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RESUMO: Este artigo tem como objetivo interpretar a forma como, em seu romance Doutor
Fausto (1947), Thomas Mann faz uma mediação entre passado e presente; ou seja, como seu
romance dialoga com a tradição filosófica alemã (mais especificamente, Schopenhauer e
Nietzsche) e ao mesmo tempo se situa em relação a seu contexto histórico (II Guerra e
Alemanha nazista) e artístico (Adorno). Em cada capítulo deste artigo serão inseridos trechos
do romance que ajudam a visibilizar tais discussões filosóficas, políticas e artísticas. Este
movimento duplo de tradição e presente se espelhará no estilo adotado por Schopenhauer nos
quatro capítulos que compõem sua obra-prima, O Mundo Como Vontade e Representação: ou
seja, dois deles tratarão de temáticas mais ligadas ao “espírito” (representação) - os capítulos
sobre Schopenhauer e Adorno - e outros dois com questões mais focadas na “vida” (vontade)
- os sobre Nietzsche e o contexto histórico da obra.
I. Introdução
Thomas Mann já foi acusado por Otto Maria Carpeaux de ser “um Nietzsche disfarçado
de Flaubert” 1, devido à constante inserção de temáticas filosóficas e políticas em seus
romances, sob a roupagem de um vocabulário excessivamente estilizado. O próprio Mann
admitia o caráter ensaístico e demasiadamente digressivo que certas passagens de suas obras
ficcionais adquiriam. Se pela perspectiva de um crítico literário como Carpeaux essa
“literatura filosofante” perde em autonomia estética, do ponto de vista de um cientista social
ou filósofo sua obra passa a ser um rico objeto de estudo.
Doutor Fausto, publicado em 1947, é o último grande romance deste escritor alemão, e
possivelmente também o mais simbólico e hermético deles. Segundo Nivaldo Cordeiro,
nenhuma palavra poderá ser desprezada no romance, sob pena de se perder o fio de raciocínio
do autor na obra. Como o próprio título sugere, este livro é uma atualização do mito fáustico;
além disso, a obra também dialoga com a tradição filosófica e literária da Alemanha,
particularmente com Goethe (que escreveu o mais famoso Fausto) e com as reflexões
estéticas e éticas de Schopenhauer e Nietzsche.
1
Vide “O Admirável Thomas Mann”. IN: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: 1942-1978, Volume 1.
Rio de Janeiro: Topbooks, p. 254, 1999.
1
O narrador de Doutor Fausto é o humanista Serenus Zeitblom, que conta a sombria
história de seu melhor amigo, Adrian Leverkühn, dotado de grande genialidade artística, mas
melancólico e atormentado, a ponto de pactuar com o diabo para adquirir maior inspiração
artística. Com base nesta história de vida ele narra os altos e baixos da Alemanha, a crise de
uma época, a crise na arte: “Trata-se da história amarga de orgulho intelectual e cegueira
moral; a proximidade do esteticismo e da barbárie como conseqüência da cultuação da arte;
do pensamento ilusório de que o homem pode libertar-se a si mesmo.” (RIEMEN, 2011: 77)
Sendo assim, a biografia de Adrian é também um retrato do próprio Século XX; Mann
chegou a dizer que, ao escrever Doutor Fausto, pretendia elaborar “um romance da minha
época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa.” (MANN,
2001: 35) É a sua obra mais política; constitui-se num romance de posição, de reação contra o
esteticismo 2, em prol do humanismo 3 democrático. Ao mesmo tempo, consiste numa
“montagem” em que tudo são símbolos e alegorias.
2
Esteticismo é a doutrina que afirma a superioridade dos valores estéticos e o caráter auto-suficiente da Arte. Os
esteticistas de tendência schopenhaueriana se limitam a crer na contemplação estética objetiva e desinteressada,
que mais tarde formaria o ideal da “arte pela arte”. Porém, os esteticistas nietzschianos alegam que a Arte se
situa acima do Bem e do Mal, sendo a única atividade através da qual o homem, manifestando a sua vontade de
poder, restabelece o seu contato com os instintos agressivos reprimidos pela educação moral, podendo criar um
sentido para a existência. Vide NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Ática, 1999, p. 39.
3
Humanismo é a filosofia moral voltada para a excelência e a dignidade humana, visando ao máximo
aperfeiçoamento intelectual e moral do Homem. É a idéia e o imperativo de uma formação ideal, “que tende a ter
como conteúdo e escopo o próprio homem, digamos: o ideal do homem, o homem ideal.” Vide MOURÃO-
FERREIRA, David. “Do humanismo à omnisciência narrativa na obra de Thomas Mann”. IN: Colóquio Letras.
Lisboa, v. 27, 1975.
2
introduz em cada presente sua história oculta. (...) Não há nada que possua um caráter
espiritual tão puro quanto a escrita, e nada depende tanto do espírito compreendedor quanto
ela.” (GADAMER, 2008: 227-230)
Além disso, concordamos com Gadamer quando este postula que a interpretação que
não é questão de metodologia, pois ela é inevitável; ou seja, é ontológica. Cabe à
hermenêutica reativar intencionalidades, compreender o processo criativo a partir do contexto
cultural. Gadamer enfatiza o diálogo com a tradição como uma forma de atravessar as
perspectivas. A continuidade na relação entre passado e presente nos permite superar nossos
próprios pontos de vista. A tradição é o “passado no presente”, e nos é possível re-conectar
com ela, atualizando-a. Desta forma, há uma idéia humanista por trás da hermenêutica de
Gadamer: o mundo do passado, assim como quem o vê/lê, modificam-se mutuamente. O
hermeneuta é como um tradutor: explicita o não-dito. A pesquisa é por definição Bildung
(formação, auto-cultivo), pois o intérprete também se transforma.
Em suma, neste artigo interpretaremos a forma como Mann faz uma mediação entre
passado e presente; ou seja, como seu romance dialoga com a tradição filosófica alemã (mais
especificamente, Schopenhauer e Nietzsche) e ao mesmo tempo se situa em relação a seu
contexto histórico (II Guerra e Alemanha nazista) e artístico (Adorno). Em cada capítulo deste
artigo serão inseridos trechos do romance que ajudarão a visibilizar tais discussões filosóficas,
políticas e artísticas. 4
Arthur Schopenhauer (1788-1860) criou uma doutrina que serviu de base para uma série
de ideologias pessimistas. Segundo ela, o sujeito permanece eternamente escravo de uma
Vontade cega e inflexível, e nem mesmo a morte é capaz de libertá-lo, pois a Vontade
sobrevive a essa mera individuação desprendida. A estética schopenhaueriana deriva desse
4
Cabe fazer uma observação: embora o mito fáustico seja uma interessante chave de leitura para esta obra,
preferirei me ater ao debate filosófico e artístico.
3
ascetismo, ao postular a possibilidade de uma contemplação objetiva das Idéias, capaz de
amenizar momentaneamente as imposições da Vontade:
Schopenhauer foi uma forte influência filosófica para Thomas Mann, especialmente em
suas primeiras obras, como Os Buddenbrooks (1901), nas quais predomina um esteticismo de
tom melancólico. Mann herdou a metafísica do belo schopenhaueriana, segundo a qual o
artista de gênio é aquele capaz de apreender de forma pura as Idéias, isto é, as objetivações da
Vontade, a ponto de anular sua individualidade (principium individuationis) e adquirir uma
perspectiva universal:
Segundo Mann, o modo de pensar de Schopenhauer era uma “filosofia de artista”, não
só pela ênfase na estética, mas também por ser a expressão de uma natureza artístico-
dinâmica, emocional e plena de tensões. Não se poderia classificá-lo nem como “clássico”,
4
nem como “romântico”. Ele é mais moderno, mais doloroso e mais complicado que Goethe,
mas muito mais “clássico”, mais robusto e mais são do que Nietzsche. (Cf. MANN, 2000: 77)
Por fim, cabe mencionar outra personagem de Doutor Fausto que se inspira no leitmotiv
schopenhaueriano: Inês Rodde, uma amiga de Adrian e de Serenus. Ao contrário de seu
marido Helmut Institoris (um professor de tendências esteticistas, além de entusiasta da
Renascença), ela era dotada de uma “melancolia ávida de desgraça”, uma resignação aos
caprichos da vida mundana. Não necessariamente se opera nela um processo completo de
negação da Vontade, mas sua visão de mundo blasé tem um quê de schopenhaueriana:
5
“Reduzindo tudo à fórmula mais breve, tratava-se do conflito entre a
estética e a moral, que predominava em boa parte da dialética cultural
daquela época e nesses dois jovens quase se personificava: o embate entre
uma doutrinária glorificação da „vida‟, na sua exuberante irreflexão, e a
veneração pessimista do sofrimento, com toda a sua profundeza e todo o seu
saber. (...) O Dr. Institoris era – cumpre acrescentar um „Deus meu! ‟ – até
à medula homem do Renascimento, e Inês Rodde aderia claramente ao
moralismo pessimista.” (MANN, 1996: 390)
A outra faceta desta sua afirmação da superioridade da Arte é o amoralismo fáustico que
tal concepção carrega, o qual pode ser visto de forma explícita na frase a seguir, expressa na
obra Humano, Demasiado Humano (1878):
“O artista tem uma moralidade mais fraca do que o pensador; ele não quer
absolutamente ser privado das brilhantes e significativas interpretações da
vida, e se guarda contra métodos e resultados sóbrios e simples. (...) [Ele]
não deseja abrir mão dos pressupostos mais eficazes para a sua arte, ou
seja, o fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para o simbólico, a
superestimação da pessoa, a crença em algo miraculoso no gênio.”
(NIETZSCHE, 2005: 107-108)
6
Nietzsche foi outra influência decisiva para Thomas Mann, servindo inclusive de
inspiração para a trama de Doutor Fausto. Adrian faz o pacto diabólico (e com isso, adquire a
tão ansiada genialidade artística) ao contrair sífilis em um prostíbulo, quando ainda tinha vinte
e poucos anos. Mann se inspirou na história de vida nietzschiana para compor o personagem
Leverkühn, pois em ambos os casos a visita a um bordel desperta um fascínio que mais tarde
se consumará na aquisição de uma doença terrível, mas artisticamente inspiradora:
"Em 1865, Nietzsche, que na época tinha vinte e um anos, (...) tinha viajado
sozinho para Colônia e havia contratado um guia para mostrar-lhe os
monumentos da cidade. Após o passeio que durou a tarde toda, à noite
Nietzsche pergunta ao guia onde poderia encontrar um bom restaurante. O
homem, que assumiu para mim a figura de um mensageiro demoníaco, o
leva para um bordel. O adolescente, puro como uma donzela, (...) cheio de
timidez inocente, se vê rodeado por meia dúzia de figuras vestidas com
lantejoulas, e que cravam nele seus olhos cheios de expectativa. O jovem
músico, filólogo e admirador de Schopenhauer atravessa por entre elas e vai
instintivamente para um piano, o qual avistou no fundo da sala satânica,
vendo-o como „o único ser dotado de alma dentre aquelas pessoas‟, e rasga
alguns acordes. Eles quebram o feitiço, liberam-no do estupor e Nietzsche
consegue escapar para a rua. (...) Um ano depois que fugira daquela casa
em Colônia, Nietzsche, desta vez não conduzido pelo guia diabólico, vai a
um lugar desses e contrai - alguns dizem que propositadamente, como auto-
punição - aquilo que despedaçará sua vida, mas que também a elevará a
alturas enormes." (MANN, 2000: 94)
O segundo erro de Nietzsche seria a relação completamente falsa que traça entre a vida
e a moral, considerando-as contrárias. Segundo Mann, na verdade elas são indissociáveis; a
ética é um suporte para a vida e o homem moral é um bom “cidadão da vida” - talvez um
5
Por outro lado, neste mesmo ensaio Mann “rechaça a idéia de que o nazismo fosse resultado direto dos
pronunciamentos nietzschianos.” (MISKOLCI, 1998: 192)
6
Mefistófeles é o assecla de Lúcifer com quem o Fausto da lenda faz o pacto.
7
pouco chato, mas muito útil. A pura afirmação da vida só poderia levar às profundezas, ao
irracional-animalesco e à autodestruição. Além disso, a verdadeira oposição é entre a ética e a
estética. Não é a moral, mas a beleza que está ligada à morte, como já foi dito e cantado por
muitos poetas. (Ibidem: 116)
“Tudo isso era „belo‟ e tinha forte consciência de sê-lo. Era „belo‟, de um
modo cruel, inteiramente estético, naquele desbragado espírito exclusivo,
irresponsável, frívolo, que poetas ousam manifestar. Em suma, o mais
esdrúxulo, o mais absurdo esteticismo que jamais me foi dado presenciar. É
escusado dizer que Helmut Institoris o apreciava grandemente. Mas também
entre os demais convidados, o autor e a obra gozavam de alta estima.”
(MANN, 1996: 492)
Thomas Mann pretendia escrever um Fausto desde 1901, mas só decidiu realizá-lo
durante a Segunda Guerra Mundial. Ao contrário de seus romances anteriores, que
começaram como projetos narrativos mais modestos, desta vez ele sabia o que queria e a que
se propunha: a partir da tragédia pessoal de um artista, criar um romance sobre sua época:
8
sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático vago e escasso,
uma atitude biográfica etérea, cujo alcance, mais profundo do que minha
própria visão, predestinou a novela a se tornar romance.” (Idem, 2001: 20-
21)
A obra começou a ser escrita em 27 de maio de 1943, que também é o marco ficcional
do início do relato de Serenus Zeitblom sobre a vida de Adrian Leverkühn. A estrutura
narrativa do romance sobrepõe três tempos: o da vida de Leverkühn, o da redação da biografia
por um amigo (Zeitblom) e o da história alemã (há vários trechos que são verdadeiros “diários
de guerra”). Porém, Doutor Fausto não aspira a ser um romance histórico tradicional:
O principal ganho da inserção de Zeitblom como narrador, segundo o próprio Mann, foi
poder situar a narrativa num plano temporal duplo, entrecruzando polifonicamente os eventos
que abalam o narrador enquanto escreve com os fatos por ele apresentados, de tal forma que
seu tremor advém tanto das vibrações de bombardeios distantes quanto ao terror interno que
tem ao se lembrar da trajetória do amigo. (Cf. MANN, 2001: 30-31)
Em A Gênese de Doutor Fausto, Mann afirmou estar sempre alerta ao risco de, com seu
romance, “contribuir para a criação de um novo mito germânico, de lisonjear os alemães com
seu aspecto „demoníaco‟”; para evitá-lo, procurou “dissolver o tema do livro - crise, um tema
de tonalidade de resto tão germânica - o máximo possível num contexto geral histórico e
europeu.” (MANN, 2001: 48-49)
Mann era um intelectual público bem ativo; já no início dos anos 1920 denunciava
publicamente a ameaça que representava a ascensão do nazismo. Ele e a família tiveram que
9
sair da Alemanha em 1933, poucas semanas depois que Hitler chegara ao poder; além disso,
foi destituído de sua nacionalidade. Após passar alguns anos na Suíça, mudou-se para os
Estados Unidos em 1939, onde continuou seu esforço político, escrevendo ensaios e fazendo
conferências visando a persuadir os americanos, que mantinham uma postura isolacionista nas
relações internacionais, de que a guerra contra o nazi-fascismo era um assunto do qual não
poderiam se furtar. Mesmo os temas que desenvolveu na sua literatura de emigrante
(Exilliteratur) são manifestações de liberdade. Como se fosse um “Dom Quixote alemão”,
Thomas Mann combateu o “mal radical”, utilizando a arma da escrita para fazer compreender
sua mensagem em prol da excelência humana. 7
Porém, mesmo com o fim da II Guerra Mundial e a derrota do regime hitlerista, seu
desconforto não acabou, pois em 1945 vieram a público as atrocidades cometidas pelo
nazismo; além disso, a divisão da Alemanha e o início da Guerra Fria mostraram que a paz
ainda estava distante...
Ao longo de seu relato Zeitblom trata de praticamente todos os aspectos da vida alemã,
tanto pública quanto privada, desde 1885, ano do nascimento de Leverkühn, até 1945. A
evocação do sentimento nacionalista, a perversão da teologia 8, o fracasso do amor familiar, a
introdução da chocante nova música de Leverkühn no mundo artístico: tudo é desenvolvido
em detalhes macabros. (Cf. SCAFF, 2004: 170). Serenus acredita que o destino de seu amigo
Leverkühn e o da Alemanha estão entrelaçados: “Por menos que fosse possível estabelecer
um contato psíquico entre o declínio de sua saúde e a desgraça da pátria, não pude inibir-me
de descobrir em ambos um nexo objetivo, um paralelo simbólico.” (MANN, 1996: 463)
Além disso, Serenus encarna o diagnóstico do próprio Mann de que a culpa pela guerra
e pelos crimes do nazismo deveria recair não só sobre Hitler e seus comparsas, mas também
sobre os alemães que se mantiveram passivos. As palavras do narrador não poderiam ser mais
desencantadas:
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atingidos da mesma forma por esse desnudamento humilhante e deixaram
por completo de merecer confiança? Será compunção mórbida perguntar
como, no futuro, „a Alemanha‟, sob qualquer aspecto, poderá atrever-se a
abrir a boca em assuntos concernentes à Humanidade?” (MANN, 1996:
648)
Mesmo tendo sido enfático em atribuir a toda a gente alemã a responsabilidade pela
catástrofe da II Guerra Mundial e aos crimes praticados pelo nazismo, isso não significa que o
escritor perdeu seu amor à pátria-mãe: “Thomas Mann nunca escondeu que Doutor Fausto era
a sua obra mais pessoal; uma confissão. Sem a menor timidez, no começo de seu exílio nos
Estados Unidos, declarara: „Onde eu estiver, também lá estará a cultura alemã‟.” (RIEMEN,
2011: 79)
O Fausto de Mann é um músico porque, “se foi especialmente em termos musicais que a
Alemanha enriqueceu enormemente a cultura ocidental, também já estava presente nesse dom
as sementes da catástrofe germânica.” (MISKOLCI, 1998: 197) Uma pessoa que muito
ajudou Mann a elaborar o protagonista do romance foi o filósofo Theodor Adorno (1903-
1969), que curiosamente era seu vizinho, e a partir de 1943 se tornou seu conselheiro em
matéria de música. Eis uma passagem do diário de Thomas Mann que revela a importância da
leitura dos manuscritos de Adorno para a gestação do Doutor Fausto:
“À noite, outra vez o texto de Adorno sobre música, que me elucida alguns
pontos e ao mesmo tempo evidencia toda a dificuldade do meu intento. (...)
Eu tinha nas mãos, de fato, algo „importante‟. Era uma crítica profunda da
situação artística e sociológica, de extremo refinamento e atualidade, que
apresentava uma singularíssima afinidade com a idéia de minha obra, com
a „composição‟ que eu estava vivendo, tecendo.” (MANN, 2001: 39)
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Cabe tecer algumas considerações sobre esta preocupação de Adorno com a música. Em
sua última obra, a Teoria Estética, este autor afirma que o lugar da arte se tornou incerto. A
autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da sua função cultual e dos seus
duplicados, vivia da idéia de humanidade; contudo, esta foi abalada à medida que a sociedade
se tornava menos humana. (Cf. ADORNO, 1991: 11) Porém, Adorno acreditava que as
experiências musicais da Segunda Escola de Viena, expressas na técnica dodecafônica e
atonal de composição, haviam produzido as condições de possibilidade para se pensar um
conceito renovado de sujeito e de razão. (Cf. SAFATLE, 2009: 174) Destarte, Adorno procura
compreender as potencialidades estéticas abertas por esta vanguarda musical:
Há três personagens que parecem ter sido inspirados nessas reflexões estéticas de
Adorno. Como já foi dito, um deles é Adrian Leverkühn, que constrói uma técnica de
composição bastante inspirada no estilo dodecafônico analisado por Adorno em Schönberg:
“Tal estilo, tal técnica (...) não admitiria nenhuma nota, nem uma única, que não cumprisse na
construção geral sua função de motivo. Não haveria mais nenhuma nota livre.” (MANN,
1996: 655)
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O segundo deles é Wendell Kretzschmar, professor de música que conduz a vocação
artística de Adrian. No início do romance ele faz uma palestra sobre vários temas que
interessam profundamente a seu pupilo: a relação entre cultura e barbárie, Música e
ascetismo, o reencontro com o Elementar... - e, por fim, a história do anabatista Beissel, que
inventou uma teoria musical heterodoxa, “por demais extravagante e arbitrária para que
pudesse ser aceita pelo mundo exterior.” (Ibidem: 90). Kretzschmar terá um papel decisivo (e,
por assim dizer, mefistofélico) na decisão de Adrian de se tornar um músico.
Por fim, ironicamente ou não, o Diabo com quem Leverkühn faz o pacto se assemelha a
Adorno. No início de sua soturna conversa com Adrian, “Ele” se parece com um rufião,
“falando alemão e espalhando frio”; porém, à medida que seu interlocutor começa a se sentir
à vontade, o Diabo muda de fisionomia, tomando a forma de um elegante musicólogo, “um
intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre Arte e Música, teórico e crítico,
que ele mesmo faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas
capacidades.” (Ibidem: 322) Qualquer semelhança com a vida do próprio Adorno seria mera
coincidência?
Este parentesco se reforça quando o Diabo começa a tecer considerações sobre a crise
da arte moderna que parecem fortemente inspiradas nas de Adorno. Segundo “Ele”, a
composição tornou-se mais difícil na arte emancipada, devido à submissão à técnica. A
aparência auto-suficiente da Música se tornou impossível:
“A cada instante, a técnica, na sua totalidade, exige dele [do artista] que se
submeta a ela e impõe a única resposta certa, que no momento lhe parece
admissível. Chega-se então ao ponto no qual as composições do artista (...)
não passam de soluções de rebus técnicos. A Arte transforma-se em crítica.
Conversão muito honrosa, inegavelmente, e que requer muita rebeldia em
plena subordinação, muita independência, muita coragem. (...) A crítica ao
ornamento, à convenção e à generalidade abstrata é uma e a mesma. O que
permanece objeto dela é o caráter ilusório da obra de arte burguesa, do
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qual a Música participa, ainda que não crie nenhuma imagem.” (MANN,
1996: 324-326)
Cabe, no entanto, dizer que Mann ficou com a consciência aliviada quando Adorno não
“torceu o nariz” para a utilização de seus comentários de crítica contemporânea a fim de levar
o personagem demoníaco a, conforme diz Adrian, “cortejar a arte”. (Cf. Idem, 2001: 122)
VI. Conclusão
Ao longo deste artigo norteamos nossa análise de Doutor Fausto a partir de quatro eixos
temáticos: como Thomas Mann se apropria da filosofia de Schopenhauer; de que maneira o
autor incorpora a biografia de Nietzsche no protagonista do romance, assim como sua crítica
ao esteticismo nietzschiano; como Mann conecta a trama do romance com os acontecimentos
reais (a II Guerra e o Nazismo); e de que forma, a partir das conversas que teve com Adorno,
a música adquiriu papel fundamental na formação de Adrian Leverkühn.
Mann ligou de forma alegórica o destino de Leverkühn com, por um lado, a evolução
gradual da Alemanha em direção ao nazismo e, por outro, a vida e destino de Friedrich
Nietzsche - cuja vida, como vimos, serviu quase literalmente de inspiração para o
personagem. Com isso Thomas Mann esperava mostrar que a tentativa de escapar da
impotência através da adesão a ideais anti-sociais (como o esteticismo e, em maior medida, o
nazismo) fracassaria, pois está divorciada do ideal de Humanidade. Nietzsche e a Alemanha
nazista seriam dois exemplos do malogro dessa tentativa. (cf. GOLDMAN, 1992: 226)
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Nietzsche é o tema, não sua filosofia. (Cf. MISKOLCI, 1998: 199) O que Mann está
defendendo é o ideal de Humanidade que, outrora parte integrante e pilar da tradição da
Bildung, foi suplantado por elementos reacionários e vitalistas. Thomas Mann tenta reviver
este ideal como uma alternativa para a crise e divisão da Alemanha e à sua perda de ideais
estáveis; ou seja, vê o humanismo como uma síntese espiritual e uma tentativa de
transcendência da sociedade burguesa e de seus oponentes de direita e de esquerda. É por isso
que a vontade de poder e o avanço em direção ao "super-homem" (Übermensch),
empreendidos tanto pela Alemanha quanto por Leverkühn, são uma solução nietzschiana que
Mann rejeita. (Cf. GOLDMAN, 1992: 232)
Por sua vez, Theodor Adorno foi um importante parceiro intelectual que o autor de
Doutor Fausto teve para construir as partes do romance que tratam especificamente de
música; o escrito sobre Schönberg foi o prelúdio dessa amizade artística. Segundo o próprio
Mann, o interesse de Adorno pelo livro “crescia à medida que ele se inteirava de seu conteúdo
e que começou a mobilizar para o romance sua faculdade imaginativa musical.” (MANN,
2001: 95) Fascinava a Thomas Mann a peculiar afinidade com que o programa estético de seu
romance se comunicava com a estética vanguardista de Adorno. Em ambos é possível
encontrar uma reflexão sobre a possibilidade da construção de uma nova subjetividade por
meio das inovações técnicas da “nova música”. A diferença é que Doutor Fausto explora esse
tema também em sua dimensão moral, alertando para o risco de um esteticismo diabólico.
Antes de encerrar esse trabalho, cabe relembrar algumas palavras de Gadamer sobre a
abordagem hermenêutica da literatura. Segundo o autor de Verdade e Método, “toda obra de
arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura” (GADAMER, 2008: 230), pois a
estética deve se subordinar à hermenêutica. Em outras palavras, o sentido do texto só se
realiza plenamente a partir da representação que ele recebe; ele se consuma a partir de sua
compreensão enquanto acontecimento semântico. Portanto, a hermenêutica deve “determinar-
se, em seu conjunto, de maneira a fazer justiça à experiência da arte.” (Ibidem: 231)
Aos desmembrar Doutor Fausto em quatro eixos temáticos (dois mais “abstratos” -
Schopenhauer e Adorno - e dois mais “biográficos” - Nietzsche e o contexto do nazismo e da
guerra), o esforço empreendido neste artigo foi o de entender a “montagem” que Mann
operou. Ou seja, o que tentamos desenvolver foi uma compreensão da obra tanto em sua
relação com o passado, seja em sua dimensão filosófica (por exemplo, o “humanismo
pessimista” schopenhaueriano) ou histórica (no caso, a incorporação de elementos da vida de
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Nietzsche em Leverkühn), quanto com o presente, também de maneira bifurcada: em um
sentido mais “espiritual” (a colaboração de Adorno sobre arte e música) e um mais “vital” (o
peso do momento histórico em que Doutor Fausto foi escrito).
Desta forma, nos foi possível perceber em Thomas Mann um escritor capaz de dialogar
bem tanto com a tradição quanto com seu próprio contexto. “Mann foi um artista moderno sui
generis, tinha consciência demais de seu papel histórico e de tudo o que devia a seus
predecessores para considerar-se um vanguardista stricto sensu.” (MISKOLCI, 1998: 196)
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