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Olá, meu nome é Joan Halifax. Sou Abade do Upaya Zen Center em Santa Fé,
Novo México. Estou grata por estar aqui com vocês hoje e estou aqui para
explorar algumas perspectivas e práticas de compaixão.
E pensei que seria interessante começar com um koan com o qual muitos de
nós, que praticamos, estamos familiarizados, ele é como um velho amigo para
nós. E também é para entendermos que koans são uma maneira de termos
nossos próprios corações-mentes revelados. E, particularmente, que em um
certo ponto na relação e interação com nosso professor, pode-se explorar este
caso público de uma forma bem acurada.
Este koan vem do Registro do Penhasco Azul (Blue Cliff Record) , uma grandiosa
coleção de koans. Este é o koan número 89 da coleção. E também está no Livro
da Serenidade (Book of Serenity) , está incluído nessa coleção, e é o caso 54. Se
chama "Através do corpo, mãos e olhos". Então, ele é uma interação entre
provavelmente dois irmãos, um irmão mais velho e um mais novo, mestres Zen
muito bem conhecidos. E ele é assim:
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Daowu responde:
—Bem, o que você entende?
Yunyan diz:
—Em todo o corpo, mãos e olhos.
E Daowu diz:
—Bem, você acertou 80%."
Yunyan diz:
—Bem, e quanto a você?
E Daowu responde:
"Através do corpo, mãos e olhos."
Avalokiteshvara de mil braços, detalhe de mural no Templo Caminho do Meio, em Viamão, RS, Tiffani Gyatso
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Bodisatva Avalokiteshvara
Este ser, este arquétipo, é um ser que fez o voto para voltar vida após vida a fim
de servir os outros, a fim de transformar o sofrimento dos outros. É uma imagem
muito importante. É um arquétipo muito importante no nosso tempo, em que
estamos diante de um mundo que é muito frágil, de muitas maneiras. E em
qualquer caso, o arquétipo do bodisatva pode se manifestar como sabedoria ou
altruísmo, coragem…
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”Bodisatva Avalokiteshvara de mil braços de pé”, escultura de Enku (1632–1695), Japão
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Resposta natural
E há algo de muito poderoso nessa imagem porque de certa forma, quando se
ajusta o travesseiro à noite, não há eu, não há outro, há apenas esta resposta
natural. E esta ausência de cálculo ou pensamento, e mesmo de um resultado é
algo para tomarmos nota. Eu me lembro de uma passagem de Shantideva no
Guia do Estilo de Vida do Bodisatva onde diz: “Se houver um espinho no pé, a
mão vai imediatamente tirar o espinho do pé.”
É desse tipo de naturalidade de que estamos falando quando estamos
explorando a compaixão. Então o que o Daowu está sugerindo? Eu acho que de
uma forma muito bonita ele está usando algo tão comum como ajustar o
travesseiro à noite... Da próxima vez que você arrumar o seu travesseiro, você
pode ter este momento de reflexão, do quão espontâneo ou automático é este
ajuste. Daowu estava sugerindo, acho que de uma forma interessante que
estender a compaixão é na verdade uma experiência não-dual. E então ele
começa a sondar um pouco mais com Yunyan.
Ele diz "Bem, está certo, você parece entender..." mas sugere, "O que você está
realmente vendo?". E Yunyan diz, "Oh, no corpo todo, mãos e olhos." E Daowu
disse, "Bem...", e provavelmente balançou a cabeça ou talvez ajeitou suas vestes…
Mas ele disse, "Bem, isso é 80%." Então Yunyan vira-se para ele e diz, "E você?
Qual é a sua perspectiva?". E o Daowu diz, "Através do corpo todo…”, “Através do
corpo, mãos e olhos."
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”Mãos da compaixão”, pintura de Mayumi Oda, Havaí
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Corpo de atenção
Assim, no sentido geral, a compaixão refere-se a essa experiência de encontrar
com o sofrimento de outro e realmente ter esta profunda aspiração para
transformar esse sofrimento. A compaixão envolve, fundamentalmente, a
capacidade de comparecer à experiência dos outros. De estar presente, de
presenciar, de trazer sua atenção, incluir a sua subjetividade para que a
experiência dos outros possa entrar no seu corpo atencional, na sua presença.
A compaixão também envolve a nossa capacidade de verdadeiramente sentirmos
interesse pelos outros. Então, não é uma experiência em que percebemos o
sofrimento dos outros, mas não nos sentimos interessados. Na verdade, não é
raro perceber o sofrimento dos outros e não sentir interesse. Por isso, a
compaixão envolve especificamente a nossa capacidade de sentir interesse pelos
outros, e muitas vezes isso acontece através da experiência de empatia, de estar
em ressonância com os outros, mas também está combinado com a experiência
do cultivo de Bodicita, este coração desperto que realmente está conectado com
a aspiração de transformar o sofrimento quando nós o encontramos nas nossas
próprias vidas e no mundo.
O que servirá
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Nachi Taisha, Kumano, Japão. Santuário Shinto de Hiryū Gongen.
A cachoeira é reverenciada como uma manifestação de Avalokiteshvara na natureza
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Aspiração profunda
Você está no avião e a caminho de algum lugar, Zanzibar, Los Angeles, e não
pode ajudar diretamente. Mas você tem essa aspiração, o desejo profundo de que
quem está lá em baixo, se debatendo na água, perceba que a costa está perto.
Então, isso nos proporciona um pouco do sentido, um pouco mais de perfil em
relação ao que é a compaixão.
Compaixão referencial
Existem três variações da compaixão que são muito interessantes de explorar.
Elas incluem a compaixão comum. A compaixão comum é como quando você é
um médico tratando alguém que está sofrendo de dor intratável. Seu papel como
médico é acabar com a dor e o sofrimento. Então há um eu e um outro. E você
faz o melhor que pode.
A compaixão comum também surge fortemente em relação ao nosso grupo
próximo, que pode ser nossa família, pode ser nossa equipe médica, pode ser o
povo de nossa tribo, o nosso grupo étnico. A conexão é sempre mais forte em
relação ao nosso grupo. Ou se você teve um tipo particular de enfermidade,
como ter sido cego na infância, talvez você seja mais sensível para a compaixão
se você enxergar novamente e encontrar uma pessoa cega, alguém que sofreu
como você sofreu. Então esse é como um primeiro domínio da compaixão, e esse
é o tipo mais comum de compaixão. É a compaixão com um objeto.
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“Avalokiteshvara mecânico”, escultura de Wang Zi Won, Coréia do Sul, 2011
Compaixão discernente
A seguir, há um tipo de compaixão que tem uma base mais conceitual. E este
tipo de compaixão tem uma sabedoria que penetra a verdade da impermanência
e da ausência de um eu inerente. Este tipo de compaixão tem uma base mais
conceitual, mas também envolve bodicita, na verdade surge de um imperativo
moral, do que é ser uma pessoa de compaixão em relação aos outros. Todos os
outros, não apenas seres humanos, mas todos os seres. Então esta é uma
compaixão de base conceitual.
Compaixão não-referencial
E a terceira forma de compaixão, que Musō Soseki e vários outros grandes
praticantes e estudiosos budistas realizaram, descreveram e ensinaram, é a
compaixão sem um objeto. É a compaixão universal. Compaixão que permeia a
subjetividade inteira de um indivíduo. Então eles estão sempre prontos.
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Lembro-me de uma história que aconteceu muito recentemente sobre um
homem chamado Wesley Autrey, que estava de pé numa plataforma de metrô
em Nova Iorque com suas duas filhas, e provavelmente havia mais cem pessoas
também na plataforma do metrô. De repente, ele viu um jovem branco que
parecia estar tendo uma convulsão cair nos trilhos do metrô e convulsionando.
E Autrey sem sequer pensar, ao ver o trem chegando pulou junto ao homem,
chamado Hollopeter, a fim de salvar sua vida. Autrey entendeu muito
rapidamente que ele não conseguiria tirar Hollopeter do caminho do trem que
se aproximava. E assim ele segurou o jovem que estava tendo a convulsão e o
trem do metrô passou acima da cabeça de Autrey, apenas raspando a parte de
cima do seu boné, e ele viveu.
Para o que quer que apareça, há um meio hábil que se manifesta naturalmente,
sem autoconsciência, de uma forma não mediada e não filtrada em resposta a
aliviar o sofrimento.
Ainda assim, na nossa cultura, parece haver um grande déficit de compaixão
(embora a compaixão seja profundamente enfatizada no cânone budista, e o
budismo, claro, tenha uma influência profunda neste mundo de impermanência),
são muito interessantes as questões que enfrentamos na cultura ocidental. E
acho que também na cultura oriental.
Há muitas avaliações incorretas sobre compaixão, incluindo a noção de que a
compaixão é problemática porque o sofrimento é insidioso. Em outras palavras,
você pode estar em uma relação empática e ressonante com uma pessoa que
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sofre, e então sofrer trauma secundário. Quando a empatia não é regulada ou
você pode estar totalmente sobrecarregado: há um termo para a compaixão que
o deixa cansado, desgastado, chamado fadiga por compaixão.
Mas, curiosamente, esta noção da fadiga por compaixão tem sido basicamente
refutada por pessoas como Richard Davidson, Tania Singer, e muitos dos
neurocientistas que estão trabalhando neste campo, e compreendendo que o
que realmente está acontecendo é uma má regulação da empatia – torna-se
difícil responder continuamente ao sofrimento do mundo porque nos
identificamos demais com o sofrimento dos outros. Então, acho que há um
grupo de nós que gostaria que o termo "fadiga por compaixão" saísse da
literatura.
Ou a compaixão pode te adoecer, na onda da fadiga por compaixão. Ou pode
fazer parecer pouco profissional que você perca seus limites. Ou, para algumas
pessoas, sente-se que a compaixão pode na verdade obscurecer dinâmicas de
dominação. Acho que essa é uma perspectiva muito interessante. Ou que
prioriza a simpatia sobre a justiça. Eu tive uma profunda exploração disso
quando eu estava trabalhando como voluntária na Penitenciária do Novo México.
Também a noção de que temos que cuidar de nós mesmos primeiro. E isso na
verdade não é tão ruim. Deve-se fazer o melhor possível em termos de praticar
um bom autocuidado e não se envolver no que Barbara Oakley e outros
psicólogos sociais têm chamado de altruísmo patológico. Isso está realmente nos
prejudicando no processo de cuidar dos outros.
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Empatia não é compaixão
Então há uma distinção interessante que acho que vale a pena explorar entre a
empatia e a compaixão, já que muitas vezes elas se confundem. A partir da
perspectiva do trabalho que tenho feito, e também Al Kaszniak, Richard
Davidson e outros, a empatia é um passo em um complexo de respostas que na
verdade pode nos levar à compaixão.
Mas há uma distinção importante para entendermos, que a empatia é uma
espécie de sentimento, ou de inclusão da experiência do outro em nossa
subjetividade. É uma experiência vicária e isso pode acontecer de forma
somática, afetiva ou cognitiva. E é importante estarmos em ressonância com os
outros. Costumo dizer que um mundo sem empatia é um mundo onde estamos
realmente mortos uns para os outros. Mas a compaixão pode incluir empatia,
muitas vezes inclui, mas [a compaixão] é mais como um sentimento pelo outro,
com a intenção de servir outro, na tentativa de transformar a sua experiência de
sofrimento.
Acho que também é interessante notar que mesmo Darwin, embora ele
chamasse de outra coisa, perto do fim da sua vida, ele e outros escreveram sobre
isso que é muito, muito importante. Sua perspectiva sobre a evolução não se
baseava apenas na noção Spenceriana de sobrevivência do mais apto, mas, na
verdade, na sobrevivência dos mais bondosos. E nós sabemos que, apesar de
podermos ter tido relações complicadas com nossos pais, ainda assim estamos
aqui, nós chegamos até aqui. A nossa própria sobrevivência e a sobrevivência de
muitas espécies é baseada na experiência da bondade.
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“慈: Compaixão”, pintura caligráfica de Fábio Rodrigues
Compaixão e felicidade
Também no mundo da neurociência e da psicologia social, é bem fascinante ver
que a compaixão na verdade contribui para o bem-estar, que ser compassivo, ter
compaixão, estimula as redes associadas ao prazer. Há muito na neurociência
que está nos mostrando a ideia de que a compaixão pode realmente aumentar o
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bem-estar, e existem bons indicadores de que existem melhorias imunológicas
associadas com ser compassivo, e também da melhoria do sistema imunológico
com a redução do estresse.
E a compaixão também afirma os nossos princípios morais. Quando não somos
compassivos ou outros não são compassivos, surge uma sensação de que a moral
está comprometida.
Há uma pesquisa muito interessante, um trabalho de Jonathan Haidt, sobre
como o envolvimento em atos de compaixão ou testemunhar outros que são
compassivos nos faz experimentar uma elevação moral. E testemunhar também
produz contágio. Isto é, nós desejamos ser compassivos também. Por isso,
mesmo que você seja a única pessoa na sua família, na equipe médica ou no seu
trabalho que faz algo compassivo, você pode ser indiretamente inspirador e
influenciar os outros.
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Sem título, escultura de Rudolf Stingel, EUA, 1994
Esse tipo de estabilidade de atenção amplia esse sentimento interno, e também a
forma como somos percebidos, por estarmos verdadeiramente aterrados.
Porque se não estivermos aterrados, se estivermos reativos, a compaixão não é
tão acessível. E a capacidade de ter este tipo de concentração é o motivo pelo
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qual a prática é tão importante, ela nos permite reconhecer mais claramente a
verdade do sofrimento e também descobrir formas de superar esse sofrimento.
Também sabemos através do trabalho de Rebecca Todd e associados que a
atenção e efeito enviesam um ao outro. Então ter um tipo de atenção que é
aterrada, equilibrada, nos permite realmente ser mais emocionalmente estáveis
e emocionalmente equilibrados, e gerar um efeito pró-social. Porque não se
pode ser realmente compassivo sem se importar com os outros, sentir-se
interessado pelos outros, sem a capacidade de estar em conexão, em
ressonância com outros, sem gratidão e sem todo este tipo de alcance de efeito
positivo.
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O último aspecto da compaixão tem a ver com a ação, que é estar engajado de
forma que nosso engajamento produza eudaimonia, ou seja, um sentido de
florescimento não só para nós, mas que realmente apoie o florescimento dos
outros.
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Roshi Joan Halifax foi aluna de Seung Sahn e recebeu transmissões de linhagem de Thich
Nhat Hanh e de Roshi Bernie Glassman. Fundadora e a abade do Upaya Institute and Zen
Center, em Santa Fe (EUA), dirige o programa Being with Dying e fundou o Upaya Prison
Project e o Nomads Clinic. É doutora em antropologia e uma das pioneiras no trabalho
com a morte e o morrer. Com 77 anos, tem mais de quatro décadas de experiência em
práticas contemplativas e um natural e constante engajamento social. Seus livros mais
recentes são “Presente no morrer: cultivando compaixão e destemor na presença da morte”
e “Standing at the edge: finding freedom where fear and courage meet”.
Para praticar generosidade e apoiar o movimento da Roshi Joan e do Upaya Zen Center:
https://www.upaya.org/giving
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Abril de 2020, em meio à pandemia do
coronavírus (COVID-19). Que a compaixão
amanheça como um sol no vasto céu
dos corações, alcançando todos
os seres, mundos e tempos.
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