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ENTRE A TRADIÇÃO E O PRESENTE: UM ESTUDO

HERMENÊUTICO DO DOUTOR FAUSTO DE THOMAS MANN


Kaio Felipe

RESUMO: Este artigo tem como objetivo interpretar a forma como, em seu romance Doutor
Fausto (1947), Thomas Mann faz uma mediação entre passado e presente; ou seja, como seu
romance dialoga com a tradição filosófica alemã (mais especificamente, Schopenhauer e
Nietzsche) e ao mesmo tempo se situa em relação a seu contexto histórico (II Guerra e
Alemanha nazista) e artístico (Adorno). Em cada capítulo deste artigo serão inseridos trechos
do romance que ajudam a visibilizar tais discussões filosóficas, políticas e artísticas. Este
movimento duplo de tradição e presente se espelhará no estilo adotado por Schopenhauer nos
quatro capítulos que compõem sua obra-prima, O Mundo Como Vontade e Representação: ou
seja, dois deles tratarão de temáticas mais ligadas ao “espírito” (representação) - os capítulos
sobre Schopenhauer e Adorno - e outros dois com questões mais focadas na “vida” (vontade)
- os sobre Nietzsche e o contexto histórico da obra.

PALAVRAS-CHAVE: Thomas Mann; Esteticismo; Humanismo, Arte; Filosofia.

I. Introdução

Thomas Mann já foi acusado por Otto Maria Carpeaux de ser “um Nietzsche disfarçado
de Flaubert” 1, devido à constante inserção de temáticas filosóficas e políticas em seus
romances, sob a roupagem de um vocabulário excessivamente estilizado. O próprio Mann
admitia o caráter ensaístico e demasiadamente digressivo que certas passagens de suas obras
ficcionais adquiriam. Se pela perspectiva de um crítico literário como Carpeaux essa
“literatura filosofante” perde em autonomia estética, do ponto de vista de um cientista social
ou filósofo sua obra passa a ser um rico objeto de estudo.

Doutor Fausto, publicado em 1947, é o último grande romance deste escritor alemão, e
possivelmente também o mais simbólico e hermético deles. Segundo Nivaldo Cordeiro,
nenhuma palavra poderá ser desprezada no romance, sob pena de se perder o fio de raciocínio
do autor na obra. Como o próprio título sugere, este livro é uma atualização do mito fáustico;
além disso, a obra também dialoga com a tradição filosófica e literária da Alemanha,
particularmente com Goethe (que escreveu o mais famoso Fausto) e com as reflexões
estéticas e éticas de Schopenhauer e Nietzsche.

1
Vide “O Admirável Thomas Mann”. IN: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: 1942-1978, Volume 1.
Rio de Janeiro: Topbooks, p. 254, 1999.

1
O narrador de Doutor Fausto é o humanista Serenus Zeitblom, que conta a sombria
história de seu melhor amigo, Adrian Leverkühn, dotado de grande genialidade artística, mas
melancólico e atormentado, a ponto de pactuar com o diabo para adquirir maior inspiração
artística. Com base nesta história de vida ele narra os altos e baixos da Alemanha, a crise de
uma época, a crise na arte: “Trata-se da história amarga de orgulho intelectual e cegueira
moral; a proximidade do esteticismo e da barbárie como conseqüência da cultuação da arte;
do pensamento ilusório de que o homem pode libertar-se a si mesmo.” (RIEMEN, 2011: 77)

Sendo assim, a biografia de Adrian é também um retrato do próprio Século XX; Mann
chegou a dizer que, ao escrever Doutor Fausto, pretendia elaborar “um romance da minha
época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa.” (MANN,
2001: 35) É a sua obra mais política; constitui-se num romance de posição, de reação contra o
esteticismo 2, em prol do humanismo 3 democrático. Ao mesmo tempo, consiste numa
“montagem” em que tudo são símbolos e alegorias.

A autoconsciência de Thomas Mann sobre o caráter hermenêutico de seu romance se


revela no fato de ter escrito pouco depois A Gênese do Doutor Fausto: Romance sobre um
romance (1949). Este texto serve como indicador dos fatos pessoais e históricos que
influenciaram o autor durante a escrita de Doutor Fausto. Além disso, revela seu repertório
filosófico, tanto do passado (particularmente Nietzsche) quanto do presente - no caso,
Adorno, pois este colaborou durante quatro anos com Mann na composição do romance,
contribuindo nos capítulos referentes às questões de arte e música. Não por acaso, serviu de
inspiração para as digressões artísticas do protagonista do livro, o músico Adrian Leverkühn.

Do ponto de vista epistemológico, as reflexões de Hans-Georg Gadamer em Verdade e


Método servirão como base para este trabalho, na medida em que este autor permite ver na a
literatura tanto um fundamento quanto um objeto de estudo proveitoso para as ciências do
espírito: “A literatura é uma função da preservação e da transmissão espiritual e por isso

2
Esteticismo é a doutrina que afirma a superioridade dos valores estéticos e o caráter auto-suficiente da Arte. Os
esteticistas de tendência schopenhaueriana se limitam a crer na contemplação estética objetiva e desinteressada,
que mais tarde formaria o ideal da “arte pela arte”. Porém, os esteticistas nietzschianos alegam que a Arte se
situa acima do Bem e do Mal, sendo a única atividade através da qual o homem, manifestando a sua vontade de
poder, restabelece o seu contato com os instintos agressivos reprimidos pela educação moral, podendo criar um
sentido para a existência. Vide NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Ática, 1999, p. 39.
3
Humanismo é a filosofia moral voltada para a excelência e a dignidade humana, visando ao máximo
aperfeiçoamento intelectual e moral do Homem. É a idéia e o imperativo de uma formação ideal, “que tende a ter
como conteúdo e escopo o próprio homem, digamos: o ideal do homem, o homem ideal.” Vide MOURÃO-
FERREIRA, David. “Do humanismo à omnisciência narrativa na obra de Thomas Mann”. IN: Colóquio Letras.
Lisboa, v. 27, 1975.

2
introduz em cada presente sua história oculta. (...) Não há nada que possua um caráter
espiritual tão puro quanto a escrita, e nada depende tanto do espírito compreendedor quanto
ela.” (GADAMER, 2008: 227-230)

Além disso, concordamos com Gadamer quando este postula que a interpretação que
não é questão de metodologia, pois ela é inevitável; ou seja, é ontológica. Cabe à
hermenêutica reativar intencionalidades, compreender o processo criativo a partir do contexto
cultural. Gadamer enfatiza o diálogo com a tradição como uma forma de atravessar as
perspectivas. A continuidade na relação entre passado e presente nos permite superar nossos
próprios pontos de vista. A tradição é o “passado no presente”, e nos é possível re-conectar
com ela, atualizando-a. Desta forma, há uma idéia humanista por trás da hermenêutica de
Gadamer: o mundo do passado, assim como quem o vê/lê, modificam-se mutuamente. O
hermeneuta é como um tradutor: explicita o não-dito. A pesquisa é por definição Bildung
(formação, auto-cultivo), pois o intérprete também se transforma.

Em suma, neste artigo interpretaremos a forma como Mann faz uma mediação entre
passado e presente; ou seja, como seu romance dialoga com a tradição filosófica alemã (mais
especificamente, Schopenhauer e Nietzsche) e ao mesmo tempo se situa em relação a seu
contexto histórico (II Guerra e Alemanha nazista) e artístico (Adorno). Em cada capítulo deste
artigo serão inseridos trechos do romance que ajudarão a visibilizar tais discussões filosóficas,
políticas e artísticas. 4

Este movimento duplo de tradição e presente se espelhará no estilo adotado por


Schopenhauer nos quatro capítulos que compõem sua obra-prima, O Mundo Como Vontade e
Representação (1819): ou seja, dois deles tratarão de temáticas mais ligadas ao “espírito”
(representação) - os capítulos sobre Schopenhauer e Adorno - e outros dois com questões
mais focadas na “vida” (vontade) - os sobre Nietzsche e o contexto histórico da obra.

II. O Diálogo com a Tradição (I): Schopenhauer e o Humanismo Pessimista

Arthur Schopenhauer (1788-1860) criou uma doutrina que serviu de base para uma série
de ideologias pessimistas. Segundo ela, o sujeito permanece eternamente escravo de uma
Vontade cega e inflexível, e nem mesmo a morte é capaz de libertá-lo, pois a Vontade
sobrevive a essa mera individuação desprendida. A estética schopenhaueriana deriva desse

4
Cabe fazer uma observação: embora o mito fáustico seja uma interessante chave de leitura para esta obra,
preferirei me ater ao debate filosófico e artístico.

3
ascetismo, ao postular a possibilidade de uma contemplação objetiva das Idéias, capaz de
amenizar momentaneamente as imposições da Vontade:

“A transição possível (...) ocorre subitamente quando o conhecimento se


liberta do serviço da Vontade e, por aí, o sujeito cessa de ser meramente
individual e, agora, é puro sujeito do conhecimento destituído de Vontade,
sem mais seguir as relações conforme o princípio de razão, mas concebe em
fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com
outros objetos, repousando e absorvendo-se nessa contemplação.”
(SCHOPENHAUER, 2005: 245)

Schopenhauer foi uma forte influência filosófica para Thomas Mann, especialmente em
suas primeiras obras, como Os Buddenbrooks (1901), nas quais predomina um esteticismo de
tom melancólico. Mann herdou a metafísica do belo schopenhaueriana, segundo a qual o
artista de gênio é aquele capaz de apreender de forma pura as Idéias, isto é, as objetivações da
Vontade, a ponto de anular sua individualidade (principium individuationis) e adquirir uma
perspectiva universal:

“Tal excedente de conhecimento livre torna-se agora sujeito do


conhecimento, purificado de Vontade, espelho claro da essência do mundo.
Daí se explica a vivacidade, que beira a inquietude, em indivíduos geniais,
na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que não preenche a
sua consciência. Daí resulta aquela tendência ao desassossego, aquela
procura incansável por novos objetos dignos de consideração, o anseio
quase nunca satisfeito por seres que lhe sejam semelhantes e que os ombreie
e com os quais possa se comunicar.” (Ibidem: 255)

No âmbito da ética, Schopenhauer estabelecia duas possibilidades de conduta: a


afirmação da Vontade (aceitar, inclusive em sua faceta negativa, este impulso cego que
conduz nossos insaciáveis desejos) e a negação da mesma (ascetismo, abnegação, renúncia).
Como a segunda delas era a mais incomum no cenário filosófico de sua época (e não por
acaso, afinal foi “importada” do misticismo hindu-budista), o autor ficou marcado como
apólogo da negação da Vontade, da rejeição à “vida”. O tom amargo de Schopenhauer dá
munição para tal interpretação; segundo ele, toda vida é sofrimento, uma oscilação entre dor e
tédio. O otimismo é um modo de pensamento não apenas absurdo, mas realmente impiedoso,
“um escárnio amargo acerca dos sofrimentos inomináveis da humanidade.” (Ibidem: 419)

Segundo Mann, o modo de pensar de Schopenhauer era uma “filosofia de artista”, não
só pela ênfase na estética, mas também por ser a expressão de uma natureza artístico-
dinâmica, emocional e plena de tensões. Não se poderia classificá-lo nem como “clássico”,

4
nem como “romântico”. Ele é mais moderno, mais doloroso e mais complicado que Goethe,
mas muito mais “clássico”, mais robusto e mais são do que Nietzsche. (Cf. MANN, 2000: 77)

Thomas Mann acredita que a humanidade e espiritualidade de Arthur Schopenhauer


residem precisamente no matiz pessimista de sua doutrina, a qual o leva a renegar o mundo e
pregar um ideal ascético. Ou seja, Schopenhauer, grande escritor versado em sofrimento, tirou
o Homem do elemento biológico e da natureza, fez de sua alma, que sente e conhece, o teatro
da inversão do querer e viu neste Homem o salvador possível de todas as criaturas (Cf.
Ibidem: 80). Nas palavras do próprio Mann:

“Não é em vão que Schopenhauer vê a dignidade do homem na estátua do


Deus das Musas. É uma visão profunda e particular, unindo a arte, o
conhecimento e a dignidade do sofrimento humano, que se revela nesta
imagem; é um humanismo pessimista que, pois o humanismo tem
essencialmente a colaboração dum otimismo de retórica, representa
qualquer coisa inteiramente nova e, ouso afirmá-lo, uma visão de futuro
fecunda no domínio das convicções. No homem, suprema objetivação da
Vontade, este humanismo é iluminado pelo mais claro conhecimento; mas à
medida de que o conhecimento atinge maior nitidez, que a consciência se
eleva, também o sofrimento cresce.” (Ibidem: 69-70)

Outra das influências schopenhauerianas em Mann se dá na relação que traça entre o


gênio e o louco: “Que a genialidade e a loucura têm um lado que fazem fronteira, sim,
confundem-se, eis aí algo freqüentemente notado. (...) O espírito torturado, (...) na loucura,
procura refúgio daqueles sofrimentos espirituais que ultrapassam suas forças.”
(SCHOPENHAUER, 2005: 260-263). Este será justamente o caso de Adrian Leverkühn,
personagem principal de Doutor Fausto, que deliberadamente adquiriu sífilis para atiçar a sua
criatividade artística, e ao longo da obra sofrerá um processo de degeneração mental. A
influência desta concepção sobre o personagem de Mann fica mais explícita pelo fato de
Schopenhauer ter dito que veementes sofrimentos espirituais com freqüência podem ocasionar
a loucura, na medida em que esta funcionaria como último meio de salvação da vida.

Por fim, cabe mencionar outra personagem de Doutor Fausto que se inspira no leitmotiv
schopenhaueriano: Inês Rodde, uma amiga de Adrian e de Serenus. Ao contrário de seu
marido Helmut Institoris (um professor de tendências esteticistas, além de entusiasta da
Renascença), ela era dotada de uma “melancolia ávida de desgraça”, uma resignação aos
caprichos da vida mundana. Não necessariamente se opera nela um processo completo de
negação da Vontade, mas sua visão de mundo blasé tem um quê de schopenhaueriana:

5
“Reduzindo tudo à fórmula mais breve, tratava-se do conflito entre a
estética e a moral, que predominava em boa parte da dialética cultural
daquela época e nesses dois jovens quase se personificava: o embate entre
uma doutrinária glorificação da „vida‟, na sua exuberante irreflexão, e a
veneração pessimista do sofrimento, com toda a sua profundeza e todo o seu
saber. (...) O Dr. Institoris era – cumpre acrescentar um „Deus meu! ‟ – até
à medula homem do Renascimento, e Inês Rodde aderia claramente ao
moralismo pessimista.” (MANN, 1996: 390)

III. O Diálogo com a Tradição (II): Nietzsche e o Esteticismo Vitalista

Em sua fase final, a filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) anuncia uma


“transvaloração dos valores”, que antepõe em triunfo, com o pathos dos profetas religiosos, o
elemento irracional (dionisíaco), a “vida”, como valor mais elevado do que o racional
(apolíneo), o “intelecto”. Nietzsche é um autor marcado pelo pessimismo cultural; para ele, a
Bildung perdeu todo o seu significado e não passa de uma boneca num belo vestido, mas
totalmente oca. “A utilidade foi declarada como o objetivo mais importante da vida.”
(RIEMEN, 2011: 120) Com a Bildung, desaparecem também a arte da distinção e a nobreza
de espírito. Porém, ele guarda certo otimismo em relação à arte. Ela nos ensina a ter prazer na
existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza; ela semeia intensidade e
multiplicidade da “alegria de vida”. (Cf. NIETZSCHE, 2005: 140-141)

Nietzsche é um esteticista por excelência; vê a arte como o grande estimulante da vida,


capaz de mostrá-la inclusive no que tem de feio, temível e questionável. Aliás, seu esteticismo
tem um quê de cosmológico, como se o artista fosse capaz de desvendar os segredos do
universo. Já em sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1872), afirma que “somente na
medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do
mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte” (Idem, 2007: 44-45).

A outra faceta desta sua afirmação da superioridade da Arte é o amoralismo fáustico que
tal concepção carrega, o qual pode ser visto de forma explícita na frase a seguir, expressa na
obra Humano, Demasiado Humano (1878):

“O artista tem uma moralidade mais fraca do que o pensador; ele não quer
absolutamente ser privado das brilhantes e significativas interpretações da
vida, e se guarda contra métodos e resultados sóbrios e simples. (...) [Ele]
não deseja abrir mão dos pressupostos mais eficazes para a sua arte, ou
seja, o fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para o simbólico, a
superestimação da pessoa, a crença em algo miraculoso no gênio.”
(NIETZSCHE, 2005: 107-108)

6
Nietzsche foi outra influência decisiva para Thomas Mann, servindo inclusive de
inspiração para a trama de Doutor Fausto. Adrian faz o pacto diabólico (e com isso, adquire a
tão ansiada genialidade artística) ao contrair sífilis em um prostíbulo, quando ainda tinha vinte
e poucos anos. Mann se inspirou na história de vida nietzschiana para compor o personagem
Leverkühn, pois em ambos os casos a visita a um bordel desperta um fascínio que mais tarde
se consumará na aquisição de uma doença terrível, mas artisticamente inspiradora:

"Em 1865, Nietzsche, que na época tinha vinte e um anos, (...) tinha viajado
sozinho para Colônia e havia contratado um guia para mostrar-lhe os
monumentos da cidade. Após o passeio que durou a tarde toda, à noite
Nietzsche pergunta ao guia onde poderia encontrar um bom restaurante. O
homem, que assumiu para mim a figura de um mensageiro demoníaco, o
leva para um bordel. O adolescente, puro como uma donzela, (...) cheio de
timidez inocente, se vê rodeado por meia dúzia de figuras vestidas com
lantejoulas, e que cravam nele seus olhos cheios de expectativa. O jovem
músico, filólogo e admirador de Schopenhauer atravessa por entre elas e vai
instintivamente para um piano, o qual avistou no fundo da sala satânica,
vendo-o como „o único ser dotado de alma dentre aquelas pessoas‟, e rasga
alguns acordes. Eles quebram o feitiço, liberam-no do estupor e Nietzsche
consegue escapar para a rua. (...) Um ano depois que fugira daquela casa
em Colônia, Nietzsche, desta vez não conduzido pelo guia diabólico, vai a
um lugar desses e contrai - alguns dizem que propositadamente, como auto-
punição - aquilo que despedaçará sua vida, mas que também a elevará a
alturas enormes." (MANN, 2000: 94)

Thomas Mann não se furta de reprovar moralmente o esteticismo nietzschiano. Em seu


ensaio A Filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência (1947), aponta dois erros que
prejudicariam de forma fatal o pensamento de Nietzsche. O primeiro deles é um
desconhecimento completo, e supostamente premeditado, das relações de poder entre o
instinto e o intelecto na terra, como se fosse este último que dominasse perigosamente, com
isso se tornando necessário salvar o instinto de seu governo opressivo. Mann acredita que a
humanidade experimentou a loucura que tudo isso significa; o fascismo foi inspirado por essa
doutrina da “vontade de poder” 5. Nietzsche, portanto, agiu como a consciência moral que,
como Mefistófeles6, estendeu o punho frio do diabo à vida. (Cf. Ibidem: 115)

O segundo erro de Nietzsche seria a relação completamente falsa que traça entre a vida
e a moral, considerando-as contrárias. Segundo Mann, na verdade elas são indissociáveis; a
ética é um suporte para a vida e o homem moral é um bom “cidadão da vida” - talvez um

5
Por outro lado, neste mesmo ensaio Mann “rechaça a idéia de que o nazismo fosse resultado direto dos
pronunciamentos nietzschianos.” (MISKOLCI, 1998: 192)
6
Mefistófeles é o assecla de Lúcifer com quem o Fausto da lenda faz o pacto.

7
pouco chato, mas muito útil. A pura afirmação da vida só poderia levar às profundezas, ao
irracional-animalesco e à autodestruição. Além disso, a verdadeira oposição é entre a ética e a
estética. Não é a moral, mas a beleza que está ligada à morte, como já foi dito e cantado por
muitos poetas. (Ibidem: 116)

“O esteticismo de Nietzsche, que é uma raivosa negação do espírito e do


intelecto em favor da vida bela, forte e perversa; que é, portanto, a
autonegação de um homem que sofre profundamente por causa da vida,
coloca em suas efusões filosóficas um elemento inautêntico, irresponsável,
perturbador, um elemento apaixonado e teatral, um elemento de profunda
ironia, contra o qual falhará a mente do leitor ingênuo. Não apenas é arte o
que Nietzsche oferece, mas também lê-lo é uma arte. (...) Quem leva
Nietzsche no „sentido estrito‟, ao pé da letra, quem crê nele, está perdido.”
(Ibidem: 130)

Outro exemplo da influência nietzschiana sobre Doutor Fausto é o já mencionado


acadêmico Helmut Institoris, marido de Inês. Este personagem faz constantes apologias ao
“sangue e formosura” do Renascimento, não se importando com as conseqüências morais (e
políticas) dessa postura esteticista. Durante um sarau em que estava, e no qual foi lido um
poema que exaltava a guerra e a conquista imperial (“Ó soldados! Entrego-vos, para o
saqueardes, o mundo!”), eis como a platéia reagiu:

“Tudo isso era „belo‟ e tinha forte consciência de sê-lo. Era „belo‟, de um
modo cruel, inteiramente estético, naquele desbragado espírito exclusivo,
irresponsável, frívolo, que poetas ousam manifestar. Em suma, o mais
esdrúxulo, o mais absurdo esteticismo que jamais me foi dado presenciar. É
escusado dizer que Helmut Institoris o apreciava grandemente. Mas também
entre os demais convidados, o autor e a obra gozavam de alta estima.”
(MANN, 1996: 492)

IV. O Diálogo com o Presente (I): A Alemanha Nazista e a II Guerra

Thomas Mann pretendia escrever um Fausto desde 1901, mas só decidiu realizá-lo
durante a Segunda Guerra Mundial. Ao contrário de seus romances anteriores, que
começaram como projetos narrativos mais modestos, desta vez ele sabia o que queria e a que
se propunha: a partir da tragédia pessoal de um artista, criar um romance sobre sua época:

“Quarenta e dois anos haviam se passado desde que eu fizera anotações


para um possível projeto de trabalho sobre um pacto entre um artista e o
diabo, e buscá-las e revê-las provocou em mim uma comoção, para não
dizer um abalo emocional, que me evidencia já no começo uma aura de

8
sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático vago e escasso,
uma atitude biográfica etérea, cujo alcance, mais profundo do que minha
própria visão, predestinou a novela a se tornar romance.” (Idem, 2001: 20-
21)

A obra começou a ser escrita em 27 de maio de 1943, que também é o marco ficcional
do início do relato de Serenus Zeitblom sobre a vida de Adrian Leverkühn. A estrutura
narrativa do romance sobrepõe três tempos: o da vida de Leverkühn, o da redação da biografia
por um amigo (Zeitblom) e o da história alemã (há vários trechos que são verdadeiros “diários
de guerra”). Porém, Doutor Fausto não aspira a ser um romance histórico tradicional:

“A preocupação de Mann não foi a de explicar como ocorrer os eventos


históricos mais negros deste século [XX], mas sim a de alcançar seu
significado oculto. (...) O século que se encerra revelou-se aterrorizado
diante da liberdade individual e ameaçado pelo rompimento da tradição.
Assim, ignorou qualquer possibilidade de resistência moral e sucumbiu a
seus baixos elementos instintuais traindo a razão.” (MISKOLCI, 1998: 193-
194)

O principal ganho da inserção de Zeitblom como narrador, segundo o próprio Mann, foi
poder situar a narrativa num plano temporal duplo, entrecruzando polifonicamente os eventos
que abalam o narrador enquanto escreve com os fatos por ele apresentados, de tal forma que
seu tremor advém tanto das vibrações de bombardeios distantes quanto ao terror interno que
tem ao se lembrar da trajetória do amigo. (Cf. MANN, 2001: 30-31)

Esse intercurso entre a ficção e os fatos históricos é a peculiaridade do romance, que


não permite interpretação alternativa do tema tratado. Com as guerras e a subida dos nazistas
ao poder, Thomas Mann não teve dúvida de que estava diante do Mal mefistofélico integral,
encarnado na saga de seu povo. A história da Alemanha então se confundiu com a história de
todo o mundo, pela guerra, pela ânsia opressora dos nazistas e pela violência sem tamanho
que perpetrava. (Cf. CORDEIRO, 2011)

Em A Gênese de Doutor Fausto, Mann afirmou estar sempre alerta ao risco de, com seu
romance, “contribuir para a criação de um novo mito germânico, de lisonjear os alemães com
seu aspecto „demoníaco‟”; para evitá-lo, procurou “dissolver o tema do livro - crise, um tema
de tonalidade de resto tão germânica - o máximo possível num contexto geral histórico e
europeu.” (MANN, 2001: 48-49)

Mann era um intelectual público bem ativo; já no início dos anos 1920 denunciava
publicamente a ameaça que representava a ascensão do nazismo. Ele e a família tiveram que

9
sair da Alemanha em 1933, poucas semanas depois que Hitler chegara ao poder; além disso,
foi destituído de sua nacionalidade. Após passar alguns anos na Suíça, mudou-se para os
Estados Unidos em 1939, onde continuou seu esforço político, escrevendo ensaios e fazendo
conferências visando a persuadir os americanos, que mantinham uma postura isolacionista nas
relações internacionais, de que a guerra contra o nazi-fascismo era um assunto do qual não
poderiam se furtar. Mesmo os temas que desenvolveu na sua literatura de emigrante
(Exilliteratur) são manifestações de liberdade. Como se fosse um “Dom Quixote alemão”,
Thomas Mann combateu o “mal radical”, utilizando a arma da escrita para fazer compreender
sua mensagem em prol da excelência humana. 7

Porém, mesmo com o fim da II Guerra Mundial e a derrota do regime hitlerista, seu
desconforto não acabou, pois em 1945 vieram a público as atrocidades cometidas pelo
nazismo; além disso, a divisão da Alemanha e o início da Guerra Fria mostraram que a paz
ainda estava distante...

Ao longo de seu relato Zeitblom trata de praticamente todos os aspectos da vida alemã,
tanto pública quanto privada, desde 1885, ano do nascimento de Leverkühn, até 1945. A
evocação do sentimento nacionalista, a perversão da teologia 8, o fracasso do amor familiar, a
introdução da chocante nova música de Leverkühn no mundo artístico: tudo é desenvolvido
em detalhes macabros. (Cf. SCAFF, 2004: 170). Serenus acredita que o destino de seu amigo
Leverkühn e o da Alemanha estão entrelaçados: “Por menos que fosse possível estabelecer
um contato psíquico entre o declínio de sua saúde e a desgraça da pátria, não pude inibir-me
de descobrir em ambos um nexo objetivo, um paralelo simbólico.” (MANN, 1996: 463)

Além disso, Serenus encarna o diagnóstico do próprio Mann de que a culpa pela guerra
e pelos crimes do nazismo deveria recair não só sobre Hitler e seus comparsas, mas também
sobre os alemães que se mantiveram passivos. As palavras do narrador não poderiam ser mais
desencantadas:

“Arrombados foram os espessos muros do calabouço de torturas, no qual


um governo ignóbil, desde sempre devotado ao nada, converteu a Alemanha,
e nossa vergonha está exposta abertamente ao mundo (...). Repito: nossa
vergonha. Pois será mera hipocondria confessar que tudo quanto é alemão,
inclusive o espírito alemão, o pensamento alemão, a fala alemã foram
7
Vide DAYAN-HERZBRUN, Sonia. “Thomas Mann: um escritor contra o nazismo”. IN: Trans/Form/Ação,
vol. 20, 1997.
8
Antes de seguir a carreira musical, durante algum tempo Adrian estudou Teologia na universidade. Lá teve
aulas com professores que só reforçaram suas tendências niilistas, sendo que os principais eram o teólogo liberal
Kumpf e o negativista Schlepfuss, o qual deu um curso sobre a presença do Mal - e sua imprescindibilidade.

10
atingidos da mesma forma por esse desnudamento humilhante e deixaram
por completo de merecer confiança? Será compunção mórbida perguntar
como, no futuro, „a Alemanha‟, sob qualquer aspecto, poderá atrever-se a
abrir a boca em assuntos concernentes à Humanidade?” (MANN, 1996:
648)

Mesmo tendo sido enfático em atribuir a toda a gente alemã a responsabilidade pela
catástrofe da II Guerra Mundial e aos crimes praticados pelo nazismo, isso não significa que o
escritor perdeu seu amor à pátria-mãe: “Thomas Mann nunca escondeu que Doutor Fausto era
a sua obra mais pessoal; uma confissão. Sem a menor timidez, no começo de seu exílio nos
Estados Unidos, declarara: „Onde eu estiver, também lá estará a cultura alemã‟.” (RIEMEN,
2011: 79)

V. O Diálogo com o Presente (II): Adorno e a Nova Música

O Fausto de Mann é um músico porque, “se foi especialmente em termos musicais que a
Alemanha enriqueceu enormemente a cultura ocidental, também já estava presente nesse dom
as sementes da catástrofe germânica.” (MISKOLCI, 1998: 197) Uma pessoa que muito
ajudou Mann a elaborar o protagonista do romance foi o filósofo Theodor Adorno (1903-
1969), que curiosamente era seu vizinho, e a partir de 1943 se tornou seu conselheiro em
matéria de música. Eis uma passagem do diário de Thomas Mann que revela a importância da
leitura dos manuscritos de Adorno para a gestação do Doutor Fausto:

“À noite, outra vez o texto de Adorno sobre música, que me elucida alguns
pontos e ao mesmo tempo evidencia toda a dificuldade do meu intento. (...)
Eu tinha nas mãos, de fato, algo „importante‟. Era uma crítica profunda da
situação artística e sociológica, de extremo refinamento e atualidade, que
apresentava uma singularíssima afinidade com a idéia de minha obra, com
a „composição‟ que eu estava vivendo, tecendo.” (MANN, 2001: 39)

Durante a escrita do romance, Mann encontrou-se regularmente com Adorno, leu-lhe


passagens da obra e pediu ajuda para as descrições da música que Leverkühn compunha.
Embora o destino do personagem tenha mais a ver com Friedrich Nietzsche do que com
Arnold Schönberg, a crise artística enfrentada por Adrian (e a sua resolução diante da mesma)
se assemelha bastante à análise que Adorno fez da situação com que Schönberg se deparou
com suas inovações, na medida em que este “elucida a fatalidade que lança às trevas míticas a
iluminação construtiva e objetivamente necessária da música, por motivos também objetivos,
e, por assim dizer, por cima da cabeça do artista.” (Ibidem: 41)

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Cabe tecer algumas considerações sobre esta preocupação de Adorno com a música. Em
sua última obra, a Teoria Estética, este autor afirma que o lugar da arte se tornou incerto. A
autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da sua função cultual e dos seus
duplicados, vivia da idéia de humanidade; contudo, esta foi abalada à medida que a sociedade
se tornava menos humana. (Cf. ADORNO, 1991: 11) Porém, Adorno acreditava que as
experiências musicais da Segunda Escola de Viena, expressas na técnica dodecafônica e
atonal de composição, haviam produzido as condições de possibilidade para se pensar um
conceito renovado de sujeito e de razão. (Cf. SAFATLE, 2009: 174) Destarte, Adorno procura
compreender as potencialidades estéticas abertas por esta vanguarda musical:

“A música de Schönberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera


as pulsões [Triebhafte] ameaçadoras, que outras músicas só deixam
transparecer quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados;
e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que
fosse forte o suficiente para não renegar (verleugnen) a pulsão (...). Embora
sua música canalizasse todas as forças do Eu na objetivação de seus
impulsos, ela permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de
Schönberg, algo „estranho ao eu‟.” (ADORNO apud SAFATLE, 2009: 177)

Schönberg, segundo Adorno, é subversivo por mudar a função da expressão musical:


“as primeiras obras atonais são documentos no [mesmo] sentido dos documentos oníricos dos
psicanalistas.” (ADORNO, 2009: 40). As obras deste compositor são simultaneamente
documento e construção: “Nelas nada permanece das convenções que garantiam a liberdade
do jogo.” (Ibidem: 41) A técnica dodecafônica, portanto, culmina na “vontade de superar a
oposição dominante da música ocidental, a oposição que há entre a natureza polifônica da
fuga e a natureza homofônica da sonata.” (Ibidem: 50) Além disso, ela escraviza a música ao
liberá-la. Em outras palavras, o sujeito impera sobre a música mediante o sistema racional,
mas sucumbe a ele, pois nenhuma regra se mostra mais repressiva do que aquela que
impomos a nós mesmos: “O sujeito subordina-se-lhe e busca proteção e segurança, porque se
desespera de poder dar por si só verdadeira realidade à música.” (Ibidem: 60)

Há três personagens que parecem ter sido inspirados nessas reflexões estéticas de
Adorno. Como já foi dito, um deles é Adrian Leverkühn, que constrói uma técnica de
composição bastante inspirada no estilo dodecafônico analisado por Adorno em Schönberg:
“Tal estilo, tal técnica (...) não admitiria nenhuma nota, nem uma única, que não cumprisse na
construção geral sua função de motivo. Não haveria mais nenhuma nota livre.” (MANN,
1996: 655)

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O segundo deles é Wendell Kretzschmar, professor de música que conduz a vocação
artística de Adrian. No início do romance ele faz uma palestra sobre vários temas que
interessam profundamente a seu pupilo: a relação entre cultura e barbárie, Música e
ascetismo, o reencontro com o Elementar... - e, por fim, a história do anabatista Beissel, que
inventou uma teoria musical heterodoxa, “por demais extravagante e arbitrária para que
pudesse ser aceita pelo mundo exterior.” (Ibidem: 90). Kretzschmar terá um papel decisivo (e,
por assim dizer, mefistofélico) na decisão de Adrian de se tornar um músico.

Os manuscritos de Adorno, segundo Mann, foram uma leitura estimulante e de muita


importância para a criação de Kretzschmar (Cf. ADORNO & MANN, 2006: 9), que herda de
Adorno várias digressões, dentre elas uma sobre a importância da “personalidade absoluta” na
música: “A Arte progride (...) e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e
instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se
indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros.” (MANN, 1996: 181)

Por fim, ironicamente ou não, o Diabo com quem Leverkühn faz o pacto se assemelha a
Adorno. No início de sua soturna conversa com Adrian, “Ele” se parece com um rufião,
“falando alemão e espalhando frio”; porém, à medida que seu interlocutor começa a se sentir
à vontade, o Diabo muda de fisionomia, tomando a forma de um elegante musicólogo, “um
intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre Arte e Música, teórico e crítico,
que ele mesmo faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas
capacidades.” (Ibidem: 322) Qualquer semelhança com a vida do próprio Adorno seria mera
coincidência?

Este parentesco se reforça quando o Diabo começa a tecer considerações sobre a crise
da arte moderna que parecem fortemente inspiradas nas de Adorno. Segundo “Ele”, a
composição tornou-se mais difícil na arte emancipada, devido à submissão à técnica. A
aparência auto-suficiente da Música se tornou impossível:

“A cada instante, a técnica, na sua totalidade, exige dele [do artista] que se
submeta a ela e impõe a única resposta certa, que no momento lhe parece
admissível. Chega-se então ao ponto no qual as composições do artista (...)
não passam de soluções de rebus técnicos. A Arte transforma-se em crítica.
Conversão muito honrosa, inegavelmente, e que requer muita rebeldia em
plena subordinação, muita independência, muita coragem. (...) A crítica ao
ornamento, à convenção e à generalidade abstrata é uma e a mesma. O que
permanece objeto dela é o caráter ilusório da obra de arte burguesa, do

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qual a Música participa, ainda que não crie nenhuma imagem.” (MANN,
1996: 324-326)

Cabe, no entanto, dizer que Mann ficou com a consciência aliviada quando Adorno não
“torceu o nariz” para a utilização de seus comentários de crítica contemporânea a fim de levar
o personagem demoníaco a, conforme diz Adrian, “cortejar a arte”. (Cf. Idem, 2001: 122)

VI. Conclusão

Ao longo deste artigo norteamos nossa análise de Doutor Fausto a partir de quatro eixos
temáticos: como Thomas Mann se apropria da filosofia de Schopenhauer; de que maneira o
autor incorpora a biografia de Nietzsche no protagonista do romance, assim como sua crítica
ao esteticismo nietzschiano; como Mann conecta a trama do romance com os acontecimentos
reais (a II Guerra e o Nazismo); e de que forma, a partir das conversas que teve com Adorno,
a música adquiriu papel fundamental na formação de Adrian Leverkühn.

No que diz respeito a Schopenhauer, a influência se deu em dois sentidos. No âmbito


estético, pela noção de “gênio”, tanto pela capacidade de contemplação pura e desinteressada
(o que caracterizaria o artista genuíno) quanto pela relação que estabelece entre genialidade e
loucura. No ético, pelo ascetismo que Mann incorporou a alguns personagens, como Inês, e
principalmente pela localização, no autor de O Mundo como Vontade e Representação, de um
“humanismo pessimista”, pois Schopenhauer vê a vida humana inescapavelmente ligada à dor
e ao sofrimento, mas também encara o Homem como a suprema objetivação da Vontade,
portanto capaz de redimir o mundo. O último parágrafo de Doutor Fausto se espelha nessa
mescla de resignação e confiança: “Quando raiará, em meio à derradeira desolação, um
milagre superior a qualquer fé, a luz da esperança?” (Idem, 1996: 687)

Mann ligou de forma alegórica o destino de Leverkühn com, por um lado, a evolução
gradual da Alemanha em direção ao nazismo e, por outro, a vida e destino de Friedrich
Nietzsche - cuja vida, como vimos, serviu quase literalmente de inspiração para o
personagem. Com isso Thomas Mann esperava mostrar que a tentativa de escapar da
impotência através da adesão a ideais anti-sociais (como o esteticismo e, em maior medida, o
nazismo) fracassaria, pois está divorciada do ideal de Humanidade. Nietzsche e a Alemanha
nazista seriam dois exemplos do malogro dessa tentativa. (cf. GOLDMAN, 1992: 226)

Sendo assim, Doutor Fausto é um romance anti-nietzschiano, no qual Friedrich


Nietzsche é forçado a ver e confessar seus erros. (Ibidem: 252) No livro a vida pessoal de

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Nietzsche é o tema, não sua filosofia. (Cf. MISKOLCI, 1998: 199) O que Mann está
defendendo é o ideal de Humanidade que, outrora parte integrante e pilar da tradição da
Bildung, foi suplantado por elementos reacionários e vitalistas. Thomas Mann tenta reviver
este ideal como uma alternativa para a crise e divisão da Alemanha e à sua perda de ideais
estáveis; ou seja, vê o humanismo como uma síntese espiritual e uma tentativa de
transcendência da sociedade burguesa e de seus oponentes de direita e de esquerda. É por isso
que a vontade de poder e o avanço em direção ao "super-homem" (Übermensch),
empreendidos tanto pela Alemanha quanto por Leverkühn, são uma solução nietzschiana que
Mann rejeita. (Cf. GOLDMAN, 1992: 232)

Por sua vez, Theodor Adorno foi um importante parceiro intelectual que o autor de
Doutor Fausto teve para construir as partes do romance que tratam especificamente de
música; o escrito sobre Schönberg foi o prelúdio dessa amizade artística. Segundo o próprio
Mann, o interesse de Adorno pelo livro “crescia à medida que ele se inteirava de seu conteúdo
e que começou a mobilizar para o romance sua faculdade imaginativa musical.” (MANN,
2001: 95) Fascinava a Thomas Mann a peculiar afinidade com que o programa estético de seu
romance se comunicava com a estética vanguardista de Adorno. Em ambos é possível
encontrar uma reflexão sobre a possibilidade da construção de uma nova subjetividade por
meio das inovações técnicas da “nova música”. A diferença é que Doutor Fausto explora esse
tema também em sua dimensão moral, alertando para o risco de um esteticismo diabólico.

Antes de encerrar esse trabalho, cabe relembrar algumas palavras de Gadamer sobre a
abordagem hermenêutica da literatura. Segundo o autor de Verdade e Método, “toda obra de
arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura” (GADAMER, 2008: 230), pois a
estética deve se subordinar à hermenêutica. Em outras palavras, o sentido do texto só se
realiza plenamente a partir da representação que ele recebe; ele se consuma a partir de sua
compreensão enquanto acontecimento semântico. Portanto, a hermenêutica deve “determinar-
se, em seu conjunto, de maneira a fazer justiça à experiência da arte.” (Ibidem: 231)

Aos desmembrar Doutor Fausto em quatro eixos temáticos (dois mais “abstratos” -
Schopenhauer e Adorno - e dois mais “biográficos” - Nietzsche e o contexto do nazismo e da
guerra), o esforço empreendido neste artigo foi o de entender a “montagem” que Mann
operou. Ou seja, o que tentamos desenvolver foi uma compreensão da obra tanto em sua
relação com o passado, seja em sua dimensão filosófica (por exemplo, o “humanismo
pessimista” schopenhaueriano) ou histórica (no caso, a incorporação de elementos da vida de

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Nietzsche em Leverkühn), quanto com o presente, também de maneira bifurcada: em um
sentido mais “espiritual” (a colaboração de Adorno sobre arte e música) e um mais “vital” (o
peso do momento histórico em que Doutor Fausto foi escrito).

Desta forma, nos foi possível perceber em Thomas Mann um escritor capaz de dialogar
bem tanto com a tradição quanto com seu próprio contexto. “Mann foi um artista moderno sui
generis, tinha consciência demais de seu papel histórico e de tudo o que devia a seus
predecessores para considerar-se um vanguardista stricto sensu.” (MISKOLCI, 1998: 196)

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor. Filosofia da Nova Música (3ª Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2009.
________________ Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1991.
________________ & MANN, Thomas. Correspondencia 1943-1955: Theodor W. Adorno y
Thomas Mann. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006.
CORDEIRO, José Nivaldo Gomes. O Doutor Fausto de Thomas Mann (I a V), 2011. Fonte:
http://www.nivaldocordeiro.net/
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I (10ª Ed.). Petrópolis: Vozes, 2008.
MANN, Thomas. A Gênese do Doutor Fausto: Romance sobre um romance. São Paulo:
Mandarim, 2001.
_____________ Doutor Fausto (2 vol.). Rio de Janeiro: Record, 1996.
_____________ Schopenhauer, Nietzsche, Freud. Madri: Alianza Editorial, 2000.
MISKOLCI, Richard. “A filosofia da história no Doutor Fausto”. Tempo Social: Revista de
Sociologia da USP, pp. 191-208. São Paulo, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
__________________ O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
RIEMEN, Rob. Nobreza de Espírito: um ideal esquecido. Petrópolis: Vozes, 2011.
SAFATLE, Vladimir. “Theodor Adorno: a unidade de uma experiência filosófica plural”. IN:
Pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção no Brasil, volume 1
(org.: Jorge de Almeida e Wolfgang Bader). São Páulo: Cosac Naify, 2009.
SCAFF, Susan von Rohr Scaff. “Doctor Faustus”. IN: The Cambridge Companion to Thomas
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SCHMIDT, James. “Mephistopheles in Hollywood: Adorno, Mann and Schoenberg”. IN: The
Cambridge Companion to Adorno. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 148-180,
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SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo:
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