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Trabalho Casa das Canoas. Kaio Tiago Onofre Silva Ramos. 1º Semestre.

RA: N6221E5

Villa Savoye (Le Corbusier)

“A idéia [da casa] era simples: eles tinham um parque magnífico formado por um
campo cercado de árvores; eles desejavam viver no campo; eles estariam ligados
a Paris por um caminho de 30 quilômetros de automóvel. Vai-se portanto até a
porta da casa de carro, e é o arco mínimo de curvatura do automóvel que
fornece a dimensão mesma da casa. O automóvel entra sob o pilotis, contorna os
serviços comuns, pára no meio, na porta do vestíbulo, entra então na garagem
ou segue seu caminho de saída: eis o fundamental. Outra coisa: a vista é muito
bonita, a grama é uma coisa bela, a floresta também: se tocará neles o mínimo
possível. A casa se colocará em meio à grama como um objeto, sem molestar
nada”.

A Villa Savoye, obra do arquiteto franco-suíço Le Corbusier (Charles-Edouard


Jeanneret-Gris, 1887-1965), é uma residência projetada e construída entre
1928-29 em Poissy, na região parisiense. Foi originalmente edificada para ser
uma residência de fim de semana para um casal com um filho, residente em
Paris. Representa um momento de síntese na obra de Le Corbusier, quando pela
primeira vez o arquiteto teve a possibilidade de concretizar integralmente
suas proposições apresentadas nos cinco pontos para uma nova arquitetura.
Formulados em 1927, esses cinco pontos orientaram de modo parcial a concepção
das suas primeiras casas, especialmente na definição de um repertório formal
que se adequasse às novas possibilidades tecnológicas recém-surgidas,
especialmente a impermeabilização e as estruturas em concreto armado.

A importância da tecnologia na definição desse novo repertório formal é


revelada pelo próprio arquiteto. Segundo Le Corbusier, ”a consideração da
técnica vem em primeiro lugar, antes de tudo, e constitui sua condição o fato
de ela trazer dentro de si conseqüências plásticas inevitáveis, e de levar
algumas vezes a transformações estéticas radicais”.

Anteriormente trabalhada por outros arquitetos, a estrutura em concreto armado


e a impermeabilização das coberturas, criando terraços habitáveis, surgem no
repertório corbusiano após sua temporada de trabalho no escritório do
arquiteto francês Auguste Perret, um dos pioneiros no desenvolvimento destas
novas técnicas. Le Corbusier se apropria daquele repertório tecnológico e o
repropõe como um novo repertório arquitetônico, potencializando utilizações
diversas através dos seguintes pontos:
1. Pilotis, liberando o edifício do solo e tornando público o uso deste
espaço antes ocupado, permitindo inclusive a circulação de automóveis;
2. Terraço jardim, transformando as coberturas em terraços habitáveis, em
contraposição aos telhados inclinados das construções tradicionais;
3. Planta livre, resultado direto da independência entre estruturas e
vedações, possibilitando maior diversidade dos espaços internos, bem como
mais flexibilidade na sua articulação;
4. Fachada livre, também permitida pela separação entre estrutura e
vedação, possibilitando a máxima abertura das paredes externas em vidro, em
contraposição às maciças alvenarias que outrora recebiam todos os esforços
estruturais dos edifícios; e
5. A janela em fita, ou fenêtre en longueur, também conseqüência da
independência entre estrutura e vedações, se trata de aberturas longilíneas
que cortam toda a extensão do edifício, permitindo iluminação mais uniforme
e vistas panorâmicas do exterior.

A utilização destes Cinco Pontos para uma Nova Arquitetura aparece já nas
primeiras casas projetadas pelo arquiteto, embora restrições diversas como
dimensões reduzidas de terrenos ou excessiva complexidade programática tenham
impedido sua realização integral
Trabalho Casa das Canoas. Kaio Tiago Onofre Silva Ramos. 1º Semestre. RA: N6221E5

. Apenas na Villa Savoye tais pontos são integralmente realizados, e o próprio


Le Corbusier reconhece a casa como uma síntese do seu trabalho anterior,
reunindo soluções criadas para vários de seus projetos de residências
anteriores.
Associado aos cinco pontos, o conceito da promenade architecturale, ou o
passeio arquitetural, é fundamental para a compreensão desta residência. A
valorização do percurso como uma estratégia conceitual, a ordenar tanto
interna como externamente a Villa Savoye, é evidenciada desde a chegada,
pontuando a experiência de fruição do objeto arquitetônico com surpresas
constantes, seja a inflexão no percurso após o pequeno bosque, desvelando o
volume da residência pousado sobre o tapete verde, seja na inversão da posição
da entrada principal, contrária à chegada. O conceito se realiza através de um
conjunto de propriedades materiais, trabalhado conscientemente com o objetivo
de realizar a idéia de variação do percurso, obrigando a experiência do objeto
arquitetônico em diferentes posições e pontos de vista e variando
constantemente a relação entre o objeto e o fruidor.

O próprio Le Corbusier revela a origem do conceito da Promenade:


“A arquitetura árabe nos dá um ensinamento precioso. Ela é apreciada no
percurso a pé; é caminhando, se deslocando que se vê desenvolverem as
ordenações da arquitetura. Trata-se de um princípio contrário à arquitetura
barroca que é concebida sobre o papel, ao redor de um ponto teórico fixo. Eu
prefiro o ensinamento da arquitetura árabe”

No volume principal da casa, a grande massa branca garante a integridade da


forma através do contraste entre o branco da alvenaria pintada e o escuro da
abertura. Essa característica, associada ao pilotis, ao mesmo tempo assegura
uma uniformidade entre as diversas fachadas e incorpora as complexidades
impostas pelas articulações funcionais, revelando-as nas soluções específicas
de cada fachada. As variações diversas que se verificam nessas aparentes
contradições evidenciam respostas integradas a exigências relativas à
utilidade dos espaços internos e à solução formal do edifício.

Sob o bloco principal, o recuo do volume que articula as entradas define um


espaço de transição entre o interior e o exterior, coberto, entre as colunas
do pilotis, que se presta a diversas funções. Apresenta a utilidade mais
imediata da proteção contra as intempéries de quem chega e cria a
possibilidade de um caminho coberto para que o automóvel chegue até a garagem,
passando pela entrada principal. Atende também à intenção do arquiteto de
soltar o volume principal do terreno natural, reforçando a idéia da liberação
do solo para o uso comum e a circulação, ainda que parcialmente. E estabelece
uma diferenciação qualitativa do espaço, que se torna uma transição natural
entre o exterior e o interior, sendo espaço aberto e iluminado naturalmente,
porém coberto e em sombra, estando já sob a projeção do volume da casa e sendo
acessível a todos.

No interior, enquanto a rampa central sugere uma organização simétrica para


quem chega através da entrada principal, reforçando a expectativa produzida
pela disposição dos volumes externos, a escada orientada em direção oposta e o
hall assimétrico contrariam de imediato tal expectativa, indicando a
complexidade das articulações do espaço interior. A inversão de sentidos entre
escada e rampa evidencia o conceito da promenade architecturale, ou seja, em
cada uma das possibilidades de percurso, as direções variadas fazem com que a
fruição se dê de forma complexa, produzindo estímulos diversificados e
qualitativamente distintos na medida em que se caminha no espaço interior. A
experiência do percurso se faz mais importante do que a apreensão da forma
estática, a relação entre espaço e tempo se faz efetiva também no interior da
residência.
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A complexidade do espaço interior é conseqüência das exigências de uso, como


insinuado por variações sutis nas fachadas, e é reforçada pelo tratamento
variado e heterogêneo conferido aos elementos estruturais, ora explicitados,
ora ocultos, ora associados ou transformados em equipamentos utilitários, como
bancadas e armários.

As soluções dos espaços internos revelam a máxima exploração do conceito da


planta livre, através da manipulação consciente dos elementos de vedação,
definindo nichos, armários e compartimentos, ao mesmo tempo em que
potencializa a caracterização de ambientes diversos através da diferenciação
entre estrutura e vedação. Essa busca constante por uma lógica interna é
significativa por revelar a atitude projetual de Le Corbusier de criar o
edifício de maneira integrada, concebendo-o como volume a ser fruído e também
como espaço interior, a ser percorrido e vivenciado. Tal atitude revela uma
profunda consideração das questões relativas ao uso, buscando propor uma nova
forma de vida a partir de uma articulação diferenciada dos espaços internos.
O trabalho consciente sobre as dimensões das diversas circulações que
percorrem a casa, definido espaços com profundidades e larguras variadas,
reforça a distinção entre os espaços sociais e íntimos. Essa disposição dos
espaços, conferindo aos diversos aposentos gradações sutis de abertura e
fechamento, expressando graus distintos nas relações entre espaços públicos e
privados, entre individualidade e coletividade, é fundamental para a
compreensão dessa arquitetura como um instrumento que regula as práticas
sociais do ser humano, podendo portanto ser entendida como um artefato ético,
mais que estético.

Na cobertura, a presença retórica do solarium como grand finale da promenade


architecturale revela a tentativa de preservar o fundamento da idéia original,
em que a rampa finalizaria seu percurso no espaço destinado à suite do casal.
Após diversas alterações do projeto, solicitadas pelos clientes em função de
reduções de custos, o quarto do casal foi integrado ao pavimento nobre da
casa, restando na cobertura as paredes curvas que serviram a delimitar e a
proteger contra o vento um terraço cujo uso não é pré-determinado. A presença
do solarium revela como o arquiteto realiza a adequação do projeto às diversas
demandas de uso e economia, preservando o conceito original que preside a
geração do espaço arquitetônico.

A Villa Savoye torna manifesto um novo modo de ver e viver no mundo. Para
isso, utiliza a tecnologia de ponta da época, tornando explícitos os
operadores que permitiam a sua realização arquitetônica. É um manifesto de um
novo modo de vida que se expressa em uma nova e diferenciada articulação dos
usos que toma lugar nos espaços que o conceito da promenade
architecturale possibilitava. O edifício foi construído utilizando-se de uma
tecnologia inovadora do concreto armado que se mostrava através de um
repertório formal sintetizado pelos Cinco Pontos por uma Nova Arquitetura.
Contudo, as premissas de projeto definidas pelos Cinco Pontos, embora tenham
sido apresentadas pelo arquiteto como requisitos para uma nova arquitetura,
dita moderna, constituem-se apenas em um dos diversos repertórios formais
possíveis. O próprio arquiteto, ao mesmo tempo em que fazia a Villa Savoye,
desenvolveu o projeto da Casa Errazuriz (1930), no Chile. Ali, em virtude da
escassez de mão de obra especializada e da dificuldade da utilização das
tecnologias modernas, Le Corbusier opta pela utilização de elementos
existentes no local: pedra, madeira e telha.

Segundo o arquiteto, “a rusticidade dos materiais não é de modo algum um


entrave à manifestação de um plano claro e de uma estética moderna” . Tal
afirmação é extremamente significativa por revelar o mal entendimento que
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ocorreu na transposição daquele repertório inicial do arquiteto nos


desdobramentos do International Style. É muito relevante também porque
evidencia o fato de que o fundamento da arquitetura feita pelos primeiros
modernos não se estabelecia no repertório formal, amplamente reproduzido,
inclusive atualmente, através de modismos revivalistas neo-modernos e
minimalistas, mas em uma articulação diferenciada do espaço arquitetônico,
cujo fim se estabelece na criação de suportes físicos, construídos, que
promovam a mediação entre as relações humanas, traduzindo na sua forma
respostas inventivas aos sutis códigos de ética de um determinado grupo.
Muito mais fértil para o entendimento do repertório formal resultante dos
Cinco Pontos para uma Nova Arquitetura é a abordagem de Alan Colquhoun, que
apresenta esse repertório como um deslocamento de diversos elementos da
tradição arquitetônica anterior.

Segundo Colquhoun,
“[...]cada um deles [dos cinco pontos] extrai seu princípio de uma prática
existente e promove nela uma reversão. O uso do pilotis, por exemplo, é uma
reversão do pódio clássico; aceita a separação clássica entre o pavimento
nobre e o chão, mas interpreta essa separação em termos de vazio ao invés de
massa. A fênetre en longueur é uma contradição da janela clássica. O teto-
terraço contradiz o telhado inclinado e substitui o pavimento do ático por uma
sala ao ar livre. A fachada livre substitui o arranjo regular das aberturas de
janelas por uma superfície de composição livre. A planta livre contradiz o
princípio pelo qual a distribuição era limitada pela necessidade de paredes
estruturais contínuas verticalmente e as substitui por um arranjo livre de
partições não estruturais determinadas pela conveniência funcional”

Essa atitude de reproposição de cada elemento fazendo uso de deslocamentos ou


reversões de seus modelos anteriores se constitui na invenção arquitetural que
dá à obra de Le Corbusier a atualidade para os tempos de hoje. Colquhoun
reforça o argumento da invenção, desenvolvendo-o a partir da identificação das
estratégias utilizadas por Le Corbusier para realizá-la:
“É, portanto, legítimo, ao se discutir o processo criativo de Le Corbusier,
falar de um ‘deslocamento de conceitos’ e através dele indicar um processo de
reinterpretação, ao invés de um processo de criação em um vazio cultural. A
mudança no arranjo e a interpretação de elementos existentes encontradas na
obra de Le Corbusier apresentam diversas formas, duas das quais parecem ser de
particular importância. A primeira ocorre quando elementos da ‘alta’ tradição
são radicalmente transformados sob condições estranhas a seu uso normal. A
segunda ocorre quando elementos pertencentes a uma tradição externa àquela da
‘alta’ arquitetura são assimilados na arquitetura e a eles é dada uma
significação que eles até então não possuíam” (8)

Sempre entendida como um manifesto por novas formas, como uma demonstração
eloqüente do conceito da Promenade Architecturale, a Villa Savoye cumpriu esse
papel de manifesto. Contudo, esse entendimento superficial por vezes impediu
um aprofundamento na compreensão das complexas - e igualmente inovadoras -
articulações de uso que as invenções formais e tecnológicas possibilitavam.
Tais qualidades, mais do que o repertório formal sintetizado pelos Cinco
Pontos, representam os fundamentos que permitem que a Villa Savoye – e às
demais casas projetadas por Le Corbusier – seja ‘uma casa para ser habitada’.
Sutis gradações de privacidade aparecem nas transições entre os espaços
sociais e íntimos, seja na variação da largura das circulações, seja na
criação do trecho avarandado e menor do terraço, promovendo a transição com
o boudoir, seja ainda na inversão de sentido da disposição da escada em
relação à rampa, que propicia um acesso mais privado às áreas intima e de
serviço, em contraposição à eloqüência que a rampa iluminada assegura ao
acesso principal.

O binômio individualidade e coletividade é evidente no contraste entre a


compartimentação da área íntima e a abertura e integração das áreas sociais.
Trabalho Casa das Canoas. Kaio Tiago Onofre Silva Ramos. 1º Semestre. RA: N6221E5

Por último, mas não menos importante, a associação entre intimidade e controle
é marcante no boudoir, de onde se domina todo o terraço principal sem
comprometer a privacidade que o espaço exige. Essa associação parece ter sido
a tônica da caracterização de todo o pavimento principal da casa, garantindo
uma visibilidade panorâmica do exterior e, ao mesmo tempo, assegurando uma
separação em relação ao terreno, que é resultado da elevação da casa sobre
pilotis. Assim, verifica-se que uma propriedade relativa ao uso do espaço se
realiza devido a uma atuação inventiva do arquiteto sobre o conhecimento
técnico do concreto armado, que permitiu tal solução. Intimidade e controle se
realizam em conjunto através do equilíbrio entre abertura e fechamento,
integração visual e isolamento físico, proteção material realizada pela
separação e segurança psicológica, propiciada pela redução da vulnerabilidade
do habitante pela possibilidade de visualização panorâmica do exterior.
A resposta às demandas relativas à utilidade se fazem na Villa Savoye através
da inclusão de valores relacionados à vida cotidiana, seja através da criação
de equipamentos e suportes para os acontecimentos do dia a dia, como bancadas,
armários, mesas e bancos, seja através da incorporação das inovações
tecnológicas, como o automóvel. Tal inclusão elimina a possibilidade de
leitura da obra corbusiana como arte pura, revelando a consideração de uma
finalidade que é externa à própria forma.

A Villa Savoye aponta para a possibilidade de que a arquitetura, através dos


seus elementos tectônicos, possa regular as relações humanas e, mais
importante, atingir um grau de invenção arquitetural na medida em que promove
deslocamentos em todas as demandas que interagem na criação e na realização do
edifício, o que sugere uma reinvenção dos modos tradicionais de mediação
dessas relações e interações entre os homens, ou seja, uma reinvenção da
finalidade a que a arquitetura deve atender. É manifesto, ainda hoje, por uma
arquitetura que se realize para responder às demandas impostas pela vida
cotidiana, sem recorrer a argumentos ou estratégias alienígenas aos aspectos
imanentes ao fazer arquitetônico.

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