intelectuais
Julien Benda
PeixoVo'.Neto
"Atualmente, vejo cada paixão
política munida de toda uma rede de
doutrinas fortemente constituídas,
cuja única função é mostrar-lhe. de
todos os pontos de vista, o supremo
valor de sua ação. e nas quais ela se
projeta decuplicando naturalmente
sua força passional. Para avaliar
a que ponto de perfeição nosso
tempo levou esses sistemas, com
que aplicação, com que tenacidade
cada paixão soube edíficar. em
todas as direções, teorias capazes
de satisfazê-la, com que luxo de
pesquisas, de trabalho, com que
aprofundamento elas se lançaram
em todas as direções, basta citar o
sistema ideológico do nacionalismo
alemão dito pangermanismo e o do
monarquismo francês.”
“Esses sistemas, desde que
foram criados, consistem, para
cada paixão, em instituir que ela
é o agente do bem no mundo,
que seu inimigo é o gênio do mal.
Contudo, ela pretende hoje instituir
isso não mais apenas na ordem
política, mas também na ordem
moral, intelectual, estética: o anti-
semitismo, o pangermanismo, o
monarquismo francês e o socialismo
não são apenas manifestos políticos:
eles defendem um modo particular
de moralidade, de inteligência,
de sensibilidade, de literatura, de
filosofia, de concepção artística.
Acrescentemos que nosso tempo
introduziu na teorização das
paixões políticas duas novidades
que não deixam de intensificá-las
singularmente. A primeira é que
hoje cada uma pretende que seu
movimento esteja de acordo com
o “sentido da evolução”, com o
"desenvolvimento profundo da
história”; sabe-se que todas as
paixões atuais, sejam as de Marx. de
Maurras ou de II. S. Chamberlain,
descobriram uma "lei histórica"
A traição dos intelectuais
Julien Benda
Peixoto3Neto
La trahison des clercs
Julien Benda
© Editions Grasset & Fasquelle, 1927.
Tradução
Paulo Neves
Editor
João Baptista Peixoto Neto
Assistente editorial
Fabiana Lopes Bernardino
Projeto gráfico e diagramação
Pedro Penafiel (Curau Estúdio de Criação)
Preparação
Beatriz de Freitas Moreira
Revisão
João Baptista Peixoto Neto
9
10 • J u l i e n B e n d a
***
***
***
A. L.
Dezembro de 1974
Prefácio
Os intelectuais ainda traem?
29
30 • Julien Benda
seu estilo de idéias, Benda nem sempre sabe escrever, que ele me perdoe,
extremamente bem. “Escrevi pelo menos três páginas”, disse ele em
alguma parte, “— as que terminam meu Bergsonisme, minha Ordination
[Ordenação], minha Traição dos intelectuais — das quais ouso afirmar
que, por seu valor estilístico, merecem figurar nas antologias; posso asse
gurar que não figuram.” De fato, é de temer que por algum tempo ainda
não figurem, mas, enfim, quase trinta anos depois da edição original, eis
aqui a Traição novamente reimpressa. O leitor verá, estou certo, que
Benda não se enganou. De minha parte, confesso que gostaria de ter
escrito o longo parágrafo de encerramento da Traição e cujas últimas
duas frases não me parecem indignas daqueles profetas judeus pelos
quais, no fim da vida, Julien Benda sentiu uma exigente afinidade: “E
a partir de então, unificada em um imenso exército, em uma imensa
fábrica, não conhecendo mais senão heroísmos, disciplinas e inven
ções, desacreditando toda atividade livre e desinteressada, desistindo
de pôr o bem para além do mundo real e tendo por deus somente ela
mesma e suas vontades, a humanidade alcançará grandes realizações,
quero dizer, um domínio realmente grandioso sobre a matéria que
a cerca, uma consciência realmente satisfeita com seu poder e sua
grandeza. E a história sorrirá de pensar que Sócrates e Jesus Cristo
morreram por essa espécie.”
assa seu pão ou que costura suas roupas”. A coragem que Benda
demonstrou na Espanha durante a Guerra Civil prova fartamente
que para ele sua vida contava menos que a verdade. Outra réplica
maurrassiana: “Você fala de universal, de razão; ora, a razão mesma,
aquela que eu mesmo invoco, nos mostra que a verdade e a justiça são
balelas, e que a razão jamais governa os assuntos humanos, os quais
dependem antes do nariz de Cleopatra.1 A única política razoável
e racional é portanto a nossa: a reação, o nacionalismo integral”.
Ao que Benda responde: “Há necessidade de lembrar que a razão
é essencialmente revolucionária precisamente por ser universal,
enquanto a ordem social é sempre interesseira?”.
Como se não bastasse o fogo cruzado contra Benda, os filósofos
intrometeram-se, pelo menos os que roncavam profiindamente em seus
nichos. Incomodados, latiram contra o intruso. Desta vez em nome do
visceral, do particular, do concreto, desse concreto que merece de fato
nossa atenção e nosso amor, mas que só nos distingue do cão de guarda
na medida em que sabemos opô-lo ao abstrato. Os bergsonianos reagi
ram então aos golpes que ele havia desferido contra a sua tão prezada
intuição; e os existencialistas cristãos viram nisso uma boa ocasião para
manifestar discretamente seu anti-semitismo.
Cumpre reconhecer que, com um pouco de habilidade, era
possível opor a Benda várias razões. Do racionalismo metafísico,
que deduz de uma razão em si todo tipo de conseqüências, ainda
seria preciso distinguir com cuidado o racionalismo prudente e que
constantemente se confirma na experiência da qual nasce. É verda
de que Benda erige às vezes como absoluta uma forma de fideísmo
não mais razoável nem racional, mas apenas raciocinante, e que ele
marca a experiência com um desprezo realmente excessivo. Seus
inimigos são cuidadosos com as distinções! O que eles detestam,
o que eles abominam, o que eles execram, a meretriz que deve
ser desonrada antes de ser executada, é essa razão que se insurge
1. Que tinha o nariz mais feio do mundo.
38 • Ju lien Benda
professam que a França tem razão quando está errada. Quem não
conhece a frase sobre a qual se fundam explicitamente, ou à qual se
referem implicitamente, os que acusam Montesquieu de crime contra
o ofício intelectual? “Se soubesse de alguma coisa que me fosse útil e
que fosse prejudicial à minha família, eu a afastaria de meu espírito.
Se soubesse de algo que fosse útil à minha família e que não o fosse
à minha pátria, eu procuraria esquecêdo. Se soubesse de algo que
fosse útil à minha pátria e que fosse prejudicial à Europa, ou então
que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero humano, eu o veria
como um crime,’, pois “sou necessariamente homem”, ao passo que
“sou francês apenas casualmente”. Máxima tanto menos tolerável aos
nossos nacionalistas quanto o autor desse sacrilégio cometeu a outra
e mais grave inconveniência de tomar o partido dos escravos negros,
e isto no século mesmo, na cidade mesma onde cidadãos respeitáveis,
bons franceses, construíam belas mansões particulares, e particulares
no sentido de que vigamento, fundações, alvenaria, tudo, enfim, era
feito de madeira de ébano: de escravos negros.
Ora, contrariamente aos temores outrora formulados por Benda, e
a despeito da recente defecção de alguns que jamais se teria pensado
pudessem sacrificar a verdade à sua nação ou a justiça à sua classe,
surgem atualmente homens de diversas tendências para defender
os princípios que Eleutério considerava sem futuro. Certamente, a
grande maioria continua a uivar com os lobos: antes de degenerar
como jornalista colaborador de Aurore, o Jules Romains de Europe
certamente já havia se tornado o de France-Allemagne; stalinistas e
maurrassianos continuam a injuriar a verdade, a parodiar a justiça;
mas, sem citar aqueles cuja vocação nunca foi desmentida, como não
admirar que alguns soldados daqueles tempos e vários homens de Igreja
tenham reencontrado o tom do verdadeiro intelectual: Jean-Jacques
Servan-Schreiber e os padres de Soukh-Ahras, o arcebispo de Argel
e o general Bollardière? Como negar que, na imprensa de oposição,
vinte pessoas se expõem diariamente a ações judiciais por tentarem
dizer a verdade? Apesar de tudo o que uma sociologia simplista teria
A traição dos in te le c tu a is • 43
Étiemble
Prefácio de Julien Benda
à edição de 1946
d á vinte anos apareceu a obra que reedito hoje; a tese que eu ali
sustentava — a saber, que os homens cuja função é defender os valo
res eternos e desinteressados, como a justiça e a razão, e que chamo
de intelectuais [clercs], traíram essa função em proveito de interesses
práticos — me parece, como a muitas das pessoas que me pedem esta
reimpressão, nada ter perdido de sua verdade, muito pelo contrário.
Todavia, o objeto em proveito do qual os intelectuais consumavam
então sua traição era sobretudo a nação; na França, eminentemente,
com Barrès e Maurras. Atualmente, é por motivos bem diferentes que
eles agem assim, tendo inclusive na França — com a “colaboração”
— traído expressamente sua pátria. São os principais aspectos dessa
nova forma do fenômeno que eu gostaria de assinalar.
45
46 • Ju lien Benda
4. G r a n d e u r e t d éc a d e n c e des ro m a in s , VIII.
5. Esta última frase deve ser esclarecida por esta outra, do mesmo jurista, em seu
artigo “Fascismo” da E n ciclo p éd ia Italian a: no fascismo, lê-se, o cidadão conhece a
liberdade, mas somente “no e pelo Todo”. É mais ou menos como se dissessem ao
soldado que ele conhece a liberdade porque o exército do qual faz parte pode fazer
o que quer, enquanto ele não tem um gesto do qual seja o senhor.
48 • Ju lien Benda
que invocam tal Estado não cessam de clamar que o Estado está
ameaçado. E assim que, durante quarenta anos, a Action Française
bradou: “O inimigo está às nossas portas; a hora é de obediência,
não de reformas sociais”, e que o autocratismo alemão não parava
de brandir o “cerco” do Reich. Pela mesma razão, todos os militantes
da ordem foram hostis à Sociedade das Nações enquanto organismo
voltado à supressão da guerra. A motivação deles não era de modo
algum o gosto pela guerra — a perspectiva de ver seus filhos mortos
ou de centuplicar seus impostos não tinha para eles o menor atrativo
— ; era conservar sempre vivo aos olhos do povo o espectro da guerra,
de modo a mantê-lo na obediência. O pensamento deles poderia ser
formulado assim: “O povo não teme mais a Deus, é preciso que ele
tema a guerra. Se ele não temer mais nada, não se pode mais controlá-
lo e será o fim da ordem”.
De maneira mais geral, o espantalho dos homens da ordem é a
pretensão moderna do povo à felicidade, a esperança do desapa
recimento da guerra sendo apenas um aspecto dela. No que eles
encontram um forte apoio na instituição católica, na medida em
que esta, por razões teológicas, condena no homem a esperança de
ser feliz neste mundo. Todavia, é curioso ver que a Igreja acentua
vivamente essa condenação desde o advento da democracia (que
ela acusa, em particular, de ignorar o dogma do pecado original) .9
Citaríamos nesse sentido textos católicos dos quais dificilmente
haveria um equivalente antes dessa data. Não se poderia negar,
por exemplo, que a atitude de Joseph de Maistre, proclamando
que a guerra é desejada por Deus, e que portanto a busca da paz
é ímpia, jamais teria sido tomada por Bossuet ou Fénelon, mas
que está intimamente ligada ao aparecimento da democracia, isto
é, à pretensão dos povos de ser felizes; pretensão que, segundo
Maistre, os leva à insubordinação.10Napoleão dizia: “A miséria é
Um equívoco do antidemocrata.
Refutação de uma frase de Péguy
O pretexto do comunismo
13. Sobre esse ponto, ver in fra , à p. 211. Ver também a nota 2, à p. 102.
14- André Siegfried, R e v u e des D e u x M o n d e s , setembro de 1941.
A traição dos in te le c tu a is • 53
A religião da história
A democracia e a arte
25. Eles eram defendidos, em particular, por Jaurès. Existe aí um traço comum
a todas as doutrinas — democrática, monárquica, socialista, comunista —, na
medida em que se dirigem a multidões: pretender possuir todas as virtudes e de
modo nenhum admitir que, se possuem esta, não possuem aquela. Ainda procuro
uma que declare: “Aqui nossa tese tem um ponto fraco”. (Procuro-a também
na ordem filosófica, pelo menos na época moderna.) Garantem-me que uma tal
confissão afastaria toda uma clientela, a qual ignora a distinção das idéias e quer
todas as vantagens, mesmo as mais contraditórias. Trata-se portanto de uma
atitude puramente prática que o intelectual deve desprezar, ao menos o que se diz
pertencer ao espírito.
A traição dos in te le c tu a is • 59
31. Dr. Ley, citado por E. Morin, P a n zé ro d e V A llem a g ne, p. 64. A idéia de que o
sentimento de família é a célula do sentimento social teve como grande teórico
Paul Bourget. Encontrar-se-á uma refutação da tese em Ribot, P sychologie des
se n tim e n ts , segunda parte, cap. VIII.
32. Bonald, loc. cit. Sobre todos esses pontos, ver nosso estudo: “Du corporatisme”,
a propósito do livro D e m a in la F ran ce, de Robert Francis, Thierry Maulnier e Jean
Maxence. P récision, Gallimard, 1937, pp. 171 ss. E também nosso livro L a g ra n d e
é p reu ve des d é m o c ra tie s, Le Sagittaire, 1945, pp. 37 ss.
A traição dos in te le c tu a is • 63
O intelectual e o pacifismo
Falei da tese pregada pelos anti-sancionistas na questão da
Etiópia (por eles retomada por ocasião da Conferência de M uni
que), que consistia em atacar os partidários de uma ação contra
a nação agressiva porque essa atitude implicava a aceitação da
idéia da guerra. Essa tese não foi adotada apenas pelos homens
36. Mateus X, 34; Lucas XII, 10. Citemos esta frase de um grande cristão: “É
preciso sempre praticar a justiça antes de exercer a caridade” (Malebranche,
M o r a le , II, 7).
37. L A u b e . Um dos redatores atuais desse jornal, Maurice Schumann, desde o
retorno à sua pátria, deixa nitidamente passar, no que se refere ao castigo dos
culpados, a caridade à frente da justiça, apesar da devoção a este último valor
mostrada em seus discursos em Londres durante quatro anos. O coração tem
razões que a razão desconhece. O coração e também as considerações políticas.
66 • Ju lien Benda
38. Outros cristãos parecem acreditar que seu dever supremo é salvar a
comunidade francesa, mesmo ao preço de concessões ao comunismo, do qual
não ignoram o ateísmo fundamental (cf. Jacques Maritain, L es ch rétiens d an s la
c ite ). Pensamos que o dever do cristão é honrar os valores eternos próprios do
cristianismo; de modo nenhum salvar esse bem puramente prático e contingente
que se chama sua nação.
39. As vezes ela apresenta alguns, mas miseráveis. Por exemplo (Alain): “A guerra
não resolve nada”. Como se ela não tivesse impedido duas vezes a França de ser
escrava da Alemanha. Negligencio os amantes de jogos de palavras que replicarão
que ela o é agora dos anglo-saxões.
Um impressionante exemplo de argumentos infantis em favor da paz a qualquer
preço é dado por André Gide (Journal , pp. 1321 ss.). Encontrar-se-á um
exame desse ponto em nossa F rance b y za n tin e , p. 270. Ver também (p. 253) o
sentimentalismo de P Valéry sobre o mesmo tema.
A traição dos in te le c tu a is • 67
Mas esses intelectuais fazem mais: eles querem que essa união
mística com o devir histórico seja ao mesmo tempo uma idéia desse
devir. “Aquele”, exclama um deles, “que não insere sua idéia política
no devir histórico, ou melhor; que não a extrai, por uma análise racio-
nal, deste último, está fora tanto da política quanto da história”,44
mostrando por seu “ou melhor” que ele considera homogêneos o
fato de comungar com o devir histórico e o fato de emitir — por
uma análise racional! — uma idéia sobre ele. Lembraremos a esse
professor de filosofia a frase de Spinoza: “O círculo é uma coisa,
a idéia do círculo é outra, que não tem centro nem periferia”, e
lhe diremos: “O devir histórico é uma coisa, a idéia desse devir é
outra, que não é um devir”, ou ainda: “O dinamismo é uma coisa,
a idéia de um dinamismo é outra, que, sendo algo formulável,
comunicável, isto é, idêntico a si mesmo enquanto o exprimimos,
é, ao contrário, uma coisa estática”. No mesmo sentido, um dos
condiscípulos proclama: “Já que este mundo é dilacerado por
contradições, somente a dialética (que admite a contradição)
permite considerá-lo em seu conjunto e encontrar-lhe o sentido e
a direção”.45 Em outras palavras, já que o mundo é contradição, a
idéia do mundo deve ser contradição; a idéia de uma coisa deve
ser da mesma natureza que essa coisa; a idéia do azul deve ser azul.
Também aí diremos ao nosso lógico: “A contradição é uma coisa,
a idéia de uma contradição é outra, que não é uma contradição”.
Mas notemos, em homens ditos de pensamento, essa inacreditável
confusão entre uma coisa e outra, a qual, se é involuntária, prova
44. Jean Lacroix, E s p rit , março de 1946, p. 354. Esses doutores protestarão que
a inserção no devir comporta perfeitamente um elemento intelectual; o devir
econômico, dirão, tende a uma finalidade, assim como o devir da lagarta que
se transforma em borboleta. Essa é uma inteligência inteiramente instintiva,
puramente prática — uma produtividade cega como a da duração bergsoniana —,
que nada tem a ver com uma id éia sobre esse devir, o que nosso autor chama, ele
próprio, o produto de uma análise racional.
45. Henri Lefèvre, loc. cit. '
70 • Ju lien Benda
46. E mais. Quantos homens emitiram idéias profundas sobre um estado de alma
sem que de modo algum tenham começado por vivê-lo ! Os tratados sobre a loucura
não são escritos por loucos.
A traição dos in te le c tu a is • 71
mobilidade” que ignora toda fixidez; ou, ainda, para usar um de seus
lemas, como puro “dinamismo”, a salvo de todo “estatismo”. Essa é
também uma retomada, embora muitos devam negá-lo, da tese berg-
soniana, que prega a compreensão do movimento em si, por oposição
a uma sucessão de pontos fixos, por mais próximos que sejam, o que
é completamente diferente. Ora, essa atitude pronuncia a abjuração
expressa da razão, já que o próprio da razão é imobilizar as coisas das
quais se ocupa, pelo menos enquanto delas se ocupa, pois o puro
devir, excluindo por essência toda identidade a si mesmo, só pode
ser objeto de uma adesão mística, não de uma atividade racional.49
De resto, nossos “dialéticos”, na medida em que dizem algo, falam
claramente de elementos fixos; falam do sistema patriarcal, do
sistema feudal, do sistema capitalista, do sistema comunista, como
semelhantes a si mesmos, pelo menos enquanto falam deles. Mas o
importante aqui não é a aplicação mais ou menos fiel da doutrina, é
a própria doutrina, a qual, pregando como modo de conhecimento
uma atitude inteiramente afetiva, constitui, da parte de homens
ditos do espírito, uma perfeita traição.
O materialismo dialético, querendo-se no devir enquanto nega
ção de toda realidade idêntica a si mesma, por mais breve que o seja,
quer-se essencialmente na contradição e, desse modo, não importa o
que digam, essencialmente no anti-racional. A tese é formulada com
toda a clareza por esta declaração de Plekhanov, espécie de carta de
princípio do dogma:
m arx ism o [trad, francesa, p. 100], citado com fervor pelo filósofo Abel
Rey, L e m a téria lism e d ia lectiq u e, E n cy clo p éd ie F ra n ça ise , 1.1.)
50. Dirão que há momentos na história em que A, longe de ser distinto de B, funde-
se em B; o sistema patriarcal no feudal, o feudal no capitalista... Responderemos que
a razão — a linguagem — ainda assim considera A e B como comportando cada qual
uma identidade a si, sendo possível falar da compenetração dessas duas identidades,
a qual se toma ela própria uma identidade. Nada disso tem a ver com o fato de
declarar que A é ao mesmo tempo A e não A, com o que qualquer pensamento, ao
menos comunicável, é impossível.
74 • Ju lien Benda
55. G. Bachelard, L e n o u v e l esp rit sc ien tifiq u e, pp. 147, 148 e 164.
76 • Ju lien Benda
62. Ver outras declarações da mesma ordem nesse autor, em nossa F ran ce b y z a n tin e ,
P- 37.
63. E exatamente a de Bergson, com sua vontade de que o conhecimento seja
“incessante mobilidade” — e também a do surrealismo (“O espírito se m a ra z ã o ”).
78 • Ju lien Benda
sonha a matéria” e que está “para além do devaneio das formas”, o de-
vaneio das formas sendo algo ainda muito estático, demasiadamente
intelectual; ele quer ver (pp. 9-10) a origem de um conhecimento
objetivo das coisas no estado do espírito ocupado principalmente em
ligar “desejos e sonhos”, procura “tomar-se” racionalista partindo de
um conhecimento “por imagens” tal como o encontra nesses litera
tos. Confessamos não compreender de que maneira o conhecimento
da água à maneira de Claudel ou de Paul Éluard, para tomar seus
exemplos preferidos, levará ao conhecimento que consiste em pensar
que essa substância é feita de oxigênio e de hidrogênio. Repetiremos
aqui a constatação de Delacroix: “A inteligência é um fato primeiro.
As diversas tentativas de dedução da inteligência fracassaram todas”.64
De resto, encontramos aí um fenômeno muito difundido hoje entre
filósofos e mesmo cientistas: contar com afirmações de literatos em
voga, puramente brilhantes e gratuitas como é próprio destes, mas
sobre as quais nos perguntamos o que vêm fazer em especulações
que se pretendem sérias. Eis o efeito de um esnobismo literário, cuja
adoção por homens ditos de pensamento não representa precisa
mente uma fidelidade à sua lei.65
Nossos dinamistas, para desqualificar o pensamento idêntico a
si mesmo por pouco tempo que seja, e portanto racional, afirmam
que ele é incapaz de apreender as coisas em sua complexidade,
em sua infinidade, em sua totalidade. E o que eles exprimem ao
declarar (Bachelard) que, se atacam o racionalismo “estreito”, é
para “abrir” o racionalismo. Um tal pensamento — é necessário
64. Citado por A. Burloud, E ssai d u n e p sych ologie des te n d a n c e s , p. 413, que
combate a asserção por argumentos que nos parecem pouco convincentes, ainda
que ele afirme (p. 306) que “o pensamento reflexivo é, sob certos aspectos, um fato
primeiro”.
65. Há aí uma novidade que valeria um estudo. No século XVII, Madame de La
Fayette pedia um prefácio para seu romance Za id e a Huet, bispo de Avranches,
homem de ciência; atualmente, é o homem de ciência que pediria um prefácio ao
homem de letras, como se viu com o livro de L. de Broglie prefaciado por Valéry.
A traição dos in te le c tu a is • 79
72. L a p en sé e e t le m o u v a n t , p. 35.
73. Sessão da Sociedade de Filosofia de 31 de maio de 1923.
82 • Ju lien Benda
79. Um conceito “no ar”, dizem de bom grado nossos “realistas”. Como se todo
ideal, enquanto se quer independente das circunstâncias e não determinado por
elas, não estivesse “no ar”.
A traição dos in te le c tu a is • 85
81. Exemplo típico: a NEP [Nova Política Econômica, lançada por Lenin em 1921].
82. Sir Samuel Hoare.
A traição dos in te le c tu a is • 87
84. Não preciso dizer que querer para nossas manifestações intelectuais uma
origem que não seja nossa condição econômica não implica de modo algum a
crença na imaterialidade do espírito.
A traição dos in te le c tu a is • 89
85. Uma prova entre cem: se é nossa condição econômica que, de acordo com
Marx, determina nossas concepções metafísicas, como se explica que dois homens
submetidos ao mesmo regime econômico, por exemplo Malebranche e Spinoza,
tenham metafísicas diametralmente opostas, uma antropomórfica, a outra
panteísta?
86. Ver a nota 5, à p. 104.
87. Evidentemente não é essa a maneira como nossos realistas entendem a
democracia. “Os trabalhadores soviéticos não amam a democracia como aqueles
que não sabem defendê-la e a consideram uma forma das belas-artes; eles a amam
como um meio de combate. Na URSS, a noção democrática implica a conquista e
não a recusa, a democracia é concebida em vista da luta e não da tranqüilidade”
(Vichinski, citado por C o m b a t , 16 de maio de 1946).
90 • Julien Benda
88. Insisto em precisar que não ataco o intelectual que adere ao movimento
comunista se considero esse movimento em sua finalidade, que é a emancipação
do trabalhador; essa finalidade é um estado de justiça e o intelectual está
plenamente em seu papel ao desejá-lo. Ataco-o porque ele glorifica os meios que
o movimento emprega para atingir esse fim; meios de violência, que não podem
ser senão de violência, mas que o intelectual deve aceitar com tristeza e não com
entusiasmo, quando não é com religião que os aceita. Ataco-o ainda mais na
medida em que fireqüentemente ele exalta esses meios, não em razão de seu fim,
mas neles mesmos, por exemplo, a supressão da liberdade, o desprezo à verdade;
nisso ele adota um sistema de valores idêntico ao do antiintelectual.
De maneira geral, considero traidores de sua função de intelectual todos os
cientistas que se colocam, enquanto cientistas, a serviço de um partido político
(Georges Claude, Alexis Carrel, para citar apenas os de uma facção) e afirmam às
multidões que suas paixões partidárias são justificadas pela ciência, quando eles
sabem perfeitamente que elas só o são na condição de ultrajosamente simplificá-la,
quando não a desrespeitam claramente. Não digo nada das aclamações frenéticas
que eles seguramente obtêm dessas multidões (nas quais incluo os salões mais
elegantes) ao falar-lhes em tal linguagem. Há glórias que desonram à força de
serem fáceis.
89. Exemplo: “Já que o escritor não tem meio algum de se evadir, queremos que
ele abrace estreitamente sua época, ela é sua única chance; ela foi feita para ele
e ele para ela. Lamentamos a indiferença de Balzac diante das jornadas de 48,
a incompreensão amedrontada de Flaubert diante da Comuna; lamentamo-o
p o r eles; há algo aí que eles deixaram escapar para sempre. Não queremos deixar
escapar nada de nosso tempo: talvez haja tempos mais belos, mas esse é o nosso;
temos somente esta v id a para viver, em meio a e s ta guerra, talvez a esta revolução”
(J.-E Sartre, citado com admiração por Thierry-Maulnier, L A rc h e , dezembro de
1945). Notar-se-á aí um sistema comum a todas essas doutrinas peremptórias:
começar por estabelecer como uma verdade evidente uma afirmação puramente
gratuita: “Já que o escritor não tem meio algum de se evadir...” (procedimento
constante em Alain).
A traição dos in te le c tu a is • 91
92. Essa posição foi particularmente defendida por Jean Guéhenno, em artigos
do L e Figaro (1945'1946). Outros, especialmente em L es N o u v e lle s L itté ra ire s ,
proscreveram o estudo dos humanistas pelo que eles têm de desinteressado, de
puramente especulativo. O teórico do materialismo dialético, H. Lefèvre, saúda
(lo c . c it.) a W e lta n sch a u u n g verdadeiramente “moderna”, porque ela anuncia
a “decadência da especulação”, que ele chama “a decadência do pensamento
burguês”. Contudo, como o pensamento especulativo conserva prestígio, a
doutrina pretende não abandoná-lo. “A necessidade de buscar soluções concretas
aos problemas do momento”, declara Georges Cogniot (L a P en sée , n. 4), “significa
que renunciamos à especulação? De modo nenhum: ao insistirmos no concreto
e no prático, lembramos com força que o intelectual deveria sempre pensar —
pensar o racionalismo moderno, o materialismo dialético, a filosofia progressiva e
verdadeira, pensá-lo e instalá-lo ‘no centro de sua vida’.” Percebe-se que o que o
autor chama pensar é um pensamento puramente prático — patético —, que nada
tem a ver com o que todos chamam um pensamento especulativo. Observe-se o
tom emotivo, profético — lírico — de todas essas declarações.
A traição dos in te le c tu a is • 93
Maio de 1946
Notas do prefácio de Julien
Benda à edição de 1946
N ota 1 (p. 46)
101
102 • Ju lien Benda
Do Estado “totalitário”
105
106 • Ju lien Benda
2. Cf. Lévy-Brühl, Les fo n c tio n s m e n ta les d a n s les so ciétés in férieu res , p. 79.
3. Do mesmo modo, acredito ver a idéia de uma beleza abstrata (aliás, a ser
esclarecida) inscrita no espírito do homem, a julgar pela pontualidade com que ele
acaba sempre, uma vez passado o acesso da moda, por afastar-se das obras que a
achincalham abertamente; por exemplo, da literatura decididamente incoerente,
que atualmente se chama surrealismo e cujo caráter apareceu em todas as épocas.
A traição dos in te le c tu a is • 107
11. Esses cientistas confundem a ciência e a utilização que os homens fazem dela,
utilização pela qual a ciência não é de modo algum responsável. Visto assim, eles
deveriam lamentar a descoberta do álcool ou da morfina, dado o uso que alguns
humanos fazem deles.
A traição dos in te le c tu a is • 111
Corolários:
12. A verdadeira lei do pensamento foi formulada por Renan, que declara
em alguma parte que ele deve se exprimir sem n e n h u m a p re o c u p a ç ã o c o m su as
co n seqü ên cias.
14. Devo responder aos que há vinte anos me opõem que o intelectual, por estar
na vida, sempre será sensível a interesses práticos? Como se a questão não fosse
saber se ele h on ra essa sensibilidade. É evidente que, sendo o seu ofício um ideal, o
intelectual perfeito não existe. Os adversários do intelectual são definidos não por
não conseguirem realizar esse ideal, mas por zombarem dele.
15. Platão, L oques; Spinoza, É tic a , IV, 9.
16. D e n a tu ra re ru m , III, 1065.
A traição dos in te le c tu a is * 1 1 3
1. Escrito em uma época em que a caridade e o amor não eram mobilizados para
impedir a justiça.
115
1 1 6 * Julien Benda
119
120 • Ju lien B enda
há quase uma alma na Europa que não seja afetada, ou não julgue
sê-lo, por uma paixão de raça ou de classe ou de nação, e na maior
parte das vezes pelas três. O mesmo progresso parece constatar-se
no Novo Mundo, ao mesmo tempo em que, no extremo Oriente,
imensas quantidades de homens, que pareciam isentas desses
movimentos, despertam para os ódios sociais, para o regime dos
partidos, para o espírito nacional enquanto vontade de humilhar
outros homens. As paixões políticas atingem hoje uma universalU
dade que elas nunca conheceram.
Atingem também coerência. Vê-se claramente que, graças ao
progresso da comunicação entre os homens e, mais ainda, do
espírito de grupo, os adeptos de um mesmo ódio político — que
ainda há um século se queriam mal uns aos outros e se odiavam, se
ouso dizer, em ordem dispersa — formam hoje uma massa passio
nal compacta, da qual cada elemento sente-se ligado à infinidade
dos outros. Isso é especialmente impressionante para a classe
operária, que, ainda em meados do século XIX, não tinha contra
a classe adversa senão uma hostilidade esparsa, movimentos de
guerra disseminados (por exemplo, praticar a greve apenas em
uma cidade, em uma corporação), e que hoje forma, de uma ponta
à outra da Europa, um tecido de ódio bastante cerrado. Pode-se
afirmar que essas coerências só irão se acentuar, a vontade de
grupo sendo uma das características mais profundas do mundo
moderno, que se torna cada vez mais, e até nos domínios em que
isso menos se esperava (por exemplo, o domínio do pensamento),
o domínio das ligas, das “uniões”, dos “feixes”.** Há necessidade
de dizer que a paixão do indivíduo intensifica-se ao sentir-se
assim muito próxima de milhares de paixões semelhantes a ela?
Acrescentemos que o indivíduo confere uma personalidade místi
ca ao conjunto do qual se sente membro, vota-lhe uma adoração
2. Isso é ainda mais verdadeiro hoje com a ação dos partidos que substituem, na
vida política, a ação dos indivíduos. ( N o ta d a e d içã o d e 1 9 4 6 .)
122 • Ju lien Benda
5. A novidade é principalmente que se admita hoje que tudo seja político, que se
proclame e se glorifique isso. Ainda assim, é evidente que os homens, negociantes
ou poetas, não esperaram a época presente para tentar se desembaraçar de um
rival desqualificando-o politicamente. Lembremos por quais meios os concorrentes
de La Fontaine impediram-no durante dez anos de entrar para a Academia.
6. Essas mudanças só ocorreram, segundo a profunda observação de Tocqueville,
no dia em que um começo de melhora de sua condição levou o homem do povo a
querer mais, isto é, por volta do final do século XVIII.
A traição dos in te le c tu a is • 125
7. Falo aqui dos judeus do Ocidente e da classe burguesa; o proletariado judeu não
esperou nossa época para mergulhar no sentimento da particularidade de sua raça.
Todavia, ele o faz sem provocação.
126 • Ju lien Benda
11. Esclareçamos bem qual é aqui a novidade. O cidadão, no século XVII, já tinha
a noção da honra nacional; as cartas de Racine seriam suficientes para prová-lo
(ver uma página significativa nas Mém oires de Pontis, livro XIV); mas ele confiava
ao rei o cuidado de julgar o que essa honra exigia; uma indignação como a de
Vauban contra a paz de Ryswick, “que desonra o rei e toda a nação”, é uma atitude
excepcional no Antigo Regime. Já o cidadão moderno pretende sentir ele próprio o
que a honra de sua nação exige, e está pronto a insurgir-se contra seu chefe se este
sente de um modo diferente dele. Aliás, essa novidade não é particular às nações
de regime democrático; em 1911, os cidadãos da monárquica Alemanha, julgando
insuficientes as concessões feitas pela França a seu país em troca da abstenção
no Marrocos, insurgiram-se violentamente contra o soberano que aceitava essas
condições e, segundo eles, desprezava a honra alemã. Pode-se dizer que o mesmo
aconteceria na França se ela voltasse a ser monárquica e seu rei sentisse os
interesses da honra nacional de maneira diferente dos súditos. Foi aliás o que se
viu durante todo o reinado de Luís Filipe.
128 • Ju lien Benda
14. Não preciso lembrar que guerras deflagradas pela paixão pública e contra a
vontade dos governantes também ocorrem sob monarquias; e não apenas sob
monarquias constitucionais, como a guerra da França contra a Espanha em 1823
ou contra a Turquia em 1826, mas sob monarquias absolutas: por exemplo, a
guerra da sucessão da Áustria, imposta a Fleury por um movimento de opinião
pública; sob Luís XVI, a guerra a favor da independência norte-americana;
em 1806, a guerra da Prússia contra Napoleão; em 1813, a da Saxônia. Parece
também que em 1914 a guerra foi imposta a soberanos absolutos como Nicolau II
e Guilherme II por paixões populares que eles alimentavam havia anos e que não
puderam mais reter.
15. “Mas bem mais importante que os fatos materiais é a alma das nações. Entre
todos os povos, uma espécie de efervescência se faz sentir; uns defendem certos
princípios, outros, princípios opostos. Ao fazerem parte da Sociedade das Nações,
os povos não abandonam sua m o ra lid a d e n a c io n a l ” (Discurso do ministro dos
Assuntos Estrangeiros alemão em Genebra, por ocasião do ingresso da Alemanha
na Sociedade das Nações, em 10 de setembro de 1926.) O orador prossegue: “Isto
130 • Ju lien Benda
porém não deve ter por conseqüência levantar os povos uns contra os outros”.
Ficamos surpresos de que não tenha acrescentado: “Pelo contrário”. Bem mais
orgulhosa, e ao mesmo tempo mais respeitosa da verdade, é a linguagem de
Treitschke: “A consciência de si mesmas que tomam as nações e que a cultura
pode apenas fortalecer, essa consciência faz que a guerra nunca possa desaparecer
da terra, apesar do maior encadeamento dos interesses, apesar da aproximação dos
costumes e das formas exteriores da vida” (Citado por Ch. Andler, L es origines du
p a n g e rm a n ism e , p. 223).
16. E o que Mirabeau parece ter previsto quando anunciava à Constituinte que as
guerras dos “povos livres” fariam lembrar com saudade as dos reis.
17. A religião da “alma nacional” é evidentemente, e logicamente, uma emanação
da alma popular. Aliás, ela foi cantada por uma literatura eminentemente
democrática: o romantismo. Cumpre notar que os piores adversários do
romantismo e da democracia a adotaram, como vemos constantemente na
A c tio n F ran çaise , a tal ponto é impossível hoje ser patriota sem cortejar as paixões
democráticas.
A traição dos in te le c tu a is • 131
23. Por exemplo, em maio de 1914, a mensagem das “seis grandes associações
industriais e agrícolas da Alemanha” ao sr. Bethmann^Hollweg. Pouco diferente,
aliás, da que redigiam já em 1815 os donos de metalúrgicas prussianas para indicar
a seu governo as anexações que devia fazer em benefício da indústria deles (cf.
Vidal de La Blache, L a F rance de V E st , cap. XIX). De resto, alguns proclamam
abertamente o caráter econômico de seu nacionalismo. “Não esqueçamos”, diz
um pangermanista ilustre, “que o Império alemão, tido no estrangeiro como um
Estado puramente militar, é, por sua origem (Zo llv e re in ), sobretudo econômico.”
E mais: “Para nós a guerra é apenas a continuação de nossa atividade econômica
em tempos de paz, com outros meios, mas pelos mesmos métodos” (Naumann,
L E u ro p e C e n tr a le , pp. 112 e 247; ver o livro todo). A Alemanha parecer ser a
137
138 • Ju lien Benda
1. Essa explicação, exata vinte anos atrás, não o é mais hoje, quando o comunismo,
por sua simples vontade de satisfazer um interesse e de tomar o poder, parece
constituir, ao menos na França, uma paixão política tão poderosa quanto a paixão
nacional, admitindo que esta ainda exista entre nós no estado de paixão. A paixão
capaz de opor^se ao comunismo é a paixão burguesa, ela também movida pelo
interesse, e tão diferente da paixão nacional que está sempre pronta a aceitar a
dominação do estrangeiro para salvaguardar esse interesse. ( N o ta d a ed içã o de
1 9 4 6 .)
A traição dos in te le c tu a is • 139
como um espião que faz entrar um inimigo por uma porta secreta”. Palavras que
todo adepto do “nacionalismo in te g r a r é obrigado a aprovar. Aliás, foi mais ou
menos o que ouvimos na França entre alguns adversários do romantismo.
9. “A disciplina de alto a baixo deve ser essencial e de tipo religioso” (Mussolini,
25 de outubro de 1925). Linguagem inteiramente nova na boca de um homem de
Estado, mesmo o mais realista; pode-se afirmar que nem Richelieu nem Bismarck
teriam aplicado a palavra religiosa a uma atividade cujo objeto é exclusivamente
temporal.
in
Os intelectuais.
A traição dos intelectuais
m e sm o n o espírito
143
144 • Ju lien Benda
2. Especialmente por Renan e seu “imoralismo especulativo” (H. Massis, Ju gem en ts,
I ).
3. Sobre esse prestígio, e o que ele próprio tem de novo na história, ver a nota E, à
p. 260.
A traição dos in te le c tu a is • 147
aquele que não o é, desde o instante em que esse leitor fosse obrigado a
convir que, no conjunto, cada um desses grupos apresenta claramente
o caráter que lhe atribuo. Afinal, se falo de um intelectual isolado,
considero sua obra em seu caráter principal, o de seus ensinamentos,
que domina os demais, mesmo se estes às vezes desmentem essa
dominância. Vale dizer que não penso dever deixar de considerar
Malebranche um mestre do liberalismo porque algumas linhas de
sua Moral parecem uma justificação da escravidão, ou Nietzsche um
moralista da guerra porque o final do Zaratustra constitui um mani
festo de fraternidade que renovaria o Evangelho. Penso tanto menos
dever fazê-lo na medida em que Malebranche como escravagista ou
Nietzsche como humanitário não exerceram nenhuma ação, o meu
tema sendo a ação que os intelectuais exerceram no mundo e não o
que eles foram em si mesmos.
6. Não sei por que doçura a terra natal seduz cada um de nós.
7. Encontram-se tais atitudes mesmo entre os antigos: por exemplo, Cícero
condenando seus concidadãos por terem destruído Corinto para vingar uma injúria
feita a seu embaixador (D e off., I, xi).
150 • Ju lien Benda
12. Que se pense na facilidade com que aceitam hoje o serviço militar. Ver a nota
F, à p. 262.
13. Conhecemos as razões dadas por um católico alemão a essa atitude de seus
correligionários: “1) seu conhecimento incompleto dos fatos e das opiniões nos
países beligerantes e neutros; 2) se u p a trio tism o , q u e n ã o d e v e se a fa sta r d a u n ião q u e
liga o p o v o alem ã o ; 3) o temor de uma segunda K u ltu rk a m p f , que seria duplamente
perigosa se os católicos alemães demonstrassem estar de acordo com a campanha
feita na França contra a maneira de fazer a guerra na Alemanha” (Carta publicada
por L e F igaro em 17 de outubro de 1915). Observe-se a segunda razão: a vontade
de solidarizar-se com a nação, seja q u a l fo r a m o ra lid a d e d e su a ca u sa . Eis aí uma
razão que Bossuet não invocava quando encobria as violências de Luís XIV.
Lembremos que, em 1914, tendo o chanceler Bethmann-Hollweg esboçado na tribuna
do Reischtag uma aparência de desculpa pela violação da neutralidade belga, o
ministro cristão Von Flamack o repreendeu duramente p o r te r q u erid o d e sc u lp a r o qu e
n ã o tinha n ecessid a d e d e d escu lp a (cf. A. Loisy, G u e r re e t religion, p. 14).
152 • Ju lien Benda
14. Os cleros das nações aliadas acusam com facilidade o clero alemão por sua
solidarização com a injustiça, em 1914; eles abusam da boa fortuna de pertencer
a nações cuja causa era justa. Quando em 1923, a propósito da ilha de Corfo, a
Itália tomou em relação à Grécia uma atitude tão injusta quanto a da Áustria em
1914 em relação à Sérvia, não me parece que o clero italiano tenha se indignado.
Também não lembro que em 1900, por ocasião da intervenção de um exército
europeu na China (questão dos Boxers) e dos excessos praticados por seus
soldados, os cleros de suas respectivas nações tenham emitido vivos protestos.
15. Uma atitude particularmente notável foi a do filósofo Boutroux. Encontrar'
se'á uma bela estigmatização dessa atitude no livro de Ch. Andler, L es origines d u
p a n germ an ism e, p. viii.
A traição dos in te le c tu a is • 153
16. O que é ainda mais verdadeiro hoje. Com nossos poetas (surrealistas) cujos
mestres propalados são Novalis e Hõlderlin, com nossos filósofos (existencialistas)
que invocam Husserl e Heidegger, com o nietzschianismo cujo triunfo é
propriamente mundial. ( N o ta d a e d içã o d e 19 4 6 .)
154 • Ju lien Benda
são mortais; todas as coisas, seja por natureza ou por acidente, têm um
dia seu fim. Por isso um cidadão que assiste ao fim de sua pátria não
pode se afligir com o infortúnio desta com tanta razão quando se afligiu
com sua própria ruína; a pátria sofreu seu destino que de toda maneira
haveria de sofrer; a desgraça é completa para aquele cujo triste quinhão
foi nascer no tempo em que devia ocorrer tal desastre”. Perguntamo-nos
se há um único pensador moderno, afeiçoado à sua pátria como o era o
autor dessa passagem, que ousaria formar a respeito dela, e menos ainda
formular, um julgamento tão extraordinariamente livre em sua tristeza.
De resto, deparamos aqui com uma das grandes impiedades dos modernos:
a recusa de crer que acima de suas nações existe um processo de ordem
superior, pelo qual elas serão destruídas como todas as coisas. Os antigos,
tão propriamente adoradores de sua cidade, rebaixavam-na porém diante
do destino. A cidade antiga colocava-se sob a proteção divina, mas de
modo nenhum acreditava que ela própria fosse divina e necessariamen
te eterna. Toda a literatura dos antigos mostra quanto, segundo eles, a
duração de seus estabelecimentos era precária, unicamente devida ao
favor dos deuses, que sempre podem revogá-lo;17 aqui é Tucídides que
admite a imagem de um mundo onde Atenas não mais existiria; ali é
Políbio que nos mostra o vencedor de Cartago meditando diante do
incêndio dessa cidade:
é Virgílio glorificando o homem dos campos, para quem são sem valor
17. Isso se percebe particularmente no coro dos S ete c o n tra T eb a s: “Deuses desta
cidade, impedi que ela seja destruída com nossas casas e nossos lares... O vós que
há muito habitais nossa terra, ireis traí-la?...”. Percebe-se também na E n e id a , seis
séculos depois, a conservação da cidade troiana através dos mares aparecendo
claramente como devida à proteção de Juno, e não a um elemento do sangue
troiano que asseguraria sua eternidade.
18. As questões públicas de Roma e os reinos destinados a perecer.
156 • Ju lien Benda
20. Esse teria sido, segundo Nietzsche, o caso de Wagner, o qual, ao apresentar-se
a seus compatriotas como o messias da arte alemã, teria percebido que havia ali
“um bom lugar a ocupar”, embora toda a sua formação artística, bem como sua
filosofia profunda, fosse essencialmente universalista. (Cf. E c ce h o m o , p. 58: “O que
jamais perdoei a Wagner é ele ter condescendido à Alemanha”.) Perguntamo-nos
se não se poderia dizer o mesmo, na França, de um apóstolo do “gênio loreno” ou
provençal.
21. A nacionalização do espírito produz às vezes resultados curiosos. Em 1904,
nas festas do centenário de Petrarca, não foram convidadas as nações de Goethe
nem de Shakespeare, por não serem latinas; mas convidaram-se os romenos. Não
sabemos se o Uruguai também foi convidado.
158 • Ju lien Benda
22. Anatole France, L a vie littéra ire , t. II, p. 274. — As vontades que assinalo aqui
entre os escritores franceses tiveram outros efeitos além dos políticos. Nunca será o
bastante dizer quantos deles, nos últimos cinqüenta anos, deformaram seu talento,
ignoraram seus verdadeiros dons por causa de sua preocupação de sentir “segundo
o modo francês”. Um bom exemplo é V oyage d e S p a rte [Barrès, 1906], que tantas
páginas mostram que teria sido uma bela obra se o autor não estivesse, sob o céu
grego, coagido a sentir segundo a alma lorena. Tocamos aqui um dos pontos mais
curiosos dos escritores da atualidade: a proscrição da liberdade de espírito p a r a
si m e s m o s , a sede de uma “disciplina” (toda a fortuna de Maurras e Maritain vem
24. Comparar com Balzac, cujo conservadorismo não hesita em mostrar seus
conservadores, sobretudo cristãos, sob uma luz pouco lisonjeira, se a julga
conforme à verdade. Ver exemplos em E. Seillère (B a lza c e t la m o ra le ro m a n tiq u e ,
pp. 27 ss. e 44 ss.), que o reprova vivamente por isso.
25. R é ssu rection , J e a m C h r isto p h e (nisto renovados, aliás, pelos procedimentos
de George Sand). Em contrapartida, considero muito justo o tratamento aos
burgueses no romance, não obstante tendencioso, L es m iséra b les [Hugo].
26. Por exemplo, antes da guerra, os romances franceses que mostravam franceses
estabelecidos na Alsácia^Lorena (C o le tte B a u d o c h e ). Estejamos certos de que,
depois de 1918, os alemães fazem o romance simétrico.
27. Ver a nota G, à p. 265.
A traição dos in te le c tu a is • 163
real contra esse ideal, pelo menos para os que aceitam considerar
Victor Hugo e Michelet meros escrevinhadores.33
Mas o mais notável no intelectual moderno, nessa vontade
de fazer a paixão política passar à sua obra, é o que se fez com a
filosofia, em particular a metafísica. Pode-se dizer que até o século
XIX a metafísica permaneceu a cidadela inviolada da especulação
desinteressada; podia-se lhe fazer, entre todas as formas do trabalho
do espírito, esta admirável homenagem que um matemático prestava
à teoria dos números entre os ramos da matemática, quando dizia:
“Este é o ramo verdadeiramente puro de nossa ciência, isto é, não
maculado pelo contato com as aplicações”. E, de fato, não apenas
pensadores afastados de toda preferência terrestre, como um Plotino,
um Tomás de Aquino, um Descartes ou um Kant, mas pensadores
fortemente imbuídos da superioridade de sua classe ou de sua nação,
como um Platão ou um Aristóteles, nunca pensaram em orientar
suas considerações transcendentes para uma demonstração dessa
superioridade e da necessidade de o universo aceitá-la. A moral
dos filósofos gregos, já foi dito, é de cunho nacional; a metafísica
deles é universal. A própria Igreja, tão freqüentemente favorável
aos interesses de classe ou de nação em sua moral, conhece apenas
Deus e o homem em sua metafísica. Estava reservado à nossa época
ver metafísicas, e da mais alta linhagem, dirigirem suas especulações
para a exaltação de sua pátria e o rebaixamento das outras, forta
lecendo assim, com toda a força do gênio abstrato, a vontade de
dominação de seus compatriotas. Sabemos que Fichte e Hegel apre
sentam como fim supremo e necessário do desenvolvimento do Ser o
triunfo do mundo germânico, e a história mostrou que o ato desses
intelectuais produziu efeitos no coração dos leigos. Apressemo-nos
em acrescentar que esse espetáculo de uma metafísica patriótica é
34. Essa distinção dos dois humanitarismos é bem expressada por Goethe
quando relata (D ic h tu n g u n d W a h rh eit) sua indiferença e a de seus amigos pelos
acontecimentos de 1789. “Em nosso pequeno círculo, ninguém se ocupava com
jornais e notícias; nossa questão era conhecer o homem; quanto aos homens,
deixávamos que agissem a seu modo.” É preciso lembrar que as “humanidades”,
tais como as instituíram os jesuítas no século XVII, os stu d ia h u m a n ita tis , são “os
estudos do que há de mais essencialmente humano” e não exercícios de altruísmo?
Ver a esse respeito o curioso texto de um antigo na nota I, à p. 268.
35. Foi o que compreendeu tão bem a Igreja, e com o corolário desta verdade: que só
é possível criar o amor entre os homens desenvolvendo entre eles a sensibilidade ao
homem abstrato, combatendo neles o interesse pelo homem concreto, dirigindo-os
para a meditação metafísica, desviando-os do estudo da história (ver Malebranche).
Direção exatamente contrária à dos intelectuais modernos; mas estes não estão de
modo algum interessados em criar o amor entre os homens.
170 • Ju lien Benda
36. Do mesmo modo, ele adota o espírito de nação se lhe parece servir a esses
interesses: o partido “nacionahsocialista” é uma prova.
37. Alguns nacionalistas, querendo honrar o cosmopolitismo, do qual sua
inteligência percebe o valor, mas sem sacrificar o nacionalismo, declaram que
o cosmopolitismo representa o “nacionalismo esclarecido”. Paul Bourget, que
dá essa definição (P a ris-T im es, junho de 1924), cita como exemplos Goethe e
Stendhal: “Um permanecendo profundamente alemão e buscando captar todo o
movimento do pensamento francês, o outro permanecendo profundamente francês
e dedicando-se a compreender a Itália”. Perguntamos em quê esses dois mestres,
ao permanecerem profundamente alemão e profundamente francês, mostraram
o menor “nacionalismo”, mesmo esclarecido. Bourget confunde evidentemente
nacional e nacionalista.
38. Quase todos os livros de propaganda nacional, nas pequenas nações da Europa
Oriental, são antologias de poetas, raramente obras de pensamento. — Ver as
palavras pronunciadas por E. Boutroux, em agosto de 1915, no Comitê do Acordo
Cordial, contra os povos que dão uma excessiva importância à inteligência, a qual,
“por si só, tende a ser una e comum a todos os seres capazes de conhecimento”.
A traição dos in te le c tu a is • 171
40. Eis um exemplo das acrobacias que esses doutores precisam fazer para conciliar
a palavra cristã com a pregação dos particularismos nacionais: “Queremos colocar
o ideal de universalismo em uma relação positiva com a realidade contemporânea
da forma nacional, que é a de toda a vida, mesmo cristã” (pastor Witte, citado por
A. Loisy, G u e r re e t religion , p. 18). Exemplo de espíritos para quem a quadratura do
círculo é evidentemente apenas um jogo.
41. É sugestivo também constatar que a Igreja, de uns vinte anos para
cá, substituiu o mandamento: “Homicida não serás nem por ato nem por
consentimento” por “Homicida não serás sem direito nem voluntariamente”.
42. Ver porém nossa teoria das ra ça s m o ra is , em nosso prefácio à edição de 1946.
A traição dos in te le c tu a is • 173
intelectual, não fosse dizer aos leigos verdades que lhes desagradam
e fazer isso à custa de seu repouso.
Não exijamos tanto. Acaso há um só prelado, em algum púlpito
da Europa, que ousaria pronunciar ainda: “O cristão é ao mesmo
tempo cosmopolita e patriota. Essas duas qualidades não são incom
patíveis. O mundo é na verdade uma pátria comum ou, para falar
mais cristãmente, um exílio comum?” (Instrução pastoral de Le Franc
de Pompignam, bispo de Puy, 1763: “Sobre a pretensa filosofia dos
incrédulos modernos”. Os “incrédulos”, aqui, são os que refutam à
Igreja o direito de ser cosmopolita.)
Alguns clérigos fazem mais e afirmam que, ao exaltar os par-
ticularismos nacionais, estão de pleno acordo com o espírito
fundamental da Igreja, especialmente com o ensinamento de seus
grandes doutores da Idade Média. (É a tese que opõe catolicismo a
cristianismo.) Lembrarei que os mais nacionalistas desses doutores
se limitaram a considerar os particularismos nacionais uma condição
inelutável, e que deve ser respeitada como toda vontade de Deus,
de um mundo terrestre e inferior? Que eles jamais exortaram os
homens a aguçar esse sentimento em seu coração, e menos ainda
pensaram em apresentar-lhes esse aguçamento como um exercício
de aperfeiçoamento moral? O que a Igreja até os nossos dias exaltava
no patriotismo, quando o fazia, é a fraternidade entre concidadãos,
o amor do homem por outros homens, e não sua oposição a outros
homens; é o patriotismo enquanto extensão do amor humano, não
enquanto uma limitação deste.43— Mas o mais notável nesse sentido
43. Por exemplo, nesta passagem de Bossuet: “Se há a obrigação de amar todos
os homens, e se, a bem dizer, não há realmente estrangeiro para o cristão, com
mais forte razão ele devç amar seus concidadãos. Todo o amor que se tem por si
mesmo, pela família e pelos amigos, se reúne no amor que se tem pela pátria...”
(P olitique tirée d e V E criture s a in te , I, vi. Observe-se: “todo o amor q u e se te m p o r si
m e s m o ...”. É a inteira justificação da frase de Saint-Évremond: “O amor à pátria
é um verdadeiro amor a si”.) Parece assim que a Igreja (ver as C a r ta s sobre a
Igreja e o nacionalismo, 1922-1923) pediria apenas para continuar a apresentar
174 • Ju lien Benda
48. Sabe-se que tanto o fascismo italiano como o bolchevismo nisso invocam o
testemunho do autor das R eflexões sobre a vio lê n c ia ; com efeito, este pregava o
egoísmo de classe de um modo universal, sem preferência, ao menos formal, pelo
interesse de uma classe em vez de outra. Existe nessa pregação do egoísmo uma
espécie de imparcialidade não desprovida de grandeza, que seus discípulos não
herdaram.
49. E mesmo de Jesus Cristo. “Eu quis mostrar”, diz R. Johannet (o p . cit., p. 153),
“a grande porção de cristianismo que o tipo burguês contém, quando ele é puro.
Condenar em nome de Cristo o burguês, por ser burguês, me parece um paradoxo
A traição dos in te le c tu a is • 177
um tanto ousado.” Aliás, o autor não cita um texto do Evangelho, mas apenas
alguns intérpretes de são Tomás que ele exalta por seu “senso arqui-realista dos
assuntos humanos”, e que aparentemente representam, segundo ele, o pensamento
de Cristo. O livro é um dos exemplos mais perfeitos da vontade do intelectual
moderno de idealizar o espírito prático. (Sobre a doutrina cristã relativa à
propriedade, cf. o R Thomassin, T ra ité d e V aum one.)
50. Poder-se-ia dizer que, para a teologia cristã, a condição de burguês é uma
fu n ç ã o , e não uma d ig n id a d e.
51. A posição essencial da Igreja quanto a esse ponto (digo essencial, pois, ao aplicar'
se, encontraremos textos em favor da tese oposta; mas, repetimos, é essa aplicação que
é curiosa) me parece definida nas seguintes linhas: “Malebranche tende a considerar,
como Bossuet, que as desigualdades e as injustiças sociais são conseqüências do
pecado, que é preciso aceitá-las como tais e conformar a elas a conduta exterior...
Não cabe sequer procurar corrigir essas injustiças a não ser pela caridade, pois com
certeza a paz seria perturbada e provavelmente não se obteria resultado algum. Apenas
n ão se deve , n o fu n d o d a alm a, d a r a essas circunstâncias e condições n enhum a espécie de
im portância; pois a verdadeira vid a n ão está a f 1 (H. Joly, M a leb ra n ch e , p. 262).
178 • Ju lien Benda
52. Sobre a relação das teses de Durkheim com as dos tradicionalistas franceses, cf.
D. Parodi, L a philosoph ic co n te m p o ra in e en F ra n ce , p. 148.
53. “A Alemanha é o único juiz de seus métodos” (major von Disfurth, novembro
de 1914). — A filosofia das morais nacionais parece essencialmente alemã. É
muito significativo ver Hegel e Zeller querendo a todo custo que Platão, na
R e p ú b lic a , tenha definido um bem que vale apenas para os gregos e não para todos
os povos (cf. R Janet, H isto ire des idées p o litiq u e s , 1.1, p. 140).
A traição dos in te le c tu a is • 179
54- “Eis que professores continuam ainda”, escrevia Barrès em 1898, “a discutir
sobre a justiça, a verdade, quando todo homem que se respeita sabe que deve
examinar somente se tal relação é justa entre dois homens determinados, em uma
época determinada, em condições específicas.” É exatamente o que a Alemanha de
1914 responderá a seus acusadores. — Não preciso repetir que não se encontrará
na França um só moralista antes de Barrès, mesmo Maistre ou Bonald, para
pronunciar que “todo homem que se respeita” poderia conceber apenas uma
justiça de circunstância.
180 • Ju lien Benda
vida prática, foi que sua força material não se igualou ao seu orgulho.
Quando o orgulho encontra uma força material à sua altura, ele está
longe de derrotar os povos, como o provam Roma e a Prússia de
Bismarck. Os intelectuais que há trinta anos convidavam a França a
fazer-se juiz de seus atos e a zombar da moral eterna, mostravam que
tinham na mais alta conta o senso do interesse nacional, na medida
em que esse interesse é eminentemente realista e nada tem a ver com
uma paixão desinteressada. Resta saber, mais uma vez, se a função dos
intelectuais é servir a esse tipo de interesse.
Não é apenas a moral universal que os intelectuais modernos
abandonaram ao desprezo dos homens, é também a verdade universal.
Aqui os intelectuais mostraram-se realmente geniais em sua aplicação
de servir às paixões leigas. E evidente que a verdade é um grande
empecilho para os que querem se afirmar no distinto: ela os condena,
a partir do momento em que a adotam, a sentir-se em um universal.
Que alegria então, para eles, ficar sabendo que esse universal é apenas
um fantasma, que existem apenas verdades particulares, “verdades
lorenas, verdades provençais, verdades bretãs, cuja concordância,
disposta pelos séculos, constitui o que é benéfico, respeitável, verda
deiro na França”55 (o vizinho fala do que é verdadeiro na Alemanha);
em outras palavras, que Pascal não passa de um espírito grosseiro e
que o que é verdade deste lado dos Pireneus é perfeitamente erro do
outro lado. — A humanidade entende o mesmo ensinamento no que
diz respeito à classe: ela aprende que há uma verdade burguesa e uma
verdade operária; mais ainda, que o funcionamento de nosso espírito
deve ser diferente conforme somos operários ou burgueses. A origem
55. L A p p e l a u so ld a t. Compare-se com o ensinamento tradicional francês, do qual
Barrès se diz o herdeiro: “De qualquer país que sejais, deveis acreditar apenas no
que estaríeis dispostos a acreditar se fosseis de um outro país” (L ogiqu e de P ort -
R o y a l , III, xx). — Não se deveria pensar que o dogma das verdades nacionais vise
apenas à verdade moral; vimos recentemente pensadores franceses indignarem-
se de que as doutrinas de Einstein fossem adotadas sem maior defesa por seus
compatriotas.
A traição dos in te le c tu a is • 181
Paulo. Lê^se: “Os reis devem ser muito cautelosos nos tratados que fazem, mas,
quando estão feitos, d e v e m se r o b se rv a d o s r e lig b s a m e n te . Sei que muitos políticos
ensinam o contrário; mas, sem considerar o que a fé cristã pode nos fornecer
contra essas máximas, sustento que, sendo a perda da honra pior que a da vida,
um grande príncipe deve antes arriscar sua pessoa e m e sm o o in teresse d e seu
E sta d o d o q u e f a lta r à p a la v r a , que ele não pode violar sem perder sua reputação e,
conseqüentemente, a m a io r força do soberano” (T esta m en t p o litiq u e , segunda parte,
cap. VI).
67. Assim também o escritor. Um Maquiavel, que fala a seus pares, pode dar-se
ao luxo de não ser moralista. Um Maurras, que fala a multidões, não o pode: não
se escreve impunemente em uma democracia. De resto, a ação política que se
quer acompanhada de uma ação moral prova que ela tem a noção das verdadeiras
condições de seu sucesso. Um mestre nesses assuntos disse: “Não há reforma
política profunda se não forem reformadas a religião e a moral” (Hegel.) Não há
dúvida de que a influência particular da A c tio n F ran çaise, entre todos os órgãos
conservadores, deve-se a que seu movimento político é acompanhado de um
ensinamento moral, ainda que outros interesses a façam negar isso.
190 • Ju lien Benda
68. D ictio n n a ire des cas d e co n scien ce (ed. 1721), artigo G u e r r a . Observar-se-á que,
com uma tal moral, não era possível a formação territorial de nenhum Estado
europeu. Trata-se do tipo de ensinamento não prático, isto é, para nós, o do
verdadeiro intelectual. (Sobre a acolhida que o mundo temporal deve dar a esse
ensinamento, ver a nota E, à p. 236.) Para Victoria, a extensão do império não é
uma causa justa.
69. E a tese de Alfonso de Liguori, que prevalece hoje no ensinamento da Igreja
sobre a de Victoria.
70. Cardeal Gousset (T h éo lo g ie m o ra le , 1845).
A traição dos in te le c tu a is • 191
71. E a doutrina dita escolástica da guerra, formulada em todo o seu rigor por
Tomás de Aquino. Segundo ela, o príncipe (ou o povo) que declara a guerra
age como um magistrado (m in ister D e i ) sob a jurisdição do qual cai uma nação
estrangeira, em razão de uma injustiça que ela cometeu e recusa-se a reparar.
Segue-se daí, em particular, que o príncipe que declarou guerra deve, se for
vencedor, unicamente punir o culpado, sem obter de sua vitória nenhum benefício
pessoal. Essa doutrina, de uma moralidade tão elevada, está hoje inteiramente
abandonada pela Igreja (cf. Vanderpol, L a gu erre d e v a n t le ch ristia n ism e , título IX).
72. É aparentemente a tese que a Santa Sé adotou em 1914 diante do conflito
franco-alemão, a Alemanha beneficiando-se, segundo ela, do que a teologia
chama a ignorância “invencível”, isto é, quando se buscou compreender as
explicações do adversário com toda a diligência de que um homem é capaz. Pode-
se evidentemente pensar que era preciso boa vontade para julgar que a Alemanha
tivesse direito a esse benefício.
73. É — como também a tese da guerra justa dos dois lados — a doutrina de
Molina, que substitui inteiramente, no ensinamento eclesiástico em matéria de
direito de guerra, a doutrina escolástica.
74. Encontro no D ic tio n n a ire théologique de Vacant-Mangenot (1922, artigo
G u e r r a ) este texto, que recomendo a todos os agressores desejosos de esconder-
se sob uma elevada autoridade moral. “O chefe de uma nação tem não apenas o
direito mas também o dever de recorrer a esse meio (a guerra) para salvaguardar
os interesses gerais de que é o responsável. Esse direito e esse dever referem-se não
192 • Ju lien Benda
“preconceito”, e logo ficamos sabendo que “os barcos são feitos para remontar as
correntes”. Os revolucionários não dizem outra coisa.
80. Ver a nota L, à p. 270.
81. Um outro pensador a quem nossos empiristas são muito ingratos é o autor
destas linhas: “Que se pense no perigo de excitar as massas enormes que compõem
a nação francesa. Quem poderá reter sua comoção ou prever todos os efeitos
que ela pode produzir? Ainda que todas as vantagens do novo plano fossem
incontestáveis, que homem de bom senso ousaria empreender abolir os velhos
A traição dos in te le c tu a is • 195
costumes, mudar as velhas máximas e dar uma outra forma ao Estado senão aquela
a que o levou sucessivamente uma duração de 1300 anos?” (J.-J. Rousseau).
82. Ver a nota M, à p. 273.
83. “Um espírito verdadeiramente científico”, diz um desses devotos do fato,
“não sente a necessidade de justificar um privilégio que se mostra como um dado
elementar e irredutível da natureza social” (Paul Bourget.) Mas esse mesmo
espírito “verdadeiramente científico” sente a necessidade de escandalizar-se
com a in su rreiçã o contra esse privilégio, a qual é também, no entanto, um “dado
elementar e irredutível da natureza social”. — Responder-me-ão que essa
insurreição não é um dado da natureza social, mas da natureza passional, no que
ela tem de anti-social, precisamente. E, de fato, tal é no fundo a posição desse
dogmatismo: considera-se o social in d e p e n d e n te m e n te d o p a ssio n a l , seja porque este
se tornou social (pela educação católica), seja porque foi reduzido ao silêncio (pela
força, escola de Maurras; ou pela habilidade, escola de Bainville). O mais curioso
é que os que raciocinam assim sobre o social e m si acusam seus adversários de se
ocupar com abstrações.
196 • Julien Benda
84. A posição que denuncio aqui nada tem em comum com a de uma recente
escola de moralistas (Rauh, Lévy-Bruhl), que querem igualmente “que se tome o
homem como ele é”, mas para ver como se poderia torná-lo melhor.
A tra iç ã o dos in te le c tu a is • 197
85. Esse pessimismo, não importa o que digam alguns de seus arautos, nada tem
em comum com o dos mestres do século XVII. La Fontaine e La Bruyère nada
enunciam de fatal ou de eterno quanto às baixezas que descrevem. Lembremos
também que, com sua aplicação a desencorajar a esperança, os romantismos do
pessimismo não poderiam de modo algum afirmar (como lhes mostrou Georges
Goyau) pertencer à tradição católica.
198 • Ju lien Benda
86. Um tal grupo chega logicamente a declarações deste tipo, que todo adepto do
“nacionalismo integral” é obrigado a admirar: “A partir desta noite deve chegar
ao fim a tola utopia segundo a qual cada um pode pensar com sua própria cabeça”
(Im p e ro , 4 de novembro de 1926.) Ver a nota N, à p. 273.
A traição dos in te le c tu a is • 199
89. Sabemos de que maneira é feita a conciliação: Jesus, dizem, pregou o espírito
de sacrifício, o qual está na base de todos os estabelecimentos humanos. Como
se Jesus tivesse pregado o espírito de sacrifício que ganha batalhas e conquista
impérios!
A traição dos in te le c tu a is • 201
90. “Em meio ao sangue que faz correr, o verdadeiro guerreiro permanece humano”
(Joseph de Maistre.)
91. Por exemplo, quando põem na boca de um guerreiro, no céu, estas palavras:
“Saibam, amigos, que, de tudo o que se faz na terra, nada é mais agradável aos
olhos dos que regem o universo que essas sociedades de homens fundadas no
império das leis e que se chamam cidades” (Cícero, S on h o de C ip iã o ).
A traição dos in te le c tu a is • 203
96. A s leis , livro I. O texto exato de Platão é: “Na ordem das virtudes, a sabedoria
é a primeira; a temperança vem a seguir; a coragem ocupa o último lugar”.
Platão entende aqui por coragem (ver o contexto, especialmente a passagem
sobre os soldados que, “insolentes, injustos, imorais, sabem no entanto marchar
ao combate”) a aptidão do homem de enfrentar a morte. Parece claro que
ele tampouco teria dado o primeiro lugar à coragem enquanto força de alma,
enquanto endurecimento contra o infortúnio, como farão os estóicos; para ele,
a forma da alma teria sempre vindo depois de sua justiça (ela é apenas uma
conseqüência desta, segundo sua doutrina). De resto, a coragem elevada à posição
suprema por Barrès não é de modo algum a paciência estóica, mas sim o confronto
ativo da morte; para Nietzsche e Sorel, é propriamente a audácia, e no que ela
tem de irracional — coragem desvalorizada por todos os moralistas antigos e seus
discípulos: cf. Platão, L aques; Aristóteles, É tic a a N ic ô m a c o , VIII; Spinoza, É tic a ,
IV, 69; e mesmo pelos poetas: “Nossa razão que preside à coragem” (Ronsard).
O confronto da morte, mesmo em favor da justiça, não parece ter sido entre os
filósofos antigos o objeto de exaltação como o é entre os modernos. Sócrates, no
F édon, é enaltecido por sua justiça, e não tanto porque soube morrer pela justiça.
206 • Ju lien Benda
são aqueles em que ele busca saciar sua sede de afirmar-se no real,
mas em que busca moderá-la. Estava reservado à nossa época ver os
sacerdotes do espiritual elevar à posição suprema, entre as formas da
alma, a que é indispensável ao homem para conquistar e fundar.97
Todavia, esse valor prático da coragem, claramente enunciado por
um Nietzsche ou por um Sorel, não o é igualmente por todos os mo
ralistas atuais que exaltam essa virtude. Isso nos leva a um outro de
seus ensinamentos.
De resto, o pensamento dos antigos sobre esse ponto me parece expresso por
Spinoza: “A coisa na qual um homem livre menos pensa é na morte”, pensamento
que implica pouca admiração por aquele que a desafia. Só se admira alguém que
desafia uma coisa se essa coisa é tida como considerável. Podemos nos perguntar
se não foi o cristianismo, com a importância que dá à morte (comparecimento
perante Deus), que criou, ao menos entre os moralistas, a veneração da coragem.
(Eu não poderia deixar esse ponto sem lembrar uma passagem em que Saint'
Simon fala de uma nobreza “acostumada a prestasse apenas para fazer-se matar”
[Mém oires, t. XI, p. 427, Ed. Chéruel]. Pode-se afirmar que não há um escritor
moderno, mesmo que duque da França, que falaria da coragem nesse tom.)
97. E para conservar.
98. Encontraremos em Barrès (U n e en q u ê te au x p a y s d u L e v a n t, cap. VII: “Os
últimos fiéis do Velho da Montanha”) um impressionante exemplo de admiração
pela religião da honra, porque essa religião, bem explorada por um chefe
inteligente, pode produzir resultados práticos.
A traição dos in te le c tu a is • 207
99. Tal é eminentemente o caso de Montaigne que, como se sabe, exalta a honra
enquanto sensibilidade do homem ao julgamento de sua consciência, e muito
pouco enquanto preocupação com a glória (“Abandonai com as outras volúpias a
que vem da aprovação de outrem”). Barrès julga ver em Montaigne, por isso, “um
estrangeiro que não tem nossos preconceitos”. Barrès confunde os moralistas e
os poetas; não vejo antes dele um único autor francês com pretensão dogmática
que tenha feito do amor à glória um elevador valor moral; os moralistas franceses
antes de 1890 são muito pouco militares, mesmo no caso de militares como
Vauvenargues e Vigny. (Cf. o excelente estudo de G. Le Bidois, L H o n n e u r a u m iro ir
d e nos lettres, particularmente no que se refere a Montesquieu.)
100. Abade Sertillanges, L H é ro ism e e t ia gloire. Comparar com os dois sermões
de Bossuet “sobre a honra do mundo”. Pode-se avaliar os progressos feitos pela
Igreja, de três séculos para cá, em sua concessão às paixões leigas. (Ver também
Nicole: “De la véritable idée de valeur”.) Os sermões do abade Sertillanges (L a
v ie h éróiqu e) devem ser lidos como monumento de entusiasmo pelos instintos
guerreiros em um homem de Igreja. É realmente o manifesto do clérigo de
capacete. Ali encontramos frases como esta, que acreditaríamos, m u ta tis m u ta n d is,
extraída da ordem do dia de um coronel de hussardos: “Vede Guynemer, esse herói
criança, esse ingênuo com olhar de águia, Hércules franzino, Aquiles que não se
retira para sua tenda, Roland das nuvens e Cid do céu francês: alguma vez já se viu
paladino mais feroz e furioso, mais indiferente à morte, a dele ou a do adversário?
Esse ‘garoto’, como o chamavam comumente os companheiros, gostava apenas da
208 • Ju lien Benda
não cumpra mais seu ofício, e que aqueles cujo encargo era dissolver
o orgulho humano preguem os mesmos movimentos da alma que os
condutores de exércitos.
Objetar-nos-ão que essa pregação, ao menos em tempos de guer
ra, é imposta aos intelectuais pelos leigos, pelos Estados, os quais
pretendem hoje mobilizar a seu favor todos os recursos morais da
nação.102 Responderemos, do mesmo modo, que o impressionante
não é tanto ver os intelectuais fazerem essa pregação, quanto ver
com que docilidade o fazem, com que ausência de aversão, com que
entusiasmo e alegria... A verdade é que os intelectuais tornaram-se
tão leigos quanto os leigos.
105. Ch. Maurras, A c tio n F ra n ça ise , t. IV, p. 569. Pensamos neste grito de
Nietzsche: “A humanidade! Nunca houve velha mais horrorosa entre todas as
velhas horrorosas”. O mestre alemão acrescenta, sempre de acordo com muitos
mestres franceses, como veremos mais adiante: “a menos que seja talvez a
verdade”.
A traição dos in te le c tu a is * 2 1 1
106. A dureza deles nada tem em comum, evidentemente, com a evocada por
estas belas palavras: “O homem da justiça subordina a paixão à razão, o que deve
parecer triste se seu coração é frio, mas que parecerá sublime se ele também ama”
(Renouvier).
212 • Ju lien Benda
107. É a opinião de Maquiavel (cap. XVIII) que, também neste ponto, nem por
isso faz da crueldade uma marca da alta cultura.
108. Leio este escrito de um herói do Primeiro Império: “Temi encontrar p r a z e r (é
o autor que sublinha) em matar com minhas mãos alguns desses celerados (trata-se
dos alemães que massacraram os prisioneiros franceses após a batalha de Leipzig).
Tornei então a embainhar minha espada e deixei a nossos cavaleiros a tarefa de
exterminar esses assassinos” (Mém oires d u g én éra l d e M a r b o t , t. III, p. 344.) Eis
aí uma reprovação da alegria de matar que muitos literatos contemporâneos
condenariam. Na França, a glorificação dos instintos de guerra se percebe menos
nos homens de armas que em alguns literatos. Marbot é muito menos sanguinário
que Barrès.
A traição dos in te le c tu a is • 213
112. É a única razão pela qual ele exalta a arte e pronuncia — como todo o
moralismo moderno — a primazia do artista sobre o filósofo, a arte sendo para ele
um valor de ação. Com exceção desse ponto de vista, parece justo dizer com um
de seus críticos: “No fundo, Nietzsche desprezava a arte e os artistas... Ele condena
na arte um princípio feminino, um mimetismo de autor, o amor do enfeite, do que
reluz... Que se recorde a página eloqüente em que ele louva Shakespeare, o maior
dos poetas, por ter humilhado a figura do poeta, que ele trata de histrião, diante de
César, esse h o m e m d iv in o ” (C. Schuwer, R e v u e d e Mé ta p h ysiq u e e t d e M o r a le , abril de
1926). Para Sorel, a arte é grande por ser “uma antecipação da alta produção, tal
como ela tende a se manifestar cada vez mais em nossa sociedade”.
216 • Ju lien Benda
ainda ensinar aos homens que a adesão a um erro que lhes serve
(o “m ito”) é uma atitude que os honra, enquanto a admissão
de uma verdade que os prejudica é vergonhoso; que, em outras
palavras (Nietzsche, Sorel e Barrès afirmam isso formalmente), a
sensibilidade à verdade em si, sem qualquer finalidade prática, é
uma forma de espírito bastante desprezível.119 Aqui, o intelectual
moderno mostrou-se propriamente genial na defesa do temporal, o
temporal nada tendo a ver com a verdade ou, para ser mais exato,
não tendo pior inimigo que ela. E exatamente o gênio de Cálicles
em toda a sua profundidade que revive nos grandes mestres da
alma moderna.120
Enfim, os intelectuais modernos pregaram ao homem a religião
do prático por sua teologia, pela imagem que passaram a propor-lhe
de Deus. — E, em primeiro lugar, quiseram que Deus, infinito desde
os estóicos, voltasse a ser finito, distinto, dotado de personalidade,
que fosse a afirmação de uma existência física e não metafísica; o
121. Charles Maurras separa-se aqui de seu mestre, Joseph de Maistre, o qual fala
do “oceano divino que um dia acolherá tudo e todos em seu seio”. Todavia, o autor
das S oirées de S a in t-P é te rsb o u rg acrescenta logo em seguida: “Mas evito tocar na
personalidade, sem a qual a imortalidade é nada”.
A traição dos in te le c tu a is • 221
122. Sobre a presença desse imanentismo em quase todos os doutores cristãos até
os nossos dias, cf. Renouvier: L Id ée d e D ie u (A n n é e P hilosoph iqu e, 1897) e também
E ssai d u n e classifica tio n d es d o c trin e s , 3Q: In v o lu tio n , la créa tio n .
123. Para Hegel, Deus cresce constantemente às expensas de seu contrário: sua
atividade é essencialmente a da guerra e da vitória.
124. Notemos porém, no “neotomismo”, um vivo protesto contra essa concepção.
125. Comparar, por exemplo, a condenação de Rosmini com a de mestre Eckart,
em que proposições como estas: “N u lla in d eo d istin ctio esse a u t intelligi p o te s t”
(Em Deus é impossível que haja ou que se possa conceber algo que não seja
homogêneo), “O m n e s cre a tu ra e su n t p u ru m n ih il ” (Todas as criaturas são um puro
nada), são declaradas não heréticas, mas apenas “malsonantes, temerárias e
suspeitas de heresia”.
222 • Ju lien Benda
126. Pensemos que, ainda em 1806, Hegel, logo após a batalha de Iena, não tinha
outra preocupação senão achar um canto para filosofar; em 1813, Schopenhauer
era perfeitamente indiferente à insurreição da Alemanha contra Napoleão.
224 • Ju lien Benda
127. “Ninguém tem o direito de desinteressasse pelos desastres de seu país; mas
tanto o filósofo como o cristão sempre têm motivos para viver. O reino de Deus
não conhece vencedores nem vencidos; ele consiste nas alegrias do coração,
do espírito e da imaginação, que o vencido desfruta mais que o vencedor se for
mais elevado moralmente e se tiver mais espírito. Acaso vosso grande Goethe,
vosso admirável Fichte não nos ensinaram como se pode levar uma vida nobre e
portanto feliz em meio à degradação exterior da pátria?” (P rem ière lettre à S tra u ss)
Devo dizer que Nietzsche, que vejo como um mau intelectual pela natureza de seu
ensinamento, me parece um dos mais puros pela doação completa de si mesmo
apenas às paixões do espírito?
A traição dos in te le c tu a is • 225
130. Foi o que se viu nitidamente na má vontade com que a burguesia francesa
recentemente acolheu a ordem de seu “líder espiritual”, proibindo'lhe a leitura
de uma publicação, L A c tio n F ra n ça ise , cujas doutrinas ela aprecia. Pode-se avaliar
a mudança se lembrarmos que há cem anos, quando o papa intimou os católicos
franceses a aceitar a lei contra os jesuítas que o governo de Carlos X acabava de
fazer votar, todos obedeceram.
131. No final da Guerra da Sucessão da Espanha, por ocasião da invasão do
Norte da França, Fénelon pronunciou vários sermões em que apresentava às
populações invadidas seu martírio como um justo castigo por seus pecados.
Imagine-se a acolhida ao pregador que uma tal linguagem provocaria entre os
franceses em agosto de 1914 (a ). — Sobre a maneira como a Igreja ensinada
trata hoje a Igreja que ensina, se esta não lhe diz o que ela quer ouvir, pense-se
na acolhida, há trinta nos, dada ao sermão do padre Ollivier sobre as vítimas do
incêndio do Bazar da Caridade.
(a) Contudo, eles a aceitaram de um leigo em 1940; é verdade que este lhes dizia
que eles expiavam a democracia.
228 • Ju lien Benda
132. Pode-se fazer observações paralelas a propósito dos filósofos, que em sua
maior parte, e não entre os menos renomados, não vivem mais como Descartes ou
Spinoza, mas são casados, têm filhos, ocupam cargos, estão n a v id a ; o que não me
parece sem relação com o caráter “pragmático” de seu ensinamento. (Ver sobre
esse ponto, meu livro S u r le su ccès d u b ergson ism e, p. 207.)
A traição dos in te le c tu a is • 229
133. É o reinado (que parece eterno na França) do bel e s p rit , do pedante, com seu
atributo tão bem denunciado por Malebranche nesta deliciosa observação: “O
estúpido e o pedante estão igualmente fechados à verdade; há porém a diferença
de que o estúpido a respeita, enquanto o pedante a despreza”.
134- A visão das democracias pode satisfazer uma outra sensibilidade artística: a
que se comove, não com a visão de uma ordem, mas com a de um equilíbrio obtido
entre forças naturalmente opostas (sobre essa distinção, ver o belo trabalho de
Hauriou: P ríncipes d e d ro it p u b lic , cap. I). Todavia, a sensibilidade ao equilíbrio é
bem mais intelectual do que propriamente artística. — Ver a nota Q, à p. 280.
A traição dos in te le c tu a is • 231
138. Lembremos que Nietzsche só valoriza o pensamento antigo até Sócrates, isto
é, enquanto ele não ensina o universal.
* O autor se refere provavelmente a outro de seus livros, B elp h ég o r , nome de uma
divindade pagã à qual era prestado um culto licencioso, segundo a Bíblia. (N. T.)
139. É citada do mesmo Barrès esta frase a um “dreyfusista”, em 1898: “Não me
venha falar de justiça, de humanidade! Quer saber o que aprecio, eu? Alguns
quadros da Europa e alguns cemitérios”. Um outro de nossos grandes realistas
políticos, Maurras, confessou um dia sua fundamental necessidade de “gozar”.
Sócrates já dizia a Protágoras que a base de sua doutrina era a sede de sensação.
A traição dos in te le c tu a is • 233
141. Os realistas não são os únicos hoje a fazer de sua posição política uma
ocasião de sensação; não há dúvida de que o humanitarismo está longe de ter em
Victor Hugo e Michelet a pura ressonância intelectual que possui em Spinoza
e Malebranche. (Ver, mais acima, nossa distinção entre o humanitarismo e o
humanismo.)
A traição dos in te le c tu a is • 235
237
238 • Ju lien Benda
se, uma criança acharia a resposta: ela dirige-se à guerra mais total e
mais perfeita que o mundo terá visto, que ocorrerá ou entre nações,
ou entre classes. Uma raça em que um grupo eleva às nuvens um de
seus mestres (Barrès) porque ele ensina: “E preciso defender como
sectário a parte essencial de nós mesmos”, enquanto o grupo vizinho
aclama seu chefe porque ele declara, ao violar um pequeno povo in
defeso: “Necessidade não tem lei”, uma raça assim está madura para
aquelas guerras zoológicas de que falava Renan, que se assemelharão,
dizia ele, às que travam pela vida as diversas espécies de roedores e
carnívoros. E, de fato, basta pensar na Itália, no que se refere à nação,
e na Rússia, no que se refere à classe, para ver a que ponto de perfei
ção desconhecido até hoje o espírito de ódio contra o que é diferente
de si pode ser conduzido, em um grupo de homens, por um realismo
consciente e enfim liberado de toda moral não prática. Acrescentemos,
o que não é feito para invalidar nossas previsões, que esses dois povos
são saudados como modelos no mundo inteiro pelos que querem ou
a grandeza de sua nação, ou o triunfo de sua classe.
Esses sombrios prognósticos não me parecem dever ser modifica
dos, como alguns o crêem, pela visão de atos decididamente dirigidos
contra a guerra, como a instituição de um tribunal supranacional e as
convenções recentemente adotadas por povos em conflito. Impostas
às nações por seus ministros, ao invés de desejadas por elas, ditadas
unicamente pelo interesse — o temor da guerra e seus prejuízos — e
de modo nenhum por uma mudança de moralidade pública, essas
novidades, se talvez se opõem à guerra, deixam intacto o espírito de
guerra, e nada autoriza a pensar que um povo que respeita um con
trato apenas por razões práticas não o transgredirá no dia em que
essa transgressão lhe parecer mais proveitosa. A paz, se vier a existir,
não repousará sobre o temor à guerra, mas no amor à paz; não será a
abstenção de um ato, mas o advento de um estado de alma.1 Nesse
1. “A paz não é a ausência de guerra mas uma virtude que nasce da força da alma”
(Spinoza).
240 • Ju lien Benda
4. Não falo do que essas reivindicações da França, logo após sua vitória, pudessem
ter de impoUtico; aliás, os pensadores que discuto aqui falavam apenas do que elas
tinham, segundo eles, de im o ra l.
A traição dos in te le c tu a is • 243
Lembremos a esse respeito que o pacifismo da Igreja, ao menos entre seus grandes
doutores, não é de modo algum inspirado por considerações sentimentais, mas de
pura educação moral: “O que reprovamos na guerra?”, diz santo Agostinho. “E o
fato de se matarem homens que devem todos morrer um dia? Fazer essa reprovação
à guerra seria próprio de homens pusilânimes, não de homens religiosos. O que
reprovamos na guerra é o desejo de prejudicar, uma alma implacável, o furor das
represálias, a paixão da dominação.” (Esse tema é retomado por Tomás de Aquino,
S u m a , 2, 2, XL, I.)
244 • Ju lien Benda
“clérigos”, bem mais que o cristão, que abraça as idéias de justiça e de caridade
apenas para sua salvação. Ninguém contestará porém que existem homens, mesmo
cristãos, que abraçam essas idéias sem nenhum interesse prático.
A traição dos in te le c tu a is • 245
8. Aparentemente, nem mesmo para as que duram cinco anos e matam vinte
milhões de homens. (N o ta d a e d içã o d e 1 9 4 6 .)
A traição dos in te le c tu a is • 247
1946)
252 • Ju lien Benda
1924'1927
Notas
Nota A (p. 120)
253
254 • Ju lien Benda
d a co n cep çã o c a tó lica d o m u n d o .
E ainda:
O papa e os bispos são autoridades em matéria religiosa, mas, sempre
que se tratar de questões políticas, não nos deixaremos influenciar nem
pela autoridade do papa nem pela dos bispos (Edmond Bloud alude a uma
conversa relatada na G a z e ta d e F ra n k fu rt , em abril de 1914, em que um
dos líderes dos sindicatos mistos teria declarado que “os católicos a lem ães
estã o m u ito irrita d o s co m o p a p a ”).
nação manifestam seu culto pela abolição das fronteiras, pelo amor
universal ou outras espiritualidades.11 Quando vejo tantos filósofos
se ocuparem apenas com a segurança do Estado, ao mesmo tempo
que um de nossos ministros se esforça por fazer reinar o amor entre
os homens, penso na apóstrofe de Dante:
Orientais para a religião
O que nasceu para usar a espada,
E transformais em rei o que devia ser pregador.
Assim vossa marcha se desvia do verdadeiro caminho.
11. Quando eles se fazem dizer, como Luís XVI por Turgot: “Majestade, vosso reino
Existe também uma tra içã o dos leigos.
é d e ste m u n do".
A traição dos in te le c tu a is • 263
12. Os escritos de monsenhor Battifol justificam a tal ponto a tese aqui defendida
que hesito em citar um autor que me oferece um prato tão cheio. Por exemplo,
ele procura longamente demonstrar que o espírito do cristianismo “culminou, sem
desdizer-se, em uma doutrina da moralidade da guerra”.
264 • Ju lien Benda
13. Eis aqui uma página que, descontada a violência, parece-me exprimir o
sentimento da maioria dos leigos modernos acerca da lealdade patriótica dos
padres: “O clero da França é ardentemente patriota; ele participa com valentia
da batalha; absolve e glorifica todos os atos do soldado; considera infamante a
acusação de descumprir o dever militar e faz disso um mérito. Se ele está de acordo
com o Evangelho, não estamos qualificados para dizê-lo. Somos unicamente
franceses e patriotas; podemos apenas aprovar e admirar os padres e os monges
franceses patriotas. Para o padre da França, quando se trata do alemão, como para
o padre e o pastor alemão, quando se trata do francês, não há perdão. A pátria
acima de tudo. Matar! Matar! Em nome do Deus dos cristãos, vos absolvemos e
vos glorificamos por matar cristãos!” (Urbain Gohier, “La vieille France”, citado
por Grillot de Givry, L e C h r ist e t la p a trie , p. xii).
A traição dos in te le c tu a is • 265
senta, mas não o são hoje. Velly é o único autor um pouco detalhado
que escreveu sobre a história da França. O resumo cronológico de
Hénault é um bom livro clássico; é muito útil que ambos tenham
continuidade. E d a m a io r im p o r tâ n c ia a s s e g u ra r -se d o e s p írito n o q u a l
Humanitarismo e humanismo
É o ensinamento de Nietzsche...
o mundo é feito de certo modo; vós nos enganastes: ele é bem mais
feio, mais vulgar, mais sujo, mais triste e mais duro, pelo menos para
nossa sensibilidade e nossa imaginação; vós as julgais muito excita
das e perturbadas; mas, se elas são assim, é por vossa culpa. Por isso
maldizemos e achincalhamos vosso mundo inteiro, e rejeitamos vossas
pretensas verdades que, para nós, são mentiras, inclusive aquelas
verdades elementares e primordiais que declarais evidentes para o
senso comum e sobre as quais fundais vossas leis, vossas instituições,
vossa sociedade, vossa filosofia, vossa ciência e vossas artes”. — Eis
aí o que a juventude contemporânea, por seus gostos, suas opiniões,
suas veleidades, nas letras, nas artes e na vida, nos diz em voz alta
há quinze anos.
E mais adiante:
Não é ao se nacionalizar que uma literatura adquire uma significação
mais universal, um interesse mais humanamente geral?
E ainda:
Acreditamos — e o mundo acredita conosco — que está no destino
de nossa raça defender os interesses espirituais da humanidade... É à
Europa e a tudo o que subsiste de humanidade no mundo que se dirige
nossa solicitude. A humanidade francesa é a garantia soberana disso.
E sobretudo:
A França vitoriosa quer retomar seu lugar na ordem do espírito, que
é a única ordem pela qual se exerce uma dominação legítima.
vitorio sa , g u a rd iã d a civiliza çã o .
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284 • Ju lien Benda
(Trecho de A traição
dos intelectuais)