EXPLICAÇÃO
Estas “Cartas aos meus amigos”, que hoje se apresentam como livro, foram publicadas
separadamente à medida que o autor as foi produzindo. Desde a primeira, escrita a 21/02/91, até
à décima e última, redigida a 15/12/93, passaram quase três anos. Nesse lapso de tempo,
ocorreram transformações globais importantes em quase todos os campos da actividade humana.
Se a velocidade de mudança continua a incrementar-se, como sucedeu nesse período, um leitor
das próximas décadas dificilmente entenderá o contexto mundial a que o autor faz continuamente
referência e, por conseguinte, não apreenderá muitas das ideias que se expressam nestes
escritos. Por isso, haveria que recomendar aos hipotéticos leitores do futuro que tivessem à mão
uma resenha dos acontecimentos verificados entre 1991 e 1994; haveria que sugerir-lhes que
obtivessem uma compreensão ampla do desenvolvimento económico e tecnológico da época, das
fomes e dos conflitos, da publicidade e da moda. Seria necessário pedir-lhes que escutassem a
música; vissem as imagens arquitectónicas e urbanísticas; observassem as concentrações
populacionais das grandes cidades, as migrações, a decomposição ecológica e o modo de vida
daquele curioso momento histórico. Sobretudo haveria que rogar-lhes que tentassem penetrar nos
ditos e dizeres daqueles formadores de opinião: dos filósofos, sociólogos e psicólogos dessa
etapa cruel e estúpida. Ainda que nestas Cartas se fale de certo presente, é indubitável que foram
redigidas com o olhar posto no futuro e creio que somente dali poderão ser confirmadas ou
refutadas.
Nesta obra não existe um plano geral, mas antes uma série de exposições ocasionais que
admitem uma leitura sem sequência. No entanto, poder-se-ia tentar a seguinte classificação: A. -
As três primeiras cartas põem ênfase nas experiências que cabem ao indivíduo viver no meio de
uma situação global cada dia mais complicada. B. - Na quarta, apresenta-se a estrutura geral das
ideias em que se baseiam todas as cartas. C. - Nas seguintes, esboça-se o pensamento político-
social do autor. D. - A décima apresenta directrizes de acção pontual tendo em conta o processo
mundial.
Passo agora a destacar alguns temas tratados na obra. Primeira carta: a situação que nos
cabe viver. A desintegração das instituições e a crise de solidariedade. Os novos tipos de
sensibilidade e comportamento que se perfilam no mundo de hoje. Os critérios de acção.
Segunda: os factores de mudança do mundo actual e as posturas que habitualmente se assumem
perante essa mudança. Terceira: Características da mudança e da crise em relação ao meio
imediato em que vivemos. Quarta: fundamento das opiniões vertidas nas Cartas sobre as
questões mais gerais da vida humana, as suas necessidades e os seus projectos básicos. O
mundo natural e social. A concentração de poder, a violência e o Estado. Quinta: a liberdade
humana, a intenção e a acção. O sentido ético da prática social e da militância; os seus defeitos
mais habituais. Sexta: exposição do ideário do Humanismo. Sétima: a revolução social. Oitava: as
forças armadas. Nona: os direitos humanos. Décima: a desestruturação geral. A aplicação da
compreensão global à acção mínima concreta.
A quarta carta, de capital importância na justificação ideológica de toda a obra, pode ser
aprofundada com a leitura de outro trabalho do autor, Contribuições ao Pensamento
(particularmente no ensaio titulado Discussões Historiológicas) e, desde logo, com a conferência
A Crise da Civilização e do Humanismo (Academia de Administração de Moscovo, 18/06/92).
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
confiança no ser humano e na sua criatividade e considerar o mundo como reino do Homem, reino
que este pode dominar mediante o conhecimento das ciências. A partir desta nova perspectiva
expressa-se a necessidade de construir uma nova visão do universo e da História. De igual
maneira, as novas concepções do movimento humanista levam à redefinição da questão religiosa
tanto nas suas estruturas dogmáticas e litúrgicas como nas organizativas, que, naquele tempo,
impregnam as estruturas sociais medievais. O Humanismo, em correlação com a modificação das
forças económicas e sociais da época, representa um revolucionarismo cada vez mais consciente
e cada vez mais orientado para a discussão da ordem estabelecida. Mas a Reforma no mundo
alemão e a Contra-reforma no mundo latino tratam de travar as novas ideias repropondo
autoritariamente a visão cristã tradicional. A crise passa da Igreja às estruturas estatais.
Finalmente, o império e a monarquia por direito divino são eliminados mercê das revoluções dos
finais do século XVIII e XIX. Porém, depois da Revolução francesa e das guerras da
independência americanas, o Humanismo praticamente desapareceu pese embora continuar
como pano de fundo social de ideais e aspirações que alentam transformações económicas,
políticas e científicas. O Humanismo retrocedeu perante concepções e práticas que se instalam
até terminar o Colonialismo, a Segunda Guerra Mundial e o alinhamento bipolar do planeta. Nesta
situação, reabre-se o debate sobre o significado do ser humano e da natureza, sobre a justificação
das estruturas económicas e políticas, sobre a orientação da Ciência e da tecnologia e, em geral,
sobre a direcção dos acontecimentos históricos. São os filósofos da Existência que dão os
primeiros sinais: Heidegger, para desqualificar o Humanismo como uma metafísica mais (na sua
Carta sobre o Humanismo); Sartre, para defendê-lo (na sua conferência O Existencialismo é um
Humanismo); Luypen, para precisar o enquadramento teórico (em A Fenomenologia é um
Humanismo). Por outro lado, Althusser, para erguer uma postura Antihumanista (em Para Marx) e
Maritain, para apropriar-se da sua antítese a partir do Cristianismo (no seu Humanismo Integral),
fazem alguns esforços meritórios”.
“Depois de percorrido este longo caminho e das últimas discussões no campo das ideias,
fica claro que o Humanismo deve definir a sua posição actual não só enquanto concepção teórica
como também enquanto actividade e prática social. O estado da questão humanista deve ser
perspectivado com referência às condições em que o ser humano vive. Essas condições não são
abstractas”
“Por conseguinte, não é legítimo derivar o Humanismo de uma teoria sobre a Natureza, ou
uma teoria sobre a História, ou uma fé sobre Deus. A condição humana é tal que o encontro
imediato com a dor e com a necessidade de superá-la é ineludível. Tal condição, comum a tantas
outras espécies, encontra na humana a necessidade adicional de prever no futuro como superar a
dor e conseguir o prazer. A sua previsão do futuro apoia-se na experiência passada e na intenção
de melhorar a sua situação actual. O seu trabalho, acumulado em produções sociais, passa e
transforma-se de geração em geração em luta contínua pela superação das condições naturais e
sociais em que vive. Por isso, o Humanismo define o ser humano como ser histórico e com
um modo de acção social capaz de transformar o mundo e a sua própria natureza. Este
ponto é de capital importância porque, ao aceitá-lo, não se poderá depois afirmar um
direito natural, uma propriedade natural, instituições naturais ou, por último, um tipo de ser
humano no futuro tal qual é hoje, como se estivesse terminado para sempre. O antigo tema
da relação do homem com a Natureza ganha novamente importância. Ao retomá-lo, descobrimos
esse grande paradoxo em que o ser humano aparece sem fixidez, sem natureza, ao mesmo
tempo que notamos nele uma constante: a sua historicidade. É por isso que, esticando os termos,
pode dizer-se que a natureza do Homem é a sua História, a sua História social. Por
conseguinte, cada ser humano que nasce não é um primeiro exemplar equipado geneticamente
para responder ao seu meio, mas sim um ser histórico que desenvolve a sua experiência pessoal
numa paisagem social, numa paisagem humana”.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
“Eis que neste mundo social, a intenção comum de superar a dor é negada pela intenção de
outros seres humanos. Estamos a dizer que uns homens naturalizam outros ao negar a sua
intenção, convertem-nos em objectos de uso. Assim, a tragédia de estar submetido a condições
físicas naturais estimula o trabalho social e a ciência para novas realizações que superem essas
condições, mas a tragédia de estar submetido a condições sociais de desigualdade e injustiça
estimula o ser humano à rebelião contra essa situação em que se nota não o jogo de forças
cegas, mas sim o jogo de outras intenções humanas. Essas intenções humanas, que discriminam
uns e outros, são questionadas num campo muito diferente ao da tragédia natural em que não
existe uma intenção. É por isso que existe sempre em toda a discriminação um esforço
monstruoso para estabelecer que as diferenças entre os seres humanos se devem à natureza,
seja ela física ou social, a qual define o seu jogo de forças sem que intervenha a intenção.
Estabelecer-se-ão diferenças raciais, sexuais e económicas, justificando-as com leis genéticas ou
de mercado, mas em todos os casos estar-se-á a operar com a distorsão, a falsidade e a má fé.
As duas ideias básicas expostas anteriormente: em primeiro lugar, a da condição humana
submetida à dor com o seu impulso por superá-la e, em segundo lugar, a definição do ser
humano histórico e social, centram o estado da questão para os humanistas de hoje”.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
ponto mínimo do “meio imediato”, o autor dá esse fenomenal salto de escala com o qual nos faz
encontrar o “vizinho”, o companheiro de trabalho, o amigo... Fica clara a proposta de que todo o
militante deve esquecer a miragem do poder político superestrutural porque esse poder está ferido
de morte às mãos da desestruturação. De nada valerá futuramente o Presidente, o Primeiro-
Ministro, o Senador, o Deputado. Os partidos políticos, os grémios e os sindicatos irão afastando-
se gradualmente das suas bases humanas. O Estado sofrerá mil transformações e unicamente as
grandes corporações e o capital financeiro internacional irão concentrando a capacidade decisória
mundial até sobrevir o colapso do Paraestado. De que poderia valer uma militância que tratasse
de ocupar as cascas vazias da democracia formal? Decididamente, a acção deve delinear-se no
meio mínimo imediato e unicamente a partir daí, com base no conflito concreto, deve ser
construída a representatividade real. Porém, os problemas existenciais da base social não se
expressam exclusivamente como dificuldades económicas e políticas, portanto, um partido que
leve adiante o ideário humanista e que instrumentalmente ocupe espaços parlamentares, tem
significação institucional mas não pode dar resposta às necessidades das pessoas. O novo poder
construir-se-á a partir da base social como um Movimento amplo, descentralizado e federativo. A
pergunta que todo o militante se deve fazer não é “quem será primeiro-ministro ou deputado”, mas
sim “como formaremos os nossos centros de comunicação directa, as nossas redes de conselhos
vicinais; como daremos participação a todas as organizações mínimas de base nas quais se
expressa o trabalho, o desporto, a arte, a cultura e a religiosidade popular?” Esse Movimento não
pode ser pensado em termos políticos formais, mas sim em termos de diversidade convergente.
Também não se deve conceber o crescimento desse Movimento dentro dos moldes de um
gradualismo que vá ganhando progressivamente espaço e estratos sociais. Deve ser delineado
em termos de “efeito demonstração”, típico de uma sociedade planetária multiconectada apta para
reproduzir e adaptar o êxito de um modelo em colectividades afastadas e diferentes entre si. Esta
última carta, em suma, esboça um tipo de organização mínima e uma estratégia de acção
conforme à situação actual.
Detive-me somente nas cartas quatro, seis e dez. Creio que, à diferença das restantes,
estas requeriam alguma recomendação, alguma citação e algum comentário complementar.
J. Valinsky
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Até onde seja possível, tratarei de não repetir o já escrito noutros lugares e oxalá possa
esboçar em poucas linhas a situação geral em que nos cabe viver e as tendências mais imediatas
que se perfilam. Noutras épocas, ter-se-ia tomado como fio condutor deste tipo de descrição uma
certa ideia do "mau estar da cultura", mas hoje, diversamente, falaremos da veloz mudança que
se está a produzir nas economias, nos costumes, nas ideologias e nas crenças, tratando de
rastrear uma certa desorientação que parece asfixiar os indivíduos e os povos.
Antes de entrar no tema, gostaria de fazer duas advertências: uma referida ao mundo que já
era e que parece ser considerado neste escrito com uma certa nostalgia, e outra que aponta ao
modo de expôr, no qual se poderia ver uma total ausência de matizes, levando as coisas a um
primitivismo de questionamento que não é o modo como, na realidade, formulam aqueles que nós
criticamos. Direi que quem como nós crê na evolução humana não está deprimido pelas
mudanças, antes deseja, na verdade, um incremento na aceleração dos acontecimentos,
enquanto trata de adaptar-se crescentemente aos novos tempos. Quanto ao modo de expressar a
argumentação dos defensores da "nova ordem", posso comentar o seguinte: ao falar deles não
deixaram de ressoar em mim os acordes daquelas diametrais ficções literárias, “1984” de Orwell e
“O Admirável Mundo Novo” de Huxley. Esses magníficos escritores vaticinaram um mundo futuro
no qual por meios violentos ou persuasivos, o ser humano acabava submergido e robotizado.
Creio que ambos atribuíram demasiada inteligência aos "maus" e demasiada estupidez aos "bons"
dos seus romances, movidos talvez por um pessimismo de fundo que não cabe interpretar agora.
Os "maus" de hoje são pessoas com muitos problemas e uma grande avidez, mas, em todo o
caso, incompetentes para orientar processos históricos que claramente escapam à sua vontade e
capacidade de planificação. Em geral, trata-se de gente pouco estudiosa e de técnicos ao seu
serviço que dispõem de recursos parcelados e pateticamente insuficientes. Assim, pedirei que não
tomem muito a sério alguns parágrafos, que são, na realidade, como um divertimento, quando
pomos algumas palavras nas suas bocas que não dizem, mesmo que as suas intenções vão
nessa direcção. Creio que há que considerar estas coisas excluindo toda a solenidade (afim à
época que morre) e, ao invés, questioná-las com o bom humor e o espírito de brincadeira que
campeia nas cartas intercambiadas pelas pessoas verdadeiramente amigas.
1. A situação actual
Desde o começo da sua História a humanidade evolui trabalhando para conseguir uma vida
melhor. Apesar dos avanços, hoje utiliza-se o poder e a força económica e tecnológica para
assassinar, empobrecer e oprimir diversas regiões do mundo, destruindo, além do mais, o futuro
das novas gerações e o equilíbrio geral da vida no planeta. Uma pequena percentagem da
humanidade possui grandes riquezas, enquanto as maiorias padecem de sérias necessidades.
Nalguns lugares, há trabalho e remuneração suficiente, mas noutros a situação é desastrosa. Em
todas os lados, os sectores mais humildes sofrem horrores para não morrer de fome. Hoje,
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
minimamente, e pelo simples facto de ter nascido num meio social, todo o ser humano requer
adequada alimentação, saúde, habitação, educação, vestuário, serviços... e chegando a certa
idade necessita assegurar o seu futuro pelo tempo de vida que lhe reste. Com todo o direito as
pessoas querem isso para elas e para os seus filhos, ambicionando que estes possam viver
melhor. No entanto, hoje essas aspirações de milhares de milhões de pessoas não são satisfeitas.
3. A evolução social
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
numa acumulação histórica que não parece ter-se ocupado muito das leis de mercado. Se, ao
invés, se quer dizer que as economias abundantes sugam talentos, pagam equipamento e
investigação e que, por último, são motivadoras porque dão uma melhor remuneração, diremos
que isto é assim desde épocas milenares e que tão-pouco se deve a um tipo especial de
economia, mas sim, simplesmente, a que nesse lugar existem recursos suficientes
independentemente da origem de tal potencialidade económica. Em quinto lugar, falta o
expediente de explicar o progresso dessas comunidades pelo intangível "dom" natural de
especiais talentos, virtudes cívicas, laboriosidade, organização e coisas semelhantes. Este já não
é um argumento, mas sim uma declaração devocional em que se escamoteia a realidade social e
histórica que explica como se formaram esses povos.
Desde logo, temos muito desconhecimento para compreender como é que com semelhantes
antecedentes históricos se poderá sustentar este esquema no futuro imediato, mas isso faz parte
de outra discussão: a discussão em torno de se existe realmente tal economia livre de mercado ou
se se trata antes de proteccionismos e dirigismos encobertos que, de repente, abrem
determinadas válvulas, ali onde se sentem a dominar uma situação, e fecham outras em caso
contrário. Se isto é assim, tudo o que se acrescente como uma promessa de avanço ficará
somente reservado à explosão e difusão da ciência e da tecnologia, independentemente do
suposto automatismo das leis económicas.
4. As futuras experiências
Como aconteceu até hoje, quando seja necessário, substituir-se-á o esquema vigente por outro
que "corrija" os defeitos do modelo anterior. Desse modo e passo a passo, continuará a
concentrar-se a riqueza nas mãos de uma minoria cada vez mais poderosa. É claro que a
evolução não se deterá, nem tão-pouco as legítimas aspirações dos povos. Assim sendo, em
pouco tempo serão varridas as últimas ingenuidades que asseguram o fim das ideologias, as
confrontações, as guerras, as crises económicas e as desordens sociais. Desde logo, tanto as
soluções como os conflitos se mundializarão, porque já não restarão pontos desconectados entre
si. Também há algo certo: nem os esquemas de dominação actual poderão sustentar-se nem tão-
pouco as fórmulas de luta que tiveram vigência até ao momento actual.
Tanto a regionalização dos mercados como a reivindicação localista e das etnias apontam à
desintegração do Estado nacional. A explosão demográfica nas regiões pobres leva a migração ao
limite do controlo. A grande família camponesa desagrega-se, deslocando a geração jovem para a
aglomeração urbana. A familia urbana industrial e pós-industrial reduz-se ao mínimo, enquanto as
macro-cidades absorvem contigentes humanos formados noutras paisagens culturais. As crises
económicas e as reconversões dos modelos produtivos fazem com que a discriminação irrompa
novamente. Entretanto, a aceleração tecnológica e a produção massiva deixam obsoletos os
produtos no instante de entrar no circuito de consumo. A substituição de objectos corresponde-se
com a instabilidade e a desregulação na relação humana. A antiga solidariedade, herdeira do que
em algum momento se chamou "fraternidade", acabou por perder significado. Os companheiros
de trabalho, de estudo e de desporto, e as amizades de outras épocas, tomam o carácter de
competidores; os membros do casal lutam pelo domínio, calculando, desde o começo dessa
relação, como será a quota de benefício mantendo-se unidos, ou como será essa quota se se
separarem. Nunca antes o mundo esteve tão comunicado, porém os indivíduos padecem cada dia
mais de uma angustiosa incomunicação. Nunca os centros urbanos estiveram mais povoados,
contudo as pessoas falam de "solidão". Nunca as pessoas necessitaram mais do que agora do
calor humano, no entanto qualquer aproximação converte em suspeita a amabilidade e a ajuda.
Assim deixaram a nossa pobre gente: fazendo crer a todo o infeliz que tem algo importante a
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
perder e que esse "algo" etéreo é cobiçado pelo resto da humanidade! Nessas condições, pode-
se-lhe contar este conto como se se tratasse da mais autêntica realidade...
"A sociedade que se está a pôr em marcha trará finalmente a abundância. Mas, à parte os
grandes benefícios objectivos, ocorrerá uma libertação subjectiva da humanidade. A antiga
solidariedade, própria da pobreza, não será necessária. Já muitos concordam que com dinheiro,
ou algo equivalente, se solucionarão quase todos os problemas; por conseguinte, os esforços,
pensamentos e sonhos, estarão lançados nessa direcção. Com o dinheiro comprar-se-á boa
comida, boa habitação, viagens, diversões, brinquedos tecnológicos e pessoas que façam o que
se quiser. Haverá um amor eficiente, uma arte eficiente e uns psicólogos eficientes que repararão
os problemas pessoais que pudessem restar, os quais, mais adiante, a nova química cerebral e a
engenharia genética acabarão por resolver.
"Finalmente, as ideologias terão desaparecido e já não se utilizarão para lavar o cérebro das
pessoas. Certamente que ninguém impedirá o protesto ou inconformidade com temas menores,
sempre que para se expressarem paguem aos canais adequados. Sem confundir a liberdade com
a libertinagem, os cidadãos reunir-se-ão em números pequenos (por razões sanitárias) e poderão
expressar-se em lugares abertos (sem perturbar com sons contaminantes ou com publicidade que
deslustre o "município", ou como se chame mais adiante ).
"Mas o mais extraordinário ocorrerá quando já não se requeira controlo policial, pois cada
cidadão será alguém decidido que cuidará os outros das mentiras que algum terrorista ideológico
pudesse tratar de inculcar. Esses defensores terão tanta responsabilidade que acudirão
pressurosos aos meios de comunicação, nos quais encontrarão imediato acolhimento para alertar
a população; escreverão estudos brilhantes que serão publicados imediatamente e organizarão
fóruns, nos quais formadores de opinião de grande cultura esclarecerão algum desprevenido que
poderia ainda estar à mercê das forças obscuras do dirigismo económico, do autoritarismo, da
antidemocracia e do fanatismo religioso. Nem sequer será necessário perseguir os perturbadores,
porque num sistema de difusão tão eficiente ninguém quererá aproximar-se deles para não se
contaminar. No pior dos casos, "desprogramar-se-ão" com eficácia e eles agradecerão
publicamente a sua reinserção e o benefício que lhes produzirá reconhecer as bondades da
liberdade. Por seu lado, aqueles esforçados defensores, se é que não estão enviados
especificamente para cumprir essa importante missão, serão gente comum que poderá sair assim
do anonimato, ser reconhecida socialmente pela sua qualidade moral, assinar autógrafos e, como
é lógico, receber uma merecida retribuição.
"A Empresa será a grande família que favorecerá a qualificação, as relações e o lazer. A
robótica terá suplantado o esforço físico de outras épocas e trabalhar para a Empresa na própria
casa será uma verdadeira realização pessoal.
"Assim, a sociedade não necessitará de organizações que não estejam incluidas na Empresa.
O ser humano, que tanto lutou pelo seu bem-estar, terá finalmente chegado aos céus. Saltando de
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
planeta em planeta terá descoberto a felicidade. Instalado aí, será um jovem competitivo, sedutor,
aquisitivo, tiunfador, e pragmático (sobretudo pragmático)... executivo da Empresa!"
7. A Mudança Humana
O mundo está a variar a grande velocidade e muitas coisas que até há pouco eram cridas
cegamente já não se podem sustentar. A aceleração está a gerar instabilidade e desorientação em
todas as sociedades, sejam estas pobres ou opulentas. Nesta mudança de situação, tanto as
lideranças tradicionais e seus "formadores de opinião" como os antigos lutadores políticos e
sociais deixam de ser referência para as pessoas. No entanto, está a nascer uma sensibilidade
que se corresponde com os novos tempos. É uma sensibilidade que capta o mundo como uma
globalidade e que se dá conta de que as dificuldades das pessoas em qualquer lugar acabam por
implicar outras, ainda que se encontrem a muita distância. As comunicações, o intercâmbio de
bens e a veloz deslocação de grandes contingentes humanos de um ponto para outro, mostram
esse processo de mundialização crescente. Também estão a surgir novos critérios de acção ao
compreender-se a globalidade de muitos problemas, percebendo-se que a tarefa daqueles que
querem um mundo melhor será efectiva se se a faz crescer a partir do meio em que se tem
alguma influência. Ao contrário de outras épocas, cheias de frases ocas com as quais se
procurava reconhecimento externo, hoje começa-se a valorizar o trabalho humilde e sentido,
mediante o qual não se pretende engrandecer a própria figura, mas sim mudar-se a si mesmo e
ajudar o meio imediato familiar, laboral e de relação a fazê-lo. Os que gostam realmente das
pessoas não desprezam essa tarefa sem estridências, incompreensível, ao invés, para qualquer
oportunista formado na antiga paisagem dos líderes e da massa, paisagem na qual ele aprendeu
a usar outros para ser catapultado para a cúpula social. Quando alguém comprova que o
individualismo esquizofrénico já não tem saída e comunica abertamente a todos os seus
conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o ridículo temor de não ser compreendido;
quando se aproxima de outros; quando se interessa por cada um e não por uma massa anónima;
quando promove o intercâmbio de ideias e a realização de trabalhos em conjunto; quando
claramente expõe a necessidade de multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social
destruido por outros; quando sente que mesmo a pessoa mais "insignificante" é de superior
qualidade humana que qualquer desalmado posto no cume da conjuntura epocal... Quando
sucede tudo isto, é porque no interior desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem
movido os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse Destino tantas vezes desviado e tantas
vezes esquecido, mas sempre reencontrado nas encruzilhadas da história. Não só se vislumbra
uma nova sensibilidade, um novo modo de acção, como também, além disso, uma nova atitude
moral e uma nova disposição táctica perante a vida. Se me fizessem precisar o enunciado acima,
diria que as pessoas, ainda que isto se tenha repetido desde há três milénios atrás, hoje
experimentam como uma novidade a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como
cada um quer ser tratado. Acrescentaria que, quase como leis gerais de comportamento, hoje se
aspira a: 1.- uma certa proporção, tratando de ordenar as coisas importantes da vida, levando-as
em conjunto e evitando que algumas se adiantem e outras se atrasem excessivamente; 2.- uma
certa adaptação crescente, actuando a favor da evolução (não simplesmente da curta conjuntura)
e não cooperando com as diferentes formas de involução humana; 3.- uma certa oportunidade,
retrocedendo diante de uma grande força (não perante qualquer inconveniente) e avançando na
sua declinação; 4.- uma certa coerência, acumulando acções que dão a sensação de unidade e
acordo consigo mesmo, e pondo de lado aquelas que produzem contradição e que se registam
como desacordo entre o que se pensa, sente e faz. Não creio que seja preciso explicar por que
digo que se está "a sentir a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como cada um
quer ser tratado", face à objecção que levanta o facto de que assim não se actua nestes
momentos. Também não creio que me deva alongar em explicações acerca do que entendo por
"evolução" ou por "adaptação crescente" e não simplesmente por adaptação de permanência.
Quanto aos parâmetros do retroceder ou avançar diante de grandes ou declinantes forças, sem
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
dúvida que haveria que contar com indicadores ajustados que não mencionei. Por último, isto de
acumular acções unitivas perante as situações contraditórias imediatas que nos cabe viver ou, em
sentido oposto pôr de lado a contradição, a olhos vistos aparece como uma dificuldade. Isso é
certo, mas se revemos o comentado mais acima, ver-se-á que mencionei todas estas coisas
dentro do contexto de um tipo de comportamento ao qual hoje se começa a aspirar, bastante
diferente do que se pretendia noutras épocas.
Silo.
21/02/91.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Em carta anterior, referi-me à situação que nos cabe viver e a certas tendências que os
acontecimentos mostram. Aproveitei para discutir algumas propostas que os defensores da
economia de mercado anunciam como se se tratassem de condições ineludíveis para todo o
progresso social. Também destaquei a crescente deterioração da solidariedade e a crise de
referências que se verifica neste momento. Por último, esbocei algumas características positivas
que se começam a observar naquilo que chamei "uma nova sensibilidade, uma nova atitude moral
e uma nova disposição táctica perante a vida".
Alguns dos meus correspondentes fizeram-me notar o seu desacordo com o tom da carta, já
que, segundo lhes pareceu, havia nela muitas coisas demasiado graves para uma pessoa se
permitir ironizar. Mas não dramatizemos! É tão inconsistente o sistema de provas que apresenta a
ideologia do neoliberalismo, da economia social de mercado e da Nova Ordem Mundial, que a
coisa não é de modo a franzir o sobrolho. O que quero dizer é que tal ideologia está morta nos
seus fundamentos desde há muito tempo e que em breve sobrevirá a crise prática, de superfície,
que é a que finalmente percebem aqueles que confundem significado com expressão; conteúdo
com forma; processo com conjuntura. Tal como as ideologias do fascismo e do socialismo real
tinham morrido muito tempo antes de se ter produzido o seu descalabro prático posterior, também
o desastre do actual sistema só mais adiante surpreenderá os bem-pensantes. Não é isto muito
ridículo? É como ver muitas vezes um filme muito mau. Depois de tanta repetição, dedicamo-nos
a esquadrinhar nas paredes de alvenaria, nas maquilhagens dos actores e nos efeitos especiais,
enquanto, ao nosso lado, uma senhora se emociona por aquilo que vê e que, para ela, é a própria
realidade. Assim, digo em meu descargo que não zombei da enorme tragédia que a imposição
deste sistema significa, mas sim das suas monstruosas pretensões e do seu grotesco final, final
que já presenciámos em muitos casos anteriores.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
hipotético bem-estar, que estendem, quando muito, aos seus filhos. Como nas épocas finais de
civilizações passadas, muita gente assume atitudes de salvação individual, supondo que não tem
sentido nem possibilidade de êxito qualquer tarefa que se empreenda em conjunto. Em todo o
caso, o conjunto tem utilidade para a especulação estritamente pessoal e, por isso, os líderes
empresariais, culturais ou políticos necessitam de manipular e melhorar a sua imagem tornando-
se credíveis, fazendo outros crer que eles pensam e actuam em função dos demais. Claro que tal
ocupação tem os seus dissabores, porque toda a gente conhece o truque e ninguém acredita em
ninguém. Os antigos valores religiosos, patrióticos, culturais, políticos e gremiais ficam submetidos
ao dinheiro, num campo em que a solidariedade e, portanto, a oposição colectiva a esse esquema
são varridas, ao mesmo tempo que o tecido social se descompõe gradualmente. Depois, sobrevirá
outra etapa na qual o individualismo radical será superado... mas esse é um tema para mais
adiante. Com a nossa paisagem de formação às costas e com as nossas crenças em crise, não
estamos ainda em condições de admitir que se aproxima esse novo momento histórico. Hoje,
detendo uma pequena parcela de poder ou dependendo absolutamente do poder de outros, todos
nos encontramos tocados pelo individualismo, no qual tem claramente vantagem quem melhor
está instalado no sistema.
Por outro lado, e até que se consolide um poder imperial mundial, poderão ocorrer conflitos
regionais como noutro tempo aconteceu entre países. Que tais confrontações se produzam no
campo económico ou se trasladem à arena da guerra em áreas restritas; que como consequência
aconteçam desordens incoerentes e massivas; que caiam governos completos e acabem por se
desintegrar países e zonas, isso em nada afectará o processo de concentração a que parece
apontar este momento histórico. Localismos, lutas interétnicas, migrações e crises continuadas
não alterarão o quadro geral de concentração de poder. E quando a recessão e o desemprego
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
afectem também as populações dos países ricos, já terá passado a etapa de liquidação liberal e
começarão as políticas de controlo, coacção e emergência ao melhor estilo imperial... quem
poderá então falar de economia de livre mercado e que importância terá manter posturas
baseadas no individualismo radical?
3. Características da crise
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
importante nos próximos anos, a dependência relativamente aos centros de poder tornar-se-á
cada vez mais notória.
O desenvolvimento científico e tecnológico não pode ser posto em causa pelo facto de
alguns avanços terem sido ou serem utilizados contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que se
questiona a tecnologia dever-se-ia fazer uma prévia reflexão com respeito às características do
sistema que utiliza o avanço do saber com fins espúrios. Claro que o progresso na medicina,
comunicações, robótica, engenharia genética e tantos outros campos, pode ser aproveitado em
direcção destrutiva. O mesmo se pode dizer relativamente à utilização da técnica na exploração
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
irracional de recursos, poluição industrial, contaminação e degradação ambiental. Mas tudo isso
denuncia o signo negativo que comanda a economia e os sistemas sociais. Assim, bem sabemos
que hoje se está em condições de solucionar os problemas de alimentação de toda a humanidade
e, contudo, comprovamos diariamente que existe fome, desnutrição e padecimentos infra-
humanos, porque o sistema não está na disposição de se dedicar a esses problemas, resignando
aos seus fabulosos ganhos em troca de uma melhoria global do nível humano. Também notamos
que as tendências para as regionalizações e, finalmente, para a mundialização estão a ser
manipuladas por interesses particulares em detrimento dos grandes conjuntos. Mas está claro
que, mesmo nessa distorsão, o processo em direcção a uma nação humana universal abre
passagem. A mudança acelerada que se está a apresentar no mundo leva a uma crise global do
sistema e a um consequente reordenamento de factores. Tudo isso será a condição necessária
para conseguir uma estabilidade aceitável e um desenvolvimento harmónico do planeta. Por
conseguinte, apesar das tragédias que se podem avistar na descomposição deste sistema global
actual, a espécie humana prevalecerá sobre todo o interesse particular. Na compreensão da
direcção da História, que começou nos nossos antepassados hominídios, radica a nossa fé no
futuro. Esta espécie que trabalhou e lutou durante milhões de anos para vencer a dor e o
sofrimento não sucumbirá no absurdo. Por isso, é necessário compreender processos mais
amplos do que simples conjunturas e apoiar tudo o que vá em direcção evolutiva, ainda que não
se vejam os seus resultados imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e solidários
atrasa o passo da História. Mas é difícil compreender esse sentido se a vida pessoal não se
organiza e orienta também em direcção positiva. Aqui não estão em jogo factores mecânicos ou
determinismos históricos, está em jogo a intenção humana que tende a abrir caminho diante de
todas as dificuldades.
Espero, meus amigos, passar a temas mais reconfortantes na próxima carta, deixando de
lado a observação de factores negativos para esboçar propostas concordantes com a nossa fé
num futuro melhor para todos.
Silo.
05/12/91.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Espero que a presente carta sirva para ordenar e simplificar as minhas opiniões a respeito
da situação actual. Também queria considerar certos aspectos da relação entre os indivíduos e
entre eles e o meio social em que vivem.
1. A mudança e a crise
2. Desorientação
Portanto, é fundamental dar direcção a essa mudança inevitável e não há outra forma de
fazê-lo senão começando por si mesmo. Em cada um deve dar-se direcção a estas mudanças
desordenadas cujo rumo desconhecemos.
Como os indivíduos não existem isolados, se realmente direccionam a sua vida, modificarão
a relação com os outros na sua familia, no seu trabalho e onde lhes caiba actuar. Este não é um
problema psicológico que se resolve dentro da cabeça de indivíduos isolados, mas sim mudando
a situação em que se vive com outros mediante um comportamento coerente. Quando celebramos
êxitos ou nos deprimimos por causa dos nossos fracassos, quando fazemos planos para o futuro
ou nos propomos introduzir mudanças na nossa vida, esquecemos o ponto fundamental: estamos
em situação de relacção com outros. Não podemos explicar o que nos acontece, nem escolher,
sem referência a certas pessoas e a certos âmbitos sociais concretos. Essas pessoas que têm
especial importância para nós e esses âmbitos sociais em que vivemos põem-nos numa situação
precisa, a partir da qual pensamos, sentimos e actuamos. Negar isto ou não tê-lo em conta cria
enormes dificuldades. A nossa liberdade de escolha e acção está delimitada pela situação em que
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
vivemos. Qualquer mudança que desejemos operar não pode ser traçada em abstracto, mas sim
em referência à situação em que vivemos.
6. O comportamento coerente
Se pudéssemos pensar, sentir e actuar na mesma direcção, se o que fazemos não nos
criasse contradição com o que sentimos, diríamos que a nossa vida tem coerência. Seríamos
fiáveis para nós mesmos, ainda que não necessariamente fiáveis para o nosso meio imediato.
Deveríamos conseguir essa mesma coerência na relação com outros, tratando os demais como
queremos ser tratados. Sabemos que pode existir uma espécie de coerência destrutiva, como
observamos nos racistas, nos exploradores, nos fanáticos e nos violentos, mas está clara a sua
incoerência na relação porque tratam os outros de um modo muito diferente daquele que
desejam para si mesmos. Essa unidade de pensamento, sentimento e acção, essa unidade entre
o trato que se pede e o trato que se dá, são ideais que não se realizam na vida diária. Este é o
ponto. Trata-se de um ajuste de condutas a essas propostas; trata-se de valores que, tomados
com seriedade, direccionam a vida, independentemente das dificuldades que se enfrentem para
realizá-los. Se observarmos bem as coisas, não estaticamente mas sim em dinâmica,
compreenderemos isto como uma estratégia que deve ir ganhando terreno à medida que passe o
tempo. Aqui sim valem as intenções, ainda que as acções não coincidam no princípio com elas,
sobretudo se aquelas intenções são mantidas, aperfeiçoadas e ampliadas. Essas imagens do que
se deseja conseguir são referências firmes que dão direcção em todas as situações. E isto que
dizemos não é tão complicado. Não nos surpreende, por exemplo, que uma pessoa oriente a sua
vida para conseguir uma grande fortuna, no entanto, essa pessoa pode saber antecipadamente
que não a conseguirá. De qualquer maneira, o seu ideal impulsiona-a ainda que não tenha
resultados relevantes. Então, por que razão não se pode entender que mesmo sendo a época
adversa ao trato que se pede com o trato que se dá, mesmo sendo adversa a pensar, sentir e
actuar na mesma direcção, esses ideais de vida possam dar direcção às acções humanas?
7. As duas propostas
Pensar, sentir e actuar na mesma direcção e tratar os outros como se deseja ser tratado,
são duas propostas tão singelas que podem ser entendidas como simples ingenuidades pela
gente habituada às complicações. No entanto, atrás dessa aparente candura, há uma nova escala
de valores em cujo ponto mais alto se põe a coerência, uma nova moral para a qual não é
indiferente qualquer tipo de acção, uma nova aspiração que implica ser consequente no esforço
para dar direcção aos acontecimentos humanos. Por trás dessa aparente candura, aposta-se no
sentido da vida pessoal e social que será verdadeiramente evolutivo ou caminhará para a
desintegração. Já não podemos confiar que velhos valores dêem coesão às pessoas num tecido
social deteriorado dia-a-dia pela desconfiança, o isolamento e o individualismo crescente. A antiga
solidariedade entre os membros das classes, associações, instituções e grupos vai sendo
substituída pela concorrência selvagem a que não escapa o casal nem a irmandade familiar.
Neste processo de demolição, não se elevará uma nova solidariedade com base em ideias
e comportamentos de um mundo que já era, mas sim graças à necessidade concreta de
cada um de direccionar a sua vida, para o que terá de modificar o seu próprio meio. Essa
modificação, se é verdadeira e profunda, não se pode pôr em andamento por acção de
imposições, por leis externas ou por fanatismos de qualquer tipo, mas sim pelo poder da opinião e
da acção mínima conjunta entre as pessoas que fazem parte do meio em que se vive.
Sabemos que ao mudar positivamente a nossa situação estaremos a influir no nosso meio e
outras pessoas compartilharão este ponto de vista, dando lugar a um sistema de relações
humanas em crescimento. Teremos que perguntar-nos: Por que razão deveríamos ir mais além de
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
onde começamos? Simplesmente por coerência com a proposta de tratar os outros como
queremos que nos tratem. Ou não levaríamos aos outros algo que se mostrou fundamental para a
nossa vida? Se a influência começa a desenvolver-se é porque as relações, e portanto os
componentes do nosso meio, se ampliaram. Esta é uma questão que deveríamos ter em conta
desde o começo, porque mesmo quando a nossa acção começa a aplicar-se num ponto reduzido,
a projecção dessa influência pode chegar muito longe. Não tem nada de estranho pensar que
outras pessoas decidam juntar-se na mesma direcção. Afinal de contas, os grandes movimentos
históricos seguiram o mesmo caminho: começaram pequenos, como é lógico, e desenvolveram-se
graças a que as pessoas os consideraram intérpretes das suas necessidades e inquietudes.
Actuar no meio imediato, mas com o olhar posto no progresso da sociedade é coerente com tudo
o que se disse. De outro modo, para que faríamos referência a uma crise global que deve ser
enfrentada resolutamente, se tudo terminasse em indivíduos isolados para quem os outros não
têm importância? Por necessidade das pessoas que coincidam em dar uma nova direcção à sua
vida e aos acontecimentos, surgirão âmbitos de discussão e comunicação directa. Depois, a
difusão através de todos os meios permitirá ampliar a superfície de contacto. O mesmo
acontecerá com a criação de organismos e instituições compatíveis com este projecto.
Já comentámos que é tão veloz e tão inesperada a mudança, que este impacto se está a
receber como crise na qual se debatem sociedades inteiras, instituições e indivíduos. Por isso, é
imprescindível dar direcção aos acontecimentos. No entanto, como poderia uma pessoa fazê-lo,
submetida como está à acção de eventos maiores? É evidente que só se pode direccionar
aspectos imediatos da vida e não o funcionamento das instituições nem da sociedade. Por outro
lado, pretender dar direcção à própria vida não é coisa fácil, já que cada um vive em situação, não
vive isolado, vive num meio. Este meio, podemos vê-lo tão amplo como o Universo, a Terra, o
país, o Estado, a província, etc. Contudo, há um meio imediato que é onde desenvolvemos as
nossas actividades. Esse meio é familiar, laboral, de amizades, etc. Vivemos em situação com
referência a outras pessoas e esse é o nosso mundo particular do qual não podemos prescindir.
Ele actua sobre nós e nós sobre ele de um modo directo. Se temos alguma influência, é sobre
esse meio imediato. Mas acontece que tanto a influência que exercemos como a que recebemos
estão afectadas, por sua vez, por situações mais gerais, pela crise e a desorientação.
Se se quisesse dar alguma direcção aos acontecimentos, haveria que começar pela própria
vida e, para fazê-lo, teríamos de ter em conta o meio em que actuamos. Ora bem, a que direcção
podemos aspirar? Sem dúvida, àquela que nos proporcione coerência e apoio num meio tão
variável e imprevisível. Pensar, sentir e actuar na mesma direcção é uma proposta de coerência
na vida. No entanto, isto não é fácil porque nos encontramos numa situação que não escolhemos
completamente. Estamos a fazer coisas que necessitamos, mesmo que em grande desacordo
com o que pensamos e sentimos. Estamos metidos em situações que não governamos. Actuar
com coerência, mais que um facto, é uma intenção, uma tendência que podemos ter presente, de
maneira que a nossa vida se vá direccionando para esse tipo de comportamento. É claro que
unicamente influindo nesse meio, poderemos mudar parte da nossa situação. Ao fazê-lo,
estaremos direccionando a relação com outros e outros partilharão essa conduta. Se a isso se
objecta que algumas pessoas mudam de meio com certa frequência, por causa do seu trabalho ou
por outros motivos, responderemos que isso não modifica nada o exposto, já que sempre se
estará em situação, sempre se estará num dado meio. Se pretendemos coerência, o trato que
dermos aos outros terá de ser do mesmo género que o trato que exigimos para nós. Assim, nestas
duas propostas encontramos os elementos básicos de direcção até onde chegam as nossas
forças. A coerência avança contanto avance o pensar, o sentir e o actuar na mesma direcção. Esta
coerência estende-se a outros, porque não há outra maneira de fazê-lo, e, ao estender-se a
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Existe uma rotina quotidiana dada pelos horários, os cuidados pessoais e o funcionamento
do nosso meio. No entanto, dentro dessas pautas há uma dinâmica e riqueza de acontecimentos
que as pessoas superficiais não sabem apreciar. Há aqueles que confundem a sua vida com as
suas rotinas, mas isto não é assim de todo, já que muito frequentemente têm que escolher dentro
das condições que lhes impõe o meio. Na verdade, vivemos entre inconvenientes e contradições,
mas convirá não confundir ambos os termos. Entendemos por "inconvenientes" as moléstias e
impedimentos que enfrentamos. Não são enormemente graves, mas claro que se são numerosos
e repetidos aumentam a nossa irritação e fadiga. Certamente, estamos em condições de superá-
los: não determinam a direcção da nossa vida, não impedem que levemos adiante um projecto.
São obstáculos no caminho, que vão desde a menor dificuldade física a problemas em que
estamos a ponto de perder o rumo. Os inconvenientes admitem uma gradação importante, mas
mantêm-se num limite que não impede de avançar. Coisa diferente acontece com o que
chamamos "contradições". Quando o nosso projecto não pode ser realizado, quando os
acontecimentos nos lançam numa direcção oposta à desejada, quando nos encontramos num
círculo vicioso que não podemos romper, quando não podemos direccionar minimamente a nossa
vida, estamos tomados pela contradição. A contradição é uma espécie de inversão na corrente da
vida que nos leva a retroceder sem esperança. Estamos a descrever o caso em que a incoerência
se apresenta com maior crueza. Na contradição, opõe-se o que pensamos, o que sentimos e
fazemos. Apesar de tudo, sempre há possibilidade de direccionar a vida, mas é necessário saber
quando fazê-lo. A oportunidade das acções é algo que não temos em conta na rotina quotidiana e
isto é assim porque muitas coisas estão codificadas. Mas, no que se refere aos inconvenientes
importantes e às contradições, as decisões que tomamos não podem estar expostas à catástrofe.
Em termos gerais, devemos retroceder diante de uma grande força e avançar com resolução
quando essa força se debilite. Há uma grande diferença entre o temeroso que retrocede ou se
imobiliza ante qualquer inconveniente e aquele que actua sobrepondo-se às dificuldades, sabendo
que, precisamente, avançando pode torneá-las. Acontece que, às vezes, não é possível avançar,
porque se levanta um problema superior às nossas forças e arremeter sem cálculo leva-nos ao
desastre. O grande problema que enfrentemos será também dinâmico e a relação de forças
mudará, ou porque vamos crescendo em influência ou porque a sua influência diminui. Quebrada
a relação anterior, é o momento de proceder com resolução, já que uma indecisão ou uma
postergação fará com que novamente se modifiquem os factores. A execução da acção oportuna
é a melhor ferramenta para produzir mudanças de direcção.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Sintetizando:
1. - Há uma mudança veloz no mundo, motorizada pela revolução tecnológica, que está a
chocar com as estruturas estabelecidas e com a formação e os hábitos de vida das sociedades e
dos indivíduos.
2. - Este desfasamento gera crises progressivas em todos os campos e não há razão para
supôr que se vai deter, antes pelo contrário, tenderá a incrementar-se.
3. - O inesperado dos acontecimentos impede prever que direcção tomarão os factos, as
pessoas que nos rodeiam e, em suma, a nossa própria vida.
4. - Muitas das coisas que pensávamos e acreditávamos já não nos servem. Também não
estão à vista soluções que provenham de uma sociedade, instituições e indivíduos que padecem
do mesmo mal.
5. - Se decidirmos trabalhar para fazer face a estes problemas, teremos que dar direcção à
nossa vida, buscando coerência entre o que pensamos, sentimos e fazemos. Como não estamos
isolados, essa coerência terá que chegar à relação com os outros, tratando-os do mesmo modo
que queremos para nós mesmos. Estas duas propostas não podem ser cumpridas rigorosamente,
mas constituem a direcção de que necessitamos, sobretudo se as tomarmos como referências
permamentes e as aprofundarmos.
6. - Vivemos em relação imediata com outros e é nesse meio onde temos que actuar para
dar direcção favorável à nossa situação. Esta não é uma questão psicológica, uma questão que
se possa resolver na cabeça isolada dos indivíduos: é um tema relacionado com a situação que
se vive.
7. - Sendo consequentes com as propostas que tratamos de levar adiante, chegamos à
conclusão que o que é positivo para nós e para o nosso meio imediato, deve ser alargado a toda a
sociedade. Junto a outros que coincidem na mesma direcção, implementaremos os meios mais
adequados para que uma nova solidariedade encontre o seu rumo. Por isso, apesar de actuar tão
especificamente no nosso meio imediato não perderemos de vista uma situação global que afecta
todos os seres humanos e que requer a nossa ajuda, assim como nós necessitamos da ajuda dos
outros.
8. - As mudanças inesperadas levam-nos a pensar seriamente na necessidade de
direccionar a nossa vida.
9. - A coerência não começa e termina em cada um, está antes relacionada com um meio,
com outras pessoas. A solidariedade é um aspecto da coerência pessoal.
10. - A proporção nas acções consiste em estabelecer prioridades de vida e operar com
base nelas, evitando que se desequilibrem.
11. - A oportunidade do actuar tem em conta retroceder perante uma grande força e avançar
com resolução quando esta se debilita. Esta ideia é importante para efeitos de produzir mudanças
na direcção da vida, se estamos submetidos à contradição.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
12. - É tão inconveniente a desadaptação num meio em que não podemos mudar nada,
como a adaptação decrescente, na qual nos limitamos a aceitar as condições estabelecidas. A
adaptação crescente consiste num aumento da nossa influência no meio e em direcção coerente.
Silo.
17/12/91.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Brincadeiras à parte, comecemos já o inventário das nossas ideias, pelo menos das que
consideramos mais importantes. Devo realçar que boa parte delas foram apresentadas na
conferência que dei em Santiago de Chile em 23/05/91.
Falemos, pois, da vida humana. Quando me observo, não do ponto de vista fisiológico,
mas sim existencial, encontro-me posto num mundo dado, não construído nem escolhido por
mim. Encontro-me em situação relativamente a fenómenos que, começando pelo meu próprio
corpo, são ineludíveis. O corpo, como constituinte fundamental da minha existência, é, além do
mais, um fenómeno homogéneo com o mundo natural em que actua e sobre o qual actua o
mundo. Mas a naturalidade do corpo tem para mim diferenças importantes relativamente ao
resto dos fenómenos, a saber: 1.- o registo imediato que dele possuo; 2.- o registo que através
dele tenho dos fenómenos externos; e 3.- a disponibilidade de alguma das suas operações
mercê da minha intenção imediata.
Deste modo, não estou fechado ao mundo do natural e dos outros seres humanos, antes
pelo contrário, a minha característica é precisamente a "abertura". A minha consciência
configurou-se intersubjectivamente já que usa códigos de raciocínio, modelos emotivos,
esquemas de acção que registo como sendo "meus", mas que também reconheço noutros. E,
desde logo, está o meu corpo aberto ao mundo enquanto o percepciono e sobre ele actuo. O
mundo natural, à diferença do humano, aparece-me sem intenção. Claro que posso imaginar
que as pedras, as plantas e as estrelas possuem intenção, mas não vejo como chegar a um
efectivo diálogo com elas. Mesmo os animais em que, às vezes, capto a chispa da inteligência,
aparecem-me impenetráveis e em lenta modificação de dentro da sua natureza. Vejo
sociedades de insectos totalmente estruturadas, mamíferos superiores a usar rudimentos
técnicos, mas repetindo os seus códigos em lenta modificação genética, como se fossem
sempre os primeiros representantes das suas respectivas espécies. E quando comprovo as
virtudes dos vegetais e dos animais modificados e domesticados pelo Homem, observo a
intenção deste a abrir-se caminho e a humanizar o mundo.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
É-me insuficiente a definição do Homem pela sua sociabilidade, já que isto não contribui
para a distinção em relação a numerosas espécies; a sua força de trabalho também não é o
característico, comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a linguagem o
define na sua essência, porque sabemos de códigos e formas de comunicação entre diversos
animais. Ao invés, ao encontrar-se cada novo ser humano com um mundo modificado por
outros e ao ser constituído por esse mundo intencionado, descubro a sua capacidade de
acumulação e incorporação no temporal; descubro a sua dimensão histórico-social, não
simplesmente social. Vistas assim as coisas, posso tentar uma definição, dizendo: o Homem é
o ser histórico cujo modo de acção social transforma a sua própria natureza. Se admito isto,
terei de aceitar que esse ser pode transformar intencionalmente a sua constituição física. E
assim está a acontecer. Começou com a utilização de instrumentos que, postos adiante do seu
corpo como "próteses" externas, lhe permitiram alongar a sua mão, aperfeiçoar os seus
sentidos e aumentar a sua força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava dotado
para os meios líquido e aéreo e, no entanto, criou condições para se deslocar neles, até
começar a emigrar do seu meio natural, o planeta Terra. Hoje, além disso, está a internar-se no
seu próprio corpo mudando os seus órgãos; intervindo na sua química cerebral; fecundando in
vitro e manipulando os seus genes. Se, com a ideia de "natureza", se quis assinalar o
permanente, tal ideia é hoje inadequada, ainda que se queira aplicá-la ao mais objectal do ser
humano, isto é, ao seu corpo. E no que se refere a uma "moral natural", a um "direito natural"
ou a "instituições naturais", encontramos, opostamente, que nesse campo tudo é histórico-
social e nada aí existe por natureza.
Contígua à concepção da natureza humana tem estado a operar outra que nos falou da
passividade da consciência. Esta ideologia considerou o Homem como uma entidade que
operava em resposta aos estímulos do mundo natural. O que começou em tosco sensualismo,
pouco a pouco foi afastado por correntes historicistas que conservaram no seu seio a mesma
ideia em torno da passividade. E ainda quando privilegiaram a actividade e a transformação do
mundo em relação à interpretação dos seus factos, conceberam a referida actividade como
resultante de condições externas à consciência. Porém, aqueles antigos preconceitos em torno
da natureza humana e da passividade da consciência hoje impõem-se, transformados em neo-
evolucionismo, com critérios tais como a selecção natural que se estabelece na luta pela
sobrevivência do mais apto. Tal concepção zoológica, na sua versão mais recente, ao ser
transplantada para o mundo humano, tratará de superar as anteriores dialécticas de raças ou
de classes com uma dialéctica estabelecida segundo leis económicas "naturais" que auto-
regulam toda a actividade social. Assim, uma vez mais, o ser humano concreto fica
submergido e objectivizado.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
intenção actua sobre o corpo e, para responder à segunda, haverá que partir da evidência da
temporalidade e da intersubjectividade no ser humano e não de leis gerais da História e da
sociedade. No nosso trabalho, Contribuições ao Pensamento, trata-se de dar resposta
precisamente a essas duas perguntas. No primeiro ensaio de Contribuições, estuda-se a
função que cumpre a imagem na consciência, destacando a sua aptidão para mover o corpo
no espaço. No segundo ensaio do mesmo livro, estuda-se o tema da historicidade e
sociabilidade. A especificidade destes temas afasta-nos em demasia da presente carta, por
isso remetemos para o material citado.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
sua colocação estaria fora do campo de co-presença, fora da paisagem em que me formei e
que actua em mim sobrepondo-se a todas as coisas que percepciono.
A organização social continua-se e amplia-se, mas isto não pode acontecer sómente
pela presença de objectos sociais que foram produzidos no passado e que se utilizam para
viver o presente e projectar-se para o futuro. Tal mecânica é demasiado elementar para poder
explicar o processo da civilização. A continuidade está dada pelas gerações humanas que não
estão postas uma ao lado da outra, mas antes, coexistindo, interactuam e transformam-se.
Estas gerações, que permitem continuidade e desenvolvimento, são estruturas dinâmicas, são
o tempo social em movimento, sem o qual a civilização cairia no estado natural e perderia a
sua condição de sociedade. Acontece, por outro lado, que em qualquer momento histórico
coexistem gerações de distinto nível temporal, de distintas retenção e futurização, que
configuram paisagens de situação e crenças diferentes. O corpo e o comportamento de
crianças e anciãos delata, para as gerações activas, uma presença de onde se vem e para
onde se vai. Por sua vez, para os extremos dessa tripla relação, também se verificam
ubicações de temporalidade extremas. Mas isto não permanece jamais parado, porque,
enquanto as gerações activas envelhecem e os anciãos morrem, as crianças vão-se
transformando e começam a ocupar posições activas. Entretanto, novos nascimentos
reconstituem continuamente a sociedade. Quando, por abstracção, se "detém" o incessante
fluir, podemos falar de "momento histórico", no qual todos os membros situados no mesmo
cenário social podem ser considerados "contemporâneos", viventes de um mesmo tempo; mas
observamos que não são coetâneos, que não têm a mesma idade, a mesma temporalidade
interna quanto a paisagens de formação, quanto a situação actual e quanto a projecto. Na
realidade, uma dialéctica geracional estabelece-se entre as "franjas" mais contíguas, que
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
tratam de ocupar a actividade central, o presente social, de acordo com os seus interesses e
crenças. É a temporalidade social interna que explica estruturalmente o devir histórico, em que
interactuam distintas acumulações geracionais e não a sucessão de fenómenos linearmente
postos um ao lado do outro, como no tempo de calendário, segundo nos tem explicado alguma
ou outra Filosofia da História.
O ser humano, pela sua abertura e liberdade para escolher entre situações, diferir
respostas e imaginar o seu futuro, pode também negar-se a si mesmo, negar aspectos do
corpo, negá-lo completamente como no suicídio ou negar outros. Esta liberdade permitiu que
alguns se apropriem ilegitimamente do todo social, quer dizer, que neguem a liberdade e a
intencionalidade de outros, reduzindo-os a próteses, a instrumentos das suas intenções. Aí
está a essência da discriminação, sendo a sua metodologia a violência física, económica,
racial e religiosa. A violência pode instaurar-se e perpetuar-se graças ao manejo do aparelho
de regulação e controlo social, isto é: o Estado. Em consequência, a organização social requer
um tipo avançado de coordenação a salvo de toda a concentração de poder, seja esta privada
ou estatal. Quando se pretende que a privatização de todas as áreas económicas põe a
sociedade a salvo do poder estatal, oculta-se que o verdadeiro problema está no monopólio ou
oligopólio que transfere o poder das mãos estatais para as mãos de um Paraestado,
manejado, já não por uma minoria burocrática, mas sim pela minoria particular que aumenta o
processo de concentração.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
9. O processo humano
Quanto ao sentido dos actos humanos, não creio que se trate de convulsões sem
significado nem de "paixões inúteis" que concluam no absurdo da dissolução. Creio que o
destino da humanidade está orientado pela intenção que, tornando-se cada vez mais
consciente nos povos, abre passagem em direcção a uma nação humana universal. Do atrás
comentado, surge com evidência que a existência humana não começa nem acaba num
círculo vicioso de encerramento e que uma vida que aspire à coerência deve abrir-se,
ampliando a sua influência a pessoas e âmbitos, promovendo, não só uma concepção
ou umas ideias, mas também acções precisas que ampliem crescentemente a liberdade.
Na próxima carta, sairemos destes temas estritamente doutrinais para nos referirmos
novamente à situação actual e à acção pessoal no mundo social.
Silo.
19/12/91
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Entre tanta gente com preocupações pelo desenvolvimento dos acontecimentos actuais,
encontro-me frequentemente com antigos militantes de partidos ou organizações políticas
progressistas. Muitos deles ainda não recuperaram do choque que lhes provocou a queda do
"socialismo real". Em todo o mundo, centenas de milhar de activistas optam por se recluirem
nas suas ocupações quotidianas, dando a entender com essa atitude que os seus velhos
ideais foram enclausurados. Aquilo que para mim representou um facto mais na desintegração
de estruturas centralizadas, de resto esperado durante duas décadas, para eles foi uma
imprevista catástrofe. No entanto, este não é o momento de se envaidecer, porque a
dissolução dessa forma política gerou um desequilíbrio de forças que permite o avanço
expedito de um sistema monstruoso nos seus procedimentos e na sua direcção.
Reconsidero o escrito até aqui e peço desculpas aos que não tendo participado daquelas
tendências e actividades se sentem alheios a estes temas, mas também a eles reclamo o
esforço de ter em conta a acção humana. Sobre isto trata a carta de hoje, um pouco dura, mas
destinada a remover o derrotismo que parece ter-se apoderado da alma militante.
Milhões de pessoas lutam hoje por subsistir, ignorando se amanhã poderão vencer a
fome, a doença, o abandono. As suas carências são tais que qualquer coisa que tentem para
sair desses problemas complica ainda mais as suas vidas. Ficarão imóveis num suicídio
simplesmente adiado?; tentarão actos desesperados?; que tipo de actividade ou de risco ou de
esperança estarão dispostas a enfrentar? Que fará todo aquele que por razões económicas ou
sociais ou simplesmente pessoais se encontre em situação limite? Em qualquer caso, o tema
mais importante consistirá sempre em saber se se quer viver e em que condições se quer
fazê-lo.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Mesmo aqueles que não se encontrem em situação limite questionarão a sua condição
actual, formando um esquema de vida futura. Mesmo aquele que prefira não pensar na sua
situação ou que transfira para outros essa responsabilidade, escolherá um esquema de vida.
Assim, a liberdade de escolha é uma realidade desde o momento em que nos questionamos o
viver e pensamos nas condições em que queremos fazê-lo. Que lutemos ou não por esse
futuro, sempre a liberdade de escolha fica em pé. E é unicamente este facto da vida humana
que pode justificar a existência dos valores, da moral, do direito e da obrigação, ao mesmo
tempo que permite refutar toda a política, toda a organização social, todo o estilo de vida que
se instale sem justificar o seu sentido, sem justificar para que serve ao ser humano concreto e
actual. Qualquer moral ou lei ou constituição social que parta de princípios supostamente
superiores à vida humana, coloca esta em situação de contingência, negando o seu essencial
sentido de liberdade.
Nascemos entre condições que não escolhemos. Não escolhemos o nosso corpo nem o
meio natural nem a sociedade nem o tempo e o espaço que nos calhou por sorte ou por
desgraça. A partir daí, e em algum momento, contamos com liberdade para nos suicidarmos
ou continuar a viver e para pensar nas condições em que o queremos fazer. Podemos revoltar-
nos contra uma tirania e triunfar ou morrer na empresa; podemos lutar por uma causa ou
facilitar a opressão; podemos aceitar um modelo de vida ou tratar de modificá-lo. Também nos
podemos enganar na escolha. Podemos crer que ao aceitar todo o estabelecido numa
sociedade, por perverso que seja, nos adaptamos perfeitamente e que isso nos oferece as
melhores condições de vida; ou então, podemos supôr que ao questionar tudo, sem fazer
diferenças entre o importante e o secundário, ampliamos o nosso campo de liberdade, quando
na realidade, a nossa influência para mudar as coisas diminui num fenómeno de inadaptação
acumulativo. Podemos, por último, priorizar a acção, ampliando a nossa influência numa
direcção possível que dê sentido à nossa existência. Em todos os casos, teremos que escolher
entre condições, entre necessidades, e fá-lo-emos de acordo com a nossa intenção e com o
esquema de vida que nos proponhamos. Desde logo, a própria intenção poderá ir mudando
em tão acidentado caminho.
Não nos podemos pôr esta questão em abstracto, mas sim em relação à situação em
que vivemos e às condições em que queremos viver. Para já, estamos numa sociedade e em
relação a outras pessoas e o nosso destino joga-se com o destino destas. Se cremos que tudo
está bem no presente e o futuro pessoal e social que vislumbramos parece-nos adequado, não
há outro tema senão seguir adiante, talvez com pequenas reformas, mas na mesma direcção.
Em sentido oposto, se pensamos que vivemos numa sociedade violenta, desigual e injusta,
ferida por crises progressivas que se correspondem com uma mudança vertiginosa no mundo,
imediatamente reflectimos sobre a necessidade de transformações pessoais e sociais
profundas. A crise global afecta-nos e arrasta-nos, perdemos referências estáveis e torna-se-
nos cada vez mais difícil planificar o nosso futuro. O mais grave é que não podemos levar
adiante uma acção de mudança coerente, porque as antigas formas de luta que conhecíamos,
fracassaram e porque a desintegração do tecido social impede a mobilização de conjuntos
humanos importantes. Desde logo, acontece-nos o mesmo que a todas as pessoas que
sofrem as dificuldades actuais e intuem a pioria das condições. Ninguém pode nem quer
mover-se em acções destinadas ao fracasso e, ao mesmo tempo, ninguém pode continuar
assim. E o pior é que com a nossa inacção estamos a deixar a passagem livre a maiores
desigualdades e injustiças. Formas de discriminação e atropelo, que julgávamos superadas,
renascem com força. Se a desorientação e a crise são tais, por que razão não poderiam servir
de referência social novas mostruosidades cujos representantes digam com clareza, e depois
31
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
exijam, que devemos todos e cada um de nós fazer? Esses primitivismos são hoje mais
possíveis do que nunca, porque o seu discurso elementar propaga-se com facilidade e chega
mesmo a quem se encontra em situação limite.
Com maior ou menor informação, muita gente sabe que a situação é crítica em termos
aproximados aos que temos vindo a utilizar. No entanto, a opção que se está a seguir cada
vez com mais vigor é a de ocupar-se da própria vida, fazendo caso omisso das dificuldades de
outros e do que acontece no contexto social. Em muitos casos, celebramos as objecções que
se fazem ao Sistema, mas estamos muito longe de tentar uma mudança de condições.
Sabemos que a Democracia actual é simplesmente formal e que responde aos ditames dos
grupos económicos, contudo lavamos a nossa consciência em ridículas votações aos partidos
maioritários, porque sofremos a chantagem de apoiar esse sistema ou possibilitar o
surgimento das ditaduras. Nem pensamos que o facto de votar e reclamar o voto a favor
dos pequenos partidos pode-se constituir num fenómeno de interesse no futuro, do
mesmo modo que o apoio à formação de organizações laborais fora do padrão
estabelecido pode converter-se em importante factor de aglutinação. Rejeitamos o
trabalho arraigado em freguesias, em povoações, em sectores citadinos e no nosso
meio imediato, porque nos parece demasiado limitado, mas sabemos que é aí onde
começará a recomposição do tecido social no momento da crise das estruturas
centralizadas. Preferimos atentar ao jogo de superfície, de cúpulas, de notáveis e de
formadores de opinião em vez de ter o ouvido presto para escutar o subterrâneo apelo
do povo. Protestamos pela acção massiva dos meios de difusão controlados pelos
grupos económicos em vez de nos lançarmos a influir nos pequenos meios e em todo o
resquício de comunicação social. E se continuamos a militar em alguma organização
política progressista, andamos à pesca de algum incoerente com acesso à imprensa, de
alguma personalidade que represente a nossa corrente porque é mais ou menos
potável para os meios informativos do Sistema. No fundo, acontece-nos tudo isto,
porque cremos que estamos vencidos e não nos resta outra alternativa senão amassar
em silêncio a nossa amargura. E a essa derrota chamamos "dedicar-nos à nossa própria
vida". Entretanto, "a nossa própria vida" acumula contradições e vamos perdendo o sentido e a
capacidade de escolha das condições em que queremos viver. Em suma, não concebemos
ainda a possibilidade de um grande Movimento de mudança que referencie e aglutine os
factores mais positivos da sociedade e, evidentemente, a decepção impede-nos de nos
representarmos como protagonistas desse processo de transformação.
32
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Escolher um projecto de vida entre condições impostas está longe de ser um simples
reflexo animal. Pelo contrário, é a característica essencial do ser humano. Se eliminamos
aquilo que o define, pararemos a sua História e poderemos esperar o avanço da destruição em
cada passo que se dê. Se se depõe o direito de escolher um projecto de vida e um ideal de
sociedade, encontrar-nos-emos com caricaturas de Direito, de valor e de sentido. Se essa é a
situação, que podemos sustentar contra toda a neurose e a desordem que começamos a
sentir à nossa volta? Cada um de nós verá o que faz com a sua vida, mas também cada um
deve ter presente que as suas acções chegarão mais além de si mesmo e isto será assim
desde a menor à maior capacidade de influência. Acções unitivas, com sentido, ou acções
contraditórias ditadas pelo imediatismo, são ineludíveis em toda a situação em que se
comprometa a direcção de vida.
Toda a pessoa comprometida com a acção conjunta, todo aquele que actua com outros
na consecução de objectivos sociais com sentido, deve ter claro muitos defeitos que no
passado arruinaram as melhores causas. Maquiavelismos ridículos, personalismos por cima
da tarefa conjunta proclamada e autoritarismos de todo o tipo, enchem os livros de História e a
nossa memória pessoal.
Com que direito se utiliza uma doutrina, uma formulação de acções, uma organização
humana, afastando as prioridades que elas exprimem? Com que direito propomos a outros um
objectivo e um destino, se depois situamos como valor primário um suposto êxito ou uma
suposta necessidade de conjuntura? Qual seria a diferença em relação ao pragmatismo que
dizemos repudiar? Onde estaria a coerência entre o que pensamos, sentimos e fazemos? Os
instrumentadores de todos os tempos efectuaram a básica fraude moral de apresentar a
outros uma imagem futura mobilizadora, guardando para si uma imagem de êxito
imediato. Se se sacrifica a intenção acordada com outros, abre-se a porta a qualquer
traição negociada com o bando que se diz combater. E, nesse caso, justifica-se tal
indecência com uma suposta "necessidade" que se escondeu na proposta inicial. Fique
claro que não estamos a falar da mudança de condições e de tácticas em que todo aquele que
participa compreende a relação entre elas e o objectivo mobilizador proposto. Também não
nos estamos a referir aos erros de apreciação que se podem cometer nas implementações
concretas. Estamos a observar a imoralidade que distorce as intenções e perante a qual é
imprescindível pôr-se alerta. É importante estarmos atentos a nós próprios e esclarecer outros
para que saibam antecipadamente que, ao quebrar os seus compromissos, as nossas mãos
ficam tão livres como as suas.
Certamente que existem diferentes tipos de astúcias na utilização das pessoas e que
não há forma de fazer um catálogo completo. Também não se trata de nos convertermos em
"censores morais", porque bem sabemos que por trás dessa atitude está a consciência
repressora, cujo objectivo é sabotar toda a acção que não controla, imobilizando com a
desconfiança mútua os companheiros de luta. Quando se introduz a contrabando supostos
valores que vêm de outro campo para julgar as nossas acções, é bom recordar que essa
"moral" está em questão e que não coincide com a nossa... como poderiam esses estar entre
nós?
Por último, é importante atentar ao gradualismo enganoso que se costuma praticar para
inserir subtilmente situações que vão contra os objectivos delineados. Nesse posicionamento
encontra-se todo aquele que nos acompanha por motivos diferentes aos que expressa. A sua
direcção mental é torcida desde o princípio e apenas espera a oportunidade de se manifestar.
33
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Não se trata aqui de enfatizar o que desde há muito tempo se tem conhecido como os
"problemas internos" de toda a organização humana, mas pareceu-me conveniente mencionar
a raiz conjunturalista que actua nisto tudo e que corresponde à apresentação de uma imagem
futura mobilizadora, guardando para si uma imagem de êxito imediato.
7. O Reino do Secundário.
É de tal forma a situação actual que acusadores de todo o tipo e penugem exigem
explicações em tom inquisidor, dando por assente que se lhes deve demonstrar inocência. O
interessante de tudo isto é que a sua táctica reside no enfâse do secundário e,
consequentemente, no ocultamento das questões primárias. De algum modo, essa atitude faz
recordar o funcionamento da Democracia nas empresas. Com efeito, os empregados discutem
sobre se, no escritório, as secretárias devem estar perto ou longe das janelas; se há que
colocar flores ou cores agradáveis, o que não está mal. Posteriormente votam e, por maioria,
decide-se o destino dos móveis e da decoração, o que também não está mal. Porém, no
momento de discutir e propôr uma votação em torno da direcção e das acções da empresa,
produz-se um silêncio aterrador... imediatamente a Democracia congela-se, porque na
realidade está-se no Reino do Secundário. Não acontece nada diferente com os fiscais do
Sistema. De súbito, um jornalista coloca-se nesse papel, fazendo com que o nosso gosto por
certas comidas pareça suspeito ou exigindo "compromisso" e discussão em questões
desportivas, astrológicas ou de catecismo. Desde logo, nunca falta alguma acusação grosseira
à qual, supõe-se, devemos responder e não escasseia a montagem de contextos, a utilização
de palavras carregadas de dois sentidos e a manipulação de imagens contraditórias. É bom
recordar que aqueles que se colocam num bando oposto a nós têm o direito a que lhes
expliquemos por que razão eles não estão em condições de nos julgarem e porque é que nós
temos plena justificação para julgá-los a eles. Que, quando muito, aqueles devem defender a
sua postura das nossas objecções. Desde logo, que isto se possa fazer dependerá de certas
condições e da habilidade pessoal dos contendores, mas não deixa de revoltar ver como
alguns que têm todo o direito de tomar a iniciativa baixam a cabeça diante de tanta
inconsistência. Também é patético observar no écran certos lideres a dizer palavritas
engenhosas, dançando como ursos com a coordenadora do programa ou submetendo-se a
todo o tipo de vexames desde que figurem em primeiro plano. Ao seguir esses maravilhosos
exemplos, muita gente bem intencionada não consegue compreender como é que se
deformou ou substituíu a sua mensagem, no momento de fazê-lo chegar a públicos amplos
através de certos meios de comunicação. O comentado destaca aspectos do Reino do
Secundário que operam afastando os temas importantes, resultando disto a desinformação
dos públicos a quem se pretende esclarecer. Curiosamente, muita gente progressista cai
nesse laço, sem entender muito bem como é que a aparente publicidade que se lhe dá produz
o efeito contrário. Finalmente, não se trata de deixar ao campo oposto posições que a nós nos
cabe defender. Qualquer um pode acabar por reduzir a nossa postura a simples frivolidade, ao
afirmar que ele também é, por exemplo, "humanista", porque se preocupa com o humano; que
é "não-violento", porque está contra a guerra; que é anti-discriminador, porque tem um amigo
negro ou comunista; que é ecologista, porque se tem que cuidar das focas e das praças.
Porém, se se o aperta, não poderá justificar de raiz nada do que diz, mostrando o seu
verdadeiro rosto anti-humanista, violento, discriminador e predador.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Espero que saibam dissimular o incómodo de ter lido uma carta que não se refere aos
vossos problemas e interesses. Confio que na próxima possamos continuar com as nossas
amenidades.
Silo.
04/06/92.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Vários leitores das minhas cartas voltaram à carga a pedir maior definição no que respeita à
acção social e política e às suas perspectivas transformadoras. Nessa situação, poderia limitar-me
a repetir o já dito no começo da primeira carta: “Desde há algum tempo recebo correspondência
de diversos países a pedir explicações sobre temas que aparecem nos meus livros. Em geral,
reclama-se clarificação sobre assuntos tão concretos como a violência, a política, a economia, a
ecologia, as relações pessoais e interpessoais. Como se vê, as preocupações são muitas e
diversas e é claro que nesses campos terão de ser os especialistas a dar resposta.
Evidentemente, esse não é o meu caso”. No entanto, em correspondência posterior fiz alguns
comentários sobre os tópicos citados, mas sem conseguir satisfazer as solicitações. Como
responder a tais questões na extensão e natureza de uma carta? Deste modo, fui metido num
aperto.
Como todos sabem, participo numa corrente de opinião, num movimento que ao longo de
três décadas tem produzido numerosas instituições e que se tem confrontado com ditaduras e
injustiças de todo o tipo. Sobretudo, tem-se confrontado com a desinformação, a calúnia e o
silêncio deliberado. De qualquer maneira, este movimento estendeu-se pelo mundo conservando
a sua independência tanto económica como ideológica. Provavelmente, se se tivesse rendido à
conveniência numa curta e suja especulação, contaria com reconhecimento e mediatização. Mas
isso teria consagrado, finalmente, o triunfo do absurdo e a vitória de tudo aquilo contra o que se
tem lutado. Na nossa história há sangue, prisões, deportações e cercos de todo o tipo. É
necessário recordá-lo. O nosso movimento sempre se sentiu tributário do humanismo histórico
pelo acento que aquele pôs na liberdade de consciência, na luta contra todo o obscurantismo e na
defesa dos mais altos valores humanos. Mas também o nosso movimento tem produzido
trabalhos e estudos suficientes para dar resposta a uma época em que, finalmente, se precipitou a
crise. A esses trabalhos e estudos haverei de apelar ao explicar, na extensão de uma carta, os
temas e propostas fundamentais dos humanistas de hoje.
****
Os humanistas sentem que a sua história é muito longa e que o seu futuro é ainda mais
extenso. Pensam no porvir, lutando por superar a crise geral do presente. São optimistas,
crêem na liberdade e no progresso social.
Os humanistas são internacionalistas, aspiram a uma nação humana universal.
Compreendem globalmente o mundo em que vivem e actuam no seu meio imediato. Não
desejam um mundo uniforme mas sim múltiplo: múltiplo nas etnias, línguas e costumes;
múltiplo nas localidades, nas regiões e nas autonomias; múltiplo nas ideias e nas aspirações;
36
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Os humanistas não querem amos; não querem dirigentes nem chefes, nem se sentem
representantes nem chefes de ninguém. Os humanistas não querem um Estado centralizado,
nem um Para-Estado que o substitua. Os humanistas não querem exércitos policiais, nem
bandos armados que os substituam.
I. O CAPITAL MUNDIAL
Eis a grande verdade universal: o dinheiro é tudo. O dinheiro é governo, é lei, é poder. É,
basicamente, subsistência. Mas além disso, é a Arte, é a Filosofia e é a Religião. Nada se faz
sem dinheiro; nada se pode sem dinheiro. Não há relações pessoais sem dinheiro. Não há
intimidade sem dinheiro e até a solidão repousada depende do dinheiro.
Mas a relação com essa “verdade universal” é contraditória. As maiorias não querem este
estado de coisas. Estamos, pois, perante a tirania do dinheiro. Uma tirania que não é abstracta
porque tem nome, representantes, executores e procedimentos indubitáveis.
Hoje não se trata de economias feudais, nem de indústrias nacionais; nem sequer de
interesses de grupos regionais. O que hoje se passa é que aqueles sobreviventes históricos
acomodam a sua parcela aos ditames do capital financeiro internacional. Um capital
especulador que se vai concentrando mundialmente. Desta maneira, até o Estado nacional
requer crédito e empréstimo para sobreviver. Todos mendigam o investimento e dão garantias
para que a banca se encarregue das decisões finais. Está a chegar o tempo em que as
próprias companhias, assim como os campos e as cidades, serão propriedade indiscutível da
banca. Está a chegar o tempo do Para-Estado, um tempo em que a antiga ordem deve ser
aniquilada.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Quanto à objecção de que enquadrar o capital, tal como está enquadrado o trabalho,
produz a sua fuga para pontos e áreas mais proveitosas, deve esclarecer-se que isto não
acontecerá durante muito mais tempo, já que a irracionalidade do esquema actual leva-o à sua
saturação e à crise mundial. Essa objecção, além do reconhecimento de uma imoralidade
radical, desconhece o processo histórico da transferência do capital para a banca, resultando
disso que o próprio empresário se vai convertendo em empregado sem decisão dentro de uma
cadeia em que aparenta autonomia. Por outro lado, à medida que se agudize o processo
recessivo, o próprio empresariado começará a considerar estes pontos.
Os humanistas sentem a necessidade de actuar não só no campo laboral como também
no campo político para impedir que o Estado seja um instrumento do capital financeiro mundial,
para conseguir que a relação entre os factores de produção seja justa e para devolver à
sociedade a sua autonomia arrebatada.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Numa democracia real, deve dar-se às minorias as garantias que merece a sua
representatividade mas, além disso, deve levar-se ao extremo toda a medida que favoreça na
prática a sua inserção e desenvolvimento. Hoje, as minorias acossadas pela xenofobia e a
discriminação, pedem angustiosamente o seu reconhecimento e, nesse sentido, é
responsabilidade dos humanistas elevar este tema ao nível das discussões mais importantes,
encabeçando a luta em cada lugar até vencer os neo-fascismos abertos ou encobertos. Em
suma, lutar pelos direitos das minorias, é lutar pelos direitos de todos os seres humanos.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
A acção dos humanistas não se inspira em teorias fantasiosas sobre Deus, a Natureza, a
Sociedade ou a História. Parte das necessidades da vida que consistem em afastar a dor e
aproximar o prazer. Porém, a vida humana acrescenta às necessidades a sua previsão do
futuro, baseando-se na experiência passada e na intenção de melhorar a situação actual. A sua
experiência não é um simples produto de selecções ou acumulações naturais e fisiológicas,
como sucede em todas as espécies, é sim experiência social e experiência pessoal dirigidas
para superar a dor actual e para evitá-la no futuro. O seu trabalho, acumulado em produções
sociais, passa e transforma-se de geração em geração em luta contínua pela melhoria das
condições naturais, mesmo as do próprio corpo. Por isto, o ser humano deve ser definido como
histórico e com um modo de acção social capaz de transformar o mundo e a sua prõpria
natureza. E de cada vez que um indivíduo ou um grupo humano se impõe violentamente a
outros, consegue parar a História, convertendo as suas vítimas em objectos “ naturais “. A
natureza não tem intenções, pelo que ao negar-se a liberdade e as intenções de outros, estes
são convertidos em objectos naturais, em objectos de uso.
Os humanistas não são violentos, mas acima de tudo não são cobardes nem temem
enfrentar a violência porque a sua acção tem sentido. Os humanistas conectam a sua vida
pessoal com a vida social. Não levantam falsas antinomias e nisso radica a sua coerência.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Quanto aos membros combativos das organizações gremiais e aos membros de partidos
políticos progressistas, a sua luta tornar-se-á coerente na medida em que tendam a
transformar as cúpulas das organizações em que estão inscritos, dando às suas colectividades
uma orientação que ponha em primeiro lugar e por cima de reivindicações imediatistas, as
questões de fundo que propicia o Humanismo.
São numerosas as posturas que, tendo por base o sofrimento humano, convidam à acção
desinteressada a favor dos desapossados ou dos discriminados. Associações, grupos
voluntários e sectores importantes da população mobilizam-se, em ocasiões, dando o seu
contributo positivo. Sem dúvida que uma das suas contribuições consiste em gerar denúncias
sobre esses problemas. No entanto, esses grupos não delineiam a sua acção em termos de
transformação das estruturas que dão lugar a esses males. Estas posturas inscrevem-se mais
no Humanitarismo do que no Humanismo consciente. Nelas já se encontram protestos e
acções pontuais susceptíveis de serem aprofundadas e estendidas.
V. O CAMPO ANTI-HUMANISTA
À medida que as forças que o grande capital mobiliza, vão asfixiando os povos, surgem
posturas incoerentes que começam a fortalecer-se ao explorar esse mau-estar, canalizando-o
contra falsos culpados. Na base destes neo-fascismos está uma profunda negação dos valores
humanos. Também em certas correntes ecologistas desviatórias aposta-se em primeiro lugar
na natureza em vez do Homem. Já não predicam que o desastre ecológico é desastre,
justamente porque faz perigar a humanidade, mas sim porque o ser humano atentou contra a
natureza. Segundo algumas destas correntes, o ser humano está contaminado e por isso
contamina a natureza. Melhor seria, para eles, que a medicina não tivesse tido êxito no
combate às doenças e no alargamento da vida. “A Terra primeiro”, gritam histericamente,
recordando as proclamações do nazismo. Desde aí à discriminação de culturas que
contaminam, de estrangeiros que sujam e poluem, à um curto passo. Estas correntes
inscrevem-se também no Anti-humanismo porque, no fundo, desprezam o ser humano. Os
seus mentores desprezam-se a si mesmos, reflectindo as tendências niilistas e suicidas na
moda.
Uma faixa importante de gente perceptiva também adere ao ecologismo porque entende
a gravidade do problema que este denuncia. Porém, se esse ecologismo toma o carácter
humanista que lhe corresponde, orientará a luta contra os promotores da catástrofe, a saber: o
grande capital e a cadeia de indústrias e empresas destrutivas, parentes próximas do complexo
militar-industrial. Antes de se preocupar com as focas ocupar-se-á da fome, da
hiperconcentração populacional, da mortinatalidade, das doenças e dos défices sanitários e
habitacionais em muitas partes do mundo. E destacará o desemprego, a exploração, o
racismo, a discriminação e a intolerância no mundo tecnologicamente avançado. Mundo que,
por outro lado, está a criar os desequilíbrios ecológicos em favor do seu crescimento irracional.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
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Silo.
05/04/93.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos
Hoje falaremos da Revolução social. Como pode isto ser? Alguns bem- pensantes dizem-
nos que a palavra "Revolução" caíu em desuso após o fracasso do "Socialismo real".
Possivelmente, nas suas cabeças sempre se aninhou a crença de que as revoluções anteriores a
1917 eram preparações da Revolução "a sério". É claro que se fracassou a Revolução "a sério", já
não se pode voltar ao tema. Como de costume, os bem-pensantes exercitam a censura ideológica
e atribuem-se a prerrogativa de outorgar ou não direito de cidadania às modas e às palavras.
Estes funcionários do espírito (ou melhor, dos meios de difusão) continuam a ter em relação a nós
diferenças diametrais: eles pensavam que o monolitismo soviético era eterno e agora que o triunfo
do Capitalismo é uma realidade irremovível. Eles davam por assente que o substancial de uma
revolução era o derramamento de sangue; que a decoração imprescindível eram as bandeiras ao
vento, as marchas, os gestos e os discursos inflamados. Na sua paisagem de formação sempre
actuou a cinematografia e a moda Pierre Cardin. Hoje, por exemplo, quando pensam no Islão
imaginam uma moda feminina que os inquieta e quando falam do Japão não deixam de se alterar,
para além do plano económico, pelo kimono sempre a ponto de ser exumado. Se, enquanto
crianças, se nutriram de celulóide e livros de piratas, depois sentiram-se atraídos por Katmandú, a
tournée insular, a defesa ecológica e a moda "natural"; se, ao invés, saborearam os westerns e os
filmes de acção, delinearam, depois, o progresso em termos de guerra competitiva ou a revolução
em termos de pólvora.
Nesta série de cartas fizemos vários comentários sobre a situação geral que estamos a
viver. Como consequência dessas descrições chegamos à seguinte disjuntiva: ou somos
arrastados por uma tendência cada vez mais absurda e destrutiva, ou damos aos acontecimentos
um sentido diferente. Como pano de fundo desta apresentação está a operar a dialéctica da
liberdade face ao determinismo; a procura humana da escolha e do compromisso face aos
processos mecânicos cujo destino é desumanizante. Desumanizante é a concentração do grande
capital até ao seu colapso mundial; desumanizante será o mundo resultante, convulsionado por
fomes, migrações, guerras e lutas intermináveis, insegurança quotidiana, arbitrariedade
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
E enquanto nos postergam, estes que prometeram progresso para todos, continuam a abrir
o fosso que separa as minorias opulentas das maiorias cada vez mais castigadas. Esta ordem
social encerra-nos num círculo vicioso que se realimenta e projecta para um sistema global de que
não pode escapar nenhum ponto do planeta. Porém, também está claro que em todas as partes
se começa a descrer das promessas da cúpula social, que se radicalizam posições e que começa
a agitação geral. Lutaremos todos contra todos? Lutarão umas culturas contra outras, uns
continentes contra outros, umas regiões contra outras, umas etnias contra outras, uns vizinhos
contra outros e uns familiares contra outros? Iremos para o espontaneísmo sem direcção, como
animais feridos que sacodem a sua dor, ou incluiremos todas as diferenças, benvindas sejam, em
direcção à Revolução Mundial? O que estou a tratar de formular é que se está a apresentar a
disjuntiva do simples caos destrutivo ou da Revolução como direcção superadora das
diferenças dos oprimidos. Estou a dizer que a situação mundial e a particular de cada indivíduo
será mais conflituosa cada dia que passa, e que deixar o futuro nas mãos daqueles que têm
dirigido este processo até hoje é suicida. Estes já não são os tempos em que se possa varrer toda
a oposição e proclamar no dia seguinte: "A paz reina em Varsóvia." Já não são tempos em que
10% da população possa dispôr, sem limite, dos restantes 90%. Neste sistema que começa a ser
mundialmente fechado, e não existindo uma clara direcção de mudança, tudo fica a expensas da
simples acumulação de capital e poder. O resultado é que num sistema fechado não se pode
esperar outra coisa senão a mecânica da desordem geral. O paradoxo de sistema informa-nos
que ao pretender ordenar a desordem crescente, haver-se-á de acelerar a desordem. Não há
outra saída senão revolucionar o sistema, abrindo-o à diversidade das necessidades e aspirações
humanas. Postas as coisas nestes termos, o tema da Revolução adquire uma grandeza inusitada
e uma projecção que não pôde ter em épocas anteriores.
Em carta anterior definimos posições sobre as questões do trabalho face ao grande capital;
da Democracia real face à formal; da descentralização face à centralização; da anti-discriminação
face à discriminação; da liberdade face à opressão. Se, no momento actual, o capital se vai
transferindo gradualmente para a banca, se a banca se vai assenhoreando das empresas, dos
países, das regiões e do mundo, a revolução implica a apropriação da banca, de tal maneira que
esta cumpra a prestação do seu serviço sem cobrar em troca juros que, em si mesmos, são
usurários. Se, na constituição de uma empresa, o capital recebe lucros e o trabalhador salário ou
remuneração; se, na empresa, a gestão e a decisão estão nas mãos do capital, a revolução
implica que o lucro se reinvista, se diversifique ou se utilize na criação de novas fontes de trabalho
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
e que a gestão e decisão sejam partilhadas pelo trabalho e o capital. Se as regiões ou províncias
de um país estão atadas à decisão central, a revolução implica a desestruturação desse poder, de
maneira que as entidades regionais conformem uma república federativa e que o poder dessas
regiões seja igualmente descentralizado a favor da base comunal, de onde terá de partir toda a
representatividade eleitoral. Se a saúde e a educação são tratadas de modo desigual para os
habitantes de um país, a revolução implica educação e saúde gratuitas para todos, porque, em
suma, esses são os dois valores máximos da revolução e eles deverão substituir o paradigma da
sociedade actual determinado pela riqueza e pelo poder. Pondo tudo em função da saúde e da
educação, os complexíssimos problemas económicos e tecnológicos da sociedade actual
terão o enquadramento correcto para o seu tratamento. Parece-nos que procedendo de modo
inverso não se chegará a conformar uma sociedade com possibilidades evolutivas. O grande
argumento do capitalismo é pôr tudo em dúvida perguntando sempre de onde sairão os recursos e
como aumentará a produtividade, dando a entender que os recursos saiem dos empréstimos
bancários e não do trabalho do povo. Aliás, de que serve a produtividade se depois se esfuma das
mãos de quem produz? Não nos diz nada de extraordinário o modelo que tem funcionado por
algumas décadas em certas partes do mundo e que hoje começa a desarticular-se. Que a saúde e
a educação desses países aumentam maravilhosamente, é algo que está por se ver à luz do
crescimento das pragas não só físicas mas também psicosociais. Se faz parte da educação a
criação de um ser humano autoritário, violento e xenófobo; se faz parte do seu progresso sanitário
o aumento do alcoolismo, a toxicodependência e o suicídio, então de nada vale tal modelo.
Continuaremos a admirar os centros de educação organizados, os hospitais bem equipados e
trataremos, além disso, de que estejam ao serviço do povo sem distinções. Quanto ao
conteúdo e significado da saúde e da educação, há demasiado a discutir com o sistema actual.
Falamos de uma revolução social que mude drasticamente as condições de vida do povo,
de uma revolução política que modifique a estrutura do poder e, em suma, de uma revolução
humana que crie os seus próprios paradigmas em substituição dos decadentes valores actuais. A
revolução social a que aponta o Humanismo passa pela tomada do poder político para
realizar as transformações que se mostrem necessárias, mas a tomada desse poder não é
um objectivo em si. Por outro lado, a violência não é uma componente essencial dessa
revolução. De que valeria a repugnante prática da execução e a cadeia para o inimigo? Qual seria
a diferença em relação aos opressores de sempre? A revolução da India anti-colonialista produziu-
se por pressão popular e não por violência; foi uma revolução inconclusa, determinada pela
estreiteza do seu ideário, mas ao mesmo tempo mostrou uma nova metodologia de acção e de
luta. A revolução contra a monarquia iraniana desencadeou-se por pressão popular, nem sequer
pela tomada dos centros de poder político já que estes se foram "esvaziando", desestruturando,
até deixar de funcionar... depois a intolerância arruinou tudo. E assim, é possível a revolução por
diferentes meios, incluindo o triunfo eleitoral, mas a transformação drástica das estruturas é algo
que em todos os casos deve ser posto em marcha de imediato, começando pelo estabelecimento
de um novo ordenamento jurídico que, entre outros tópicos, exponha claramente as novas
relações sociais de produção, que impeça toda a arbitrariedade e que regule o funcionamento
daquelas estruturas do passado ainda aptas para ser melhoradas.
As revoluções que hoje agonizam ou as novas que se estão a gestar, não irão além do
testemunhal dentro de uma ordem estancada, não irão além do tumulto organizado, se não
avançam na direcção proposta pelo Humanismo, quer dizer, em direcção a um sistema de
relações sociais cujo valor central seja o ser humano e não qualquer outro como possa ser a
"produção", "a sociedade socialista", etc. Porém, colocar o ser humano como valor central implica
uma ideia totalmente diferente do que hoje se entende, precisamente, por "ser humano". Os
esquemas de compreensão actuais estão ainda muito afastados da ideia e da sensibilidade
necessárias para apreender a realidade do humano. No entanto, e é necessário esclarecê-lo,
também começa a desenhar-se uma certa recuperação da inteligência crítica fora dos moldes
aceites pelo engenho superficial da época. Em G. Petrovic, para mencionar um caso,
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
encontramos uma concepção precursora do que temos vindo a expôr. Ele define a Revolução
como "a criação de um modo de ser essencialmente distinto, diferente de todo o ser não humano,
anti-humano e ainda não completamente humano". Petrovic acaba por identificar a Revolução
com a mais alta forma de ser, como ser em plenitude e como Ser-em-Liberdade. (tese sobre "A
necessidade de um conceito de revolução", 1977, A Filosofia e as Ciências Sociais, Congresso de
Morelia de 1975).
Não se parará a maré revolucionária que está em marcha como expressão do desespero
das maiorias oprimidas. Mas mesmo isto não será suficiente, já que a direcção adequada desse
processo não acontecerá pela simples mecânica da "prática social". Sair do campo da
necessidade para o campo da liberdade por meio da revolução, é o imperativo desta época
em que o ser humano ficou enclausurado. As futuras revoluções, se é que irão mais além
das sublevações militares, dos golpes palacianos, das reivindicações de classe, etnia ou
religião, terão que assumir um carácter transformador inclusivo com base na
essencialidade humana. Daí que além das mudanças que produzam nas situações
concretas dos países, o seu carácter será universalista e o seu objectivo mundializador.
Por conseguinte, quando falamos de "revolução mundial", compreendemos que qualquer
revolução humanista, ou que se transforme em humanista, ainda que seja realizada numa
situação restrita, levará o carácter e o objectivo que a projectará mais além de si mesma. E
essa revolução, por insignificante que seja o lugar em que se produza, comprometerá a
essencialidade de todo o ser humano. A revolução mundial não pode ser delineada em termos
de êxito, mas sim na sua real dimensão humanizadora. Aliás, o novo tipo de revolucionário que
corresponde a este novo tipo de revolução, torna-se, por essência e por actividade, humanizador
do mundo.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
efeito, até algumas décadas atrás, pensava-se que o partido era a vanguarda de luta que
organizava diferentes frentes de acção. Aqui está-se a pôr tudo em sentido contrário. São as
frentes de acção que organizam e desenvolvem a base de um movimento social e é o partido a
expressão institucional desse movimento. Por sua vez, o partido deve criar condições de inserção
para outras forças políticas progressistas, já que não pode pretender que aquelas percam a sua
identidade fundindo-se no seu seio. O partido deve ir mais além da sua própria identidade
formando com outras forças uma "frente" mais ampla que insira todos os factores progressistas
fragmentados. Mas não se passará do acordo de cúpulas se o partido não conta com uma base
real que oriente esse processo. Por outro lado, esta ideia não é reversível, no sentido de que o
partido faça parte de uma frente que organizam outras superestruturas. Haverá uma frente política
com outras forças se estas se atêm às condições que estabelece o partido cuja força real é dada
pela organização de base. Passemos, pois, a considerar as diferentes frentes de acção.
É necessário que diferentes frentes de acção realizem o seu trabalho na base administrativa
dos países, apontando à comuna ou município. Cabe desenvolver, na área fixada, frentes de
acção laborais e habitacionais, comprometendo a acção nos conflitos reais devidamente
priorizados. Isto significa que a luta pela reivindicação imediata não tem significado se ela
não deriva em crescimento organizativo e posicionamento para passos posteriores. Está
claro que todo o conflito deve ser explicado em termos relacionados directamente com o nível de
vida, com a saúde e a educação da população (coerentemente, os trabalhadores da saúde e da
educação devem converter-se em simpatizantes imediatos e posteriormente em quadros
necessários para a organização directa da base social).
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
É pelo exercício da violência que uma minoria impõe as suas condições ao conjunto social
e organiza uma ordem, um sistema inercial, que continua o seu desenvolvimento. Vistas assim as
coisas, tanto o modo de produção como as relações sociais consequentes; tanto a ordem jurídica
como as ideologias dominantes que regulam e justificam a dita ordem, e tanto o aparelho estatal
ou paraestatal através do qual se controla o todo social, se revelam como instrumentos ao serviço
dos interesses e intenções da minoria instalada. Mas o desenvolvimento do sistema continua
mecanicamente, mais além das intenções dessa minoria que luta por concentrar cada vez mais os
factores de poder e controlo, provocando com isto uma nova aceleração no desenvolvimento do
sistema, o qual progressivamente vai escapando ao seu domínio. Desta maneira, o aumento da
desordem chocará com a ordem estabelecida e provocará por parte dessa ordem a aplicação
proporcional dos seus recursos de protecção. Em épocas críticas, disciplinar-se-á o todo social
com todo o rigor da violência disponível pelo sistema. Assim se chega ao máximo recurso
disponível: o exército. Mas é totalmente certo que os exércitos continuarão a responder do modo
tradicional em épocas onde o sistema vai em direcção ao colapso global? Se isto não for assim, a
mudança de situação que pode acontecer na direcção dos acontecimentos actuais é tema de
discussão. Basta reflectir sobre as últimas etapas das civilizações que precederam a actual para
compreender que os exércitos se levantaram contra o poder estabelecido, se dividiram nas
guerras civis que já estavam delineadas na sociedade e, não podendo introduzir nessa situação
uma direcção nova, o sistema continuou a sua direcção catastrófica. Na actual civilização mundial
que se perfila haverá lugar ao mesmo destino? Haveremos de considerar os exércitos na próxima
carta.
Silo.
07/08/93
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
De acordo com o anunciado na carta anterior, tocarei na presente alguns pontos referidos
aos exércitos. Evidentemente, o interesse deste escrito estará centrado na relação entre as forças
armadas, o poder político e a sociedade. Tomarei como base o documento discutido há três
meses em Moscovo (sob o título de A Necessidade de uma Posição Humanista nas Forças
Armadas Contemporâneas - Conferência internacional sobre humanização das actividades
militares e reforma das Forças Armadas, patrocinada pelo Ministério de Defesa da C.E.I. -
Moscovo, 24/28 de Maio de 1993). Só me afastarei dos conceitos vertidos no documento original
ao tratar a posição militar no processo revolucionário, tema este que me permitirá completar
algumas ideias esboçadas anteriormente.
As forças armadas estão hoje a tratar de definir o seu novo papel. Esta situação começou
após as iniciativas de desarmamento proporcional e progressivo empreendidas pela União
Soviética nos finais da década de 80. A diminuição da tensão que existiu entre as superpotências
provocou uma reviravolta no conceito de defesa nos países mais importantes. No entanto, a
substituição gradual dos blocos político-militares (particularmente do Pacto de Varsóvia) por um
sistema de relações relativamente cooperativas activou forças centrífugas que levam a novos
choques em diferentes pontos do planeta. Certamente, em pleno período da Guerra Fria, os
conflitos em áreas restritas eram frequentes e muitas vezes prolongados, mas o carácter actual
destes mudou de signo, ameaçando estender-se nos Balcãs, no mundo muçulmano e em várias
zonas da Ásia e África.
A reivindicação limítrofe que outrora preocupava forças armadas contíguas, hoje toma outra
direcção dada a tendência para a secessão no interior de alguns países. As disparidades
económicas, étnicas e linguísticas tendem a modificar fronteiras que se supunham inalteráveis, ao
mesmo tempo que ocorrem migrações em grande escala. Trata-se de grupos humanos que se
mobilizam para fugir de situações desesperadas, ou para conter ou expulsar de áreas definidas
outros grupos humanos.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
naturais e até importantes áreas da segurança civil; privatizados os bens e serviços, diminui a
importância do Estado tradicional. É coerente pensar que se a administração e os recursos de um
país saiem da área de controlo público, a Justiça seguirá o mesmo processo e adscrever-se-á às
Forças Armadas o papel de milícia privada destinada à defesa de interesses económicos
vernáculos ou multinacionais. Essas tendências têm vindo a aumentar ultimamente no interior dos
países.
Ainda não desapareceu a agressividade de potências que, a seu tempo, deram por
concluída a Guerra Fria. Actualmente, existem violações de espaços aéreos e maríti-mos;
aproximações imprudentes a territórios longínquos; incursões e instalação de bases;
afiançamentos de pactos militares; guerras e ocupação de territórios estrangeiros pelo controlo de
vias de navegação ou possessão de fontes de recursos naturais. Os antecedentes estabelecidos
pelas guerras da Coreia, Vietname, Laos e Camboja; pelas crises do Suez, Berlim e Cuba, pelas
incursões em Granada, Trípolis e Panamá mostraram ao mundo a desproporção da acção bélica
tantas vezes aplicada sobre países indefesos e pesam na hora de falar de desarmamento. Estes
factos adquirem especial gravidade porque, em casos como o da Guerra do Golfo, se realizam
nos flancos de países de grande importância, que poderiam interpretar tais manobras como sendo
lesivas para a sua segurança. Esses excessos estão a produzir efeitos residuais nocivos ao
fortalecer a frente interna de sectores que julgam os seus governos incompetentes para travar
esses avanços. Isto, desde logo, pode chegar a comprometer o clima de paz internacional tão
necessário no momento actual.
No que diz respeito à segurança interna, é necessário citar dois problemas que parecem
perfilar-se no horizonte dos acontecimentos imediatos: as explosões sociais e o terrorismo.
São, pois, muitas e numerosas as preocupações das Forças Armadas, dado o panorama
instável do mundo de hoje. Por outro lado, e além dos problemas estratégicos e políticos que
estas têm de considerar, estão os temas internos de reestruturação, de dispensa de importantes
contingentes de tropas, do modo de recrutamento e formação, de renovação de material, de
modernização tecnológica e, primariamente, de recursos económicos. Porém, se bem que se
devem compreender a fundo os problemas de contexto que mencionámos, há-de acrescentar-se
que nenhum deles poderá ser resolvido cabalmente se não se clarifica qual a função primária que
devem cumprir os exércitos. Ao fim e ao cabo, é o poder político que dá a sua orientação às
Forças Armadas e são estas que actuam com base nessa orientação.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Na época do imperialismo napoleónico, a função do exército, que por outro lado ocupa o
poder político, consistiu em expandir fronteiras com o objectivo declamado de redimir os povos
oprimidos pelas tiranias, mercê da acção bélica e da instauração de um sistema administrativo e
jurídico que consagrou nos seus códigos a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. A ideologia
correspondente justificou a expansão imperial com base no critério de "necessidade" de um poder
constituído pela revolução democrática face a monarquias ilegais baseadas na desigualdade, as
quais, além do mais, fazem frente comum para asfixiar a Revolução.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
converteu em delitual. A pergunta que se deve fazer é: de onde provém a legalidade e quais são
as suas características? Respondemos que a legalidade provém do povo que é quem deu a si
próprio um tipo de Estado e um tipo de leis fundamentais a que se devem submeter os cidadãos.
E no caso extremo em que o povo decidisse modificar esse tipo de Estado e esse tipo de leis,
incumbir-lhe-ia fazê-lo não podendo existir uma estrutura estatal e um sistema legal por cima
daquela decisão. Este ponto leva-nos a considerar o facto revolucionário, que trataremos mais
adiante.
Tem de se salientar que os corpos militares devem estar formados por cidadãos
responsáveis pelas suas obrigações relativamente à legalidade do poder estabelecido. Se o
poder estabelecido funciona com base numa democracia real em que se respeita a vontade
maioritária por eleição e renovação dos representantes populares, se respeita as minorias nos
termos consagrados pelas leis e se respeita a separação e independência entre poderes, então
não cabe às Forças Armadas deliberar àcerca dos acerto ou erros desse governo. Do mesmo
modo que na implantação de um regime ilegal as Forças Armadas não podem sustentá-lo
mecanicamente, invocando uma "obediência devida" a esse regime. Mesmo chegando ao conflito
internacional, as Forças Armadas também não podem praticar o genocídio seguindo instruções de
um poder febril devido à anormalidade da situação. Porque se os Direitos Humanos não estão por
cima de qualquer outro Direito, não se entende para que existe organização social nem Estado. E
ninguém pode invocar "obediência devida" quando se trata do assassinato, da tortura e da
degradação do ser humano. Se alguma coisa ensinaram os tribunais criados após a Segunda
Guerra Mundial foi que o homem de armas tem responsabilidades como ser humano, mesmo na
situação-limite do conflito bélico.
Neste ponto, poder-se-á perguntar: não é o exército uma instituição cuja preparação,
disciplina e equipamento o converte em factor primário de destruição? Respondemos que as
coisas estão montadas assim desde muito tempo antes da situação actual e que,
independentemente da aversão que sentimos por todas as formas de violência, não podemos
conceber a desaparição ou o desarmamento unilateral de exércitos criando vazios que seriam
preenchidos por outras forças agressivas, tal como mencionámos anteriormente quando nos
referimos aos ataques realizados a países indefesos. São as próprias Forças Armadas que têm
uma importante missão a cumprir não obstruindo a filosofia e a prática do desarmamento
proporcional e progressivo, inspirando, além do mais, os camaradas de outros países
nessa direcção e deixando claro que a função castrense no mundo de hoje consiste em
evitar catástrofes e servidões ditadas por governos ilegais que não respondem ao mandato
popular. Então, o maior serviço que as forças armadas poderão prestar aos seus países e a toda
a humanidade será evitar que existam as guerras. Esta ideia, que pode parecer utópica, está
avalizada actualmente pela força dos factos que demonstram a pouca praticidade e a
perigosidade para todos quando aumenta o poder bélico global ou unilateral.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
chefia imediata. Esta perspectiva, que faz recordar as justificações dos genocidas do nazismo, é
um ponto que deve ser considerado na hora de discutir os limites da disciplina castrense. O nosso
ponto de vista quanto a este aspecto, como já comentámos, é que se o exército quebra a
dependência em relação ao poder político, constitui-se numa força irregular, num bando armado
fora da lei. Este ponto é claro mas admite uma excepção: o levantamento militar contra um poder
político estabelecido ilegalmente ou que se pôs em situação facciosa. As Forças Armadas não
podem invocar "obediência devida" a um poder ilegal porque se convertem em sustentáculos
dessa irregularidade, assim como noutras circunstâncias também não podem produzir o golpe
militar fugindo à função de cumprir o mandato popular. Isto quanto à ordem interna e, em relação
ao facto bélico internacional, não podem atentar contra a população civil do país inimigo.
7. Reestruturação militar
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Supõe-se que numa democracia o poder provém da soberania popular. Tanto a conformação
do Estado como a dos organismos que de ele dependem derivam da mesma fonte. Assim, o
exército cumpre com a função que lhe outorga o Estado para defender a soberania e dar
segurança aos habitantes de um país. Desde logo, podem ocorrer aberrações segundo seja o
exército ou uma facção que ocupem ilegalmente o poder, conforme vimos anteriormente. Porém,
como também mencionámos, poderia suceder o caso extremo em que o povo decidisse mudar
esse tipo de Estado e esse tipo de leis, quer dizer, esse tipo de sistema. Incumbiria ao povo fazê-
lo, não podendo existir uma estrutura estatal e um sistema legal por cima daquela decisão. Sem
dúvida que as cartas constitucionais de muitos países contemplam a possibilidade de que elas
mesmas sejam modificadas por decisão popular. Desta maneira poderia ocorrer uma mudança
revolucionária na qual a democracia formal dê lugar à democracia real. Mas se se obstruisse esta
possibilidade estar-se-ia a negar a própria origem de onde brota toda a legalidade. Em tal
circunstância, e tendo-se esgotado todos os recursos civis, é obrigação do exército cumprir com
essa vontade de mudança apeando a uma facção instalada, já ilegalmente, no manejo da coisa
pública. Chegar-se-ia desse modo, mediante a intervenção militar, à criação de condições
revolucionárias nas quais o povo põe em marcha um novo tipo de organização social e um novo
regime jurídico. Não é necessário destacar as diferenças entre a intervenção militar que tem
como objectivo devolver ao povo a sua soberania arrebatada, e o simples golpe militar que
rompe a legalidade estabelecida por mandato popular. Em ordem às mesmas ideias, a
legalidade exige que se respeite a vontade do povo mesmo no caso de que este proponha
mudanças revolucionárias. Porque é que as maiorias não haveriam de expressar o seu desejo de
mudança de estruturas e, ainda, porque é que não haveriam as minorias de ter a oportunidade de
trabalhar politicamente para conseguir uma modificação revolucionária da sociedade? Negar por
meio da repressão e da violência a vontade de mudança revolucionária compromete
seriamente a legalidade do sistema das actuais democracias formais.
Ter-se-á observado que não aflorámos assuntos relativos à estratégia nem à doutrina militar,
nem tão-pouco questões de tecnologia e organização castrense. Não poderia ser de outro modo.
Nós estabelecemos o ponto de vista humanista sobre as Forças Armadas relacionadas
com o poder político e com a sociedade. São os Homens de armas que tem pela frente um
enorme trabalho teorético e de implementação prática para adaptar esquemas a este momento
tão especial que está a viver o mundo. A opinião da sociedade e o genuíno interesse das Forças
Armadas em conhecer essa opinião, ainda que não seja especializada, é de fundamental
importância. Paralelamente, uma relação viva entre membros de exércitos de diferentes países e
a discussão franca com a sociedade civil é um passo importante em ordem ao reconhecimento da
pluralidade dos pontos de vista. Os critérios de isolamento de uns exércitos relativamente a outros
e de ensimesmamento com respeito às reclamações do povo são próprios de uma época em que
o intercâmbio humano e objectal estava restringido. O mundo mudou para todos, também para as
forças armadas.
Hoje impõem-se duas opiniões que nos interessam especialmente. A primeira anuncia que a
época das revoluções passou; a segunda, que o protagonismo militar na tomada de decisões
políticas se atenua gradualmente. Também se supõe que somente em certos países atrasados ou
desorganizados permanecem ameaçadoras aquelas rémoras do passado. Por outro lado, pensa-
se que o sistema de relações internacionais, ao tomar um carácter cada vez mais sólido, irá
fazendo sentir o seu peso até que aquelas antigas irregularidades vão entrando na linha. Sobre a
questão das revoluções, como já se expôs, temos um diametral ponto de vista. Quanto a que o
concerto de nações "civilizadas" vá impôr uma Nova Ordem em que não haja lugar para a decisão
militar, é tema por demais discutível. Nós destacamos que é, precisamente, nas nações e
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
regiões que vão tomando carácter imperial onde as revoluções e a decisão militar irão
fazendo sentir a sua presença. Mais cedo ou mais tarde, as forças do dinheiro, cada vez
mais concentradas, enfrentar-se-ão às maiorias e, nessa situação, banca e exército tornar-
se-ão termos antitéticos. Estamos, pois, situados nos antípodas da interpretação dos processos
históricos. Só os tempos já próximos irão pôr em evidência a correcta percepção dos factos, que
para alguns, seguindo a tradição dos últimos anos, serão "incríveis". Com aquela visão, que se
dirá quando isto aconteça? Provavelmente que a humanidade voltou ao passsado ou, mais
vulgarmente, que "o mundo enlouqueceu". Nós cremos que fenómenos como o irracionalismo
crescente, o surgimento de uma forte religiosidade e outros tantos mais não estão situados no
passado, mas sim que correspondem a uma nova etapa que haverá que enfrentar com toda a
valentia intelectual e com todo o compromisso humano de que formos capazes. Em nada ajudará
continuar a sustentar que o melhor desenvolvimento da sociedade se corresponde com o mundo
actual. Mais importante será compreender que a situação que estamos a viver leva directamente
ao colapso de todo um sistema que alguns consideram defeituoso mas "aperfeiçoável". Não existe
esse sistema actual "aperfeiçoável". Pelo contrário, nele chega ao máximo a desumanidade de
todos os factores que se foram amassando ao longo de muitos anos. Se alguém julga estas
afirmações como destituídas de fundamento, está em todo o seu direito na condição de
apresentar por seu lado uma posição coerente. E se pensa que a nossa posição é pessimista,
afirmamos que face a este processo mecânico negativo, prevalecerá a direcção rumo à
humanização do mundo, empurrada pela revolução que acabarão por produzir os grandes
conjuntos humanos, hoje em dia despojados do seu próprio destino.
Silo.
10/08/93.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Tenho recebido muitas vezes correspondência em que se pergunta: "O que é que se passa
hoje com os Direitos Humanos?" Pessoalmente não estou em condições de dar uma resposta
ajustada. Creio, contudo, que aqueles que subscreveram a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, quer dizer, mais de 160 Estados da Terra, devem saber o que se passa. Esses Estados
assinaram a 10 de Dezembro de 1948, ou mais adiante, a aceitação daquele documento
elaborado no seio das Nações Unidas. Todos compreenderam do que é que tratava, todos se
comprometeram a defender os direitos proclamados. Também se assinou um Tratado de
Helsinquia e os países designaram representantes perante as comissões de direitos humanos e
perante os tribunais internacionais.
Se, a modo de crónica quotidiana, pegássemos no que aconteceu neste campo nos últimos
tempos, teríamos que recolocar a pergunta e formulá-la assim: "O que é que se passa com o jogo
hipócrita dos governos em relação aos direitos humanos?" Bastaria seguir minimamente as
agências noticiosas, prestar atenção aos jornais, revistas, rádios e T.V's. para responder a essa
pergunta. Tomemos como exemplo o último relatório da Amnistia Internacional (apenas 1992) e
exponhamos sumariamente alguns dos dados fornecidos.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
imagem da realidade política do país. No entanto, a Amnistia denunciou que as Forças Armadas e
os grupos paramilitares executaram extrajudicialmente não menos de 500 pessoas, ao mesmo
tempo que os grupos armados de oposição e as organizações de narcotráfico assassinaram cerca
de 200. Acrescenta Amnistia que a luta contra os militantes islâmicos provocou uma deterioração
da situação dos direitos humanos em vários países árabes como a Argélia e o Egipto. Torturas,
processos injustos, assassinatos políticos, "desaparições" e outras violações graves foram
perpetradas por agentes governamentais em todo o Médio Oriente. No Egipto, a adopção de uma
nova legislação "facilitou" a tortura dos presos políticos e 8 militantes islâmicos, presumíveis
integrantes de um grupo armado, foram condenados à morte por um tribunal militar "após um
processo não equitativo". Na Argélia, até 10.000 pessoas foram recluídas sem acusação ou sem
processo em acampamentos isolados no deserto. Por sua vez, grupos fundamentalistas
declararam-se responsáveis por assassinatos de civis e por graves violações dos direitos
humanos na Argélia e Egipto, assim como nos territórios ocupados por Israel. As detenções sem
processo estão particularmente difundidas na Síria, mas também têm lugar em Israel, Líbia,
Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Marrocos e Tunísia. Na China, a Amnistia chamou a atenção para
a quantidade de prisioneiros de "consciência" e para a existência de penas que recaiem sobre
activistas políticos sem processos judiciais prévios.
Porém, o acima mencionado não esgota o tema dos direitos humanos nem,
consequentemente, as violações que estes sofrem.
Hoje fala-se, com renovado vigor, dos direitos humanos. No entanto, mudou o signo
daqueles que fazem ondular estas bandeiras. Em décadas passadas, o progressismo trabalhou
activamente na defesa de princípios que tinham sido consagrados pelo consenso das nações.
Evidentemente, não faltaram as ditaduras que, em nome daqueles direitos, zombaram da
necessidade e da liberdade pessoal e colectiva. Algumas explicaram que, contanto que não se
discutisse o sistema imperante, os cidadãos teriam acesso à habitação, saúde, educação e
trabalho. Logicamente, disseram, não se tinha que confundir liberdade com libertinagem e
"libertinagem" era discutir o regime.
Hoje, a direita recolheu aquelas bandeiras e é vista activa na defesa dos direitos humanos e
da paz, sobretudo naqueles países que não domina totalmente. Aproveitando alguns mecanismos
internacionais, organiza forças de intervenção capazes de chegar a qualquer ponto do globo a fim
de impôr a "justiça". Em primeiro lugar, levam medicina e alimento para depois arremeter com
balázios contra as populações, favorecendo a facção que melhor se lhes subordine. Em breve,
qualquer quinta coluna poderá invocar que no seu país se altera a paz ou se espezinham os
direitos humanos para solicitar ajuda dos intervencionistas. Na realidade, aperfeiçoaram-se os
primitivos tratados e pactos para a defesa mútua com documentos que legalizam a acção de
forças "neutrais". Assim se implanta, hoje, rejuvenescida, a velha Pax Romana. Enfim, são as
peripécias ornitológicas que se iniciaram com a águia dos estandartes legionários, vindo esta
depois a tomar forma de pomba de Picasso, até chegar o dia de hoje em que ao plumífero lhe
cresceram garras. Já não regressa à Arca bíblica transportando um ramo de oliveira, antes volta à
arca de valores levando um dólar no seu forte bico.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Adequadamente, tempera-se tudo com ternas argumentações. E nisto temos que ser
cuidadosos, porque mesmo quando se interviesse em terceiros países por razões
humanitárias evidentes para todos, estabelecer-se-iam precedentes para justificar novas
acções sem razões tão humanitárias nem tão evidentes para todos. É de observar que como
consequência do processo de mundialização, a O.N.U. está a desempenhar um papel militar
crescente que encerra não poucos perigos. Uma vez mais, está-se a comprometer a soberania e
auto-determinação dos povos mediante a manipulação dos conceitos de paz e de solidariedade
internacional.
Deixemos os temas da paz para outra ocasião e olhemos um pouco mais de perto para os
direitos humanos que, como todos sabemos, não se limitam a questões de "consciência", de
liberdade política e de expressão. A protecção destes direitos também não se reduz a evitar a
perseguição, a prisão e a morte dos cidadãos em razão das suas diferenças em relação a um
dado regime. Isto é, não se circunscreve à defesa das pessoas perante a violência física directa
que pudesse ser exercida contra elas. Sobre este ponto há muita confusão e muito trabalho
desordenado, mas algumas ideias básicas ficaram plasmadas na Declaração.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
campos à medida que avance o privatismo, que se ocupará de oferecer os seus eficientes
serviços a quem possa pagá-los, com o que 20% da população terá cobertas as suas
necessidades. Quem defenderá, então, os direitos humanos dentro da concepção universal e
igualitária se estes se exercerão "... de harmonia com a organização e os recursos de cada país"?
Porque, claro, "quanto mais pequeno seja o Estado, mais próspera será a economia desse país",
segundo explicam os defensores dessa ideologia. Neste tipo de discussão, passar-se-á de
repente da declamação idílica sobre a "abundância geral" à brutalidade expositiva que, com
carácter de ultimato, se apresentará aproximadamente nestes termos: "Se as leis limitam o
capital, este abandonará o país, não chegarão investimentos, não haverá empréstimos
internacionais nem refinanciamento de dívidas contraídas anteriormente, com o que se reduzirão
as exportações e a produção e, em suma, se comprometerá a ordem social." Assim, com toda a
simplicidade, ficará exposto um dos muitos esquemas de extorsão. Se isto que acabámos de
comentar o fizemos derivar da situação de um país com suficientes recursos, na sua passagem
para a economia de livre mercado, é fácil imaginar o agravamento de condições quando o país em
questão não conte com os requisitos básicos de organização e recursos. Tal como se está a
delinear a Nova Ordem mundial e em razão da interdependência económica, em todos os países
(ricos ou pobres), o capital estará a atentar contra a concepção universal e igualitária dos
direitos humanos.
A discussão anterior não se pode colocar nos termos estritamente gramaticais do artigo 22º,
porque nele (e em toda a Declaração dos Direitos Humanos) não se está a pôr acima das pessoas
uma valoração económica que relativize os seus direitos. Também não é legítimo introduzir
argumentos tangenciais ao explicar que, sendo a economia a base do desenvolvimento social, há
que dedicar todos os esforços às variáveis macroeconómicas, para que, uma vez conseguida a
abundância, se possa prestar atenção aos direitos humanos. Isso é tão toscamente linear como
dizer: "já que a sociedade está submetida à lei da gravidade, é necessário concentrar-se neste
problema e, quando esteja resolvido, falaremos dos direitos humanos. Numa sociedade sã, os
cidadãos não se lembram de construir em barrancos instáveis, porque dão por assentes os
condicionamentos da gravidade e, igualmente, todo o mundo sabe claramente o que são os
condicionamentos económicos e a importância da sua correcta resolução em função da vida
humana. De qualquer maneira, estas são digressões que fogem ao tema central.
A consideração sobre os direitos humanos não fica reduzida a estas últimas questões de
trabalho, remuneração e assistência, como em seu momento também não fora limitada aos
âmbitos da expressão política e da liberdade de consciência. Destacámos algum defeito na
redacção da Declaração, mas mesmo assim devemos convir que bastaria uma escrupulosa
aplicação dos seus artigos por parte de todos os governos, para que este mundo experimentasse
uma mudança positiva de grande importância.
Existem diversas concepções do ser humano e esta variedade de pontos de vista tem
muitas vezes por base as diferentes culturas a partir das quais se observa a realidade. O que
estamos a explanar afecta globalmente a questão dos direitos humanos. Com efeito, face à ideia
de um ser humano universal com os mesmos direitos e com as mesmas funções em todas as
sociedades, hoje levanta-se a tese "cultural" que sustenta uma posição diferente sobre estes
temas. Assim, os defensores dessa posição consideram que os supostos direitos universais do
Homem não são senão a generalização do ponto de vista que o Ocidente sustenta e que pretende
uma validade universal injustificada. Tomemos, por exemplo, o artigo 16º - 1. "A partir da idade
núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de
raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm
direitos iguais." 16º - 2. "O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento
dos futuros esposos." 16º - 3. "A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
direito à protecção desta e do Estado." Estes três pontos do artigo 16º trazem numerosas
dificuldades de interpretação e aplicação a várias culturas que, partindo do Médio Oriente e do
Levante, chegam à Asia e à Africa. Quer dizer, trazem dificuldades à maior parte da humanidade.
Para esse mundo tão extenso e variado, nem mesmo o casamento e a família coincidem com os
parâmetros que pareciam tão "naturais" ao Ocidente. Por conseguinte, essas instituições e os
direitos humanos universais a elas referidos estão em discussão. Outro tanto acontece se
pegarmos na concepção do Direito em geral e da Justiça; se confrontamos as ideias de punição
com as de reabilitação do delinquente, tópicos estes sobre que não há acordo mesmo entre os
países do mesmo contexto cultural ocidental. Sustentar como válido para toda a humanidade o
ponto de vista da própria cultura leva a situações francamente grotescas. Assim, nos Estados
Unidos considera-se um atentado aos direitos humanos universais o seccionamento legal da mão
do ladrão, que se pratica nalguns países árabes, enquanto se discute academicamente se é mais
humano o gás cianídrico, a descarga de 2000 volts, a injecção letal, o enforcamento ou outra
macabra delícia da pena capital. Porém, também é verdade que, assim como neste país há uma
grande porção da sociedade que repudia a pena de morte, naquele outro lugar são numerosos os
detractores de todo o tipo de castigo físico para o réu. O próprio Ocidente, arrastado pela
mudança de usos e costumes, vê-se em dificuldades para sustentar a sua ideia tradicional da
família "natural". Pode existir hoje família com filhos adoptivos? Claro que sim. Pode existir família
em que o casal esteja constituído por membros do mesmo sexo? Algumas legislações já o
admitem. O que define, então, a família, o seu carácter "natural" ou o compromisso voluntário de
cumprir determinadas funções? Em que razões se pode basear a excelência da família
monogâmica de algumas culturas em relação à poligâmica ou poliândrica de outras culturas? Se é
esse o estado da discussão, pode-se continuar a falar de um Direito universalmente aplicável à
família? Quais serão e quais não serão os direitos humanos que se devam defender nessa
instituição? Claramente, a dialéctica entre a tese universalista (pouco universal na sua própria
área) e a cultural não se pode resolver no caso da família (que usei como um dos muitos
exemplos possíveis), e receio que também não se possa solucionar noutros campos da actividade
social.
Digamo-lo de uma vez: está aqui em jogo a concepção global do ser humano,
insuficientemente fundamentada por todas as posturas em pugna. A necessidade de tal
concepção é evidente, porque nem o Direito em geral nem os direitos humanos em particular
poderão prevalecer se não se clarificam no seu significado mais profundo. Já não é o caso de se
colocar em abstracto as questões mais gerais do Direito. Ou se trata de direitos que para serem
vigentes dependem do poder estabelecido, ou se trata de direitos como aspirações a
cumprir. Sobre isto dissemos noutra ocasião (A Lei, in Paisagem Humana - Humanizar a Terra):
"Gentes práticas não se perderam em teorizações e declararam que é necessário que exista uma
lei para que exista a convivência social. Também se tem afirmado que a lei se faz para defender
os interesses daqueles que a impõem. Tanto quanto parece, é a situação prévia de poder que
instala uma determinada lei, a qual por sua vez legaliza o poder. Assim sendo, o poder como
imposição de uma intenção, aceite ou não, é o tema central. Diz-se que a força não gera direitos,
mas este contrasenso pode aceitar-se se se concebe a força apenas como facto físico brutal,
quando na realidade a força (económica, política, etc.) não necessita ser exposta
perceptivelmente para estar presente e impôr respeito. Por outro lado, mesmo a força física (a das
armas, por exemplo), expressa na sua descarnada ameaça, impõe situações que são justificadas
legalmente, e não devemos desconhecer que o uso das armas numa ou noutra direcção depende
da intenção humana e não de um direito..." E mais adiante: "Quem viola uma lei desconhece uma
situação imposta no presente, expondo a sua temporalidade (o seu futuro) às decisões de outros.
Mas é claro que aquele "presente" em que a lei começa a ter vigência, tem raizes no passado. O
costume, a moral, a religião ou o consenso social são habitualmente as fontes invocadas para
justificar a existência da lei. Cada uma delas, por sua vez, depende do poder que a impôs. E estas
fontes são revistas quando o poder que as originou, decaíu ou se transformou de tal modo que a
manutenção da ordem jurídica anterior começa a chocar com o "razoável", com o "sentido
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
comum", etc. Quando o legislador altera uma lei ou um conjunto de representantes do povo muda
a Lei Fundamental de um país, não se viola aparentemente a lei em geral porque aqueles que
actuam não ficam expostos às decisões de outros, porque têm nas suas mãos o poder, ou actuam
como representantes de um poder, e nessa situação fica claro que o poder gera direitos e
obrigações e não o inverso." Para terminar a citação: "os direitos humanos não têm a vigência
universal que seria desejável porque não dependem do poder universal do ser humano,
mas sim do poder de uma parte sobre o todo. Se as mais elementares reivindicações sobre o
governo do próprio corpo são espezinhadas em todas as latitudes, só podemos falar de
aspirações que terão que converter-se em direitos. Os direitos humanos não pertencem ao
passado, estão lá no futuro absorvendo a intencionalidade, alimentando uma luta que se
reaviva em cada nova violação do destino do Homem. Por isso, toda a reclamação que se
faça a favor deles tem sentido, porque mostra aos poderes actuais que não são
omnipotentes e que não têm o futuro controlado."
Sobre a nossa concepção geral do ser humano não é necessário tornar aqui, nem reafirmar
que o reconhecimento que fazemos das realidades culturais diversas não invalida a existência de
uma comum estrutura humana em devir histórico e em direcção convergente. A luta pelo
estabelecimento de uma nação humana universal é também a luta, a partir de cada cultura, pela
vigência de direitos humanos cada vez mais precisos. Se, numa dada cultura, de repente se
ignora o direito à vida plena e à liberdade, pondo acima do ser humano outros valores, é porque
ali algo se desviou, algo está em divergência com o destino comum e, então, a expressão dessa
cultura nesse ponto preciso deve ser claramente repudiada. É certo que contamos com
formulações imperfeitas dos direitos humanos, mas por agora é o único que temos nas nossas
mãos para defender e aperfeiçoar. Estes direitos hoje são considerados como simples
aspirações e não podem ser plenamente vigentes dados os poderes estabelecidos. A luta
pela plena vigência dos direitos humanos leva, necessariamente, ao questionamento dos
poderes actuais orientando a acção para a substituição destes pelos poderes de uma nova
sociedade humana.
Silo.
21/11/93
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Estimados amigos:
Qual é o destino dos acontecimentos actuais? Os optimistas pensam que entraremos numa
sociedade mundial de abundância, na qual os problemas sociais ficarão resolvidos; uma espécie
de paraíso na Terra. Os pessimistas consideram que os sintomas actuais mostram uma doença
crescente das instituições, dos grupos humanos e até do sistema demográfico e ecológico global;
uma espécie de inferno na Terra. Os que relativizam a mecânica histórica deixam tudo reservado
ao comportamento que assumamos no momento actual. O céu ou o inferno dependerão da nossa
acção. Evidentemente, há aqueles a quem não lhes interessa minimamente o que venha a
acontecer a outros que não eles mesmos.
Entre tantas opiniões, importa-nos aquela que faz depender o futuro daquilo que façamos
hoje. Contudo, mesmo nesta posição, há diferenças de critério. Alguns dizem que como esta crise
foi provocada pela voracidade da Banca e das empresas multinacionais, ao chegar a um ponto
perigoso para os seus interesses, estas porão em marcha mecanismos de recuperação, tal como
sucedeu em ocasiões anteriores. Em matéria de acção, propiciam a adaptação gradual aos
processos de reconversão do capitalismo em benefício das maiorias. Outros, pelo contrário,
indicam que não se trata de fazer depender toda a situação do voluntarismo das minorias,
portanto trata-se de manifestar a vontade das maiorias mediante a acção política e o
esclarecimento do povo que se encontra extorquido pelo esquema dominante. Segundo eles,
chegará um momento de crise geral do sistema e essa situação deve ser aproveitada para a
causa da revolução. Mais além, estão aqueles que sustentam que tanto o capital como o trabalho,
as culturas, os países, as formas organizativas, as expressões artísticas e religiosas, os grupos
humanos e até os indivíduos estão enredados num processo de aceleração tecnológica e de
desestruturação que não controlam. Trata-se de um longo processo histórico que hoje vive uma
crise mundial e que afecta todos os esquemas políticos e económicos, não dependendo destes a
desorganização geral nem a recuperação geral. Os defensores dessa visão estrutural insistem
que é necessário forjar uma compreensão global destes fenómenos, ao mesmo tempo que
se actua nos campos mínimos de especificidade social, grupal e pessoal. Dada a inter-
conexão do mundo, não sustentam um gradualismo com êxito que seria adoptado
socialmente ao longo do tempo, antes tratam de gerar uma série de "efeitos demonstração"
suficientemente enérgicos para produzir uma inflexão geral do processo.
Consequentemente, exaltam a capacidade construtiva do ser humano para se dedicar a
transformar as relações económicas, modificar as instituições e lutar sem descanso para
desarmar todos os factores que estão a provocar uma involução sem retorno. Nós aderimos a
esta última postura. Está claro que tanto esta como as anteriores foram simplificadas e, além
disso, eludiu-se múltiplas variantes que derivam de cada uma delas.
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
poder central, deveriam permanecer como as novas estruturas organizativas. Mas acontece que
estes poderes começam a ser questionados pelas micro-regiões, pelos municípios ou comunas,
pelos condados, etc.. Ninguém vê por que razão uma região autónoma libertada do poder central
deveria, por sua vez, centralizar o poder relativamente a unidades menores, por mais que se
desse como pretexto o uso do mesmo idioma, ou um folclore comum, ou uma imponderável
"colectividade histórica e cultural", porque quando se trata de cobrança fiscal e de finanças, o
folclore fica somente para o turismo e para as companhias discográficas. Caso os municípios se
emancipassem do poder autonómico, as freguesias aplicariam a mesma lógica e assim haveria de
continuar essa cadeia até aos vizinhos que vivem separados por uma rua. Alguém poderia dizer:
"Porque é que nós que vivemos deste lado da linha, teríamos de pagar os mesmos impostos que
os que vivem do outro lado? Nós temos condições de vida mais altas e os nossos impostos vão
solucionar os problemas dessa outra gente que não quer progredir com o seu esforço. O melhor é
que cada um se arranje com o que é seu". Desde logo, em cada casa da vizinhança poder-se-iam
escutar as mesmas inquietudes e ninguém poderia parar esse processo mecânico justamente no
ponto em que lhe interessasse. Quer dizer, não se travaria tudo com um simples processo de
feudalização ao estilo medieval, determinado por populações reduzidas e distantes e por relações
de intercâmbio esporádicas através de vias de comunicação controladas pelos feudos em luta ou
por bandos cobradores de portagens. A situação não se assemelha à de outras épocas em
matéria de produção, consumo, tecnologia, comunicações, densidade demográfica, etc..
Por outro lado, as regiões económicas e os mercados comuns tendem a absorver o poder
decisório dos antigos países. Numa dada região, as autonomias poderiam eludir a antiga unidade
nacional, mas também os municípios, ou grupos de municípios, tenderiam a "saltar" os velhos
níveis administrativos e pedir a sua integração na nova superestrutura regional, reclamando a sua
participação como membro pleno. Aquelas autonomias, ou municípios, ou grupos de municípios,
que contassem com um forte potencial económico poderiam ser levados a sério pela unidade
regional.
Não é de excluir que, na guerra económica entre os diferentes blocos regionais, alguns
países membros comecem a estabelecer relações "bilaterais ou multilaterais" escapando à órbita
do mercado regional em que estão incluídos. Porque é que a Inglaterra, por exemplo, não poderia
estabelecer relações mais estreitas com o N.A.F.T.A. da América do Norte, conseguindo de início
excepções dentro da C.E.E. e depois, de acordo com o avanço dos negócios, o que é que
impediria que se incluísse no novo mercado regional abandonando o anterior? E se o Canadá
entrasse num processo de secessão, o que é que impediria que o Quebec começasse
negociações fora da região do N.A.F.T.A.? Já não poderiam existir na América do Sul
organizações do tipo da A.L.A.L.C. ou do Pacto Andino se a Colômbia e o Chile começassem a
integrar as suas economias com vista à adesão ao N.A.F.T.A., perante um MERCOSUR que se
veria afectado por possíveis secessões no Brasil. Por outro lado, se a Turquia, a Argélia e outros
pontos do sul do Mediterrâneo começassem a sua integração na C.E.E., os países excluídos
reforçariam a sua mútua aproximação para negociar como conjunto com outras áreas geográficas.
E o que é que se passaria no contexto dos blocos regionais que hoje se visualizam, com
potências como a China, Rússia e o Leste europeu, dadas as suas rápidas transformações
centrífugas?
Provavelmente, as coisas não virão a resultar como nos exemplos que demos, mas a
tendência para a regionalização pode tomar caminhos inesperados e resultar num esquema bem
diferente do que hoje se pensa com base na contiguidade geográfica e, portanto, com base no
vulgar preconceito geo-político. De modo que uma nova desordem pode ocorrer dentro de
esquemas recentes que têm como objectivo não só a união económica mas também uma
intenção de bloco político e militar. E como, em suma, será o grande capital a decidir a melhor
evolução dos seus negócios, ninguém deveria estar muito seguro imaginando mapas regionais
arranjados de acordo com a contiguidade geográfica, na qual a estrada, a via férrea e o enlace
63
Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
radial foram os protagonistas, mas que hoje tendem a ficar redesenhados por um tráfego aéreo e
marítimo de grande volume e pela comunicação mundial via satélite. Já na época do colonialismo,
a continuidade geográfica foi substituída por um tabuleiro ultramarino de grandes potências, que
foi declinando com os dois conflitos mundiais. A reacomodação actual, para alguns, retrotrai o
problema a etapas pré-coloniais, fazendo-lhes imaginar que uma região económica deve estar
organizada num continuum espacial com o qual projectam o seu nacionalismo particular para uma
espécie de "nacionalismo" regional.
Fica claro que os partidos se alternarão ocupando o já reduzido poder estatal, ressurgindo
como "direita", "centro" e "esquerda". Já acontecem e acontecerão muitas "surpresas" ao
comprovar-se que as forças dadas por desaparecidas emergem novamente e que agrupamentos
e alinhamentos entronizados desde há décadas atrás se dissolvem no meio do descrédito geral.
Isto não é uma novidade no jogo político. O que é mesmo original é que tendências supostamente
opostas poderão suceder-se sem modificar minimamente o processo desestruturador, que, desde
logo, as afectará também a elas próprias. E se se trata de propostas, linguagem e estilo político,
poderemos assistir a um sincretismo geral no qual os perfis ideológicos ficarão cada dia menos
nítidos. Perante uma luta de slogans e formas vazias, o cidadão médio ir-se-á afastando de toda a
participação para se concentrar no mais perceptual e imediato. Mas a desconformidade social far-
se-á sentir crescentemente mediante o espontaneísmo, a desobediência civil, a desordem e o
surgimento de fenómenos psico-sociais de crescimento explosivo. É neste ponto que aparece com
perigosidade o neo-irracionalismo, o qual pode vir a liderar assumindo formas de intolerância
como bandeira de luta. Neste sentido, é claro que se um poder central pretende asfixiar as
reclamações independentistas, as posições tenderão a radicalizar-se arrastando as agrupações
políticas à sua própria esfera. Que partido poderá ficar indiferente (com risco de perder a sua
influência) se explode, num dado ponto, a violência motivada pela questão territorial, étnica,
religiosa ou cultural? As correntes políticas terão de tomar posição como hoje sucede em vários
lugares de África (18 pontos em conflito); América (Brasil, Canadá, Guatemala e Nicarágua, sem
considerar as reivindicações das colectividades indígenas do Equador e outros países da América
do Sul, e sem atender à agudização do problema racial nos E.U.A.); Asia (10 pontos, contando o
conflito sino-tibetano, mas sem destacar as diferenças inter-cantonais que estão a surgir ao longo
de toda a China); Asia do Sul e do Pacífico (12 pontos, incluindo as reivindicações das
colectividades autóctones da Austrália); Europa Ocidental (16 pontos); Europa Oriental (4 pontos,
tomando a República Checa e a Eslováquia, a ex-Jugoslávia, o Chipre e a ex-União Soviética
como um só ponto cada uma, pois de outro modo as zonas em conflito podem elevar-se a 30,
tendo em conta os vários países dos Balcãs e a ex-União Soviética, com dificuldades interétnicas
e fronteiriças em mais de vinte repúblicas repartidas para além da Europa Oriental); Oriente e
Médio Oriente (9 pontos).
Os políticos também terão de fazer eco da radicalização que as religiões tradicionais vão
experimentando, como ocorre entre muçulmanos e hindus na India e Paquistão, entre
muçulmanos e cristãos na ex-Jugoslávia e Líbano, entre hindus e budistas no Sri Lanka. Deverão
tomar posição nas lutas inter-seitas dentro de uma mesma religião, como se passa na zona de
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
influência do Islão entre sunitas e xiitas, e na zona de influência do cristianismo entre católicos e
protestantes. Terão de participar na perseguição religiosa que começou no Ocidente através da
Imprensa e da instauração de leis limitadoras da liberdade de culto e de consciência. É evidente
que as religiões tradicionais tenderão a acossar as novas formas religiosas que estão a despertar
em todo o mundo. Segundo os bem-pensantes, normalmente ateus mas objectivamente aliados
da seita dominante, a fustigação aos novos grupos religiosos "não constitui uma limitação à
liberdade de pensamento, mas sim uma protecção à liberdade de consciência que se vê agredida
pela lavagem ao cérebro dos novos cultos, os quais, além do mais, atentam contra os valores
tradicionais, a cultura e a forma de vida da civilização". Deste modo, políticos alheios ao tema
religioso começam a tomar partido nesta orgia de caça às bruxas porque, entre outras coisas,
vislumbram a popularidade massiva que começam a conseguir estas novas expressões de fé de
fundo revolucionarista. Já não poderão dizer, como no século XIX, " a religião é o ópio dos povos",
já não poderão falar do isolamento adormecido das multidões e dos indivíduos, quando as massas
muçulmanas proclamam a instauração de repúblicas islâmicas; quando o budismo no Japão
(desde o colapso da religião nacional xintoísta no final da segunda guerra mundial) motoriza a
tomada do poder pelo Komeitó; quando a Igreja Católica tende à formação de novas correntes
políticas após o desgaste do social-cristianismo e do Terceiro Mundismo na América Latina e
África. Em todo o caso, os filósofos ateus dos novos tempos terão que mudar os termos e
substituir no seu discurso o "ópio dos povos" pela "anfetamina dos povos".
Os dirigentes terão que definir posições com respeito a uma juventude que toma
características de "grupo de risco maioritário" porque lhe são atribuídas tendências perigosas para
a droga, a violência e a incomunicação. Estes dirigentes que insistem em ignorar as raizes
profundas desses problemas, não estão em condições de dar respostas adequadas por meio da
participação política, do culto tradicional, ou das ofertas de uma civilização decadente manejada
pelo Dinheiro. Entretanto, está-se a facilitar a destruição psíquica de toda uma geração e o
surgimento de novos poderes económicos que medram vilmente com a angústia e o abandono
psicológico de milhões de seres humanos. Muitos se interrogam agora a que se deve o
crescimento da violência entre os jovens, como se não tivessem sido as velhas gerações e a
actual, que detém o poder, as que aperfeiçoaram uma violência sistemática, aproveitando
inclusivamente os avanços da ciência e da tecnologia para tornar mais eficientes as suas
manipulações. Alguns destacam um certo "autismo" juvenil e, tendo em conta essa apreciação,
poderia estabelecer-se relações entre o prolongamento de vida dos adultos e o maior tempo de
capacitação requerido para que os jovens superem o limiar de postergação. Esta explicação tem
por onde se lhe pegue, mas é insuficiente na hora de entender processos mais amplos. O
observável é que a dialéctica geracional, motor da História, ficou provisoriamente obstruída e com
isso abriu-se um perigoso abismo entre dois mundos. Aqui é oportuno recordar que quando algum
pensador advertiu há décadas atrás sobre aquelas tendências que hoje já se expressam como
problemas reais, os mandarins e os seus formadores de opinião não souberam mais do que
rasgar-se as vestes acusando tal discurso de promover a guerra geracional. Naqueles tempos,
uma poderosa força juvenil que deveria ter exprimido o advento de um fenómeno novo, mas
também a continuação criativa do processo histórico, foi desviada para as difusas exigências da
década de 60 e empurrada para um guerrilheirismo sem saída em vários pontos do mundo. Se se
pretende actualmente que as novas gerações canalizem o seu desespero no tumulto musical e no
estádio de futebol, limitando as suas reivindicações à camisola e ao poster de inocentes
proclamações, haverá novos problemas. Tal situação de asfixia cria condições catárticas
irracionais aptas para ser canalizadas pelos fascistas, os autoritários e os violentistas de todo o
tipo. Não é semeando a desconfiança em relação aos jovens, nem suspeitando de cada criança
como um criminoso em potência, que se estabelecerá o diálogo. Aliás, ninguém mostra
entusiasmo em dar participação nos meios de comunicação social às novas gerações, ninguém
está disposto à discussão pública destes problemas, a menos que se trate de "jovens exemplares"
que reproduzam a temática politiqueira com música rock ou se dediquem, com espírito de
escuteiros, a limpar pinguins todos sujos de petróleo sem questionar o grande capital como
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
Por todo o exposto, parece claro que ninguém poderá orientar razoavelmente os processos
de um mundo que se dissolve. Esta dissolução é trágica, mas também anuncia o nascimento de
uma nova civilização, a civilização mundial. A ser isto assim, também se há-de estar a desintegrar
um tipo de mentalidade colectiva ao mesmo tempo que emerge uma nova forma de tomar
consciência do mundo. Sobre este ponto gostaria de trazer aqui o dito na primeira carta: "... está a
nascer uma sensibilidade que se corresponde com os novos tempos. É uma sensibilidade que
capta o mundo como uma globalidade e que se dá conta de que as dificuldades das pessoas em
qualquer lugar acabam por implicar outras, ainda que se encontrem a muita distância. As
comunicações, o intercâmbio de bens e a veloz deslocação de grandes contingentes humanos de
um ponto para outro, mostram esse processo de mundialização crescente. Também estão a surgir
novos critérios de acção ao compreender-se a globalidade de muitos problemas, percebendo-se
que a tarefa daqueles que querem um mundo melhor será efectiva se se a faz crescer a partir do
meio no qual se tem alguma influência. Ao contrário de outras épocas cheias de frases ocas com
as quais se procurava reconhecimento externo, hoje começa-se a valorizar o trabalho humilde e
sentido, mediante o qual não se pretende engrandecer a própria figura, mas sim mudar-se a si
mesmo e ajudar o meio imediato familiar, laboral e de relação a fazê-lo. Os que gostam realmente
das pessoas não desprezam essa tarefa sem estridências, incompreensível, ao invés, para
qualquer oportunista formado na antiga paisagem dos líderes e da massa, paisagem na qual ele
aprendeu a usar outros para ser catapultado para a cúpula social. Quando alguém comprova que
o individualismo esquizofrénico já não tem saída e comunica abertamente a todos os seus
conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o ridículo temor de não ser compreendido;
quando se aproxima de outros; quando se interessa por cada um e não por uma massa anónima;
quando promove o intercâmbio de ideias e a realização de trabalhos em conjunto; quando
claramente expõe a necessidade de multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social
destruído por outros; quando sente que mesmo a pessoa mais "insignificante" é de superior
qualidade humana que qualquer desalmado posto no cume da conjuntura epocal...Quando sucede
tudo isto, é porque no interior desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem movido
os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse Destino tantas vezes desviado e tantas vezes
esquecido, mas sempre reencontrado nas encruzilhadas da história. Não só se vislumbra uma
nova sensibilidade, um novo modo de acção, como também, além disso, uma nova atitude moral e
uma nova disposição táctica perante a vida".
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Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual
3. A acção pontual
Ainda restam militantes políticos que se inquietam em saber quem será primeiro-ministro,
presidente, senador ou deputado. É possível que não compreendam rumo a que desestruturação
estamos a avançar e que pouco significam as mencionadas "hierarquias" em ordem à
transformação social. Também haverá mais de um caso em que a inquietude está ligada à
situação pessoal de supostos militantes preocupados pela sua posição no âmbito do negócio
político. A pergunta, em todo o caso, deve estar referida a compreender como priorizar os
conflitos nos lugares em que cada um desenvolve a sua vida quotidiana, e a saber como
organizar frentes de acção adequadas com base nesses conflitos. Em todos os casos, deve
ficar claro que características devem ter as comissões laborais e estudantis de base, os centros
de comunicação directa e as redes de conselhos vicinais; o que se deve fazer para dar
participação a todas as organizações mínimas em que se expresse o trabalho, a cultura, o
desporto e a religiosidade popular. E aqui convém esclarecer que quando nos referimos ao meio
imediato das pessoas, formado por companheiros de trabalho, parentes e amigos, devemos
mencionar, em particular, os lugares em que se dão essas relações.
Os problemas de pormenor que todo o exposto apresenta são numerosos, mas o seu
tratamento neste escrito parece excessivo.
Silo.
15/12/93.
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