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Universidade de São Paulo

Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI

Departamento Linguística - FFLCH/FLL Artigos e Materiais de Revistas Científicas - FFLCH/FLL

2008

Em busca de Saussure

Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v.11, n.2, p.349-352, 2008


http://producao.usp.br/handle/BDPI/6923

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Resenhas

EM BUSCA DE SAUSSURE Dois livros anteriores, inteiramente


dedicados à interface entre lingüística e
À la recherche de Ferdinand de psicanálise, já tiveram tradução brasileira:
Saussure, de Michel Arrivé. Paris: PUF Lingüística e psicanálise. Freud, Saussure, Hjelmslev,
(Formes Sémiotiques), 2007, 229 p. Lacan e os outros (São Paulo: Edusp, 2001) e
Linguagem e psicanálise. Freud, Saussure, Pichon,
Waldir Beividas Lacan (Rio de Janeiro: Zahar, 1999). A
Doutor em Lingüística e Semiótica pela
USP (1992); pós-doutorado pela EHESS-
resenha deste último, em Ágora [v.II n. 2,
Paris (1999); Professor do Programa de 1999, p.134], o considerou “seguramente
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica um dos livros mais importantes publica-
(1993-2006); Professor do Programa de dos nos últimos anos”.
Pós-Graduação em Lingüística e Semiótica
Nesses livros, Arrivé equilibrou a
na USP (desde 2007).
presença de Saussure e Lacan, o pensa-
Ano passado surgiu no cenário editorial dor lingüista e seu leitor psicanalista,
este importante livro de Michel Arrivé. num cenário finamente pesquisado e
Bela homenagem vem à luz, justo no ano argumentado. Em meio a suas próprias
do sesquicentenário de nascimento do e apropriadas “releituras” de Saussure,
principal mentor dos estudos da lingüís- trouxe-nos a experiência singular, difícil
tica moderna — Ferdinand de Saussure e altamente esclarecedora: extrair da sua
[1857-1913] — justo no centenário do leitura de Lacan, a mais plausível leitura
primeiro Curso de Lingüística Geral [1907]. de Lacan extraída de Saussure.
Por certo, diversos eventos, congressos, Em busca de Ferdinand de Saussure apresenta
simpósios se deram ao longo do ano, mas cenário diferente. Conquanto aqui e acolá
o porte de um livro inteiro dedicado ao o autor põe Lacan em cena, é Saussure o
mestre genebrino sobressai como evento centro das atenções. Desejo vintenário
ímpar. de dedicar o livro inteiro ao lingüista de
Meticuloso conhecedor de Saussure, Genebra, confessa que todo novo livro de
participante ativo na discussão crítica do outrem, dedicado a Saussure, nesse perí-
cenário lingüístico desde meados do sé- odo, lhe batia à cara como um “insulto”.
culo findo, Arrivé é, decerto, muito mais Era, pois, hora de “responder ao insulto
conhecido, lido e estudado no âmbito da com insulto” (p.3), isto é, com o seu livro
lingüística e da semiótica. Mas o campo sobre Saussure.
psicanalítico, freudiano e lacaniano, re- O novo livro beneficia o leitor a partir
cebeu atenção primorosa, a mais fina e de um novo dado. Um evento histórico,
empenhada, dentre todos os lingüistas, altamente significativo, ocorreu nos úl-
de qualquer tempo. timos anos: em 1996, foram localizados

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novos manuscritos de Saussure, publicados diferente das outras precisões e leituras


em 2002 sob o título de Escritos de lingüística minuciosas levadas a efeito nos dois livros
geral, e já traduzidos para o português (Cul- anteriores. Aqui Arrivé tem nova baliza: os
trix: 2004). A descoberta está agitando o novos documentos descobertos, escritos
mundo da pesquisa saussuriana e Arrivé do punho próprio de Saussure. Interroga
se destaca como um dos mais assíduos o Curso a partir das reflexões totalmente
freqüentadores do pensamento do mestre inéditas, intituladas “Sobre a essência
de Genebra, agora recuperado no frescor dupla da linguagem”, nada menos do que
dos novos manuscritos. as 70 páginas que abrem os Escritos.
Sempre com a meticulosidade de um É digno de se ressaltar algo de funda-
arqueólogo textual, o autor se apresenta mental, sobretudo diante do modo como
como leitor do pensamento de Saussure há o pensamento de Saussure circula e pouco
mais de meio século (p.1). Nas reflexões a pouco fica desdenhado no campo psica-
dessa busca do criador da lingüística mo- nalítico. Trata-se justamente de evitar o
derna e sem mistificar o pai da lingüística erro que consiste em deduzir que Saussure
moderna, revela que a obra saussuriana exclui do campo da lingüística tudo o que
é na verdade a origem de uma “mutação seria utilização pelo “sujeito falante”. Relê,
considerável na evolução da disciplina”, na perspectiva ajustada aos novos manus-
mesmo sob o aspecto lembrado como “in- critos, o signo saussuriano, a arbitrariedade do
sólito”: o de que Saussure “não publicou signo lingüístico, e discussões suscitadas
o que escreveu e não escreveu o que se em Pichon, em Benveniste, em Toussaint,
publicou sob seu nome” (p.9-10). em Milner, e suas próprias avaliações de
“Uma vida na linguagem”, primeiro releitor. O capítulo contempla o que de mais
capítulo, percorre um inventário crono- atual, crítico e arguto se pode hoje ler so-
lógico das atividades de Saussure, sobre as bre essas questões. Outras preciosidades:
questões da linguagem, centrado na sua a questão da linearidade do signo, mormente
vida intelectual. O propósito epistemolo- restritas ao significante, mas que aqui se
gicamente rigoroso é “situar a reflexão de estendem ao significado, discussões sobre a
Saussure nas condições históricas de sua noção de valor, das relações sintagmáticas e
elaboração” (p.11). Notícias cronológicas paradigmáticas, sincronia e diacronia.
sobre a família, a vida, a carreira e as O capítulo terceiro traz informes sobre
atividades, destaque-se nesse entremeio a lenda na carreira do lingüista, no interior
um texto que, em l894, o jovem lingüista da Semiologia. E nota que a pesquisa le-
prepara (sem concluir) em memória ao gendária é praticamente “co-extensiva” no
importante lingüista da época, W. D. tempo com a pesquisa lingüística (p.88),
Whitney, reflexão que Arrivé considera sendo um ponto curiosamente observado:
“uma das meditações mais profundas e o “silêncio” no Curso sobre a semiologia
audaciosas de Saussure sobre os problemas legendária.
da linguagem e da semiologia” (p.26). “Fala, discurso e faculdade da lingua-
Segue-se um “modesto ensaio de gem na reflexão de Saussure” é o título
releitura” sobre o Curso de lingüística geral. do quarto capítulo. A temática é de toda
O leitor certamente discordará do mo- a importância diante das relações da
desto título do segundo capítulo, quando lingüística com a psicanálise. Atento ao
se depara com nada menos do que 50 estatuto da fala, entre o que foi retido no
páginas nas quais observa uma situação Curso e o que se lê nos Escritos, o propósito

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é demolir dois “rumores” funestos: a) de como se fossem distintos e irreconciliáveis


que Saussure (do Curso) teria eliminado de campos da atividade linguageira normal
seu projeto teórico toda a atividade do sujei- (e inconsciente).
to falante. Arrivé dá voz ao autor dos Escritos, Em seguida, investiga a questão do
que critica a escola de F. Bopp justamente Tempo em Saussure, sendo a maiúscula
por ter dado à língua “um corpo e uma a própria letra manuscrita do lingüista.
existência imaginários fora dos indivíduos Num pensamento de caráter “profunda-
falantes” (p.102). Saussure julgava mesmo mente dialético” (p.119), demonstra que o
uma conquista de seu tempo ter situado tempo é central em Saussure e que os edi-
língua e linguagem no seu “verdadeiro tores do Curso teriam feito perder a “gravi-
lugar exclusivamente no sujeito falante dade” que Saussure lhe conferia (p.122).
seja como ser humano seja como ser so- Introduz esclarecedores argumentos
cial” (ibid); b) o rumor inverso, de que sobre o tempo diacrônico e o tempo da
a parte mais importante de Saussure seria linearidade, a repercussão da linearidade
efetivamente voltada para a parole. Condena não apenas no significante, mas estendida
os dois rumores como extremados, sem ao significado, apoiado em proposições
respaldo seguro em Saussure. fortemente audaciosas e elucidativas do
Com serenidade, retoma os efetivos lingüista dinamarquês, continuador de
pronunciamentos de Saussure sobre a Saussure, L. Hjelmslev.
fala, o discurso e a faculdade de lingua- “Saussure às voltas com a literatura” é
gem. Procura “precisar a situação” para o tema seguinte, em que Arrivé confessa
evidenciar que a lingüística da fala, do suas “perplexidades”: a) o Curso deixa em
discurso ou mesmo da enunciação (p.110) posição marginal a noção de literatura,
não fora de modo algum descartada por enquanto que a pesquisa de tipo literário
Saussure, impressão talvez deixada pelo — anagramas e lendas — obteve interesse
Curso. Mesmo se não “realizada por ele” perene e constante ao longo de todo o
permaneceu como “programa no mais itinerário de Saussure; b) a relação entre
alto ponto sedutor e promissor, mas não literatura e escrita em Saussure, o privilé-
levado a efeito” (p.116). gio concedido ao significante “incorpó-
Arrivé mostra que a oposição langue/ reo”, dado como exclusivamente sonoro
parole que no Curso atribui algo de pejorativo (“ imagem acústica”), ou seja, convocando
ao campo da fala, é muito menos marcada a pesquisa a se voltar à questão: os textos
ou polarizada no Saussure “autêntico” no anagramáticos, objetos de inúmeras aná-
qual a fronteira é um tanto mais “porosa” lises saussurianas, terão eles um regime
(p.114). Dentre as “soluções” saussurianas propriamente literário?
destaque-se a que faz “integrar na língua Por fim, os dois últimos capítulos
os fenômenos sintagmáticos previamente tematizam respectivamente: a influência
situados na fala” (p.115). A discussão de Saussure no nascimento da semiologia
interessa sobremaneira ao campo psica- de R. Barthes e da semiótica de A. J. Grei-
nalítico, quando com facilidade e pressa mas, e uma reflexão de Saussure sobre a
se aposta num distanciamento do Lacan naturalidade da relação entre a linguagem
da lalangue, o assim chamado último La- e a voz humana.
can, por relação ao Lacan da linguagem, Perseguindo enfim, as “porosidades”
o primeiro, forçando-se uma operação — termo seu de escolha antiga — entre o
ilegítima de opor língua, fala, linguagem, campo da linguagem e do inconsciente, da

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lingüística e da psicanálise, eis que nesse


empenho infatigável Arrivé está prestes a
publicar em outubro próximo, pela PUF,
mais um rebento dessa perseguição: O lin-
güista e o inconsciente. Que seja bem-vindo!

Recebida em 3/6/2008.
Aprovada em 25/6/2008.

Waldir Beividas
waldirbeividas@gmail.com

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