúva. Minha mãe pensa que eu trabalho
Merda resmunga. dura. em casa de família. Ri. Se descobrisse, acho
Acelera os movimentos. Espalha a base, Ritinha nem liga. Caminha junto. que me matava.
depois a sombra, o rímel, o batom. Tira a peruca Você não tem família? pergunta. Pronto. A Ritinha conseguiu. Conseguiu
da cabeça de pau, escova-a mais do que necessário. Não, nasci da terra, dei em árvore me estragar a noite. Mulher é foda! Aí franze a
Ajusta-a e afasta-se do espelho, olhando-se de responde mal-humorado. testa. O frio na barriga. E não consigo me livrar
todos os ângulos. Liga o rádio, acende um cigarro, Ritinha ri. Fica bonitinha quando ri, essa dessa putinha! Ela sempre gruda desse jeito.
tentando decidir que roupa usar. puta. Lembra a vez que o rapa levou a Ritinha.
Jingolbel, jingolbelllll acompanha com Não é triste estar sozinho no Natal? Achou que ia ser até bom. Mas acabou indo
o falsete bem acentuado. A Ritinha não se manca! pagar a fiança. Burra. Burra que é.
Suspira. Vai até a janela, olha os prédios Desgruda um pouco, tá? diz irritado. Lá tem um bar aberto aponta a Ritinha.
iluminados. Pode ver nas salas em frente grupos Teu ponto não é lá na Consolação? Foram.
conversando, a mesa posta da ceia, pinheiros. Já desisti. Não tem movimento hoje. Vou Dois conhaques pede.
Fragmentos de música. Merda. Movimento tomar um conhaque e ir embora. Continua Um bêbado roncando no canto do balcão.
hoje só com os gringos. Empresários a negócios, andando ao lado. Miudinha, mal lhe chega ao Mais ninguém. A Ritinha fica com o olhar
presos num quarto de hotel. Esses vêm. Pagam ombro. parado, bebendo aos poucos, fazendo pose.
bem. O saco vai ser ouvir a ladainha. Natal- Ninguém até agora? pergunta para Entra uma mulher. Cara de quem chorou ou
longe-de-casa-os-filhos-uma-data-como-essa-e- quebrar o silêncio que já vai pesando. dormiu demais. Ritinha comenta:
a-puta-que-pariu. Decide pôr a mini de cetim Ninguém. Essa daí tá na maior fossa, coitada. Deve
negro. A fenda na altura da coxa, ousada. Daqui a pouco melhora tenta consolar. ser sozinha.
Valoriza. Arruma-se. Pega a bolsinha de strass. Lá pelas duas, três. Chegam bêbados. Querem Um hollywood pede a mulher, pondo
Antes de sair lança um último olhar ao espelho. esquecer e vêm. uma nota no balcão. Enquanto espera o troco
Bela. Belíssima. Como deve ser. É... O ano passado ganhei a maior grana olha para as duas. Mas o olhar é de vidro.
de um doutor. Vestiu-se de Papai Noel e tive de Transpassa.
Como previa, nenhum movimento. O aturar minha filhinha daqui minha filhinha dali, Parece cilada, pensa. Não vou conseguir
ponto está deserto, as outras nem vieram. eu no colo dele que nem bebê. Tive de dar escapar. A Ritinha já destampou de novo:
Encosta-se no poste, levantando bem o joelho. fingindo que era criança. Me deixou a roupa, Passar o Natal longe da família é foda,
Acende outro cigarro. Quase meia-noite. Um depois mandei pra Minas, meu irmão vai usar né? Saí hoje mais pra andar, mesmo. Não ia
bêbado põe a cara na janela, lá em cima: agora pra fazer o Natal dos meninos. Queria só agüentar aquelas quatro paredes. A Solange
Cadê Papai Noeeeelllll? ver a cara do meu filho... Comprei um robô pra queria que eu fosse com ela num baile da Moóca,
Passos. Vira-se, na expectativa. É só a ele, lá no Mappin. Anda, fala, acende umas mas detesto sair com a Solange. Ela é tão pé-
Ritinha. luzinhas. frio, sempre dá encrenca.
Tá uma merda ela vem dizendo. Quantos anos tem seu filho? A mulher do hollywood recolhe o troco,
É responde. Natal, meu bem. Sete. Fez sete agora em dezembro. sai. Não é de michê, se vê.
Tou aqui mas a cabeça tá em casa Não tem mais bar aberto nesta merda Outro conhaque pede. Começa a sentir
continua a Ritinha. Lá em Minas, sabe? Tenho resmunga. A Ritinha se cala. Continuam uma desesperada vontade de beber. Ou de dar
um filho lá, mora com a minha mãe. andando. uma porrada na Ritinha.
Lá vem fossa, pensa. Saco. Diana ela pergunta de repente. Como Vamos pra minha casa? pergunta Ritinha
Meu filho Ritinha repete. E começa a é seu nome de verdade? de repente.
chorar. Francisco. O mau humor começa a voltar. Pra sua casa pra quê? assusta-se.
A revista CULT publica mensalmente a seção CRIAÇÃO um espaço destinado a poemas, contos e textos literários
inéditos. Os originais contendo no máximo 150 linhas de 70 caracteres serão avaliados e selecionados
pela equipe da revista CULT. Os trabalhos e os dados biográficos do autor (incluindo endereço e telefone
para contato) podem ser enviados via e-mail ou pelo correio (neste caso, os originais impressos devem
obrigatoriamente ser acompanhados pelo texto em disquete, gravado no formato Word). O endereço da revista
C U LT é R u a R u i B a r b o s a , 7 0 , S ã o P a u l o , S P, C E P 0 1 3 2 6 - 0 1 0 , e - m a i l : l e m o s p l @ n e t p o i n t . c o m . b r
22 CULT - novembro/98
Vamos, vá! Não vai dar movimento Você é tão boa diz a Ritinha, erguendo Você me machucou reclama ela,
nenhum, mesmo. Pelo menos a gente não cansa os olhos. Como uma irmã pra mim. E esfregando o ombro.
de tanto rodar calçada. Vamos, Diana! Tem sorri. Levanta-se e fica em silêncio, dando as
conhaque, a gente bebe, conversa... Lá pelas Você até que fica bonitinha quando ri costas a Ritinha, mexendo na bolsa. Pega os
três a gente sai de novo. ouve-se falando. Força o falsete. Anda, cosméticos, vai ao banheiro, os soluços ainda
Devia era dar uma porrada nessa cara de mulher! Você está hor-ro-roo-sa com esse rímel soando na sala. Ouve foguetes. Sirenes. Freada
sonsa, mas em vez disso topa. A Ritinha paga o escorrendo! brusca na rua. Porcaria de luz.
táxi. A Ritinha continua olhando, nem se mexe. Por que não bota uma lâmpada
Tá olhando o quê, ô múmia? fosforescente nesta droga de banheiro? grita.
Quando se vê na sala, a Ritinha tirando o Teus olhos diz a Ritinha, sem entrar no Nenhuma resposta. Interrompe a pintura,
sapato e abrindo a janela, não acredita. Caralho! jogo. Teus olhos. Você olha igual o Roberto. tira a peruca, pega outro cigarro. Resolve urinar.
Que vim fazer aqui? Ritinha já vai colocando o O Roberto Carlos? Credo! Isola! A Ritinha na porta, olhando.
CD do Roberto. Levanta a mão traçando um longo vôo que vai Você mija em pé?
Ouvi o dia inteiro. Cada vez que ouço, terminar alisando o cetim negro. Não, voando, não vê?
choro, porque lembro o Robertinho lá em Bom Não. O Roberto, meu filho. Ritinha ri. Bonitinha, rindo.
Repouso... Merda. Por que você não põe silicone no busto,
Por que não foi passar o Natal lá? Ele tem esse jeito de encarar, meio triste, como os outros? ela pergunta. Ia ficar
interrompe, enchendo o copo. Conhaque como querendo e não podendo, sabe? melhor que eu. Você acha que eu tenho o peito
vagabundo, pensa, vai dar a maior ressaca. Putinha! Merda de putinha! De novo. A caído? Abre a blusa, mostra os seios.
Ritinha de novo com aquele olhar longe, meio sensação na boca do estômago. Indecifrável. Pequenos, nota. Quase como um rapaz.
estrábico, que até que não fica feio. Ah, Ritinha! Pára com essa conversa Não consola. Você tem seios lindos.
Não sei. Acho que é medo. Enfrentar a mole! Vamos trabalhar, anda! Ritinha encolhe os ombros.
mãe, as perguntas... Inventar, inventar, contar Ritinha nem se abala. Cruza as mãos sob a Sou muito magra...
mundos e fundos da minha patroa aqui de São cabeça, levanta mais o joelho. Igual falar com Retorna à maquilagem.
Paulo... Acho que não tava a fim de encheção. pedra. Quer que ajude? pergunta a Ritinha.
Ela se estica na almofada. A saia sobe, Você seria um homem bonito, se quisesse Não, estou acostumada.
descobrindo uma coxa morena, lisinha. Calcinha diz ela, depois de um silêncio abafado. Mas a Ritinha já está com o blush na mão.
vermelha. Mas não quero! berra. Saco! Porra! Senta aqui no bidê.
Não te entendo, mulher. Fica aí toda Pára com isso, Ritinha! Obedece. Ritinha vai passando o pincel,
nhemnhemnhem porque o filho, o filho, a droga Você tá mal da cabeça, não tá? Ritinha compenetrada, aproximando-se, aproximando-
do filho, e não vai vê-lo? Há quanto tempo não implacável. Está aí dando uma de durona, se. A blusa ainda aberta.
vai? mas está mal pra caralho, né? Pára! corta, segurando o pulso da outra.
Dois anos responde a Ritinha, baixando Não estou! Está berrando. Sabe que Pára, me faz cócegas.
a cabeça. E começa a chorar de novo. está berrando, mas nem tenta parar. Ritinha, Ritinha olha bem dentro dos seus olhos.
Levanta, indeciso. Agora já é efeito do chega! Pára com essa merda de uma vez! Faz um muxoxo.
conhaque. Só pode. Mas o frio na barriga é Sente escorrer algo pela face. Rios pretos de Tá bem. Larga meu pulso.
outra coisa. O menino. Desde os cinco anos rímel. Odeio você, sua puta! Odeio essa Relaxa, percebendo a força que fazia. Silêncio.
que não vê a mãe. Conhece bem essa história. fungação de meu-filho-Bom-Repouso-minha- Ritinha começa a abotoar a blusa, pensativa.
E a mãe é essa Ritinha. Essa daí. É o conhaque. mãe-pensa. Porra, Ritinha. Você, eu, todo esse Deixa diz.
Claro que é. lixo. Natal? Saco! Qual a diferença, me diz? O quê? pergunta a Ritinha.
Pára, saco! Qual? Essa e as outras noites, não é bater perna Deixa assim repete, estendendo a mão,
Ritinha soluça mais alto, o corpo começa a na calçada, arrancar grana desses porcos, todos puxando de novo aquele pulso frágil. Vem cá
tremer. cheirozinhos, engravatadinhos, esses, esses... murmura, sem nenhum falsete na voz.
Bota o copo na mesinha, senta ao lado dela. Está agarrando Ritinha. Sacode a outra pelos A luz fraca do banheiro vai sumindo. O
Tá bem, Ritinha, pára. A voz sai mais ombros, músculos retesados. som dos foguetes, a sirene, Ritinha, a maqui-
mansa. Quis um gesto de tocar-lhe a cabeça, Diana, me deixa, me deixa Ritinha lagem borrando dois seios pequenos como os
mas impediu-se a tempo. Não adianta choraminga. O que você tem, o quê? de um rapaz. Amanhã mudo de ponto, pensa.
esquentar, piora. Vamos pra rua, é melhor. Vai Pára de repente. Larga a Ritinha, que desaba Amanhã vou pro Morumbi, decide, antes de
mulher, anda! Vai retocar essa cara, tá um lixo. na almofada. rasgar a última máscara.
novembro/98 - CULT 23
Patricia Lambert/Divulgação
24 CULT - novembro/98
Emily Dickinson, autora do poema A Charm
Pela leitura miúda e detalhada do poética que ela pressentia ameaçada se cada uma das estrofes: os verbos lift, na
poema A Charm1 e por algumas obser- baixasse a guarda de sua intimidade. Há, primeira, e annul, na segunda, quando
vações acerca de sua correspondência, entretanto, um elemento que distancia entre levantar e anular parece estar a
Emily Dickinson é incluída por Shattuck ainda mais as duas escritoras e que, a meu tensão primordial do texto!), Roger
nos prazeres da abstinência. ver, não foi suficientemente abordado por Shattuck, a meu ver, corre o risco de
Na verdade, o rigor e a discrição com Shattuck. Refiro-me à formação em desencaminhar o leitor, ainda que a sua
que cercou a sua existência pessoal fez de meios sociais inteiramente distintos das intenção parafrástica fosse exatamente o
Emily Dickinson um caso exemplar de duas: Mme. de La Fayette existindo num contrário. Embora haja, em parte, uma
entrega total à poesia, não apenas pro- ambiente cortesão em que a literatura era recuperação no último item do capítulo,
piciando um modo muito particular de parte de uma educação de requinte; Emily intitulado Um epicurista em O banquete
escrita que está não somente nos Dickinson convivendo com os rigores de da temperança, a sua leitura inicial
poemas, mas na correspondência trocada uma educação puritana para a qual a inclina-se demasiadamente para o lado
com poucos amigos , como ainda leitura que transcendesse os limites das da clareza do texto, conseguida pela
transformando o lirismo subjetivo em continuadas interpretações bíblicas era paráfrase, quando, na verdade, é preci-
agudos momentos de reflexão objetiva. vista, sobretudo em se tratando de uma samente daquilo que é dito de modo
Como se vivendo de e para a fabricação mulher, como aventura arriscada de oblíquo e enviesado que o poema extrai a
de seus curtos textos, a sua relação com a formação espiritual. sua extraordinária força de sentido. Ou
experiência do mundo fosse sempre uma Sendo assim, o campo de atuação da seja: entre não levantar o véu (The Lady
renovada forma de inquietação pessoal e norte-americana era muito mais estreito: dare not lift her Veil) e posicionar-se de tal
solitária. a sua poesia só seria admissível se deixasse modo que seja anulado o desejo (Lest
Nesse sentido, a sua abstinência, para passar, por sob o lirismo pessoal, algo Interview annul a want), a realização
usar o termo adotado por Shattuck, é daquela tensão intelectual e meditativa maior cabe à própria instauração da
diversa da de Mme. de La Fayette: se na que a própria poeta lia nos textos, às vezes imagem que é o poema (That Image
romancista ela decorre de uma escolha grandiloqüentes e enviesados, de satisfies ). Ou ainda, dizendo de outro
pessoal e pensada de recusa de uma Emerson. A leitura efetuada por Shattuck modo, a abstinência de Emily Dickinson
experiência contrária às bienséances da do poema A Charm termina apontando é de ordem estética, ou poética, porque
época, no caso da poeta trata-se, de fato, para este difícil equilíbrio em que se ela implica precisamente não buscar ir
como quer Shattuck, de uma eleição parece manter o texto dickinsoniano: além daquilo que foi possível dizer nos
estética. Nem mesmo a recusa, men- cutucando com vara curta os mais escon- limites da linguagem do poema. Que a
cionada pelo crítico, do casamento didos valores semânticos da língua experiência que fica do texto seja também
proposto pelo Juiz da Suprema Corte de inglesa, criando ecos não apenas de de autolimitação é outra história, ou
Massachusetts, Otis Lord, que, na significantes, mas de significados, a poeta melhor, é uma história que compete ao
verdade, possui algo de semelhante com consegue comunicar os mais sutis jogos leitor elucidar trazendo para o jogo da
relação ao assédio do Duque de Namours que vão articulando os sentidos e a linguagem dickinsoniana a sua própria
no caso da Princesa de Clèves, iguala as inteligibilidade deles pelo poema. experiência, ou não, de limitações. O que
abstinências das duas. Nesse sentido, ao fazer a sua leitura a fica, sobretudo, como queria a poeta, é a
No caso de Emily Dickinson, a partir de uma tradução literal de cada uma imagem: tradução sempre aproximativa
recusa é antes uma maneira de conservar das palavras utilizadas no texto (ficando, da experiência pessoal que se traduziu em
intocável a esfera pessoal da realização curiosamente, sem comentário uma em literatura.
novembro/98 - CULT 25
O americano Herman Melville
Por enfatizar em excesso a experiência goria realista, dando razão ao subtítulo absolvê-lo, sem que, em nenhum mo-
como motivação poética, o que, no do livro: uma narrativa interior. Diz mento, atente para que um homicídio foi
demais, faz sentido com relação aos Shattuck: cometido e confessado, nem sequer
propósitos básicos do ensaio, Shattuck O fato de Billy Budd penetrar em refletindo sobre a existência de uma outra
opera um desvio de leitura tão danoso estados de espírito que não são expressos vida humana que foi destruída por seu
quanto qualquer outro de uma inter- pode muito bem ser o que Melville quis ato. Uma coisa, entretanto, parece ser o
pretação mecanicista ou ingenuamente designar com o enigmático subtítulo que julgamento do personagem, problema a
biográfica. escreveu a lápis na margem do manus- ser indefinidamente discutido a partir do
É o que parece ocorrer também no crito: Uma narrativa interior. O termo romance, outra coisa é fazer, como o faz
capítulo seguinte, dedicado à leitura de não se refere a nenhuma forma de onis- Shattuck, uma confusão de ordem moral
Melville e Camus, através do exame das ciência narrativa; muitos eventos im- e estética, condenando o escritor e sua
obras Billy Budd, marinheiro (Uma nar- portantes permanecem ocultos até mes- obra por não se posicionarem quanto à
rativa interior), texto de um manuscrito mo para o narrador desconhecido. culpabilidade do personagem. E, o que
deixado inédito por Melville, quando de Mas se na narrativa de Melville, me parece ainda mais estranho, embora
sua morte em 1891, e somente publicado segundo Shattuck, o leitor tem a possi- coerente, é vincular essa neutralidade ao
em 1924, e O estrangeiro, de 1942. bilidade de julgar a partir do veredito a próprio estilo do romance, como se entre
No primeiro texto, trata-se do jul- que chega o tribunal instalado pelo a representação que ocorre na obra e sua
gamento e da condenação de um ma- Capitão Vere, a este cabendo tão somente recepção pelo leitor não estivesse
rinheiro, Billy Budd, que, num rompante a aplicação de seu resultado, no caso da precisamente todo o trabalho de sua
de raiva ao se ver acusado de motim por narrativa de Camus, ainda segundo construção, sem a qual o mesmo leitor
outro, Claggart, na presença do Capitão Shattuck, o lugar do Capitão Vere é não chegaria àquela. Diz Roger Shattuck:
Vere, agride o acusador e termina por ocupado não por uma personagem, não Camus criou para a maior parte de
matá-lo. Segue-se o julgamento e a pelos três juízes e pelo júri, mas pelo leitor. seus episódios um estilo frio, chão,
sentença de morte é proferida, con- Trata-se de uma enorme diferença. O artificialmente natural. Visto contra este
denando-se Billy ao enforcamento. Para leitor tem de decidir entre o relato panorama monótono, o assassinato semi-
o Capitão Vere, entretanto, que presidiu interior de Meursault, aparentemente ritualístico que ocorre na praia suscita em
o julgamento e a condenação de acordo sincero, sobre como os terríveis acon- Meursault, uma gloriosa explosão de
com as leis marciais, não há certeza tecimentos ocorreram, sem que tivesse intensidade lírica. A cena do crime
quanto à culpabilidade de Billy ou à nenhuma culpa, e a narração divagante e combina os crescendos de um ato gratuito
pureza de Claggart, os valores do bem e por vezes odiosamente íntegra do pro- e uma epifania. Ao apreender aquele
do mal sendo permanentemente trocados motor sobre o comportamento criminoso momento, Meursault claramente perde
pelo que, num determinado trecho da de Meursault. a consciência e a memória. Suas atitudes
obra, recorrendo à Bíblia, chama de Por isso, para Shattuck, o subtítulo da e comportamento posteriores permane-
mistério da iniqüidade. Entre os narrativa de Melville cabe como uma cem misteriosos, porque jamais temos
rigores da lei marcial e as motivações luva no texto camusiano. Quer dizer: por um relato completo do que aconteceu
subjetivas, instaura-se um campo de ser interior, a escrita de Camus, após o crime ou das circunstâncias em
dúvidas, indecisões e incertezas que protegendo Meursault de possíveis que ele foi preso.
transformam a sentença de morte naquilo acusações de cinismo e de indiferença Agora, à diferença daquilo que ocorria
que o próprio Shattuck chama de ale- pelo assassínio do árabe, induz o leitor a na leitura de Emily Dickinson, como
26 CULT - novembro/98
O argelino Albert Camus
ficou assinalado, não é apenas a expe- pela releitura da obra. Aliás, esse traço energia nuclear, e, por outro, as expe-
riência do criador que é enfatizada, mas torna-se ainda mais claro no pequeno riências nas áreas da biologia molecular
uma derivada: a experiência do leitor que, capítulo final desta primeira parte do e da engenharia genética, buscando
caindo na armadilha do autor, ultrapassa livro, intitulado Interlúdio: Recapi- assinalar os momentos de inquietação e
os limites da moral e compactua com o tulação, em que resume a sua posição de dúvida e também de euforia que
personagem, por intermédio do que no que se refere aos conceitos de conhe- marcaram essas mesmas fases.
Shattuck chama de empatia, terminando cimento proibido e conhecimento aberto, As duas epígrafes utilizadas para o
não apenas por compreender e perdoar o buscando marcar a sua eqüidistância e, capítulo dão bem conta desta oscilação:
assassinato por ele cometido como, o que portanto, fugindo à pecha de política e a primeira, de J. Robert Oppenheimer, o
parece muito mais grave, por louvar o intelectualmente reacionário. Diz ele: principal articulador do Projeto
modo de sua expressão. E, embora o Hoje, o princípio de conhecimento Manhattan, do qual resultou a explosão
crítico conceda em ver o romance de aberto e a livre circulação de idéias se da primeira bomba em Alamogordo,
Camus como uma parábola, ao que parece estabeleceram tão firmemente no Oci- New Mexico, é expressão do momento
menos evidente do que no caso de dente que qualquer reserva a esse respeito de dúvida e inquietação. Diz ela: Num
Melville, o seu julgamento final da obra é em geral considerada política ou sentido primário [
] os físicos conhe-
é decepcionante: intelectualmente reacionária. No en- ceram o pecado; a segunda, de Walter
É impossível não considerar essa tanto, as histórias examinadas nos capí- Gilbert, um dos responsáveis pelo cha-
novela em miniatura como uma parábola, tulos precedentes demonstram de diversas mado The Human Genome Project, isto é,
uma peça literária com uma didática sutil, formas que o princípio de conhecimento pelo mapeamento do código genético
cujo sentido vai se revelando aos poucos aberto nem sempre suplantou o princípio humano, cujo conhecimento resultou das
aos que lêem com cuidado. Mas a nar- do conhecimento proibido. pesquisas do DNA, é indicadora da
rativa interior sutilmente seduz muitos Não só as estórias anteriores: os Casos euforia com que foi, e ainda é, vista a
leitores, que passam a sentir empatia por concretos, da segunda parte do livro, possibilidade que se abre para o conhe-
um criminoso, e com isso a parábola sai apontam para formas perigosas de trans- cimento a partir de tais pesquisas: [O
pela culatra. A lição moral a de que não gressão nos limites da proibição do Projeto Genoma] é o graal da genética
pode ser chamada humana uma existência conhecimento, seja no caso das pesquisas humana [
] a resposta final ao man-
que não assuma um mínimo de respon- e aplicações nas áreas científicas e damento: Conhece-te a ti mesmo.
sabilidade por si mesma, por suas ações e tecnológicas, seja na leitura que Shattuck É pena que, tendo sido publicado
pelos outros é esquecida com dema- realiza da obra do Marquês de Sade. alguns meses antes, o livro não pudesse
siada facilidade. Sendo assim, o primeiro capítulo acrescentar, aos cinco casos de limites à
Por não reconhecer o intervalo que desta segunda parte, intitulado A ex- pesquisa científica explorados por
está entre a representação da obra e sua plosão do conhecimento: ciência e Shattuck, o da clonagem da ovelha Dolly,
apreensão pelo leitor, que, ao fim e ao tecnologia, é um belo exemplo da cujas conseqüências éticas e morais
cabo, é a recuperação de seus valores habilidade de Shattuck em realizar foram, são e ainda serão muito discutidas
propriamente estético-estruturais, o sínteses significativas e esclarecedoras, quer pela comunidade científica, quer
crítico, mesmo sem querer, deixa passar percorrendo as várias fases que vão da pela sociedade de modo geral, pois os
aquele ranço moralista sobre o qual se ciência pura à aplicada, tomando por eixo cinco casos de limites estudados por
montava a minha desconfiança desde o de reflexão, por um lado, os vários Shattuck, isto é, considerações práticas,
início de sua leitura e que se confirma momentos de pesquisa e utilização da prudentes, legais, morais e mistas,
novembro/98 - CULT 27
Ilustração computadorizada de uma cadeia de ácido desoxirribonucléico (DNA) J.R. Oppenheimer
abrangem, de fato, o espectro de in- Shattuck e para o qual chamei, logo de biográficas com as circunstâncias histó-
quietações eufóricas e disfóricas mo- início, a atenção do possível leitor, ricas, sociais e políticas de sua existência
tivadas pelas pesquisas científicas e acentuando a sua estranheza para a qual (O caso Sade), em seguida, todo o
tecnológicas. E os últimos parágrafos do parecem convergir as linhas essenciais de processo de releitura a que foi submetida
capítulo são, ao mesmo tempo, um discussão sobre o conhecimento proibido. a sua obra, desde o citado Apollinaire,
reconhecimento do que há de irreversível De fato, usando como título do passando por Klossowski, Bataille,
nas descobertas científicas e uma me- capítulo a mesma frase que Apollinaire Paulhan, Camus, Foucault, Barthes, até a
ditação sobre suas aplicabilidades: utilizou para nomear o seu ensaio consagração atual nas referidas edição e
O conhecimento daquilo que nossas introdutório à antologia das obras do história literária (Reabilitação de um
muitas ciências descobrem não é proi- Marquês de Sade de 1909, O divino profeta); os dois capítulos seguintes são,
bido em si mesmo e por si mesmo. Mas Marquês, com a qual iniciou o processo por assim dizer, provas da realidade pela
os agentes humanos que buscam esse de reabilitação do escritor, o texto de narração de dois casos famosos, nos
conhecimento jamais foram capazes de Shattuck é não apenas uma excelente Estados Unidos, de assassínios perpe-
afastar-se de sua aplicação a nossas vidas introdução a Sade, narrando aspectos trados sob a aparente ou comprovada
ou de controlá-la. Apesar da história de decisivos de sua vida e de sua obra, e inspiração das obras do Marquês (O
Ulisses e as sereias, a pesquisa pura é fazendo, por assim dizer, o processo de caso dos assassinos nos pântanos e O
um mito moderno. Portanto, à medida sua recepção, mas uma prova de fogo para sermão de Ted Bundy); o quinto item é
que a ciência explode em certos campos, a sua habilidade em discutir, no âmbito o centro da leitura de Shattuck: uma
tornando-se uma empresa impulsionada da criação literária, as implicações morais análise minuciosa de alguns textos da obra
tanto pelo comércio e preocupações de uma obra. Porque, na verdade, a de Sade, sem exclusão daqueles mais
bélicas como pela curiosidade, temos pergunta, depois de mais de dois séculos explicitamente perversos o que oca-
necessidade de inspecionar esse cres- de sua existência, é ainda a mesma: o que siona mais uma advertência, a meu ver
cimento desproporcionado. O livre- fazer com Sade? Que ele fazia parte dos desnecessária, aos pudibundos leitores,
mercado pode não ser o melhor guia para infernos das bibliotecas é fato corri- através dos quais vai marcando, sobre-
o desenvolvimento do conhecimento. O queiro. Que hoje se tenha que usar o tudo, os equívocos da reabilitação do
planejamento estatal nem sempre trouxe pretérito imperfeito é a novidade, confir- autor (Um passeio com Sade); no sexto
mais vantagens. Enquanto pensamos mada por sua edição na prestigiosa item, retomando a famosa questão pro-
nessas questões dilacerantes, não po- coleção Pléiade, da Gallimard, ou, como posta por Simone de Beauvoir, que dá
demos nos esquecer da história de Ícaro lembra o próprio Shattuck, pelo fato de título ao item, discute as teses de inclusão
e da Esfinge de Bacon, e dos casos que, na mais recente e revisionista história ou exclusão da obra do Marquês do
concretos bastante diversos do Lebensborn da literatura francesa, aquela organizada cânone da cultura e da literatura (De-
de Himmler e do Projeto Manhattan. por Dennis Hollier e publicada em 1989 vemos queimar Sade?) e, finalmente, no
Nesta era de libertação e permissibi- pela Harvard University Press, em nove último item, trata-se de escolher uma
lidade, é bem possível que um juramento séculos de literatura, somente um autor maneira adequada de situar o autor no
criterioso por parte dos cientistas ajude a merece dois verbetes completos: o Mar- universo de nossas experiências culturais,
impedir que nos comportemos como o quês de Sade.2 tendo anteriormente recusado quer a sua
Aprendiz de Feiticeiro. Os sete itens do capítulo O divino consagração, quer a sua rasura radical que
Mas é para o sétimo capítulo aquele Marquês são de uma organização exem- ocorreria caso a questão de Beauvoir
mesmo ao qual se dirige a advertência de plar: em primeiro lugar, algumas notas recebesse uma resposta positiva.
28 CULT - novembro/98
O Marquês de Sade Georges Bataille
É um capítulo decisivo para o julga- sua visão trágica, da caridade e missão citações, ou mesmo redundâncias, de
mento dessa obra de Shattuck: a sua orga- cristãs, e de todos os princípios de justiça argumentos já desenvolvidos. Mas são
nização, o modo pelo qual desenvolve os e democracia equânimes. Procura reviver generosos, oferecendo ao leitor elementos
seus argumentos, a erudição precisa e a Lei de Talião, o olho por olho e a de sobra para uma reflexão de bom
adequada com que cerca o seu objeto e, máxima de que poder é justiça. Talvez haja tamanho. Entre a admiração e a descon-
enfim, os juízos serenos e objetivos com alguma grandeza na absoluta atrocidade fiança do início, a leitura e a releitura
que lê a tradição crítica já existente sobre da obra de Sade, alguma monumental terminaram impondo a primeira.
Sade, dão prova de sua iluminadora aberração e lição objetiva, que nos faça
perspicácia em repropor o exame de uma admirá-lo. Mas nos parecerá menos
obra tão polêmica quanto a do Marquês. admirável se o lermos por inteiro e jun-
Mais do que isso, no entanto, a leitura de tarmos suas idéias niilistas sobre egoísmo
Sade é também uma prova de fogo para e poder com as cenas sinistras das quais
toda a sua discussão anterior acerca do gotejam sangue e fezes. Ele sabia como
conhecimento proibido. A necessidade de eram importantes essas imagens para o
ler o autor do século XVIII parece, para desenvolvimento da alma e como agarrar
ele, resultar precisamente do conhe- sem medo o coração humano e representar
cimento que se obtém de um extremo de imensas divagações (Justine). Sade sempre
ilimitação e não é por acaso que, já nos foi o professor e o evangelista.
últimos parágrafos do item quinto, ocorre Não se deve queimar Sade, parece
a lembrança de Nietzsche, como que dizer Shattuck: deve-se ler o Marquês
acentuando a presença do Marquês num como a qualquer outro autor extremado,
aspecto fundamental de nossa cultura. Diz sem cair na idolatria nem, por outro lado,
ele: na perseguição inquisitorial. Os seus
Notas:
1 Eis o texto do poema lido por Shattuck:
Em Nietzsche, a ética da transgressão excessos são também parte de uma con-
perdeu as cenas de tortura e destruição dição que, ainda nos limites, continuamos A Charm invests a face
Imperfectly beheld
sexual explícitas, transformando-se em um chamando de humana. E essa condição, The Lady dare not lift her Veil
atraente Valhala da filosofia lírica. Não quer se queira ou não, inclui a curiosidade For fear it be dispelled
temos indícios de que Nietzsche tenha lido e, o que é terrivelmente difícil de aceitar, But peers beyond her mesh
alguma vez o divino marquês. Não os seus limites. A conclusão de Shattuck And wishes and denies
obstante, o filósofo do Super-homem para este capítulo, e que poderia ser a do Lest Interview annul a want
oferece um produto modificado que atrai livro, é exemplar: That Image satisfies
a muitos: Sade sem orgasmo. O divino marquês representa um (Encanto veste um rosto/ Não mais do que
Os escritos de Sade fazem-nos en- conhecimento proibido que não podemos entrevisto / Erguer o véu não ousa a dama/
Por medo que lhe fuja // Mas olha além da
frentar a tentativa extrema da cultura proibir. Conseqüentemente, devemos trama / Deseja e logo nega / Teme
ocidental de arrancar as restrições da rotular suas obras cuidadosamente: ve- que a vista anule a falta /Que a imagem
civilização a fim de regressar à barbárie. neno potencial, poluidor de nosso am- satisfaz)
Em todas as suas principais obras, Sade biente moral e intelectual. 2 A edição francesa da obra de Hollier é de
visualiza uma rejeição completa das leis e Poderia ser o capítulo final do livro, quatro anos depois, De la littérature
profecia hebraicas, da filosofia grega com como disse, pois os demais são expli- française, Paris, Bordas.
novembro/98 - CULT 29
SOCIOLOGIA
: O mal-estar da pós- Estudo do sociólogo de origem polonesa Zygmunt Bauman, professor das Universidades de
modernidade Leeds e Varsóvia. O título remete ao O mal-estar na civilização, texto clássico de Freud que
: Zygmunt Bauman segundo Bauman é um marco na análise sociológica da modernidade, cujo principal valor, a
: Mauro e Cláudia Gama liberdade pessoal, era representado pela busca de ordem, beleza e limpeza. De acordo com
: Jorge Zahar Bauman, depois de 65 anos da publicação do texto freudiano, a liberdade pessoal ainda é o valor
: 272 págs. : R$ 26 ,00 supremo, mas agora travestido de espontaneidade, desejo e esforço individual.
: A borra do café Mais novo romance de Mario Benedetti, romancista, poeta e ensaísta uruguaio, que passou
ROMANCE
: Mario Benedetti 20 anos exilado em Madri depois do golpe que instaurou uma ditadura militar em seu país, na
: Ari Roitman e Paulina década de 70. Em A borra do café, Benedetti transfere seus momentos líricos de memória para
Wacht o protagonista Claudio, um garoto que percorre com a família os bairros da Montevidéu dos
: Record anos 40. Ancorado na narrativa poética cara ao escritor, o romance constrói o reencontro de
: 192 págs. : R$ 18,00 Benedetti com lugares, pessoas e imagens que marcaram sua infância e formaram sua poética.
: Diário íntimo O general José Vieira Couto de Magalhães foi uma das figuras públicas mais atuantes do
MEMÓRIA
: José Vieira Couto de Brasil da segunda metade do século passado, tendo contribuído com áreas tão diversas como a
Magalhães política, a literatura e a astronomia. A descoberta e a organização deste Diário íntimo, a cargo da
: Cia. das Letras historiadora Maria Helena P. T. Machado, revelam uma personalidade complexa, que participara
: 246 págs. da Guerra do Paraguai, mantinha relações com grandes capitalistas e negociantes do império e
: R$ 18,50 anotava seus sonhos e aspirações cifradamente em tupi.
: Caravana contrária Novo livro de poemas de Mário Chamie, um dos fundadores e principal teórico do grupo
POESIA
: Mário Chamie Praxis, reunido na década de 60 em torno da revista de mesmo nome, surgida de uma dissidência
: Geração Editorial do movimento concretista. Os poetas do grupo, como Reinaldo Jardim e Mauro Gama,
: 204 págs. faziam oposição ao apriorismo mecanicista, apropriando-se de termos e conceitos semiológicos,
: R$18,00 transformando as palavras em elementos vivos. Mário Chamie é autor de Espaço inaugural
(1955), Lavra, lavra (1962) e A linguagem virtual (1976).
: Espaços da memória Espaços da memória. Um estudo sobre Pedro Nava examina o discurso memorialista do autor
ENSAIO
: Joaquim Alves de Aguiar mineiro, dividindo-o em quatro espaços de realização: da casa, da escola, do trabalho e da rua.
: Edusp Segundo a tese de Joaquim Alves de Aguiar, a esses espaços corresponderiam quatro fases da
: 220 págs. vida do escritor: a infância, a adolescência, a juventude e a maturidade. O autor analisa as
: R$ 15,00 relações entre verossimilhança e veracidade no discurso do narrador memorialista de Nava,
construindo um retrato itinerante, desenraizado e andarilho do eu poético do escritor mineiro.
: Variações sobre o livro Coletânea de ensaios e escritos do jornalista e roteirista de cinema catarinense Salim Miguel.
: Salim Miguel Variações sobre o livro (e temas correlatos), como o autor prefere chamar a coletânea, agrupa textos
: Editora da UFSCar publicados na imprensa de Florianópolis e de outros estados, palestras proferidas no Brasil e no
: 112 págs. exterior, e outros estudos sobre poetas como Cruz e Sousa, escritores como Juan Rulfo, sobre
: R$ 11,00 a permanência do livro e novas tendências literárias, acerca do papel das editoras universitárias
e de sua trajetória como autor e editor.
: Afeto e representação Afeto e representação. Para uma psicanálise dos processos cognitivos, do psicólogo e psicanalista
PSICOLOGIA
: Antonio Imbasciati italiano Antonio Imbasciati, retoma criticamente a tradicional dicotomia afeto/cognição,
: Neide Luzia de Rezende estabelecendo uma leitura cognitiva da psicanálise. Para ele, afeto e representação são a forma
: Editora 34 do ser configurar uma experiência, duas manifestações coincidentes no início da formação
: 224 págs. mental. Apontando a impossibilidade de haver afeto sem sentido cognitivo e vice-versa, Imbasciati
: R$ 22,00 questiona princípios sagrados da psicanálise e de sua dissociação com a psicologia.
: Lewis Carrol Esta biografia do autor de Alice no País das Maravilhas é resultado de mais de 30 anos de
BIOGRAFIA
: Raffaela de Filippis pesquisa em cartas, diários e documentos deixados por Lewis Carroll. O livro especula sobre as
: Record razões de sua gagueira, sua mania de ordem e sua suposta preferência sexual por menininhas. O
: 672 pág. biógrafo Morton N. Cohen, professor da Universidade de Nova York, teve acesso aos arquivos
: R$ 60,00 da família Dogdson (a quem pertence o espólio de Carroll, cujo verdadeiro nome era Charles
Luttwidge Dodgson), elaborando a mais completa biografia de Carroll já publicada.
: Brecht no teatro brasileiro Originalmente uma tese de doutoramento apresentada na Alemanha, Brecht no teatro brasileiro
TEATRO
: Kathrin Sartingen analisa a recepção do teatro do dramaturgo alemão em terras brasileiras. O estudo de Kathrin
: José Pedro Antunes Sartingen avalia em que medida as encenações de Brecht influenciaram diretores e grupos brasileiros,
: Hucitec interpreta peças brasileiras dos anos 60 e 70 e discute a idéia de aceitação de uma cultura estranha
: 338 págs. na literatura deste século. A autora morou durante alguns anos no Brasil, tendo estagiado no Instituto
: R$ 30,00 Goethe de São Paulo e lecionado Literatura Comparada na Universidade Estadual de Campinas.
30 CULT - novembro/98
Justamente (embora com parcas informações) incluído no Pequeno
dicionário de literatura brasileira (Cultrix, 1987, 3ª ed.), poucos se
lembrarão hoje do acadêmico Álvaro da Silva Moreira (1888-1969),
poeta simbolista e modernista e ativo colaborador de nossas revistas da
primeira metade do século O Malho, Fon-Fon, A Ilustração Brasileira,
Para-Todo, etc. , além de agitador cultural. Dele lembramos aqui o livro
O Brasil continua..., editado em 1933.
novembro/98 - CULT 31
F O R T U N A C R Í T I C A 5
Ivan Teixeira
DESCONSTRUTIVISMO
Desenvolvida a partir das formulações do
Reprodução
filósofo francês Jacques Derrida,
a desconstrução atribui aos significados
a condição de construções culturais,
questionando a concepção metafísica
de centros unificadores do mundo O lingüista e filósofo Jacques Derrida
34 CULT - novembro/98
realidade, mas uma construção do possível por contrastar com a idéia de cultura de referência por princípio. Foi a
pensamento ocidental. O analista deve planície ou de depressão. Como se vê, partir do homem europeu que se
desconstruir esse construto, escolhendo Derrida é responsável pelo esboço de formularam todas as conclusões universa-
um enfoque que aborde a estrutura por uma espécie de teoria geométrica do lizantes (metafísicas) sobre o que se
um ângulo até então secundário na ordem conhecimento, cuja tradição se origina, entende por cultura ocidental. Os estudos
geral das coisas. Toda a filosofia ocidental pela ruptura com os significados de Lévi-Strauss provocaram um deslo-
partilha da idéia de centro, essencial- universais, em Nietzsche, Freud e camento desse foco de atenção: o interesse
mente vinculada ao princípio de valor e Heidegger. Fala-se aqui em teoria das pesquisas desviou-se da Europa para
de significado absoluto, característica geométrica do conhecimento, porque já culturas consideradas primitivas, sobre-
básica do pensamento metafísico. A Luís Antônio Verney divulgava, na época tudo a partir da análise de mitos sul-
noção de centro preside o próprio americanos. Tal descentramento estabe-
conceito do ser, determinado pela idéia leceu uma crise na história da metafísica,
João Carlos Volatão/Folha Imagem
novembro/98 - CULT 35
truir, invertendo a hierarquia desses pares a natureza da consciência humana, que de um trocadilho grafo-sonoro, porque
antitéticos. Esclarece que, tanto quanto a se confunde com a noção de linguagem. essas palavras possuem grafias distintas e
escrita, a fala obedece a um código Essa perspectiva não admite um centro uma só pronúncia. O neologismo do
preestabelecido, que ele denomina exterior responsável pela geração dos filósofo deriva de différer, que tanto pode
arquiescritura. Trata-se de um código significados a serem captados pelo significar diferenciar quanto adiar. Dife-
matricial abstrato, do qual nascem as espírito humano e depois veiculados renciar pressupõe a geometria dos corpos,
diferenças geradoras do sentido, tanto na pela linguagem. Ao contrário, ao criar espacialidade, pois o signo se explica pela
língua falada quanto na escrita. A maior configuração de seu contrário; adiar
conseqüência dessa desconstrução é a implica temporalidade, pois o signo
Milton Michida/AE
ratificação de uma idéia consagrada pela também retarda continuamente a idéia de
lingüística estrutural, segundo a qual não presença. Observem-se os fonemas /b/ e
existe origem absoluta para o significado. /p/: ambos são bilabiais explosivos. A
Este decorre de relações, e não de essên- diferença essencial entre eles é que o
cias isoladas: é sintagmático, jamais para- primeiro se caracteriza por uma
digmático. propriedade positiva: é sonoro; ao passo
O princípio de que o significado que o segundo, por uma propriedade
decorre de relações possibilita ao teórico negativa: é surdo. Por causa de sua
a formulação da idéia de suplemen- condição positiva, a lingüística tradi-
taridade, que consiste no pressuposto de cional tende a atribuir ao fonema /b/ o
que os termos dos pares do pensamento privilégio do centro. Derrida considera
metafísico se complementam mutua- essa conclusão uma construção meta-
mente. Esse princípio não só implica a física, afirmando que a propriedade
inversão dos elementos que constituem positiva do primeiro decorre da condição
as relações binárias, mas também negativa do segundo, assim como o
permite conceber esses elementos numa Há uma nova espécie de sentido de Deus depende da noção de
dimensão de antítese inclusiva, e não desconstrução em diabo. O vocábulo différance foi inventado
exclusiva. Nesse sentido, o conceito de andamento no ensaísmo para caracterizar esse processo de geração
verdade, por depender do de mentira, brasileiro, representada
do sentido, em que um significado
contém necessariamente um pouco de continuamente se refere a outro signi-
pelos textos de João Adolfo
seu oposto. Observe-se a idéia do bem. ficado e a toda a rede de significados da
Hansen (acima), que
Sabe-se que decorre de Deus, a origem língua, processo também designado de
utiliza fundamentos
total do ser. A noção do mal vem em suplementaridade do signo.
do historicismo de
segundo lugar e completa a plenitude As práticas de Derrida orientaram-se
de Deus, ao mesmo tempo que suple- Michel Foucault sobretudo para sistemas de interpretação,
menta e contamina a idéia de bem: pois, e não propriamente para obras literárias.
caso não houvesse o princípio da Queda, os significados e o respectivo sistema de Fundam-se principalmente em análises
seria impensável o conceito de bem. Vem signos, o homem estaria forjando a de pensadores como Platão, Rousseau,
daí que as antíteses conceituais do própria consciência, também constituída Nietzsche, Husserl, Freud, Marx e Lévi-
pensamento metafísico não passam de por elementos contrastivos. Strauss. Evidentemente, o filósofo de-
construtos culturais. Pertencem à ordem Como se vê, a linha de força do pen- teve-se também em textos ou concepções
dos signos, e não ao domínio das enti- samento derridiano consiste na teoria da artísticas, como é o caso de seus estudos
dades naturais. Mas qual a vantagem diferença, resultante de uma interpretação sobre Antonin Artaud e Mallarmé. A
desse tipo de desconstrução para a radical da lingüística de Saussure. partir daí, os sistematizadores da nova
filosofia da linguagem? Pela perspectiva Desenvolvendo criticamente a teoria do teoria estabeleceram alguns passos para
de Derrida, não só representaria um signo saussuriano, Derrida criou o a abordagem desconstrucionista do texto
estágio agudo do exercício crítico no vocábulo différance. Não só para se literário, como a seguinte, elaborada a
discurso das ciências humanas, como contrapor ao termo francês différence como partir de sugestões de Charles E. Bressler
também e principalmente revelaria também para complementá-lo. Trata-se e Jonathan Culler: (1) descobrir as
36 CULT - novembro/98
B I B L I O G R A F I A
novembro/98 - CULT 37
Fotos/Reprodução
3 8 CULT - novembro/98
Fotos/Reprodução
novembro/98 - CULT 3 9
Acima, Fontaine de Vaucluse, Foi em torno desse deslumbrante fenômeno natural o término de um imenso rio
paisagem que inspirou o poeta italiano Petrarca.
Acima, à dir., ruínas do castelo de Philippe de Cabassol,
subterrâneo cujo percurso permanece misterioso , isto é, da belíssima fonte da Sorgue,
amigo de Petrarca, que ali morou, com intervalos, que o poeta teria buscado refúgio para escrever sua obra lírica dedicada à amada
entre 1337 e 1353.
Laura, ou seja, à beira de le chiare, fresche e dolci acque....
Apesar da inspiração que tantos encontraram nos domínios da langue doc, a
produção literária nas línguas derivadas do occitan padeceu de sérios prejuízos quando
da imposição do francês como língua nacional (século XIX). Com objetivos de
assegurar o progresso, a unificação lingüística acabou por fazer com que quase
desaparecessem as línguas derivadas do occitan. Fredéric Mistral (1830-1914), nascido
e criado na vida rústica dos campos do sul, sofreu grande humilhação por causa de seu
falar provençal, quando enviado à escola.
Todavia, o preconceito fez fortalecer seu patriotismo e seu gênio, levando-o à expressão
literária em sua língua. De sua vasta obra, o poema mais importante é Mireille, vertido
para o português pelo poeta Manuel Bandeira com o nome de Miréia e publicado em livro
pela Editora Delta em 1962. Foi, porém, a grande ação lingüística de Mistral que lhe
valeu o Prêmio Nobel de 1904 e o prestígio internacional. Um de seus feitos mais
importantes que colaborou para a indicação ao Nobel foi a fundação, em 1854, da
Félibrige, uma escola literária com objetivo de promover um renascimento da cultura
provençal. E com os recursos adquiridos pela premiação, Mistral decidiu-se a criar o seu
último poema (como definiu), o Museu Arlaten, dedicado às tradições e artes de sua
terra. Situado num antigo palácio do século XVI (sobre os vestígios de um templo romano),
o museu oferece ao visitante uma bela amostra da história dos costumes regionais.
As terras meridionais francesas são, incontestavelmente, sacudidas por alguns
fenômenos naturais que tiveram no homem uma resposta artística condizente com a
variedade e o colorido local. As chuvas, por exemplo, mais violentas do que abundantes,
fazem alternar inundações com períodos de seca, sempre castigados pelo mistral, vento
típico que forçou a construção de casas campestres (mas) com paredes cegas na fachada
norte, e aglomerados em ruas estreitas nas cidades, com casas altas e fechadas, cobertas
de telhas caneladas. A essa paisagem somam-se ruínas de monumentos romanos,
iluminados por um sol ardente na primavera e no verão, cuja claridade se prolonga até
dez horas da noite. Bom número de pintores captou essa luz. Na região, há especialmente
Paul Cézanne, originário de Aix-en-Provence, em cujas telas se apresenta uma Provença
agrícola e rupestre, onde reinam as oliveiras. Dentre os estrangeiros, a grande marca
ficou por conta de Van Gogh, que viveu certo tempo em Arles.
Provavelmente aconselhado por seu amigo, o também pintor Toulouse Lautrec,
Van Gogh teria ido a Arles ao encontro do sol. E em suas telas estão pintados os cantos
4 0 CULT - novembro/98
Vales aromáticos
e claustros
Os dois primeiros parágrafos do primeiro
capítulo das Memórias de Mistral resumem
com precisão e beleza a paisagem da Provença:
Desde que me lembre, vejo diante de meus
olhos, no sul, lá embaixo, uma barreira de
montanhas cujos outeiros, declives, falésias e vales
A cadeia dos Alpilles azulavam, de manhã à tarde, mais ou menos claro
ou escuro, em altas vagas. É a cadeia dos Alpilles,
um verdadeiro belvedere de glória e de lendas.
Foi ao pé dessa muralha que o benfeitor de
Roma, Caio Mário, ainda popular em toda a
região, esperou os bárbaros, atrás das paredes de
seu campo; e seus troféus triunfais, em Saint-
Rémy sur les Antiques são, há dois mil anos,
dourados pelo sol. É na inclinação dessa costa
que se encontram os destroços do grande
aqueduto romano que levava as águas de Vaucluse
para dentro das Arenas de Arles: conduto que a
gente da terra denominava Ouide di Sarrasin (via
dos Sarracenos), pois é por ali que os mouros de
Espanha adentraram em Arles. É sobre as rochas
As Arenas de Arles
escarpadas dessas colinas que os príncipes de Baux
tinham o seu castelo. É nesses vales aromáticos,
em Baux, Romanin e Roque-Martine, que
tratavam das questões amorosas as belas castelãs
do tempo dos trovadores. É em Montmajour1
que dormem, debaixo das lajes do claustro,
nossos velhos reis arlesianos. É nessas grutas do
Vale do Inferno, de Cordes, que erram ainda
nossas fadas. É sob todas essas ruínas, romanas
ou feudais, que jaz a Cabra de Ouro2.
Frédéric Mistral
setembro/98 - CULT 4 1
novembro/98
da cidade nas cores das quatro estações. Sempre irascível, o renomado pintor teve de À esq., as ruínas do castelo de Baux-de-Provence,
região em que Dante teria se inspirado
tratar-se, durante suas crises de loucura, no hospital que hoje é um centro cultural em para escrever os círculos do Inferno.
sua homenagem: L Espace Van Gogh. Acima, o Museu Arlaten, último poema de Mistral.
4 2 CULT - novembro/98
100 ANOS
sem Mallarmé
MALLARMÉ
de nascimento do
poeta francês.
44 CULT - novembro/98
Ao lado, Manuel Bandeira na
Academia Brasileira de Letras,
em 1966. Na página oposta,
Mallarmé fotografado por
Nadar, por volta de 1882.
Não foi sem grandes perplexidades duzida ao seu ritmo essencial, no sentido se roulait le maigre chat noir; les grands feux!
que recebi do presidente desta casa o secreto das aparências do mundo era para et la bonne aux bras rouges versant les
encargo de celebrar a passagem do ele a única tarefa que autenticava a charbons, et le bruit de ces charbons tombant
centenário de Mallarmé. Como fazê-lo? existência terrestre do verdadeiro artista. du seau de tôle dans la corbeille de fer, le matin
A homenagem mais cara do mestre seria A poesia foi o seu culto, e a sua iniciação alors que le facteur frappait le double coup
esculpir em soneto um túmulo à maneira literária na adolescência assumiu o solennel, qui me faisait vivre! Jai revu par
dos que ele próprio levantou, em versos aspecto de uma clausura religiosa. Mal les fenêtres ces arbres malades du square désert
imperecíveis, à memória de Poe, de saído do liceu de Sens, onde terminou os jai vu le large, si souvent traversé cet hier-
Baudelaire e de Verlaine. Seria para mim estudos, e tendo aprendido o inglês para là, grelottant sur le pont du steamer mouillé
demasiada ambição: le pietre serait châtié. ler Poe no original, partiu para a Ingla- de bruine et noirci de fumée avec ma pauvre
Os versos de Mallarmé são daqueles que terra, a fim de fugir principalmente (toda bien-aimée errante, en habits de voyageuse,
nos introduzem de golpe na cidadela a sua vida e obra foi sobretudo uma evasão une longue robe terne de couleur de la poussière
mesma da poesia. Temi o desastre numa do vomissement impur de la bêtise), mas des routes, un manteau qui colait humide à ses
tentativa de interpretação das palavras também para aprender a falar o inglês e épaules froides, un de ces chapeaux de paille
magistrais de Valéry e Claudel, para só ensiná-lo num curso, sem outro ganha- sans plume et presque sans rubans, que les
citar dois críticos que são dois grandes pão obrigado, conquistando assim a riches dames jettent en arrivant, tant ils son
poetas. Relembrar-lhe a vida exemplar? independência literária. Tinha então vinte déchiquetés par lair de la mer et les pauvres
Ordonner, disse ele, en fragments intelli- anos e já havia se casado. Um ano depois bien-aimées regarnissent pour bien des saisons
gibles et probables, pour la traduire, la vie de regressar à França, evocava ao calor encore.... Cito o trecho para mostrar, aos
dautrui, est tout juste impertinent. Mas já de seu cachimbo a Londres onde viveu que só conhecem Mallarmé pela sua
que o fez a propósito de Rimbaud, pobremente de lições de francês, muito fama de hermetismo, a funda ternura
julguei-me autorizado à ce genre de méfait. só, porque a esposa não pudera acom- existente nesse homem que poderia, se
Singular momento este, de universal panhá-lo e visitava-o de raro em raro. quisesse, ter conquistado o grande
convulsão, para falar de um homem que Mallarmé amava os nevoeiros londrinos, público, mas preferiu isolar-se, quase
no seu tempo deu resolutamente as costas inseparáveis da cidade, nevoeiros inacessível, no seu altivo sonho de
à vida, considerando a época em que monumentais qui emmitoufflent nos absoluto. Onde, em qualquer literatura,
viveu, como um interregno para o poeta, cervelles et ont, là-bas, une odeur à eux, quand alguma coisa mais tocante que esse triste
um interregno de efervescência prepa- ils pénètrent sous la croisée. Essa página chapéu batido que les pauvres bien-aimées
ratória, em que o seu papel não deveria em que ele revive os seus dias na Inglaterra regarnissent pour bien des saisons encore?
ser outro senão trabalhar com mistério é das mais simples e das mais comovidas Em setembro de 63 obtinha
en vue de plus tard ou jamais. Trabalhar em que escreveu: Mon tabac sentait une Mallarmé o certificado de habilitação ao
quê? Na interpretação do universo, pois chambre sombre aux meubles de cuir sau- ensino, e dois meses depois era nomeado
exprimir pela humana linguagem, recon- poudrés par la poussière du charbon sur lesquels professor no colégio de Tournon, com
novembro/98 - CULT 45
Para Mallarmé, a única tarefa Charles Baudelaire,
fotografado por Nadar
que autenticava a existência
do verdadeiro artista era
trabalhar na interpretação do
universo e exprimi-lo pela
humana linguagem. A poesia
foi o seu culto, e sua iniciação
literária assumiu o aspecto de
uma clausura religiosa.
1.700 francos anuais. Começa então seu Qui mire aux grands bassins sa langueur trofe do velho náufrago: non, un coup de
martírio. Era a independência literária [infinie dés, jamais, quand bien même lancé dans des
que desejara, mas a que preço! o ramerrão Et laisse, sur leau morte où la fauve agonie circonstances éternelles nabolira le hasard.
de classes em face de alunos desatentos Des feuilles erre au vent et creuse un froid Todavia a visão da obra pura apontou
que o chamavam le bonhomme Mallarmé [sillon, ao poeta o seu caminho, e desde aquela
e chegaram muitas vezes ao desplante dos Se traîner le soleil jaune dun long rayon. noite de Tournon ele poderia dizer que o
apupos e das pedradas, as manhãs e as exprimirá mais tarde na Prose pour des
tardes perdidas no ofício insulso e fati- Bastaria a Mallarmé persistir a meio
esseintes:
gante, o extenuamento aussitôt que sallume de sua personalidade para se revelar, como
Glorie du long désir, Idées
la lampe du soir, ô derision! disse Valéry, o que de fato era o primeiro
Tout en moi sexaltait devoir
Entretanto, os seus primeiros poemas poeta de seu tempo. Mas ele não nascera
La famille des iridées
Les fenêtres, Les fleurs, Azur, Brise senão para tentar o desastre obscuro, para
Surgir à ce nouveau devoir
marine, publicados em L artiste ou no realizar o Livro a que converge toda a
primeiro Parnasse começavam a despertar a vida, para escrever a versão condensada e Em 65, nascimento de sua filha
atenção e a estima das rodas literárias definitiva do único assunto: lantagonisme Geneviève, a que devemos os quatorze
parisienses. Eram versos onde se traía ainda du rêve chez lhomme avec les fatalités à son versos de Don du poème com o seu mara-
a influência absorvente de Baudelaire, mas existence départies par le malheur, o drama vilhoso alexandrino inicial:
aqui e ali já repontavam as deliciosas, da impotência criadora, da ação Je tapporte lenfant dune nuit dIdumée!
pudicas metáforas mallarmeanas. Assim consciente do artista o lance de dados Já aqui vemos aplicado o conceito
em Soupir, jogo dágua com a sua parábola em luta com o acidental, com o acaso. orquestral de poesia desenvolvido em
perfeita e aquele sortilégio de dissolver em Foi em Tournon, aos 24 anos, que Mal- prosa nas Divagations: através dos véus da
imagens os elementos esparsos da beleza larmé teve o que chamou a visão hor- ficção, desprender o assunto de sua
para reordená-los em seus valores essenciais: rível de uma obra pura, cometeu o estagnação acumulada ou dissolvida com
Mon âme vers ton front où rêve, ô calme pecado de ver o Sonho em sua nudez arte começar por uma afirmação como
[soeur, ideal. Dessa noite de vigília, dessa um pórtico de acordes convidando a que
Un automne jonché de taches de rousseur, iluminação fulminante e dolorosa resul- se componha, em retardos liberados pelo
Et vers le ciel errant de ton oeil angélique tou Igitur, que Mallarmé só leu para eco, a surpresa; ou o inverso: atestar um
Monte, comme dans un jardin alguns raros amigos e nunca publicou, estado de espírito em certo ponto por um
[mélancolique, que Claudel classifica como um drama, sussurro de dúvidas para que delas saia
Fidèle, un blanc jet deau soupire vers o mais belo, o mais comovente produ- um esplendor definitivo simples. O pri-
[lAzur! zido no século XIX. Trinta anos depois meiro processo, empregado em Don du
Vers lAzur attendri dOctobre pâle et a vitória do herói criança le hasard poème como em L après-midi dun faune
[pur vaincu mot par mot se converte na catás- (Ces nymphes, je les veux perpétuer!); o
46 CULT - novembro/98
Mallarmé
Seus primeiros poemas cedo em 1896
despertaram a atenção e a
estima das rodas literárias
parisienses. Eram versos onde
se traía ainda a influência
absorvente de Baudelaire, mas
aqui e ali já repontavam as
deliciosas, pudicas metáforas Vida e obra
mallarmeanas.
1842 Nascimento de Étienne
Mallarmé – nome verda-
deiro do poeta Stéphane
Mallarmé – no dia 18 de
março, em Paris, filho do
funcionário público
Numa Florent Joseph
Mallarmé e de Élisabeth
segundo mais freqüente, em vários título até os anúncios, tudo, salvo Félicie Desmolins.
sonetos, rematados por um verso que se algumas colaborações literárias, era da
diria organizar todo o poema numa própria mão de Mallarmé. A revis- 1847 Morte de sua mãe.
constelação de que ele fica sendo a estrela tazinha definia-se como uma gazeta do
alfa: mundo e da família, onde se promul-
1852 Estuda no pensionato dos
Ainsi quune joyeuse et tutélaire torche... gavam as leis e verdadeiros princípios
padres das Écoles
De scintillations sitôt le septuor... da vida estética, com o exame dos
Chrétiennes de Passy.
Une rose dans les ténèbres... menores detalhes: toilettes, jóias,
mobiliário e até espetáculos e menus
Em 66 as manobras, junto à admi- 1853 Seu pai é transferido para
de jantares. Oito páginas de pequeno
nistração, de alguns pais de alunos a cidade de Sens.
formato in-folio, capa azul-turquesa, e
escandalizados com os versos do pro- no texto, aqui e ali, vinhetas desenhadas
fessor-poeta conseguem, senão a demis- 1854 Escreve seus primeiros
por Morin. Durante nove números,
são, ao menos a remoção do funcionário poemas.
Mallarmé despendeu em benefício de
para Besançon, onde a vida se lhe tornou suas caras leitoras desconhecidas, de ses
ainda mais dura, longe de seus caros très vraies chères abonnées, os tesouros de 1856 Estuda no liceu de Sens
felibres, Mistral, Aubanel, Roumanille, suas delicadezas de poeta. As descrições como aluno interno.
Gras, Roumieux. Felizmente um ano dos vestidos na Dernière Mode têm o
depois volta ele ao sul e até 72 assiste sabor de poemas compostos especial- 1858 Depois de terminar o
em Avignon. No mês de outubro, graças mente para lisonjear a imaginação curso secundário, estuda
ao historiador Seignobos, seu ex-aluno feminina. As senhoras aqui presentes retórica e lógica no
de Tournon, que aliás o considerava uma gostarão de ouvir, estou certo, um ou mesmo liceu.
espécie de degenerado inofensivo, Mal- dois grandes exemplos dessa literatura
larmé obtém a nomeação para o liceu de modas introduzida no domínio da
Fontanes, depois Condorcet, em Paris. grande arte de um grande poeta:
A vinda para a capital encheu-o de Toilette de dîner (en cachemire, je lai
grandes esperanças, e houve um mo- vue rose, comme vous pouvez la voir bleue):
mento mesmo que aquele Hamlet- le tablier de la première jupe est garni de
professor, como lhe chamou Remy de maint bouillon horizontal, froncé à deux fils
Gourmont, teve a ilusão de poder avec têtes étroites de chaque côté... Continua
evadir-se do ingrato ofício de ensinar a descrição e acaba estas palavras que
inglês em liceus, lançando uma revista esclarecem a origem do costume atual dos Mallarmé,
La Dernière Mode, na qual, desde o Worth e das Schiapparelli, de dar nome por ele mesmo
novembro/98 - CULT 47
Mallarmé foi, como disse Paul Valéry, que
Valéry, o primeiro poeta de costumava visitar
Mallarmé nos últimos
seu tempo. Mas ele não anos de vida do poeta
aos vestidos-modelos: À celle dentre vous, gratuitamente. Ia algumas vezes à casa O alexandrino de Laprès-midi marca o
Mesdames, qui la prèmiere portera cette de Hugo, que gostava de o chamar, rompimento com a técnica oficial
toilette, lhonneur de lappeler, car un joli beliscando-lhe afetuosamente a orelha, parnasiana. Não que Mallarmé aborre-
usage, datant de quelques jours (a revista é mon cher poète impressioniste; avistava- cesse o alexandrino clássico, o alexan-
de 74) veut quune robe se nomme de la femme se freqüentemente com Banville, que drino en grande tenue, grande voz da
qui, par son port, charme et distinction, lui a, com Villiers de lIsle Adam, tinham a tradição, cara a quem não aceitava o
dans le monde, acquis la célébrité et le prestige! preferência entre todos os confrades que banimento de nada que tivesse sido belo
Outro vestido, este bleu-rêve, é assim admirava, e Mallarmé, não obstante os no passado; mas ao lado do órgão
descrito: On na quà le vouloir, pour se figurer seus pontos de vista e gosto tão venerável queria ele também a maliciosa
une longe jupe à traîne de reps de soie, du bleu requintadamente pessoais, possuía o siringe, instrumento das fugas; queria,
le plus idéal, ce bleu si pâle, à reflets dopale, raro dom generoso da admiração, distin- ao lado do alexandrino bem ortodoxo
qui enguirlande quelquefois les nuages guindo prontamente em cada um o que na sua cesura regular, uma espécie de jeu
argentés... era digno de apreço e assinalando-o com courant pianoté autour, como um
Não tardou a se desfazer a ilusão do tato impecável. Teve verdadeiramente o acompanhamento musical feito pelo
cronista estético: Mallarmé foi roubado gênio da amizade, exercido em derra- próprio poeta e não permitindo ao verso
de sua iniciativa e do seu trabalho. Je ne mamentos, antes com uma discrição que oficial comparecer senão nas grandes
sais au juste entre les mains de qui va tomber deixava encantados os que dele recebiam ocasiões.
cette feuille, mais tout me fait croire quelle uma palavra ou uma linha de louvor. Muitos são os poemas de Mallarmé
va servir à de vagues chantages, à des Nunca disse mal de ninguém nem jamais de interpretação difícil senão impossível.
mariages et à dautres combinaisons. De fato, revidou a campanha de ridículo que lhe Não assim a sua estética e a sua técnica,
a gazeta caiu nas mãos de uma mulher moviam na imprensa os que não lhe de que podemos colher quase toda a teoria
que fez dela uma revista banal. compreendiam a poesia. nas páginas de prosa das Divagations.
Foi nesse mesmo ano de 74 que Em 75 estava concluído Laprès-midi Não me parece a poesia mallar-
Mallarmé se instalou no famoso aparta- dun faune, o qual, na falta do grande meana tão pura quanto se tem afigurado
mento da rue de Rome e alugou em Livro sonhado na memorável noite de aos seus críticos. Certo purificou-a o
Valvins, à beira do Sena e à vista da Tournon, de que Igitur permaneceu poeta de todo elemento estranho ao
floresta de Fontainebleau, uma casinha esboço e Un coup de dés um capítulo que sentido poético essencial, da humana
onde passava as férias. A sua vida era a a ele próprio deixava em estado ver- paixão que chora (porque não se assoa
mais discreta possível: não ia a parte tiginoso, representa a sua realização também? perguntou de uma feita), e
alguma, salvo os concertos dominicais e mais perfeita. O poema deveria ser dito daquilo a que chamou o dom elocutório,
a visita diária, de volta do liceu, ao pintor por Coquelin aîné, pois o poeta e mesmo da mera realidade dos materiais
Manet; não dava colaboração literária imaginara-o absolutamente cênico, não naturais. A este último aspecto é a sua
senão às pequenas revistas de novos e possível no teatro, mas exigindo o teatro. poesia de natureza platônica, no esforço
48 CULT - novembro/98
Água-forte
Teve a ilusão de poder evadir- de Gauguin,
novembro/98 - CULT 49
Em 1874, Mallarmé se Ao lado, Victor Hugo,
instalou no apartamento da fotografado por Nadar.
À dir., retrato de Mallarmé,
rue de Rome. Não ia a parte pintado por Manet.
idioma supremo em que as palavras Sens-tu le paradis farouche que se fazem versos: é com palavras.
figurassem materialmente a verdade. A Ainsi quun rire enseveli Para Mallarmé, como para todo ver-
Poesia é que dá o verdadeiro timbre às Se couler du coin de ta bouche dadeiro poeta, a poesia confunde-se com
coisas por meio das imagens. E aqui Au fond de lunanime pli! a linguagem, e, como explicou Valéry, é
entramos em outro domínio, onde o leitor linguagem em estado nascente.
mal dotado de instinto poético se perde Le sceptre des rivages roses Todos esses aspectos, pontos capitais
na incompreensão do poeta. Mallarmé Stagnants sur les soirs dor, ce lest, da técnica de Mallarmé, e aquele per-
jogava com as analogias numa espécie de Ce blanc vol fermé que tu poses
pétuo desígnio de transmudar a realidade
contraponto, instituía entre as imagens Contre le feu dun bracelet.
em sonho, motivo de todos os seus
(e raramente exprimia o primeiro termo Essa incomparável jóia de poesia está devaneios, ou nas noites de vigília no
delas) uma certa relação donde se cheia de imagens audaciosas em sua gabinete da rue de Rome, junto à fulgurante
destacava um terceiro aspecto fusível e extrema delicadeza. Assim ampliar o vai- console, ou em suas horas solitárias na iole
encantatório apresentado à adivinhação. vem do leque no gesto de aproximar e de Valvins, estão presentes nesse poema
Nomear o objeto seria a seu ver suprimir recuar o horizonte. Imagens que re- do fauno, em que renovou magistral-
três quartas partes do gozo do poema, pugnam a tantos, cuja incompreensão se mente o gênero antigo da égloga. Por isso
gozo que nasce da felicidade de adivinhar. assemelha à de certos maus alunos de Thibaudet classificou-o na obra do poeta
A poesia é um sortilégio, uma força de literatura, adolescentes mal iniciados à como le morceau des connaisseurs.
sugestão. No poema feito para sua filha verdade superior da poesia e que riem Pois bem, essa obra-prima, transpa-
Geneviève a palavra leque só aparece quando lhes cito a comparação do Cântico rente em seu tema e tão límpida de forma,
no título e seria dispensável: dos Cânticos: O teu cabelo é como o foi recusada pelo leitor de Lemerre para
O revêuse, pour que je plonge rebanho de cabras que pastam no monte o terceiro fascículo do Parnasse Contem-
Au pur délice sans chemin, de Gilead. A mesma incompreensão dos porain. E sabeis quem era esse leitor?
Sache, par un subtil mensonge, discípulos de Jesus que, ouvindo-o dizer: Anatole France. O voto de France foi
Garder mon aile dans ta main. Eu sou o pão que desceu do céu, se secundado por Coppée e venceu, apesar
Une fraîcheur de crépuscule puseram a murmurar perplexos: Duro é do protesto de Banville. Non, ponderou
Te viente à chaque battement. este discurso: quem o pode ouvir? France, on se moquerait de nous! O mesmo
Dont le coup prisonnier recule Conta Valéry que certa vez o pintor júri condenou um soneto de Verlaine.
Lhorizon délicatement Degas se queixou a Mallarmé de ter Que soneto? Aquele, incluído depois em
perdido o dia na vã tentativa de escrever Sagesse, que começa pelo verso famoso:
Vertige! voici que frissonne um soneto. No entanto, acrescentou Beauté des femmes, leur faiblesse et ces mains
Lespace comme un grand baiser não são as idéias que me faltam... Tenho- pâles... A sentença de France: Non, lauteur
Qui, fou de naître pour personne, as até demais. Ao que o mestre res- est indigne et les vers sont des plus mauvais
Ne peut jaillir ni sapaiser. pondeu: Mas, Degas, não é com idéias quon ait vus. Cabe lembrar aqui a dife-
50 CULT - novembro/98
1867 Leciona no liceu de
Avignon.
novembro/98 - CULT 51
Em 1875, estava concluído Caricatura de uma
Laprès-midi dun faune, edição do poema
L’après-midi d’un faune
poema que marca sua ruptura
formal com o parnasianismo.
Imaginara-o absolutamente
cênico, não possível no teatro,
mas exigindo o teatro. É sua
realização mais perfeita.
barba e cabelos grisalhos, bigode espesso, mestre: Wilde viendra chez vous. Serrez vírgula como para marcar entre os dois
olhos penetrantes, muito afastados, largenterie. um instante de reflexão, de escolha. Ainsi,
orelhas de fauno, voz melodiosa, de um Mallarmé, conta Mauclair, não par ce midi, lautre dimanche, automnal... le
timbre raro, com súbitas notas agudas, nos ensinava. Mas fazia melhor do que pauvre trumeau, suranné, avec le rien de
talvez já sintoma da moléstia de laringe isso: pelo encanto de sua palavra e de sua mystère, indispensable... plutôt que tendre le
que o vitimaria. Sorriso de extraordinário pessoa punha cada um de nós em estado nuage, précieux... Escrever para ele era
encanto. Vestia sempre roupa preta, de poesia. Foi essa mocidade que, em mobilizar toda a sorte de sugestões
comprada pronta, lavallière preta e nos 97, elevou Mallarmé ao posto de Príncipe fugitivas em torno da idéia e nessa
ombros, porque era muito friorento, um dos Poetas, vago com a morte de Verlaine. mobilização a sua disposição habitual era
plaid. Na atitude em que o representa o Nada, porém, desarmava a incom- refugar a solução imediata com a sua luz
famoso retrato de Whistler, encostava-se preensão. É verdade que o poeta por seu crua, a solução vulgar, pois vulgaire lest es
ao fogão e ficava em pé todo o tempo, lado nada fazia para desarmá-la. Ao à quoi on decérne, pas plus, un caractère
fumando o seu inseparável cachimbo. contrário, cada vez se envolvia em névoas immédiat. Eis um bom exemplo da sua
Quem eram os visitantes? Henri de mais densas, ironicamente satisfeito de sintaxe. Falando da Academia Francesa,
Régnier, que Remy de Gourmont conta afastar de sua obra os espíritos superficiais, prezada tão alto que o ato de a nivelar às
ter visto corar ao receber o primeiro encantados de ver num escrito que nada outras classes do Instituto lhe parecia de
discreto elogio de Mallarmé, Gide, que lhes concerne à primeira vista. Diante da mão política e sacrílega, começou com
acabara de publicar Les cahiers dAndré agressão de inteligibilidade, preferia estas palavras: La plus haute institution
Walter, Pierre Louÿs, André Fointainas, retorquir que a maioria dos contem- puisque la royauté finie et les empires, grave,
Odilon Redon, Albert Mockel, Viélé porâneos não sabe ler senão os jornais. superbe, rituelle est, nattendez la Chambre
Griffin, Stuart Merrill, Edouard Dujar- Às obscuridades naturais resultantes représentative, directe, du pays si une autre
din, o médico Edouard Bonniot, que de seu conceito de poesia, juntou as de dure que tarder à nommer paraît irrespectuex,
depois veio a casar com Geneviève, uma sintaxe própria, substancial e lAcadémie. Este curto período resume
Valéry, que confessou ter sentido diante concentrada como uma fórmula algé- todo o processo mallarmeano de compo-
da obra e da figura do mestre a progres- brica. O que ele escrevia não parece pro- sição, de organização de um sistema de
são fulminante de uma conquista espiri- duto do pensamento, mas o próprio incidentes em torno de uma idéia e
tual definitiva. E outros. Às vezes apare- pensar em sua origem e evolução dialé- tendendo não à cadência redonda, mas a
ciam estrangeiros de passagem por Paris: tica, fecundo em incidentes atentos em se um remate agudo com o bico da pena
o inglês Symonds, o alemão Stefan organizar num sistema indeformável à pingando o ponto final. Este último
George, o dinamarquês Brandes. Oscar balancement prévu dinversions. Despojava- processo, tão inabitual na prosa francesa
Wilde anunciou-se uma noite, o que pro- se por elipse o mais possível dos termos desde a reforma de Guez de Balzac, é
vocou um petit-bleu do malicioso Whistler da relação. Gostava de separar, às vezes, freqüentíssimo em Mallarmé. A análise
com a recomendação cautelosa ao o adjetivo qualificativo ou uma simples do segredo é aliás fácil: um substantivo,
52 CULT - novembro/98
A poesia mallarmeana é Méry Laurent,
amante do poeta
essencialmente musical, não
no sentido puramente sonoro
ou melodioso, mas na
imanência do conteúdo com
a forma. Sua técnica de poeta
é uma orquestração da
linguagem, e o alexandrino foi
para ele uma combinação de 1884 É nomeado professor de
doze timbres. inglês no liceu Janson-de-
Sailly.
1889 Mantém um
relacionamento amoroso
com Méry Laurent.
Mallarmé e Manet visitam
Monet em Giverny.
de uma ou duas sílabas, separado de sua brar festas e aniversários, para enviar um
regência por uma longa incidência, presente flores ou frutas, ovos de Páscoa, 1891 No auge da glória
termina bruscamente o período: À côté de um livro, um leque, um retrato, Mal- literária, recebe a visita
lAmérique que vous et moi portons haut dans larmé fazia-o sempre acompanhar de de Paul Valéry.
notre estime (il est, hélas! comme un pays dans alguns versos onde punha a dupla deli-
un pays), jen sais une à jamais offusquée par cadeza do seu afeto e da sua arte. A ima- 1894 Primeira audição do
cet état trop vif, Poe... Outro exemplo: gem do horizonte no leque de mlle. Prélude à L’après midi
Constater que la notation de vérités ou de Mallarmé reaparece com uma nova graça d’un faune, do compositor
sentiments pratiquée avec une justesse presque nesta quadra: Claude Debussy, baseado
abstraite, ou simplement littéraire dans le Jadis frôlant avec émoi na obra de Mallarmé.
vieux sens du mot, trouve, à la rampe, la vie. Ton dos de licorne ou de fée,
Todos esses traços pessoais de sintaxe Aile ancienne, donne-moi 1897 Publicação de Un coup
dificultam a leitura de Mallarmé, mas Lhorizon dans une bouffée. de dés.
essa espécie de obscuridade se dissipa com Algumas dessas quadras são madri-
alguma prática do autor. Afinal a sintaxe gais de uma sutileza jamais excedida: 1898 Retoma o trabalho da
é um hábito, e como condenar por Avec mon souhait le plus tendre, Hérodiade, que
ininteligíveis as singularidades do poeta Comme il sied entre vieux amis, permanecerá inacabada.
em nome de uma sintaxe oficial que Dans cette main quon aime à tendre Sofre uma crise respiratória
admite o anacoluto? A sintaxe de Mal- Je dépose le fruit permis. e morre em Valvins no dia
larmé reagiu contra a sintaxe corrente do 9 de setembro.
século XIX para acentuar os mil cam- Ces vers qui se ressembleront!
biantes do ato de pensar, aos quais corres- Prêtez-leur la voix spontanée
pondiam nos séculos anteriores outras De dire, moins que votre front,
tantas formas de construção, ricas de Le mensonge de toute année.
expressividade, e infelizmente banidas da Um copo de água lhe suscita este
linguagem escrita em nome de uma cristal do mais puro brilho mallarmeano:
clareza tão empobrecedora do mistério Ta lèvre contre le cristal
poético da palavra. Gorgée à gorgée y compose
O austero conceito de arte a que o Le souvenir pourpre et vital
poeta sacrificou materialmente a sua vida, De la moins éphémère rose.
não admitiu nunca outra diversão senão Nesses momentos de détente no seu
aquelas deliciosas bagatelas por ele árduo esforço para o livre ideal, o poeta
chamadas vers de circonstance: para cele- se permite até o sorriso de um trocadilho: A casa do poeta em Valvins
novembro/98 - CULT 53
Diante da agressão de Auto-retrato
Ici même lhumble greffier Que rêve mon ami Verlaine Facteur qui de létat émanes
Atteste la mélancolie Ru Didot, Hôpital Broussais. Cest au neuf que nous nous plaisons
Qui le prend dortographier De te lancer, Boulevard Lannes,
Julie autrement que Jolie. L âge aidant à mappensantir, À la seule entre les maisons.
Il faut que toi, ma pensée, ailles
Às vezes lhe bastam apenas dois versos Seule rue, 11, de Traktir, Estes últimos endereços não levavam
de oito sílabas para captar o infinito da Chez laimable Monsieur Séailles. o nome da destinatária, só escrito num
aurora ou de um rosto feminino: impessoal e irônico:
Tends-nous aujourdhui comme joue Leur rire avec la même gamme Paris, chez Madame Méry
Cette rose où laube se joue. Sonnera si tu te rendis Laurent, qui vit loin des profanes
Chez Monsieur Whistler et Madame, Dans sa maisonnette very
E enviando uma redezinha de pesca: Rue antique du Bac 110. Select du 9 Boulevard Lannes.
Je vous rends, Claire de Paris,
Le filet, mais jy reste pris. Até aqui temos apenas o jogo verbal, Por mais óbvio que seja nessas ba-
que não exclui o balancement dinventions gatelas o desejo de brincar, há sempre
Um dia a relação evidente entre o habitual na sua grande arte. Mas os dois nelas aquela intenção que Mallarmé pôs
formato dos envelopes e a disposição de endereços seguintes, feitos para pintores em seus poemas mais ambiciosos, isto é,
uma quadra levou Mallarmé, por puro queridos, já são autênticos poemas: a de traduzir o fugaz e o súbito em idéia,
sentimento estético, a escrever em versos Ville des Arts, près lAvenue de isolar para os olhos um sinal da esparsa
os endereços das cartas que mandava aos De Clichy, peint Monsieur Renoir beleza geral. Pode-se dizer que depois de
amigos. E convém que se diga, para Qui devant une épaule nue Hérodiade e de L après-midi dun faune, e
honra dos Correios de França, que Broie autre chose que du noir. excetuados o soneto do Cisne e o que
nenhuma deixou de chegar ao destina-
Au cinquante-cinq, avenue começa pelo verso Quand lombre menaça
tário, por mais mallarmeano que fosse o
Bugeaud, ce gracieux Helleu de la fatale loi, e o poema tipográfico do
endereço, o que sem dúvida deve ter
Peint dune couleur inconnue Coup de dés, toda a obra poética de
consolado um pouco o poeta da agressão
Entre le délice et le bleu. Mallarmé são versos de circunstância, em
de obscuridade.
que no fundo ele como que descansava
Alguns exemplos:
A casa nº 9 do Boulevard Lannes ficou da sua eterna meditação sobre o grande
Courez, les facteurs, demandez
Afin quil foule ma pelouse imortalizada em várias quadras, tanto tema único.
Monsieur Francois Coppée, un des quanto em vários sonetos, fulgurantes e Em 85, depois de passar pelo liceu
Quarante, rue Oudinot, douze. sibilinos, a sua locatária, por quem o Janson-de-Sailly, foi o professor de inglês
coração do poeta ardeu numa chama, de transferido para o Collège Rollin, onde
Je te lance mon pied vers laine, que fez confidente a administração dos permaneceu até à sua jubilação em 93. O
Facteur, si tu ne vas où cest Correios. Pois não é confidência dizer: seu pedido de aposentadoria é um docu-
54 CULT - novembro/98
A relação entre o formato dos Obras de Mallarmé na França
envelopes e a disposição de Oeuvres complètes, Paris, Gallimard,
uma quadra o levou a escrever Bibliothèque de la Pléiade.
Correspondance, organizée par Henri
em versos os endereços das Mondor et L.J. Austin, Paris,
cartas que mandava aos amigos. Gallimard.
Propos sur la poésie, org. par H.
Para honra dos correios da Mondor, Monaco, Rocher.
França, nenhuma deixou de Le Livre de Mallarmé, Paris,
Gallimard.
chegar ao destinatário, por mais
mallarmeano que fosse o Mallarmé no Brasil
endereço. Mallarmé, traduções e ensaios de
Augusto de Campos, Decio Pignatari e
Haroldo de Campos, Ed. Perspectiva.
Poesia-Experiência, traduções e ensaio
de Mário Faustino, Ed. Perspectiva.
Poemas, organização e tradução de
José Lino Grünewald, Ed. Nova
Fronteira.
Contos indianos, tradução de Yolanda
Steidl de Toledo, Ed Experimento.
mento comovente em sua digna sim- encanta par une fidélité à tout ce qui fut une O espelho interior. O mito solar nos
plicidade: Après trente ans de service, je me simple et superbe tradition et ni gêne ni ne Contos indianos de Mallarmé, de Lucia
Fabrini de Almeida, Ed. Annablume.
trouve à cause dun état maladif que détermine masque lavenir.
Prosas de Mallarmé, tradução de
la fatigue de lenseignement, arrêté dans mes Minhas senhoras e meus senhores, Dorothée de Bruchard, Ed. Paraula.
fonctions et incapable de continuer, quoique je chegando ao fim destas pobres palavras, Brinde fúnebre e prosa, tradução e
naie que cinquante et un ans et demi dâge... dom obscuro à glória do grande artista anotações de Júlio Castañon
Mas o cansaço de Mallarmé não o de França, sinto que o meu caro amigo, o Guimarães, Ed. Sette Letras.
incapacitava tão-somente para o ensino: ilustre Presidente desta casa, fiou demais Livros sobre Mallarmé fora
incapacitava-o também para a obra da minha qualidade de poeta. Reli o do Brasil
sonhada na vigília de Tournon. O poeta mestre muitas vezes, li tudo o que pude La métaphore dans loeuvre de Stéphane
foge de Paris e se recolhe à solidão da achar sobre ele. Mas de toda essa apli- Mallarmé, de Deborah Amelia Kirk
casinha de Valvins. Foi lá que concluiu, cação não pude tirar senão o conforto de Aish, Paris, Droz, 1938.
em 97, Un coup de dés, tão estranho a viver durante algumas semanas na som- Lentretien infini, de Maurice Blanchot,
todos os aspectos que o próprio Mal- bra do morto inesquecível. Guardo a Paris, Gallimard, l969.
larmé, lendo-o para um amigo, per- impressão de ter freqüentado um pouco Loeuvre de Mallarmé. Un coup de dés,
de Robert Greer Cohn, Paris, Les
guntou-lhe depois: Est-ce que cela ne o salãozinho da rue de Rome, de ter Lettres, 1951.
vous parâit tout à fait insensé? Nest-ce pas ouvido o mestre dizer através das fumaças Vues sur Mallarmé, de Robert Greer
un acte de démence? do seu cachimbo as palavras que nos Cohn, Paris, Nizet, 1991.
É de fato um ato de demência mas o confirmam na dignidade do labor poé- La dissémination, de Jacques Derrida,
amigo poderia responder-lhe com as tico. E vejo mais claro do que antes aquela Paris, Seuil, 1972.
palavras de Novalis: O poeta é ver- plumazinha que se salvou da catástrofe La religion de Mallarmé, de Bertrand
Marchal, Paris, Corti, 1988.
dadeiramente insensato, e é por isso que do Coup de dés, pluma certamente caída Vie de Mallarmé, de Henri Mondor,
tudo acontece realmente nele. O poeta da gorra de Hamlet, frémissement vers Paris, Gallimard, 33e édition, 1941.
representa, no sentido próprio da pa- lidée, pousar, misteriosa e eterna no céu Vingt poèmes de Stéphane Mallarmé, de
lavra, o sujeito-objeto: a alma deste da mais alta poesia. E. Noulet, Genève, Droz, 1967.
mundo. L univers imaginaire de Mallarmé, de
No dia 9 de setembro de 98 o Mestre Copyright © Antonio Manuel Bandeira Jean Pierre Richard, Paris, Éditions du
Seuil, 1961.
morria quase subitamente num espasmo Cardoso
Grammaire de Mallarmé, de Jacques
da laringe. Morria sem realizar o sonho Este ensaio foi publicado recentemente na
Scherer, Paris, Éd. A.G. Nizet, 1977.
da juventude, mas deixando à posteridade antologia Seleta de prosa (editora Nova Variété 1 et 2, de Paul Valéry, Paris,
uma obra da natureza daquelas que lhe Fronteira), que reúne textos de Manuel Gallimard, Colléction Idées, 1978.
mereciam, sobre todas, a simpatia: obra Bandeira organizados por Júlio Castañon La révolution du langage poétique, de
restrita e perfeita, onde há uma arte que Guimarães Julia Kristeva, Paris, Seuil, 1974.
novembro/98 - CULT 55
Um café com
A trinca do Curvelo voltou a se
reunir. E também pode-se dizer que a
velha boemia carioca com seus estranhos
personagens, como o místico Jayme
Ovalle, está novamente ao alcance de
qualquer leitor. Depois de muitos anos
longe das livrarias, a crônica, a melhor
crônica, de Manuel Bandeira, com alguns
de seus ensaios e a íntegra de Itinerário de
Pasárgada surgem no livro Seleta de prosa,
organizado pelo crítico Júlio Castañon
Guimarães e publicado pela Nova Fron-
teira. A obra de fato saiu no ano passado
com o carimbinho do MEC, porém,
agora, chega às livrarias. Mais que na
hora, pois a prosa de Bandeira, além de
iluminar muito de sua poesia, é sempre
saborosa (basta ler o ensaio O
centenário de Stéphane Mallarmé, que
a CULT publica neste número).
O livro aparece como uma home-
nagem aos 30 anos de morte do poeta.
Bandeira morreu na sua adorada Rio de
Janeiro, no dia 13 de outubro de 1968,
aos 82 anos (para quem acreditava que
não passaria dos 19, por causa da turber-
culose, Bandeira acabou sendo um desses
premiados do céu, tendo uma sobrevida
invejável hoje em dia algo quase
Bandeira no Rio de Janeiro, década de 60 impensável até mesmo para quem não
fuma, não bebe e tem a saúde de um
Como homenagem aos 30 anos da morte de Manuel atleta). Os assíduos de Bandeira tinham
contato com sua crônica através da velha
Bandeira, Seleta de prosa reúne crônicas e ensaios do edição da Editora José Aguilar, de 1958,
ainda preparada pelo próprio poeta; na
poeta brasileiro, incluindo conferência sobre Mallarmé edição posterior, em um só volume, onde
muito texto acabou sendo descartado; e,
Heitor Ferraz por fim, na organização feita por Carlos
Drummond de Andrade em Andorinha,
andorinha.
Seleta de prosa Essa nova edição, apesar de alguns
Manuel Bandeira deslizes de editoração, como não incluir
org. Júlio C. Guimarães um índice das crônicas, somente das
Nova Fronteira partes, e do acabamento editorial deixar
596 pág. R$ 34,80 a desejar, ela é sem dúvida uma dessas
obras que reaparecem para se tornar,
56 CULT - novembro/98
Bandeira
novamente, leitura obrigatória para para a Editora José Aguilar. Na crônica Esse profundo conhecimento do
qualquer poeta ou escritor. Bandeira foi Carlos Drummond de Andrade, verso também lhe serviu para escrever o
um dos grandes mestres da crônica Bandeira comenta, numa deliciosa prosa brilhante verbete A versificação em
brasileira, assim como foram Rubem de café, de conversa entre amigos, o língua portuguesa, publicado em 1960,
Braga e Otto Lara Resende. Para o surgimento de Alguma poesia, um livro na enciclopédia Delta Larousse e que
poeta, como ele mais de uma vez confi- que ficará como um dos mais puros da agora aparece incluído nessa Seleta. Um
denciou aos seus amigos, esse era seu nossa poesia. Ele já observa a atuação texto que durante anos circulava pelas
ganha-pão. Mas um ganha-pão bastante corrosiva do humor de Drummond, universidades em cópias xerocadas. E
prazeroso, já que era nas crônicas que contrabalançando com alguma ternura: havia até mesmo quem cobrasse boa e
ele repassava suas leituras, seus comen- De ordinário ironia e ternura agem na alta quantia pelo volume da enciclopédia
tários sobre o cotidiano, traçava o poesia de Carlos Drummond de Andrade no qual constava esse texto. Só esse
quadro da ebulição e das discussões como um jogo automático de alavancas exemplo já caracteriza a importância do
modernistas chegando até o concre- de estabilização. Não há manobra falsa livro preparado por Castañon
tismo, sempre vazado por seu estilo de nesse aparelho admirável de lirismo. E Guimarães.
conversa-inteligente. continua: Não fosse esse senso de humor O ensaio O centenário de Stéphane
Sobre os modernistas, é interessante e a poesia deste livro seria de uma Mallarmé que a CULT está publicando
notar como as escolhas de uma época melancolia intolerável, senão mortal. também consta nessa nova edição da prosa
foram marcantes e determinantes para a Nessa frase, encontra-se o estilo franco bandeiriana. Ele havia sido pronunciado
história da poesia brasileira. Num de seus pelo poeta na Academia Brasileira de
de Bandeira, que perpassa cada página
ensaios mais famosos, A poesia de 1930, Letras (Bandeira foi eleito para a cadeira
desse livro.
Mário de Andrade analisava o surgi- 24, em 1940. Hoje, ela é ocupada pelo
Outra obra fundamental de Bandeira
mento de quatro livros importantes: Algu- crítico de teatro Sábato Magaldi). Depois,
que pode ser encontrada em Seleta de
ma poesia, de Drummond, Libertinagem, o texto foi incluído no volume De poetas
prosa é o livro autobiográfico Itinerário de
de Bandeira, Pássaro cego, de Augusto e de poesia, publicado pelo MEC em
Frederico Schmidt e Poemas, de Murilo Pasárgada, publicado originalmente em
1954, com capa concebida e realizada por 1954. Nesse ensaio, Bandeira, mais do que
Mendes. Em Crônicas da província do sobre Mallarmé, acabava escrevendo
Brasil, de 1937, incluído nesse novo Carlos Drummond de Andrade. Um caso
raro dentro da poesia brasileira, ou seja, sobre sua relação amorosa e livre com a
livro, Bandeira faz um caminho muito poesia, deliciando-se mesmo ao comentar
parecido, também comentando uma reflexão de um poeta importante
sobre sua formação literária e sobre as os versos de circunstância do poeta
Drummond, Schmidt e o próprio Mário francês. Coisa que o próprio Bandeira foi
de Remate de males. Curiosamente, os correntes poéticas que agiam dentro da
poesia brasileira. Itinerário é daqueles um dos mestres na literatura brasileira
mesmos poetas que chamaram a atenção com o seu Mafuá de Malungo. E ao falar
do francês Roger Bastide. Acaba havendo livros que não só falam sobre a vida do
próprio poeta, sobre o seu aprendizado sobre isso, acaba falando de sua própria
um verdadeiro diálogo de eleição e des- visão poética: Por mais óbvio que seja
carte entre esses textos. No caso de Mário da poesia, mas é mesmo um verdadeiro
manual sobre poesia. Ao contar sobre a nessas bagatelas o desejo de brincar, há
e Bandeira é bastante evidente, já que os
composição de seus poemas, Bandeira vai sempre nelas aquela intenção que Mal-
dois mantiveram uma correspondência
abrindo seu rico baú de ritmos, passando larmé pôs em seus poemas mais ambi-
intensa e franca, a ser publicada em breve
pelo soneto, pelo seu aprendizado do ciosos, isto é, a de traduzir o fugaz e o
pela Edusp, em que puderam falar livre-
verso livre e até pelas formas das cantigas súbito em idéia, de isolar para os olhos
mente sobre as poéticas em andamento,
trovadorescas. Li tanto e tão segui- um sinal de esparsa beleza geral. Será
fazendo um recorte do que era realmente
preciso dizer mais?
importante na poesia nacional. damente aquelas deliciosas cantigas, que
Uma das grandes novidades de Seleta fiquei com a cabeça cheia de velidas e
de prosa é o texto de Bandeira sobre mha senhor e nula ren; sonhava com as Heitor Ferraz
Drummond, que havia sido suprimido ondas do mar de Vigo e com as romarias jornalista e poeta, autor de Resumo do dia (Ateliê
pelo próprio poeta quando reuniu sua obra de San Servando. Editorial) e A mesma noite (Sette Letras)
novembro/98 - CULT 57
A busca do absoluto é tema recorrente de
suas correspondências. Ao lado, Mallarmé
pelo pintor impressionista J. M. Whistler, com
quem o poeta se correspondia.
O T O D O
do funcionamento da linguagem que
atendem a esse desejo e o reevocam (vale
lembrar das palavras sobre o verso livre
em seu texto Crise de vers: Et
envisageons la dissolution maintenant du
P O É T I C O
nombre officiel, en ce quon veut, à linfini,
pourvu quun plaisir sy réitère. Assim, o
que é reiteradamente criado pelo estilo
(pontuação, sintaxe, léxico etc.) aparece
conceitualizado ora nos brilhantes tra-
tados de, por exemplo, Crayonné au
A obra em prosa de Mallarmé que inclui estudos, théâtre, variations sur un sujet, la musique
et les lettres, e no próprio Un coup de dés
tratados, os Contos indianos e sua correspondência ou no esboço do Livre, ora em aforismos
que pontuam, à semelhança do que vemos
nos contos de Guimarães Rosa, um texto
opera leis do funcionamento da linguagem que narrativo como Les contes indiens.
Il y a des lois!, escrevia o poeta. Que
acarretam a dissolução dos limites de gênero, leis são essas que inauguram a dissolução
da fronteira entre a prosa e a poesia, e,
por outro lado, tornam a sua acurada
resultando em textos que conjugam poesia e filosofia filosofia menos reconhecível do que
pareceria justo?
Há um abismo, propriamente, entre
Rosie Mehoudar Mallarmé, a partir de Igitur, e a
58 CULT - novembro/98
Mallarmé por
Edvard Munch
literatura que se apóia no espelho, na agrega o crítico, o absoluto torna-se est lagent, et le moteur dirais-je si je ne
reflexão de si concebido como que fora paralisante, um obstáculo à criação, e o répugnais à opérer, en public, le démontage
do fluxo de linguagem e que se põe de tema do desafio da Impotência será impie de la fiction et conséquemment du
anteparo entre o sujeito e o mundo. Um recorrente na obra do autor e na sua mécanisme littéraire, pour étaler la pièce
percurso leva o autor à sua morte e correspondência, reunida em vários principale ou rien. Mais, je vénère comment,
descoberta da Idéia pura: Je viens de volumes, que contêm passagens de pura par une supercherie, on projette, à quelque
passer une année effrayante: ma pensée sest filosofia e poesia. Um trajeto leva-o élévation défendue et de foudre! le conscient
pensée et est arrivée à une Conception pure. então não exatamente à derrocada do manque chez nous de ce qui là-haut éclate.
Tout ce que, par contrecoup, mon être a absoluto, mas à sua como que inclusão A quoi sert cela -
souffert, pendant cette longue agonie est num fluxo temporal criador. Passagens A un jeu.
inénarrable, mais heuresement, je suis de Igitur, de 1868, sinalizam as soluções En vue quune attirance supérieure comme
parfaitement mort, et la région la plus que serão desenvolvidas pela seqüência dun vide, nous avons droit, le tirant de nous par
impure où mon Esprit puisse saventurer de sua obra: Ce simple fait quil peut de lennui à légard des choses si elles sétablissaient
est lEternité, mon Esprit, ce solitaire causer lombre en soufflant sur la lumière, solides et prépondérantes éperdument les
habituel de sa propre Pureté, que nobscurcit ou (...) jentends les pulsations de mon détache jusquà sen remplir et aussi les douer de
plus même le reflet du Temps. Essa carta propre coeur.//Je naime pas ce bruit: cette resplendissement, à travers lespace vacant, en
a Cazalis testemunha um primeiro perfection de ma certitude me gêne: tout est des fêtes à volonté et solitaires.
desfecho da crise de Tournon, cidade trop clair, la clarté montre le désir dune Quant à moi, je ne demande pas moins à
em que morou logo que se casou e onde évasion; tout est trop luisant, jaimerais lécriture et vais prouver ce postulat.
iniciava, em 1864, a escrita do poema rentrer en mon Ombre incréée et antérieure. (...)
Hérodiade, com suas descobertas e Uma passagem de La musique et les A légal de créer: la notion dun objet,
impasses noites sem dormir, agonia e lettres, texto já de 1894, é um dos vários échappant, qui fait défaut.
sensação de enlouquecimento, seguidas escritos que formulam, por ângulos Nessa reflexão sobre o desejo, lemos
pelo ofício diurno de professor de inglês diversos, o funcionamento harmônico car cet au-delà en est lagent, et le moteur,
gozado pelos alunos e de poucos re- do paradoxo absoluto/devir, ou forma/ e este logo graciosamente nos surpreende
cursos. Na mesma carta, o poeta evoca vazio: como sendo... um nada. Porém, da
sua lutte terrible avec ce vieux et méchant Autre chose... ce semble que lépars natureza também da coisa: observe-se
plumage, terrassée, heuresement, Dieu frémissement dune page ne veuille sinon o texto acima. Ora o vazio se fragmenta
e críticos como Charles Mauron vêem surseoir ou palpite dimpatience, à la em centros focais à semelhança de um
nessa metáfora um eco do autoritarismo possibilité dautre chose. sentido, pontualmente perceptível na
do pai. Mallarmé descobre na impes- Nous savons, captifs dune formule absolue sucessão dos signos, ora numa reversão
soalidade do pensar e da Idéia, reflete que, certes, nest que ce qui est. Incontinent repentina ele é um grande recipiente
Bertrand Marchal, o absoluto antes écarter cependant, sous un prétexte, le leurre, (espace vacant) para esses signos. O nada
atribuído a um Deus externo. Porém, accuserait notre inconséquence, niant le plaisir congrega assim o sentido de continente
mesmo no próprio sujeito contemplado, que nous voulons prendre: car cet au-delà en imaginário cristalino, como o tinteiro
novembro/98 - CULT 59
Um mês antes de sua morte,
Mallarmé respondia a uma
pesquisa sobre o “Ideal aos 20
anos”. À esq., o poeta com
essa idade, em 1862.
L encrier, cristal comme une conscience, avec Éden, reiteradamente é tirado de nós de Mallarmé se presta à captação do
sa goutte, au fond, de ténèbres relative à ce que e se dissemina pela prosa mallarmaica. motor central da fala existindo como
quelque chose soit: puis, écarte la lampe Veremos logo mais um pouco de como latência no primeiro segmento. Num
(repare-se um eco aqui do apagar a vela isso se dá. recuo, Mallarmé apreende o desejo do
de Igitur), além de seu sentido de Nem um mês antes de sua morte, personagem de conservar a propagação
dissolução, e o de coisa. Greer Cohn Mallarmé respondia à pesquisa de Le da ventura. É do ponto de vista do bonheur
aponta para a origem etimológica de rien: Figaro sobre o Ideal aos 20 anos: (qui est muet, em outra passagem) que
rem, que significa coisa em latim. Suffisamment, je me fus fidèle, pour que mon emana a fala. Uma contemplação se abre,
Em carta para René Ghil, Mallarmé humble vie gardât un sens. Le moyen, je le o imediatismo concreto se aquieta um
escrevera: On ne peut se passer dÉden. publie, consiste quotidiennement à épousseter, pouco. Tchandra Rajah, Lakhsmi e o
Em seu livro Loeuvre de Mallarmé. Un de ma native illumination, lapport hasardeux leitor olham como as coisas do espírito
coup de dés, Cohn assim comenta o penúl- extérieur, quon recueille, plutôt, sous le nom funcionam; é ainda um outro motor da
timo verso do poema, à quelque point der- dexpérience. Heureuse ou vaine, ma volonté linguagem.
nier qui le sacre (precedido de avant de des vingt ans survit intacte. No silêncio ou vazio marcado pela
sarreter), comparável ao Éden (ou Num tempo em que a pressão do vírgula, a captação do desejo do rei-
absoluto): A última estrela da conste- imediato e o perigo de sermos suas amante dá-se mediante o aproveitamento
lação, o ponto final do pensamento, um presas alienadas não parecem menores das potencialidades de significação das
repouso, em direção ao qual se dirige a que na época de Mallarmé, é precioso palavras anteriores. Um sema metoní-
constelação como toda a realidade (...) O seguir o desembaraçamento ou de- mico a linha descendente da sobran-
ponto supremo (sacre) do ato cinético, em puração que a sua escrita faz desse celha franzida e paralisada, consoante a
todos os planos, do plano físico ao ideal, imediato, em busca do essencial. Segue uma retração no espírito parece inspirar
que é sua razão de ser e sua morte ao uma passagem dos Contos indianos, rees- a metáfora tomberait dans notre bonheur.
mesmo tempo. A convergência de duas critura mallarmaica da versão francesa Outros semas metonímicos a cor negra,
dimensões seria alcançada imediata e de Mary Summer de histórias clássicas habitual do cabelo indiano, e o pequenino
simultaneamente pela criação desse da Índia. O rei reassegura à amada cil contido em sourcil fazem eco na
ponto mesmo, mas essa convergência é apreensiva e com ciúme: metáfora une minute noire. Tomberait
assintótica, infinitamente diferida e Ne froncez pas ce sourcil, il en tomberait aproveita-se do plano físico da sobran-
cumprida. dans notre bonheur, une minute noire: Lakshmi, celha, fazendo-a cair numa abstração
Como pólo de atração (en vue quune je refusai avec dédain. Je naimais pas. da felicidade, numa quebra surpreendente
attirance supérieure comme dun vide), o O trecho de M. Summer corres- de registro, numa súbita desmateria-
vazio (cet au-delà) não é tão diferente do pondente é mais curto: lização.
ponto edênico, comentado por Greer Ne froncez pas le sourcil, Lakshmi, je O esvaziamento do autor manifesta-
Cohn. A unidade de fora atrai a de refusai avec dédain; je ne laimais pas. se seja no silêncio-escuta, indiciado pela
dentro, naquela transmutada. Porque o A vírgula depois de sourcil instaura vírgula, seja na sua concedida transmu-
vazio reiteradamente aparece como um momento de suspensão, que no texto tação no corpo de cada significante
60 CULT - novembro/98
Os achados filosóficos de Mallarmé
lembram conceitos desenvolvidos
posteriormente por autores
como Jacques Lacan (ao lado)
desejado e desejante que então acorre O princípio é compreensível também formarem em sistema. Preferem a di-
transforma-se o amador na cousa no sentido de o que é, no poeta, o mensão de ato do teatro Dont les
amada (Camões). originário: vazio-fonte de todo sujeito représentations seront le vrai culte moderne;
Loeuvre pure implique la disparition (lenfant est plus près de rien et limpide), que un Livre, explication de lhomme, suffisante
élocutoire du poète, qui cède linitiative aux vai Verso... à nos plus beaux rêves. Surpreendem-nos,
mots, par le heurt de leur inégalité mobilisés; O princípio (em outra acepção) que às vezes, na semelhança com o que
ils sallument de reflets réciproques comme sai de dentro de nós é tão-somente o da veremos depois em Lacan e numa
une virtuelle traînée de feux sur des pierreries, difusão de nosso princípio-origem, sua filosofia que desajola o real como
remplaçant la respiration perceptible en propagação, ir em direção a... E é o que o substância última furtável ao devir e
lancien souffle lyrique ou la direction Verso poético, musical ou essencial promulga a ficção. Não se trata de abolir
personnelle enthousiaste de la phrase. (Crise cumpre. a referência, que perde apenas o caráter
de vers) Le principe qui nest que le Vers!: além absoluto, para que o central ou virgem
Depura-se em Verso o poeta homena- de em direção a, verso pode significar continue a emanar. O nada ou une
geado nesta passagem de Crayonné au contrário. O verso do princípio é o fim: âme ou bien notre idée (à savoir la divinité
theâtre: lembrando o Éden, o ponto sempre présent à lesprit de lhomme) constitui
Personne, ostensiblement, depuis cumprido e diferido ao qual se refere uma alteridade fundamental em re-
quétonna le phénomène poétique, ne le résume Greer Cohn. Aquilo em direção ao qual lação a qualquer significado, momento
avec audacieuse candeur que peut-être cet esprit se vai já está contido no Verso poético em que todo significado anterior pode
immédiat ou originel, Théodore de Banville et (que le Vers!) festeja conclusiva e simples se desvanecer (sem abolir-se na me-
lépuration, par les ans, de son individualité en a exclamação! E o texto logo dirá que os mória ou contradizer-se, apesar dos
le vers, le désigne aujourdhui un être à part, versos só vão de dois em dois, ou em paradoxos engraçados), e corte latente
supérieur et buvant tout seul à une source occulte muitos, no devir velado pela lei mis- fundamental no processo da raciona-
et éternelle; car rajeuni dans le sens admirable teriosa da Rima, que evita que um lidade. Assim, nos Contos indianos,
par quoi lenfant est plus près de rien et limpide, usurpe. depois de dar instruções minuciosas
autre chose dabord que lenthousiame le lève à O modo de a escritura em Mallarmé sobre um ritual, Oupahara diz à
des ascensions continues (...) contemplar cada fenômeno e a obra da rainha: Je ne tai rien dit, mais sache. Je
Ainsi lancé de soi le principe qui nest - natureza (Je crois tout cela écrit dans la nai fait, avec ses paroles inutiles mais dont
que le Vers! attire non moins que dégage pour nature) preserva o espaço não-verbal, chacune importe, que baiser lair qui te
son épanouissement (linstant quils y brillent fonte, mistério ou céu, ao qual seremos contient, pour quil sémeuve doucement
et meurent dans une fleur rapide, sur quelque sempre filiados, daí seus achados filosó- autour de toi!
transparence comme déther) les milles ficos, por coerência às próprias leis que
éléments de beauté pressés daccourir et de descobre (muitas mais que os pontos
sordonner dans leur valeur essentielle. (...) aqui tocados, e atualizadas em formas Rosie Mehoudar
Ainsi lancé de soi le principe qui nest - cujas ambigüidades reproduzem a mestre em teoria literária pela USP, onde
que le Vers! quantas ambigüidades aqui! mensagem ao infinito) não se trans- defendeu tese sobre Mallarmé
novembro/98 - CULT 61
Épouser la notion
Poema de Stéphane Mallarmé
O texto de Stéphane Mallarmé Épouser la notion consiste num esboço de provável poema que permaneceu inacabado.
Foi editado por Jean-Pierre Richard, que considera impossível estabelecer uma data para o manuscrito. Este se
compõe de dezesseis folhas, contendo igual número de esboços de estrofes. A situação desse texto pode ser comparada
à do manuscrito de Pour un tombeau dAnatole, o conjunto das anotações de Mallarmé feitas sob o impacto da morte de
1.
il ne lui
faut pas moins
quépouser la notion 4.
il veut tout épouser, lui
faute dune dame à sa taille et, pour ne pas
se faire prendre
par le juge, qui
guette toujours
2.
(cest moi + toi
Je veux épouser la soi
notion, criait-il
je veux il criait plus
elle seule peut fort que
satisfaire les vastes
élans
en vain le
retenait-on, 5.
tous les autres
quil la voulait
3. vierge plus
que tous les autres
en vain vierge à lui
lui faisait-on seul
entendre pas le droit
quelle non à Personne
nexiste que si
vierge.
Comment?
disait-il
Comment?
62 CULT - novembro/98
Desposar a noção
1.
só o que lhe
falta é
desposar a noção 4.
quer, ele, desposar tudo
por falta de mulher a sua altura e, para não
se deixar pegar
pelo juiz, que
espreita sempre
2.
(é mim + ti
Quero desposar a si
noção, dizia ele
quero gritava mais
só ela pode alto que
satisfazer os vastos
impulsos
em vão o
detinham 5.
todos os outros
que a queria
3. virgem mais
que todos os outros
em vão virgem dele
se fazia com só
que entendesse
que ela sem o direito
só existe se não de Ninguém
virgem.
Como?
dizia ele
Como?
novembro/98 - CULT 63
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