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Café com leite

É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a


quem se chegue, como o barco fatigado à sua
enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de
noite, pede um cais. A mulher a quem se chega,
exausto e, com a força do cansaço, dá-se o
espiritualíssimo amor do corpo.
Como deve ser triste a vida dos homens que
têm mulheres de tarde, em apartamentos de chaves
emprestadas, nos lençóis dos outros! Como é
possível deixar que a pele da amada toque os
lençóis dos outros! Quem assim procede (o tom é
bíblico e verdadeiro) divide a mulher com o que
empresta as chaves.
Para os chamados "grandes homens", a mulher
é sempre uma aventura. De tarde, sempre. Aquela
mulher, que chega se desculpando; e se despe,
desculpando-se; e se crispa, ao ser tocada, e cerra
os olhos, com toda força, com todo desgosto,
enquanto dura o compromisso. É melhor ser-se um
"pequeno homem".
Amor não tem nada a ver com essas coisas.
Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias
santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no
sono. E há um complemento venturoso, do qual
alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O
lento café com leite dos amantes, com a satisfação
do prazer cumprido.
No mais, tudo é menor. O socialismo, a
astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo
asceticismo da ioga... tudo é menor. O homem só
tem duas missões importantes: amar e escrever à
máquina. Escrever com dois dedos e amar com a
vida inteira.
Antônio Maria

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