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Certamente, por essa ninguém esperava. É inédito. Por mais amor que haja na relação
entre pais e filhos, ficar dentro de casa com uma criança pequena, por dias a fio, pode
ser vivenciado por alguns como um teste de sanidade mental. Aliás, com ou sem criança,
é desafiador. Somos seres sociais, está inscrito no código genético da humanidade nossa
tendência inata a ir na direção ao próximo.
1 Rita é Psicóloga de formação, Mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERF. Realizou um Master em
Desenvolvimento da Criança pela Universidade Paris 13 e um D.U em Psiquiatria Infantil pela
Universidade Paris V. É uma das seis gestoras da Escola Casa da Mangueira, no Rio de Janeiro e
membro fundadora da Associação Pikler Brasil e da Rede Pikler Brasil. É mãe da Clara de quatro anos e
meio e da Elisa, que nasce dentro de algumas semanas.
- A doença em si.
- O confinamento.
- A economia doméstica, a curto, médio e longo prazo.
- A instabilidade política.
- O rumo socioeconômico do país.
(Certamente deve haver outras camadas ou entre camadas...)
Diante disso tudo, fico pensando na velocidade em que, de repente, mãe e pais foram
convocados a assumir 100% seus filhos de forma inesperada , sem poder contar com o
apoio de uma rede familiar mais ampla (avó, avô, tia, babá...) e sem poder sair de casa,
relacionar-se, ir para o parquinho etc.
Isso me remeteu ao estado de dependência absoluta descrito por Winnicott, em que a
mãe e/ou cuidador de referência representa o ambiente como um todo para o bebê que
está nascendo para si e para o mundo. Momento de grande doação que pode parecer-
se com um estado de adoecimento psíquico por parte do responsável, mas que é
vivenciado de forma passageira. Após alguns meses, o mundo vai se ampliando de forma
gradativa para esse bebê, e o mundo social se apresenta “em pequenas doses”. Por sua
vez, a mãe e/ou cuidador começam naturalmente a falhar, e aos poucos essa
dependência vai tornando-se relativa e caminhando rumo à autonomia.
Eis que, subitamente, por conta dessa pandemia, um estado de confinamento é
convocado para todos, e o sentimento de dependência absoluta volta de forma
inesperada.
É diferente das férias, em que você se programa, se prepara, se organiza para ficar com
seu filho. Em que a rotina não é algo que precise ser reforçada, pois, afinal, dentro de
algumas semanas o ritmo escolar vai convidar a criança a dormir mais cedo, entrar no
ritmo do cotidiano e se afinar com o relógio. Junto com isso, o próprio adulto volta a seu
ritmo, estabilidade e sentimento do conhecido. E mais do que isso, trata-se de um
sentimento de escolher experimentar essa condição: “Estou com meu filho, pois as
férias chegaram e daqui a um tempo o ritmo vai retomar seu rumo”. Outra coisa é
quando nos é imposta uma situação na qual estamos de mãos atadas e em que não há
escolha.
Rotina para quê e para quem:
Essa nova rotina das mães, dos pais e das crianças pode ser simplesmente
combinada de comum acordo, caso a criança já tenha um grau de compreensão de
tempo e espaço. Estipula-se e desenha-se então uma agenda/calendário, no qual será
preciso antecipar os momentos em que você adulto não estará disponível para a criança.
Esse é um momento oportuno para, juntos confeccionar um “mapa dos nossos dias e
das nossas noites”, contando assim com a criatividade e com a célebre frase do
Winnicott, que fala da importância da capacidade de estar só, atrelada a um par de
parênteses preciosos: “na presença do outro”.
Essa linda frase do Winnicott é ao mesmo tempo simples e profunda, pois ela sugere
quão importante é a presença humana para dar suporte a essa pessoa pequena que está
desenvolvendo o seu ser, treinando para fazer parte do mundo! Talvez seja preciso
agarrar essa situação de confinamento e tentar perceber uma ousada oportunidade
para os pais e as mães olharem para dentro de si e perceberem o quanto estão
amadurecendo com isso tudo. Nesse momento, mesmo não sendo tarefa fácil, é preciso
olhar a vida com otimismo: a vida vale realmente a pena ser vivida! Amadurecer não é
algo dado, precisa ser conquistado, e, em muitos momentos, o movimento de
amadurecimento pode gerar um estranhamento e nos tirar da nossa zona de conforto.
Assim, ainda que em meio à hesitação e à estranheza, a função cuidadora deve ser a de
emprestar segurança e confiança para a criança.
O pensamento é "se eu sou capaz de emitir sinceramente alguma tranquilidade na
minha interação com crianças, eu estarei promovendo dois movimentos: um para
dentro de mim, outro para fora de mim”. Desse jogo entre o dentro e o fora, nasce uma
espiral interativa, que vai ficar guardada dentro da criança em pequenas caixinhas, com
pequenos tesouros, repletas de sentimentos e emoções.
Uma querida colega de profissão me atentou ao fato de que o movimento para dentro
seria uma espécie de comemoração particular que um adulto pode e deve fazer, dizendo
para si mesmo: “já fui pequeno, já tive meus medos e alegrias; agora estou fortalecido
e tão bem que consigo cuidar de mim e de uma outra pessoa".
Devemos viver essa experiência com orgulho, porque fizemos a travessia da infância, da
adolescência e chegamos à vida adulta salvos e dispostos.
Junto com isso, há sim a experiência do cansaço que cuidar de crianças nos traz. Mas,
sabendo que vai passar, isso um dia dará lugar a muitas convesas em que mães e pais
contarão aos seus filhos como foi a experiência de criá-los. Esse seria o movimento para
fora.
Esse confinamento está nos convidando a resgatar o sentimento do que é ser e
estar em família, com todos os ingredientes passionais que estão envolvidos nessa
receita que atravessa gerações, culturas, histórias de vida e valores de cada família.
Torço profundamente para que mães e pais apostem que o futuro virá e que narrativas
e histórias surgirão a partir desses dias e noites vividos.
E, pensando bem, já se passaram alguns dias, e muito outros virão. Então, de
fato, a criança ter rotina é sim importante, mas também haverá momentos que serão
de puro improviso. Ir administrando um dia de cada vez, talvez seja o caminho mais
saudável e tranquilo. A relação parental dura para a vida toda e não será perfeita, mas
pode ser prazerosa, mesmo diante de tantas incertezas.