Você está na página 1de 6

A BRIT HADASHÁ E A TORAH (LEI)

A grande maioria das pessoas já deve ter tido problemas para entender a correcta relação
existente entre “Novo Testamento” e a “Lei”.

Imaginemos hipotéticamente, uma pessoa, daqui a dois mil anos, no ano de 4012, que
pegasse nestes textos e vissem os seguintes exemplos do português com a palavra “Lei” e
como essa pessoa imaginaria a utilização de cada uma delas:

- “Um bom cidadão deve cumprir a lei” - algo como constituição, código civil, ou lei que regula a
sociedade;

- “A Lei da Gravidade fez com que a bola caísse rapidamente” - uso da palavra lei para um
fenómeno natural;

- “Todas as segundas-feiras eu aborreço-me com o meu chefe. É a Lei de Murphy!” -


expressão humorística;

- “Esse anel é feita de ouro lei” - significa ouro de qualidade;

- “Esse texto viola as leis da gramática” - Regras para o bom uso da língua portuguesa;

- “Os preços baixam sempre nesta época do ano. É a lei da oferta e da procura.” - Para se
referir a um fenómeno social.

- "Aquela acrobacia desafia as leis da física" - Refere que foi um movimento bastante díficil de
executar.

Imaginem esta pessoa, daqui a dois mil anos, se pegasse estes seis diferentes contextos da
palavra “Lei” e tentasse entender como sendo “uma coisa só”. O que pensam que iria
acontecer com esta pessoa? Certamente esta pessoa iria ficar confusa, exactamente como nós
actualmente ficamos muitas vezes, quando lemos o “Novo Testamento” e não entendemos as
diferentes aplicações da palavra “Lei” ali existentes.

Sábio conselho

Seguindo alguns dos conselhos de um dos mais renomeados professores das Escrituras, o
rabino Hillel, que inclusive viveu cerca de 30 a 40 anos antes de Yeshua e foi um dos grandes
analistas/exegetas do judaísmo. Ele criou um sistema de interpretação das escrituras que ficou
conhecido como as “leis de Hillel”, onde duas destas leis são aplicáveis ao que estamos a
analisar:

• A analogia deve ser feita a partir de outra passagem;

• A explicação é sempre obtida a partir do contexto.

Basicamente, quer dizer que, É um perigo observar isoladamente um pequeno texto para
justificarmos uma doutrina, a Bíblia é um todo e toda se harmoniza, sem qualquer tipo de
contradição, quando entendida debaixo da acção do Espírito de Deus. Não nos devemos
deixar guiar por preceitos de homens.
Estas duas leis estão na introdução deste tema por que vamos utilizar ambos os conceitos de
Hillel ao longo deste estudo. Deve-se notar que estas também são encontradas em outras
técnicas de exégese e hermenêutica, não sendo este conceito necessariamente exclusivo do
judaísmo. A primeira das técnicas diz que: se há duas passagens que estão em aparente
contradição, então é muito provável que encontre a resposta numa 3ª passagem ou no
contexto de uma das passagens. Basicamente as “escrituras interpretam as escrituras”. Então,
se eu tenho duas passagens com “aparente contradição”, como por exemplo, uma no chamado
“Novo Testamento” e outra no “Antigo Testamento”, a solução não é “classificar” que há um
“conflito” entre elas, mas sim procurar harmonizar as Escrituras.

E isto é um conceito importantíssimo, pois procurar conciliar as passagens das Escrituras deve
ser o objectivo principal: neste exemplo, como harmonizar o “Antigo Testamento” com o “Novo
Testamento”? A segunda técnica tem a ver com a primeira: é a explicação obtida do contexto.
Isto também não é exclusivo judaico. Para entender a passagem é preciso entender o contexto
onde esta passagem se encontra.

Por exemplo, se utilizarmos uma das cartas de Paulo, que é a fonte das passagens onde
encontramos as maiores controvérsias relacionado com a questão da “Lei” ao utilizar uma
destas cartas, nós temos de entender:

• Quem estava a escrever;

• Por que é que estava a escrever;

• Para quem estava a escrever;

• Qual era o “pano de fundo” na qual esta pessoa estava inserida;

• Qual o “pano de fundo” do público para a qual esta carta era dirigida; e assim
por diante.

Basicamente temos que entender todo o “conceito do contexto” que está por detrás desta
passagem. O objectivo deste estudo será explicar o conceito da palavra “Lei” através da
realidade existente na época dos relatos do “Novo Testamento”. Apresentaremos o significado
desta palavra em cada uma das diversas passagens, bem como o que cada uma delas se
refere exactamente nestes versículos.

Forma de ver

Um equívoco relativamente comum a quase todos, é “projectarmos a nossa realidade” como


forma de analisarmos outra realidade qualquer. Ou seja, através da “nossa forma de ver”,
tentamos “modelar” o que aconteceu em épocas distantes, com povos e costumes diferentes,
procurando transformar aquela realidade para algo a que nós estamos acostumados e vivemos
nos dias de hoje. Um exemplo é o acesso que todos temos aos livros actualmente. Não damos
atenção ao fato que a invenção de Gutenberg, que viabilizou a impressão dos livros, aconteceu
apenas em 1439. Da mesma forma não consideramos que a alfabetização de grande parte da
população é uma conquista do século XX.

O facto é que, na época de Yeshua, as Escrituras eram copiadas de forma artesanal e apenas
pelos professores das Escrituras (escribas), trabalho que levava mais de cinco anos para cada
cópia ser feita, escritas em pele de carneiro e a pena.
As Escrituras

Outro equívoco corrente é que nos “esquecemos” de quais eram as Escrituras que todos
tinham acesso na época de Yeshua e os apóstolos: os rolos da Palavra compreendiam
exclusivamente os livros de “Génesis a Malaquias”. Quando lemos hoje um texto do “Novo
Testamento” que faz referência às Escrituras, abrangem apenas estes livros, como podemos
ver em Lucas 4:

"Chegando a Nazaré, onde fora criado; entrou na sinagoga no dia de Sábado, segundo o seu
costume, e levantou-se para ler.
Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías; e abrindo-o, achou o lugar em que estava
escrito: [Onde Yeshua passa a ler Isaías]
O Espírito do Eterno está sobre mim, porquanto me ungiu para anunciar Boas Novas aos
pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos, visão aos cegos, para pôr em
liberdade os oprimidos, e para proclamar o ano aceitável do Senhor.[ano de jubileu]"

A outorga da Torah

Quando falamos de “Lei” em relação à Torah, os cinco primeiros Livros das Escrituras ou
Pentateuco, devemos compreender que a palavra “Lei” aqui utilizada não significa a lei no
conceito jurídico de carácter obrigatório da sociedade.

Mas um conjunto de instruções que o Eterno nos deu, ensinos para que vivêssemos de forma
santa, pois Ele disse: “Sede santo por que Eu Sou Santo”! (Lev. 19:2).

Portanto, YHWH deu-nos um conjunto de instruções/leis para que, por meio delas,
pudéssemos viver de acordo com a moral d’Ele. Isto que é chamado de Torah - que
literalmente significa instrução, as instruções dadas para que possamos ter uma vida de
santidade.

Um contrato para o povo do Eterno

A Torah foi dada no Sinai por Moises, e representa um verdadeiro contrato de casamento entre
Israel e o Eterno. Para entendermos o conceito completamente, é necessário explicarmos que
no casamento israelita, normalmente temos os seguintes elementos: um noivo, uma noiva e um
contrato de casamento ou “Ketubá”. Neste contrato estão escritas todas as obrigações
matrimoniais a que as partes se submetem; na Ketubá há toda a referência, por exemplo, que
o marido deve honrar a esposa, a esposa deve ser dedicada ao marido, que ambos devem ser
compreensivos apoiando um ao outro, viver de acordo com os preceitos da Bíblia, criar um lar
com sinais de fé israelita etc. Destacamos que este contrato é voluntário, onde cada uma das
partes manifesta sua vontade de seguir tais regras, não é algo imposto por terceiros e contrário
as suas vontades.

Quando o povo esteve ao pé do Sinai, da mesma forma, o que ocorreu, foi um casamento, e
Israel, ao aceitar este casamento israelita, aceitou o contrato/Ketubá que foi a Torah. Da
mesma forma que o exemplo anterior, nota-se que foi feito uma proposta e, de livre vontade, foi
aceite. Nada foi imposto. É importante que tenhamos presente esta analogia do casamento
israelita, pois será utilizada mais adiante.

Moisés e os Anciãos

Outro equívoco muito frequente é pensar que um contrato pode ter um texto tão detalhado, que
seja capaz de abranger cada uma das mais variadas situações quotidianas, explicando de
forma minuciosa e nos mais intrínsecos detalhes absolutamente todas as variáveis possíveis e
imagináveis. Como no casamento, através do seu “contrato ou Ketubá”, nele não está
especificado tudo detalhadamente de “como vai e o que vai acontecer" na relação do casal.
Temos ali apenas as directrizes gerais e as mais relevantes. De certa forma, a Torah também é
um “conjunto de directrizes base”, como se fosse uma “constituição”.

Por isso é que, muitas vezes, é necessário à ajuda de alguém muito mais experiente em Torah
para sabermos como aplicar a Torah nas nossas vidas. E esta era a função de Moisés, bem
como dos anciãos que ele delegou , que tinham para com o povo.
Ensinando o povo a forma correcta de “como viver” de acordo com os preceitos da Torah, ou
seja, não só o conteúdo da própria Torah, mas também a ordem da precedência dos
mandamentos e preceitos, uns sobre os outros. Este é, por exemplo, o que aconteceu quando
Yeshua coloca o preceito de guardar o Sábado aos fariseus, perguntando se por acaso não
salvariam um animal que caísse no Sábado. Yeshua dizia que o preceito da preservação da
vida é superior ao da observância de não trabalhar no Sábado. Por mais respeito que qualquer
um de nós tenha pelo Sábado, se tiver um acidente nesse dia Santo, não iremos deixar de ir ao
Hospital certo?

A Torah tem uma classificação, uma ordem de importância. Ela não é um


monobloco.

Esta é uma ideia do judaísmo que se perdeu no cristianismo, onde todo o pecado é “igual”,
sendo que isto não é bem assim. Claro que todo o acto de pecar tem sempre como resultado o
nosso afastamento do Eterno, sendo esta consequência igual.
Porém o acto de “falar mal” do meu amigo não tem o mesmo peso de “pegar uma metralhadora
e fuzilar crianças numa escola”. Naturalmente que uma coisa é muito mais grave que a outra.
Sendo a Torah uma constituição, cujos preceitos têm precedência umas sobre as outras, às
vezes estes mesmos preceitos podem entrar em aparente conflito, principalmente no mundo
que vivemos que não se preocupa muito com a Torah.

Por exemplo: uma pessoa que está a passar fome e recebe oferta de um emprego em que
precisa de trabalhar no Sábado, que lhe possibilitará acabar com a fome e sustentar a sua
família, deverá aceitar o emprego ou não? mesmo que em carácter temporário, devido ao facto
de violar o Sábado? De um lado há o preceito da preservação da vida mais a obrigação do
sustento da nossa família e do outro lado o mandamento do Sábado.

Ou ainda: a Torah fala que não podemos comer animais impuros. Mas no caso de haver fome
na terra. Podemos ou não comê-los? Para esta série de questões, Moisés estabeleceu um
conselho de anciãos cujo objectivo era que pudessem ensinar o povo a viver de acordo com a
Torah.

Como a Torah foi passada pelo Eterno semelhante a uma constituição, foi necessário
estabelecer uma forma de orientação para que as pessoas pudessem viver dentro dela, desde
aqueles tempos iniciais.

Governando com a Torah: a Halachá

O concílio de anciãos tinha também a função de julgar as causas do povo. Ao analisar a Torah,
percebemos a presença de muitos preceitos relacionados à: restituição, o que fazer quando um
peca contra o outro, qual o tipo de punição, tipo de restituição, o que deve ser feito para que
uma pessoa possa ser considerada culpada perante a sociedade, entre tantos outros. Com
isto, uma das funções dos anciãos era também julgar as causas baseados na Torah.

Portanto, ensinavam a viver em conformidade com os preceitos da Torah que tinham aceitado
previamente no Sinai. E julgavam as causas do povo, conforme estipulava a Torah. Receberam
o nome de “Beit Din” que significa “Casa de Julgamento” ou "tribunal/sinédrio", cuja
responsabilidade e função era justamente explicar ao povo como deveria viver além de julgar
as causas do povo.
A chamada “Halachá” que significa literalmente “caminhar”, surgiu como desdobramento destas
funções. Ou, num sentido mais abrangente, seria como deveríamos caminhar dentro da Torah.

A Halachá é formada, portanto, da forma que se deveria caminhar em santidade. Como os


anciãos ao longo das gerações foram perdendo o verdadeiro propósito do ensino, e criaram as
suas próprias leis que de certa forma prevaleceram sobre o mandamento, uma das missões de
Yeshua durante o seu ministério terreno, foi corrigir essas tradições, dando o seu exemplo e
ensinado-nos sobre como deveríamos caminhas em santidade. Ele é sem dúvida a Torah Viva.

A Halachá era algo que não poderia varias. Seria similar ao conceito atual da “jurisprudência”,
na qual decisões anteriores de tribunais superiores auxiliariam e ofereceriam diretrizes aos
demais tribunais subordinados, bem como as pessoas sujeitas a sua autoridade, de como elas
deveriam decidir sobre a questão, lastreados pela interpretação feita sobre os preceitos da
sociedade.

Possui um caráter “renovável”, pois a jurisprudência aplicável nas circunstancias do século


passado não necessariamente continua a ser compatível com as questões dos tempos actuais.
Israel hoje é um estado secular, logo a halachá do Israel antigo não pode ser aplicada no
actual estado de Israel. Da mesma forma, a Halachá também deve ter esta característica, pois
cumprir a Torah como era feita a cerca de três mil anos passados dentro de Israel não é a
mesma coisa que cumpri-la hoje no mundo. Ambas as realidades são tão distantes que as
mudanças desta magnitude requerem também transformações na Halachá.

A Halachá também não possui o “peso de Lei”, ela é a interpretação do povo, através dos seus
anciãos, de como se entende a “Lei”, mas não é a Lei. Esta é a grande diferença: os anciões
sabiam que a Halachá não é “Lei”. Se nós não andarmos segundo a halachá, não há o mesmo
peso de pecar, no sentido de violar a Torah.

O exílio babilônico

Quando o povo foi para o exílio babilónico, estava a ser perseguido e havia a preocupação
muito grande com a preservação do judaísmo. Havia um problema, pois o judaísmo enquanto
religião era totalmente centrado nas actividades do tabernáculo. A partir da outorga da Torah
no Sinai, houve o tabernáculo como cerne da vida religiosa judaica, passado depois para o
Templo de Salomão após a sua construção em Jerusalém.

Redefinir para preservar

Durante o exílio babilónico houve a destruição do Templo. Aliado a isto houve também o exílio
do povo, o qual não estava mais em Israel, sendo este um preceito também muito importante
para a prática do judaísmo como era concebido então. Diante deste cenário, os lideres do povo
concluíram ser necessário redefinir a religião como era conhecida, encontrando um novo centro
de apoio onde pudessem sobreviver durante o exílio, sem que permanecesse dependente do
sistema do Templo, que fora destruído.

Entre rabinos e sinagogas

Surgiu como alternativa, a implantação da sinagoga como local de orações, em substituição do


modelo baseado no culto no Tabernáculo e no Templo. Para entender melhor a concepção da
sinagoga como alternativa, podemos verificar que todos os elementos presentes na sinagoga
têm referência directa ao Templo de Jerusalém, como se fosse um mini Templo ou uma
lembrança direta deste. Com este novo modelo alternativo, as sinagogas passaram a ser o
novo centro da vida religiosa judaica. Nestas encontramos a “bimah” ou local onde se apoia a
Torah, referindo-se ao Altar do Templo; há ainda a “harona hackodesh”, onde é guardado a
Torah, em referencia ao Santo dos Santos; o “Kadosh Kadoshim” para a Arca da Aliança; e
a “luz contínua” da “Menorah” ou candelabro de sete braços.
Todo o serviço da sinagoga também remonta ao serviço que era prestado no Templo, como é
no caso do Sidur ou livro de orações judaicas, sendo distribuídas de acordo com aquilo a que o
Templo tinha por referência: sacrifícios da tarde, sacrifícios da manha, e limpezas das cinzas
do altar. Concluindo, todo o modelo das sinagogas foi desenvolvido para que o povo tivesse o
Templo como referência, como o seu centro de vida religiosa, apesar de estarem há anos no
exílio, com o objetivo de preservar o judaísmo. Neste contexto, a figura do rabino surgiu tal qual
o conceito moderno da palavra, onde estes são mestres nas leis da Torah e também nos
costumes que o povo israelita tinha. Dentro deste novo formato, a linha que separavam os
“costumes” e “as leis” começou a atenuar-se a partir desta época. À medida que o tempo
passava e os rabinos iam se sucedendo, os costumes e as leis passaram a se tornar cada vez
mais uma coisa só, e isso condicionou tudo o resto.

Shalom.

Você também pode gostar