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ARO ‘ RABES E BIZANTINOS vera spirit Eladio Asensi Prado Valter Rodrigues Léa Viveiros de Castro pata: 2 DOADO POR. Marilia Pessoa Editor: Marilia Pessoa (mpessoa@senac.br) Coordenasdo de Producto Editorial: Sonia Kritz (soniakritz@senac-br) GH. 5 2 (t g Supervisto Editorial: Rose Zuanetti FEO5Y Edigao de Contetido: Lilian do Amaral Vieira CX D Acompanhamento Técnico-Pedagégico: Andréa Estrella Projeto Grafico e Fotos: Olivia Ferreira e Pedro Garavaglia/Radiogrifico Diagramacio e Ilustrages: Olivia Ferreira, Pedro Garavaglia € Barbara Abbés/Radiografico Copidesque: Sonia Cardoso 0 Revisao: Alexandre Rodrigues Alves e Maria José Sant'Anna Co Atendimento ao Cliente: Sidna Angela P. Silva (atendimentocpmi@senac.br) FREIXA, Dolores; CHAVES, Guta. Gastronomia no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro : Senac Nacional, 2068. 304 p. Il. ISBN 978-85-7458-261-0. Gastronomia; Aspecto Hist6rico; Culinaria Regional; Brasil. CDD (20.ed.) - 641 Ficha elaborada de acordo com as normas do SICS — Sistema de Informagao e Conhecimento do Ser Senac Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 - Barra da Tijuca Cep 22775-004 — Rio de Janeiro ~ RJ Tel.: (21) 2136-5545 e-mail: cpmi@senac.br home page: www.senac.br © Dolores Freixa e Guta Chaves, 2008 Direitos desta edigdo reservados ao Servigo Nacional de Aprendizagem Co Vedada, nos termos da lei, a reproducio total ou parcial deste livre mercial. Diptaad com Camscanet No COMECO DA IDADE MEDIA, NA EUROPA, A ALIMENTACAO ERA RUSTICA E SEM LUXO, APENAS NOS MOSTEIROS SE CONCENTRAVA A CULTURA. DEPOIS DO DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES E DO COMERCIO COM O ORIENTE, RENASCE UMA REFINADA GASTRONOMIA. Como vimos no capitulo anterior, a invasio dos povos germanicos no Medi- terraneo e a queda do Império Romano fizeram com que a estrutura econé- mica, politica e social da Europa se modificasse profundamente. Assim, nos primeiros séculos da chamada Idade Média, parecia que todo o requinte mesa e 0 desenvolvimento gastronémico construido pelos romanos tinham caido por terra, O legado culindrio daquele Império foi sobreposto pelos gos- tos dos novos donos do poder. 55, Diptaad com Camscanet oe Na Europa medieval, de caracteristica agr feudos**, desenvolveram-se novas classes sociais ligadas @ agricultura de Os senhores feudais e o clero ficavam no topo da piramide so- subsisténci cial, e os servos, na base. Das duas classes dominantes da época, 0 clero, Catélica, era a mais poderosa. Os sacerd trados durante bom periodo da Idade Mé sive a gastrondmica, e influenciavam no po Jer nem escrever — até o famoso imperador Carlos Ma No momento em que a estrutura feudal se s rer mudangas na cultura gastronémica. No gastronomia, como padeiros, cozinheiros, tores de embutidos), uniram-se ciarias advindas do comércio com o Oriente ¢ o inicio A profusio de espe: das regras de boas maneiras (isso jé no uso do garfo, na Renascenca, impulsionaram 0 requint 999999999999951DADE MEDIA Tendo em vista fatos politicos e sociais, a Idade Média foi o periodo da hist6ria européia que co- megou no século V (476 d.C.], com a queda do Im- pério Romano, e se encerrou no século XV (1453), data da tomada de Constantinopla, em Bizancio, pelos turcos-otomanos**. Foi também no final da Idade Média que se formaram os primeiros FUNCAO DO CLERO: IGREJA PROMOVE A CULTURA Entre os séculos IV e XIV, os mosteiros foram de capital importancia a preservaco do conhecimento classico e gastronémico. Como a imp! s6 surgiu no final do perfodo, o registro do conhecimento e a traducdo maioria das vezes eram padres € monges que supervisionavam o cultiv hortas e dos pomares, a criaco de animais, o refinamento dos queijo produgio de bebidas. ‘ria e fechada, isolada em que representava a Igreja otes foram praticamente 0s ttnicos le- .dia. Eles detinham a cultura, inclu- der, Mesmo os nobres nao sabiam gno era analfabeto. ‘lidificou, comecaram a ocor- perfodo medieval, 08 artesfos da agougueitos e charcuteiros (produ- nas chamadas corporagoes** de oficio. final da Idade Média), assim como 0 e na Europa. paises do continente europeu, dentre os quais Portugal, Espanha, Inglaterra e Franca. ‘ E importante saber que a cultura e a gastronomia medievais existiram apenas nos paises da Europa Ocidental, mas nao no restante do mundo. Con- siderar a Idade Média como um acontecimento _ mundial é uma viséo eurocentrista. CECE EEE EE EEE EEE EE: Diptaad com Canscanet MEIO DE REFEICAO E HOSPEDAGEM Alem de ser guardiao da cultura, 0 clero também ofer mida aos peregrinos e muitas vezes aos nobres em vi tram na Buropa muitos hotéis e pousadas de charme com o nome de “conv to” ou “abadia”, que preservam sua estrutura antiga, remetendo muitas veces Idade Média. Em Portugal, por exemplo, ha o Convento Nossa Senhora da Es- peranca, nas Beiras, construcio recuperada a partir das ruinas (século XIII). recia hospedagem e co- lagem. Até hoje se encon- GASTRONOMIA E QUESTOES RELIGIOSAS DA COMIDA Uma das culturas preservadas pelos abades foi, sem diivida, a gastronémica. No monastério de Alcdntara, na regiao de Extremadura (Espanha), por exem- plo, existia um receituario feito pelos frades cozinheiros. Nele constava, entre Outros pratos, o faisdo 4 moda de Alcantara, desossado na parte dianteira e recheado de foie gras e pedacos de trufas cozidas no vinho, altamente refina- do. Ja no colégio jesuita de Vizcaya (Espanha), sabe-se que a tortilha de batata fazia parte dos habitos alimentares, prato tipico até hoje naquele pais. Havia também nos mosteiros e conventos da Europa muitas variedades de sopa, prato comum em todas as classes sociais na Idade Média. Os religio- sos preparavam sopas de toucinho, peixe, beterraba, espinafte, leite, amén- doas, abdbora, favas secas, vinho, e outras (ECHAGUE, 1996, p. 188). A parte os jejuns em datas indicadas pelo calendario religioso, os mon- ges comiam muito bem nos outros dias, principalmente aos domingos e em datas festivas. No Ano-Novo, fartavam-se de pratos como arroz com leite e améndoas, pio ralado e ovos batidos, seguido por peixe fresco, queijo e pas- téis regados com mel (FRANCO, 2001, p. 63). Nas datas littirgicas em que se exigia abstinéncia de muitos ingredientes, os costumes eram bem rigorosos. O jejum comecava pelo mais apreciado dos alimentos, a carne, que nao podia ser consumida em toda a quaresma, na Se- mana Santa, entre outras datas durante o ano. Todas as classes sociais faziam jejum conforme as normas da Igreja Catélica. Nessas ocasides, comia-se peixe, um habito adotado menos por preferén- cia e mais por questdes religiosas. O peixe, alids, era considerado, na época, menos nutritivo do que a carne vermelha. Os mais apreciados eram 0 salmio, a truta, o bacalhau, o esturjio e o arenque. Também se substitufa a carne por queijo, frutas secas e ovos; ¢ a gordura era substituida por dleo de oliva. ‘As padarias piiblicas do Império Romano tinham desaparecido, mas elas foram mantidas nos monastérios, nas abadias e nos castelos. Muitos senho- res feudais cobravam para assar o pao para seus vassalos**, Diptaad com Camscanet 87 PETISCOS DA HISTORIA Alguns queijos tradicionais nasceram e tiveram seu processo de afinagao** apurados em abadias medievais, como os franceses citeaux, do mosteiro de Cistertium, na Borgonha; o laguiole, da abadia de Démerie dAbrac; 0 chaource, do mosteiro de Pontigny; eo munster, queijo dos mon- ges irlandeses produzido em Vosges desde o século VII Além de fabricarem licores, em muitas abadias também se plantavam a magi para fazer a sidra** e 0 malte para a cerveja. E por isso que muitas be- bidas tém como lugar de origem um mosteiro ou um convento. As famosas cervejas feitas pelos mosteiros trapistas**, como o Chimay e o Rochefort, até hoje sao consagradas. Na Idade Média, a cerveja chegou a ser considerada “milagrosa’, e 0 be- neditino Arnold, seu santo padroeiro. Acontece que, para acabar com as epi- demias causadas pela 4gua contaminada, © monge Arnold incentivou as pes- Soas a tomar cerveja, pois, por conta de seu processo de elaboragao (a 4gua da producdo era naturalmente esterilizada), tornava-se mais saudavel substituir a agua por esse fermentado, Na feitura da bebida usava-se o malte (cevada germinada), grdos de trigo, centeio, aveia e cevada, leveduras para induzir a fermentacao e ainda aromatizantes como cascas ¢ resinas de Arvores, além de ervas, frutas, sementes, especiarias e mel. A partir da Idade Média, foi incor porado 0 lépulo, planta que serve como conservante e confere a bebida carac teristicas de amargor e aroma. Do mesmo modo que a cerveja, o vinho tinha grande importincia, tan to como “complemento alimentar”, por seu aspecto nutritive, como por suas qualidades anti-sépticas. Misturado ao azeite, o vinho era usado para cicatri- Diptaad com Camscanet zagio de feridas e ainda acreditava-se nas suas propriedades medicinai inais, so- bretudo no tratamento de problemas do aparelho digestivo. Também era : € Pro . usa- do nas missas cern 4 mesa pelos monges e pela populacdo em geral Nos mosteiros, boa parte do terreno era desti : lestinada ao cultivo da vi ‘ : vin - dugao do vinho. ha ea pro O desenvolvimento da viticultura se mostrou crescente durante a Idade Média. Os servos também plantavam parreiras em suas terras e, j4 nos sécu- los XII e XIII, em quase todos os terrenos rurais cultivava-se vinha e manti- nham-se pequenas adegas e equipamentos caseiros com lagar**, dornas**, funis e tonéis para se fazer o vinho no proprio local. PETISCOS DA HISTORIA Defendia-se, na Idade Média, uma curiosa teoria chamada “A grande ca- deia do ser” - uma espécie de piramide alimentar em que quanto mais préximo da terra estivesse 0 produto, mais ele era considerado inferior. No topo da pirdmide estavam os alimentos mais préximos do céu e, por conseguinte, de Deus. Sob esse alhar, os vegetais eram desprezados e a fina flor dentre os ingredientes eram as aves, alimentos literalmente mais préximos do firmamento. DOCARIA NOS CONVENTOS PORTUGUESES ( ‘A docaria medieval se degenvolveu nos conventos. Ganharam fama os doces conventuais de Portugall|Como a clara do ovo era utilizada no processo de Clarificagdo** do vinho of ainda para engomar roupas, as gemas eram apro- veitadas pelas freiras na preparacao de doces que, desde a Idade Média, ja le- vavam muito agécar em sua composigfo, além de especiarias como cravo, noz-moscada e canela. /~ Muitas receitas criadas no perfodo medieval mantém até hoje seu caré- has massas de pao-de-l6, os delicados fios~ ter original, como as boas ¢ vel decwoe, as marmeladas, 08 toucinhos-do-céu, os ovos-moles, os filhoses, os sequilhos e tantos outros. Nao podemos esquecer de citar as raivas** e oe tabefes**, provavelmente feitos para exorcizar os maus sentimentos € ine tengoes. E ainda os marzipas™, doces de abobora, cidras ¢ os suspiros, que, como o préprio nome diz, despertam desejos de provar mais de um. Muitos desses doces continuam tradicionais em Portugal e se incorporaram também 3 cultura brasileira, fazendo parte da nossa meméria gustativa e do nosso Qo & gosto por doces muito agucarados. Diptaad com Canscanet 589 Y A f 60 A VIDA COTIDIANA MEDIEVAL A COZINHA RUDIMENTAR DO CAMPONES Para preparar os alimentos, os camponeses utilizavam trempes para apoiar caldeirdes, colocados diretamente nas brasas ou pendurados numa Corrente, As trempes ficavam préximas ao chao e eram usadas para cozinhar, na maio- ia das vezes, legumes e cereais que viravam sopas, ensopados ou papas, base da alimentacao camponesa. Da terra, tiravam leguminosas para seu sustento como favas, lentilhas e grio-de-bico. ; © pao continuou sendo 0 alimento basico de todas as classes. A diferen- a estava na matéria-prima. Para preparé-lo, os cozinheiros da nobreza usa- vam a farinha de trigo. Quanto aos servos, como estes nao possufam fornos, seus pies acabavam sendo rudimentares. Feitos sobre placas de terracota, os pobres utilizavam cevada, aveias, centeio e espelta**, ou uma mistura desses gr4os nos anos de boa safra. Quando a colheita era ruim, o jeito era fazer 0 pao com farinha de leguminosas**. Como este endurecia com muita rapidez, a saida era mergulhé-lo em agua, vinho ou algum caldo, o que explica a ori- gem da sopa e do ensopado, significando “um caldo que se come com pio’. Nao € 8 toa que pao e sopa sdo companheiros inseparaveis até hoje. Essencial na alimentacéo camponesa, a sopa era preparada com banha de Porco ou dleo, feita com o que conseguiam colher, como espinafre, absbora, nabo e couve. Com menos freqiiéncia, da ao preparo. actescentavam carne de caca ou salga- Entre os animais criados pelos servos estavam 0 porco, o carneiro, € acabra. Do porco vinha a banha para fazer a comid; ne consumida, aovelha ja ea maior parte da car- me fresca, salgando-a ou HABITOS E TECNICAS DE COCCAO DA NOBREZA nn ; Na fpocs medial nem 0s castelos dos senhores feudais exibiam luxo, mas ee ¥a de comida um ideal que estava longe de ser alcangado pelos inhas do: Pobres se assemelhavam, o que as dife- 0 s ticos e dos renciava era o us, 0 ais nobre da época: a carne do ingrediente m: Diptaad com Camscanet mes em pedacos e as assavam, com Pouco tempero, em espetos movidos & mao, cuja engrenagem mecanica gi- rava sobre lareiras, Nessas lareiras também se penduravam caldeirdes para cozinhar sopas e legumes; porém, uma vez que elas nio favoreciam o contro- e do calor, era impraticavel a realizagao de cocgGes lentas. Por isso, os prepa- tos mais elaborados, como guisados e carnes em molhos, s6 foram possiveis mais tarde. Como também nao existia um meio de combustio facil e imedia- to, 0 fogo era mantido sempre aceso. Apenas entre os séculos XI a XIII a grande vedete dos cozinheiros, o fo- gio, voltou & cena na Europa medieval como principal pega da cozinha. Feito de tijolos, tinha forma retangular e media cerca de am x am, Construido no centro da cozinha, 4 sua volta ficavam os outros mobiliarios. Diptaad com Canscaner O COZINHEIRO MEDIEVAL E 0 GOSTO DA ELITE A figura do cozinheiro como profissional especializado e personagem impor. tante da histria da gastronomia voltou & cena no século XIII (como vimos, ele ja existia no século V a.C. na Grécia Antiga), quando se recuperou a arte do preparo de guisados ¢ molhos. Voltaram a usar preparos como poché**, fritura e grelhado nos castelos (BRAUNE; FRANCO, 2007, p. 27). Os utensilios de cozinha incluiam as cagarolas, frigideiras e grelhas. Fri- tavam-se carnes € legumes com toucinho e peixes com éleo de oliva. A os- tentacao da nobreza estava tanto na abundancia de pratos que compunham a mesa quanto na quantidade de ingredientes caros e raros que passaram a empregar na comida. Como o paladar da nobreza da época nao era apurado, no final da Idade Média, os temperos e condimentos vindos da india eram sobrepostos sem Preocupagio com 0 equilibrio do sabor final. O cozimento era feito em Agua com especiarias, ervas arométicas e outros condimentos, que amaciavam a carne e realcavam seu sabor. Quanto as carnes mais duras, como as de caca, usavam-se cozimentos sucessivos, como escalda-las** ou aferventa-las antes de cozinhé-las na panela, frité-las ou grelhé-las. : ESPECIARIAS COMO 99992999 5SIGNO DE PODER Diversos especialistas afirmam que as especia- jas eram usadas na Idade Média para conservar alimentos. Mas por que os nobres pagariam tao Fo por elas se jd tinham o sal e o vinagre para No preparo dos molhos, privilegiava-se 0 gosto acido, base vinagre, uvas verdes ou suco de limo. Por conta dos molhos emprega- dos no preparo, os pratos apreciados pela elite tinham sabor ao mesmo tem- : po forte ¢ agridoce. Forte por conta do uso de especiarias em demasia, como F pimenta-do-reino, cardamomo, acaftéo, gengibre, esse fim? “Mais do que conservar, as especiarias Tepresentavam ingredientes luxuosos e raros e, Portanto, uma distinco nas mesas da nobreza, Pois eram acessiveis apenas as classes domi- nantes” (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 478]. CECE CECE CCE CCE EE usando-se como cravo e canela; e agridoce pelo uso do vinagre, agraco** e molhos de vinhos. © doce vinha do agticar extraido da cana-de-aciicar, que, por ser de dificil obtencio, era considerado também uma especiari , a créme de la créme da época, e utilizado inclusive em pratos principais, base de peixe, aves e carnes. Diptaad com Canscanet PETISCOS DA HISTORIA usado com moderacdo e guardado chaves”. Raro e caro, 0 acuicar tam\ consideravam que curava dores de Para a elite dominante, o doce misturado aos outros sabores melhorava a. comida. Como vimos, 0s antigos romanos também apreciavam os sabores acucarados e condimentados, mas em vez do agiicar usavam o mel. Visto que 0s gostos mudam, hoje esses molhos seriam agressivos a0 nosso paladar, ten- do sobrevivido até a atualidade apenas 0 molho de mostarda. Vocé se lembra do garum, aquele motho de peixe muito apreciado pelos romanos? Seu uso foi desaparecendo aos poucos, dando lugar ao verjus, 0 in- grediente basico dos molhos da Idade Média. Assim como o molho romano, 0 verjus era uma mistura de varios ingredientes, mas nao constava peixe na lis- ta. Podia ser composto de vegetais como brotos de feijio, suco de limao ou de Jaranja e maga; podia ser perfurnado com rom: hortela, agua de rosas; acres- cido de especiarias como pimenta-do-reino, gengibre, canela e cravo, além de vinagre, mostarda, alho e ainda agiicar- Como se vé, boa parte dos componen- tes desse molho tipico medieval era de caracteristicas acidas. (© visual era valorizado, mas com um conceito diferente dos padrdes inclusive com as penas, atuais: aves eram colocadas inteiras sobre a mesa, emo os cisnes emplumados ou javalis servidos com a cabesa. As perdizes os tordos** costumavam ser oferecidos em grande niimero numa bandeja «con decoracao simulando umn ninho, Mais que o sabor, era 0 visual das bande- jas de servico que importava. Comer em demasia era sinnimo de poder, nes- va sociedade dirigida por guerreiros e que, portanto, valorizava a forca fisica. 63 ee Diptaad com Canscanet OS BANQUETES DOS SENHORES FEUDAIS Dando continuidade a tradigo do Mundo Antigo, os banquetes prossegui. cer aliangas, tomar decisdes e firmar acordos, No inicio do perfodo medieval eram mais simples, mas o luxo voltou a cena na época de Carlos Magno (742-814), que imitava seus rivais bizantinos na abundancia dos pratos e na ostentacao do servigo e protocolo. Os senhores feudais nao comiam deitados como os romanos, alimenta. vam-se sentados em cadeiras ou bancos e em frente a mesas. Claro que estas exam tio riisticas quanto os habitos medievais: grandes pranchas de madeira escoradas sob cavaletes. Sentavam todos do mesmo lado, para que pudessem apreciar os espetdculos que ocorriam durante a comilanga diante da mesa — ram como uma forma de fa outro habito herdado dos antigos romanos. +3393 3355COMIDA, DIVERSAO E ARTE cio & diversao, com a primeira apresentacao dos menestréis“*, momos** e musicos, que anima- De cardter simbélico, os banquetes medievais duravam dias e dias. E claro que nao daria para manter convidados no castelo apenas com suces- sivos banquetes. Assim, seguindo-se o modelo riam os convidados também nos dias seguintes. ‘Apés 0 espetaculo de abertura desse festim, era hora de entrar a comida, que chegava em cortej trazida por um batalhao de servicais, ao som de uma orquestra de pifaros** e oboés**. Nos inter- valos da comilanca, os convivas brindavam a sade do anfitrido, enquanto este ostentava, nos pratos, sua riqueza e poder. 0 vinho continuou sendo a be- bida oficial para regar esses lacos de cordialidade. CECE EEE EC CE EEE EE EE CE romano, os espetaculos eram indispensaveis. Os banquetes representavam uma forma de os senhores e vassalos estreitarem seus lacos de unio e amizade. Comecavam com a troca de pre- : sentes entre anfitriao e convidados; prosseguiam com discursos e debates e, logo apés, davam ini- A ordem do servigo -> Consagrado & mesa, o vinho era diluido com Agua. A bebida foi se tornando cada vez mais importante ao longo da historia da Europa Ocidental, fato demonstrado pela presenca crescente de vinhas nos campos préximos as cidades. Dependendo da ocasidio e das posses do senhor, servia-se 0 vinho em copos de madeira finamente decorada, ou ainda de metais preciosos. copos de vidro Nao existia uma ordem para o servico dos pratos na Idade Média. Cos- tumava-se comer frutas secas antes de comecar a refeicdo. Servida em gran- des bandejas ou pratos de servigo, toda comida praticamente era colocada 30 mesmo tempo sobre a mesa. Os convivas medievais comiam com as m30s, pois nao havia talheres individuais nesta €poca, muito menos pratos exclusi- vos. Mesmo os talheres de servico eram escassos, Em alguns castelos, havia colheres apenas para caldos e sopas e algumas facas para cortar as carnes, ta” 64 Diptaad com Camscanet Iheres que eram compartilhados pelos x 1 ' ados pelos comensais* ¢ em se servir, Voc’ deve se perguntar sobre que b © nio sujar as toalhas, Poi para que as pessoas pude Colocados sobre a mesa se comia a comiam os convivas para se 6 nas refeigdes dos cas 3 : 8 castelos nao havia toa mesa propriamente dita, Comia-se sobre wea sobre a mesa, servi: apoiar ama de de a massa de pic “enti im ia de base para colocar a comida e ae : ar ni da refeigao, repleta de caldos e restos de alimentos (mais parecia i ae de batalhal), era entregue aos pobres. Faminto eciente desse habite noma ficava esperando a caridade na porta dos castelos, +O povo ja Somente no auge da Idade Média se passou a usar grandes toalhas bran- cas, que, alids, também ficavam em estado lastimavel, porque os comensais, ainda sem bons modbs, aproveitavam para limpar a boca ali mesmo. No final da Idade Média, muitas pessoas da elite tinham por habito levar sua propria faca aos banquetes para nao precisar dividi-las com ninguém, o que ja era um. avango. Os homens a portavam na bainha das calgas, e as mulheres, em esto- jos. E, literalmente, sacavam-nas na hora de “atacar” a comida. Ao término da refeigao principal, toda a aparelhagem de jantar era retira- da, e os convidados comiam a sobremesa em pé, a qual consistia, por exemplo, de bolos feitos com mel ¢ frutas secas, especialmente figos. As frutas eram cortadas ao meio e enriquecidas com creme de ovos, nozes ou améndoas. Nesse momento se servia o hipocraz, bebida famosa na Europa medieval, feita com vinho branco ou tinto, acrescido de canela, agticar e aromatizantes como bagas de zimbro, noz-moscada, baunilha, cidra, cravo, agafrao e violeta, cujo habito permaneceu também por boa parte da Idade Moderna, até o sécu- Jo XVII. Para refrescar o hilito, ao final do banquete eram servidas sementes de coentro, erva-doce, anis ou cominho (FRANCO, 2001, p. 79). O PALADAR REQUINTADO Ao que consta, adorava carne de jumento reche- NO 242 com pao, trufas, passarinho e azeitonas, es- 3999992990 CARLOS MAG! pecialidade do Périgord [Frangal, regiao reputada também pela tradigao do foie gras e das trulas pretas, Outro prato pelo qual tinha predilecao era © pavao-real assado e recheado com ervas aro- maticas, servido com sua plumagem reconstitu- ida. Na hora de servir, 0s convidados ainda eram_ agraciados com um espetaculo: acendia-se um pavio de la no bico do passaro e este chegava & Afora ser um dos maiores imperadores da histé- ria, que construiu um Império quase to grande quanto 0 romano, Carlos Magno também era um gourmand**. Como os nobres da sua época, 0 rei gostava de cagar e adorava mais ainda comer bem. Do resultado da caca, no meio de javalis, veados e lebres, o imperador mandava preparar a Ssteds; sind Tew ONE ee ee a ey giravam sobre lareiras e eram temperados com 5 muitos condimentos. CECE CEE CEE EEE EE EEE FEE 65 Diptaad com Camscanet 0 REAPARECIMENTO DAS CIDADES To XI, viris fatores fizeram com que as cidades reapareces, Jes, o desenvolvimento do comércio, que impulsionoy ;sformou consideravelmente as estruturas so. A partir do sécul sem na Europa; entre el novos mercados urbanos, tran ciais e fez surgir novas profissoes. do Oriente especiarias e produtos de luxo, es. ‘As Cruzadas, que traziam timularam as rotas comerciais para buscar € vender esses produtos no conti- eu, criando um comércio intenso € lucrativo. havia alguma hostilidade, mas isso nente europ' Entre o cristianismo e o islamismo nio inibia os contatos econémicos € culturais envolvendo o Oriente e a Euro- Esses contatos, alias, contribufram para acentuar as mudangas nas estru- pa. turas do feudalismo** na Idade Média. PETISCOS DA HISTORIA As Cruzadas eram expedicdes cristas que visavam garantir 0 dominio cris- t30 sobre os locais sagrados da Palestina, controlados pelos muculmanos. Elas duraram do século IX ao século XII, e a adesdo dos nobres ao apelo do Papa foi imediata, ja que as expedicdes a Terra Santa [Jerusalém] eram também uma forma de conquistar terras e riquezas do Oriente. Nas cercanias dos castelos e das casas dos nobres surgiu um intenso moviment ta ersas atividades decorré lo do nento por conta das diversas atividades decorrentes do comércio ¢ renascimento das cidades. Formaram-se os muicleos de artesi dos le: jaram. leos de artesaos, chamat “burgos’. E, conforme esses miicleos iam crescendo, co 0s 10s, as . ‘me esses niicleos m cres ndo, com novos adeptos, Diptaad com Camscanet fo ‘oyutA wieigaq rex{uediuode exeg “suTe> euuo> as opt arb jor sevep seu erpuguoduuy ruins ap ex9‘sounta owo>‘anb ‘axtad op b ‘sono ‘sau ‘oo1od ap auze> owo> ‘odure> ox sopranpord ap -zpissanau extourtad ap sorsyiaunte somnpoad so wieyuunsto9 as Sapep!> SEN, S30ValI9 SVN S3UVLNAWIY SOLIBYH -essny ep sojad 9 [eusHI9 essnig ep o8 14) 20d erapuipuensg ep somuypne] 2 axtad ‘ojduraxa 10d ‘wreae20n eowasuEH juerorowon $0 -oaneq 9 edoung ep ayio1 0 opo3 asenb ap [er>rou wou o eyunap anb ‘eongosuepy wBr7 & 219 sesozapod syeur Sep PUT, “sesuey sepeuieys ‘sapSexodio> sens wreyuny W9qUEE) SOyLEI>IBUIOD SQ ‘ zopuoude op eoan, wa ansouso ered exeyeqen anb “zpuande oped a (opel 28s 0) ‘on1ajeuso od ‘(eunyo ep ouop o e19 anb) axysout oad sepezo5 tera anb ‘sooSezueBzosessap ePpayo rppunzad emibrezay eps ewp, “scanpotd sop epuoa ep 9 or’npord ep emuey -suo> urgqures wexemSossy ‘auaure8oyreypeqen worapod esed soxyeis9 snas ap onsiBax oa opSeaoade © apepyoey wo> wremnBasuon soEsoe ap sod -nuf so ‘soprunas wissy “eprenpoud euiopeoraus ap apepnirenb e 9 apepryenb © epure ureaxjonuo; ‘sougfes sop 2 sompoid sop soSaud so uresexy ‘ite exeq ‘SP efougLAOIGOD e eUND exp ODYO ap sogSez0di0> sep opSuny y “sortaxtad ‘Soran -nose (snap) sstayajuonsoxoyu209 (cs8umpnog)soxtgped‘sontunare4p 2p sopsesodioo urexg‘opSeaerodso e wo opiove ap as-urearzieig -opSe -aoune e sepe8 sep ated e0q ‘sozsaye ap soiayo ap sagSexodioo sexout -p se opuepuny ‘rezrun8i0 ase ureessed soqSednoo ste eureseaipap 3s anb soppnbe anb sosuowut op s-urexewioyjeuesay opSnpord v 9 ofu94t09 O “epeqorDe 9 eotsnur Supp ap soqnpiadso we -auaj searaj se ‘stvoummjaqezeg “epos 9 serzepadsa ‘sepeSes sottze> ous soi "pod urepuss 9 uerqnrosoxoproiau so ‘soruaustesoxoupS ap wife Seu ‘semae sou seas woo sepiared wreag_e>0{apeprummio> eepor weAEysE 9 seeutas onenb 2p eo109 rest ‘sopeunu soimoA9 usa Feo} sy ‘sesoffou seis sep ogiseo0 xod ajuousyedourd S01 “tasue> Sop no sofse2 Sop saropazre Sop eo wiexewoy sexy se “erugnbas “Ho? 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A partir daf, confeiteiros empe. nharam-se cada vez mais em diversificar sua produgio, preparando Produtos ” a base de leite, ovos, natas, que incluiam doces como queijadinhas, bolinhos, j Aas** e tortinhas** (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 429). q Para os pobres, os pies continuavam sendo feitos a base de farinha de ce. vada, espelta ou de leguminosas. Assim, o pio também diferenciava as clas. Ses pobres das abastadas. Além disso, os ricos possufam seu proprio forno, enquanto a maioria da populacao levava suas massas aos forneiros ou com. Pravam diretamente de padeiros e confeiteiros. PETISCOS DA HISTORIA Apalavra francesa boule significa “bola” e esté na origem do termo boulan- ger (padeiro). Na dade Média, era comum o formato arredondado, seme- jhante ao do pao da Roma Antiga. 0 escritor Du Cange, no seu Glossaire de {2 Basse Latinté (Glossério da baixa latinidadel, ja falava que os padeiros, : [eziam 12 tipos diferentes de pies 20 gosto do frequés, como 0 pain de cour (pao da corte, o pain de chevalier (pao do ca~ vatheiro) e o pain de valets [pao dos criados} Diptaad com Camscanet yosPITALIDADE: MOSTEIROS, TABERNAS E ESTALAGENS Como vimos, até 0 século XI ficava a cargo dos mosteiros cumprir a fungio dehospedar viajantes e peregrinos. Essas pousadas ficavam préximas a locais, religiosos, como templos ou outros lugares sagrados — caso da cidade de San- tiago de Compostela, na Galicia (Espanha), com grande afluxo de turistas até hoje ~ abrigava missionérios, padres e peregrinos. ‘As tabernas e estalagens, localizadas nos perimetros urbanos e proximas a mercados ou portos, surgiram a partir do século XI, com o reaparecimento das cidades. Nessas tabernas e estalagens, ofereciam-se com freqiiéncia be- bidas como cerveja, vinho e hidromel, mas nem sempre eram servidas refei- Bes. Quando ofereciam comida, na maioria das vezes era algo bem simples, como pao, queijo e carne. Na hora de dormir, colchdes eram espalhados pelo que chamamos hoje de saguao, de maneira nada confortavel. Algumas hospedarias eram casas de madeira ou pedra com um ‘ini- co cémodo, em que homens, seus animais e mercadorias ficavam alojados perto do fogo. Nesses cémodos, em geral, os héspedes cuidavam da propria alimentaco e das roupas. Nao havia muita higiene nas pousadas ~ caracte- ristica comum em lugares piblicos e privados da época — e, nao raro, os ali- mentos ficavam espalhados pelo cho, sem local para armazenamento ou reftigeracdo (0 que hoje obrigatério). O manuseio dos ingredientes era fei- to pelos cozinheiros (ou cozinheiras) sem qualquer higiene. E por isso que as doencas causadas por contaminacao dos alimentos eram muito comuns (WALKER, 2002, p. 6). AMOR CORTES: 0 PRECURSOR DAS BOAS MANEIRAS Veremos, mais adiante, que as regras de boas maneiras e a etiquela** vo gar nhar forma no Renascimento. Mas a partir do século XII ja comegam a apa- meiros sinais de refinamento da sociedade. Um exemplo disso é 0 recer 0s pril or cortés, que fez surgir varios géneros da lite- surgimento do conceito do am vatura medieval. Era como uma cartilha poética que deveria ser seguida pe- Ios verdadeiros cavalheiros; uma forma de os cavaleiros ou poetas expressa- rem a mulher amada um amor imenso, respeitoso ¢ desinteressado. ‘A corte, que era um local de reuniao politica e administrativa em torno do senhor (suserano), tornou-se também um ponto de encontro cultural das eli tes, quando se apresentavam os trovadores cantando poemas em honra & alti vez das grandes damas. Assim, o amor cortés possibilitou a consolidagio de uma moral baseada na moderacio € na amizade. E reforgou os lacos éticos** entre vassalos, base da politica da época. Diptaad com Camscanet “69 NDIE! . OPRIMEIRO LIVRO MEDIEVAL DE CULINARIA Uma lacuna de mais de mil anos separa o livro de cozinha do romano Api- cius (37-68 d.C.) dos tratados culinarios da Idade Média. Pelo que se tem no- ticia, sé no século XIV reapareceram os primeiros livros de cozinha, uma conseqiiéncia do ressurgimento das cidades que, por sua vez, estimulou o renascimento cultural. Nesse momento da Hist6ria, outros grupos de elite, e nao apenas 0 Clero, passam a ter acesso a0 conhecimento. O livro Le Viandier, do chef Taillevent, ¢ considerado inaugural da litera- tura culindria da Idade Média. Nascido na Normandia, o francés Guillaume : Tirel (1310-1395), mais conhecido por Taillevent, foi o primeiro de uma sé- rie de chefs que serviram as cortes européias e sobre eles exerceu influéncia. Taillevent prestou seus servicos para a corte francesa de Felipe VIe CarlosV. Numa época em que ainda nfo tinha sido inventada a imprensa, ele foi 0 primeiro chef da Idade Média a transmitir o conhecimento por escrito, Seu Le Viandier revela as técnicas culindrias da época medieval, como 0 emprego dos molhos e das especiarias. Base de quase toda culinaria amadora ou profissional, os molhos ganha- ram destaque entre os profissionais de cozinha da época. Como os romanos, Taillevent usava pao (e nao farinha) para engrossar seus molhos e, claro, como seus contemporineos, empregava especiarias sem parciménia. - Considerado um grande saucier (preparador de molhos), Taillevent criou receitas que ficaram famosas, como o célebre galimafrée (feito de frango de- sossado, cozido com vinho branco, manteiga, sal, pimenta-do-reino, noz-. moscada, cominho, louro e cebolas) ¢ o salsa formidable (que levava pimenta, cravo, canela, mbar, alho e cebola). Costumava acompanhar carnes verme- Ihas com 0 molho camelina, em cuja composicao entravam vinagre ou vinho tinto, pao assado e uma mistura de quatro a cinco especiarias (canela, gengi- bre mofdo, cravo-da-india, pimenta-do-reino, cardamomo). Para as aves e 0S peixes fritos, empregava o jance, uma mistura de vinho branco, agraco e gen- gibre e um pouco de pimenta-malagueta africana, cravo e pao preto. Em sua homenagem, existe ainda hoje um restaurante em Paris chama- do Taillevent. Aberto em 1946 e, fazendo jus a notoriedade do chef, a casa é outro patriménio da gastronomia francesa, contando com trés estrelas no Guia Michelin. X m_ ‘~ t Diptaad com Camscanet | — tam Le Viandier, o autor escreve sobre a renovagiio da cozinha em seu tem- po. Introduz termos que continuam sendo usuais, como habiller, referindo-se + limpeza do peixe. O livro considerado o primeiro de culindria profissio- pal da Franga. Teve grande importancia para a gastronomia por organizar as rec eitas medievais do século XIV. Apesar de raro, ainda é possivel encontrar sersoes da obra de Taillevent editadas em francés e inglés. PovoSs DO ORIENTE: IMPERIO BIZANTINO E 0S ARABES Como jé vimos no inicio do capitulo, o termo “Idade Média” ¢ suas caracte- risticas ~ regime fechado feudal, agrario e com forte influéncia da Igreja Ca- tolica — eram aplicados & Europa Ocidental. Mas ndo podemos esquecer que importantes civilizagdes, como a bizantina ea drabe, estavam em franco de- senvolvimento e exerceram forte influéncia na Europa medieval. ‘Vamos conhecer aqui um pouco da evolucao cultural e gastronémica de bizantinos e arabes nesse perfodo. IMPERIO ROMANO DO 55555995 OCIDENTE E DO ORIENTE Relembrando: 0 Império Romano enfrentou di- versas crises internas e invasoes dos povos ger Inanicos. Em 395 d.C., para tentar solucionar os problemas politicos, 0 imperador romano Teodé- | Sio dividiu 0 Império em dois: Roma se tornou 2 Capital do Ocidente, e Constantinopla, a capital do O IMPERIO BIZANTINO Oriente (Biz4ncio]. 0 Império Bizantino perdurou até 1453, quando os turcos-otomanos tomaram Constantinopla. Esta data marca o final da Idade Média e inicio da Idade Moderna. O Império Bizantino teve um papel fundamental de transigao entre o mundo greco-romano e o mun- do maderno que chegaria com 0 Renascimento. CEE EEC EEE EE EEE EEE EE ES Ponto estratégico, localizado na confluéncia dos continentes asiatico ¢ euro- peu, Constantinopla era tanto o local de passagem obrigatéria de embarca GBes que transportavam produtos alimenticios (cereais, manteiga, mel ¢ ca- vviar, vindos de portos russos e do Dantibio; ¢ trigo, vindo do Egito) quanto 0 {inico caminko por terra utilizado pelas caravanas que vinham da india, do n a nna Diptaadcom Camscanet rregadas de tesouros como pedras i i jente Médio, ca ; ear almiscar, sedas, medicamentos preciosas, émbar, marfim, porcelana, agticary e especiarias. ; | fa contrario da Europa, os bizantinos nao se desvincularam dos valores greco-romanos. Nos seus mais de mil anos de existéncia, a ser ‘uma civilizagao refinada nos modos & mesa € muito desenvol vie fs ae nas artes. Foram os bizantinos que influenciaram ° 7 (0 italiano. O garfo (de suma importancia para introduzir os bons ao los & mesa), foi inventado em Bizancio. Na sua concepsao, este talher possufa apenas dois chegou & Itilia recebeu trés e depois quatro, 0 que demo- autor de tal facanha? Sabe-se que ais facil enro- dentes. $6 quando rou séculos para ocorrer. Mas quem seria 0 o tiltimo dente foi idéia dos napolitanos, acrescido para ficar mi lar o espaguete antes de levé-lo & boca. Habitos alimentares da populacao -> Parece que provisto de alimentos era uma das boas caracteristicas desse Império. Como vimos, grande nimero de produtos chegava a Constantinopla. Da mesma forma, a agricultura era prospera: colhiam-se viveres** tipicos do mediterrneo, como trigo, cevada, azeitona, mac, péra, ameixa, damasco, péssego, roma, figos e avelais, além de diferentes tipos de hortalicas, alho, repolho, brécolis, beterraba e acelga. A longa costa propiciava a pesca, e a extracdo do sal no mar Negro fornecia matéria-prima para conservar o peixe em salmoura. Como sempre, a quantidade ¢ a qualidade dos produtos consumidos de- pendiam da posigdo social das pessoas. Os camponeses se alimentavam de pao, queijo fresco, azeitonas, legumes e algumas frutas. Com a lenha escas- sa, era comum os mais pobres comprarem comida pronta nas tabernas, cujo “cardapio” incluia sopas e ensopados feitos a base de legumes e leguminosas, que eram mantidos quentes na panela em fogo baixo. As vezes, pedaco de carne assada de carneiro e de porco no espeto também fazia parte da refeigao (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 326). Habitos alimentares da elite > Pratos requintados compunham as mesas da nobreza. Como, por exemplo, o agridoce frango desossado com recheio de améndoas e mel, além de outras carnes como carneiro, cordeiro e pombas. Para acompanhar, um bom vinho. As aves de caca eram feitas com molho a base de mostarda, cominho, oré- gano, sal e pimenta. Os nobres gostavam de comer aspargos silvestres com azeite ¢ louro. Cozinhavam as favas em 4gua com azeite e cominho; e, como Diptaad com Camscanet acompanhamento, serviam puré: s de legumes. Apreci é doce aromatizado com canela, ao E adivinhe 0 que os ricos comiam nas datas reli néncia de carne era obrigatéria? Nos pratos de como 0 caviar! igiosas em que a absti- jejum constavam ingredientes ACONTRIBUICAO DOS ARABES Ja sabemos que na Europa, no inicio da Idade Média, a sociedade se estrutu- ava em fees € estava sob o dominio da poderosa Igreja Catélica. Enquanto isso, na peninsula Arabica, mais precisamente no século VII, 0 profeta Mao- mé fundava o islamismo. Essa religiao foi ganhando cada vez mais adeptos, crescendo vertiginosamente no decorrer desse periodo histérico. Em nome da expansio islamica, os arabes foram conquistando cada vez mais territérios. Tanto que, a partir de meados do século VIII, 0 dominio ara- be compreendia desde a peninsula Arabica até o vale do Indo, na India. Os rigidos preceitos do islamismo envolviam praticamente todos os aspectos da vida, incluindo a alimentacao. Se em termos politicos a expansao islamica era ameacadora para a Europa medieval, no campo da gastronomia ocorreu um rico intercémbio cultural. ‘Além de serem desenvolvidos em varios setores do conhecimento, os arabes eram também grandes mercadores, tendo sido os responsaveis por levar para a Europa muitos produtos de origem asiética e do norte da Africa. Deve-se aos arabes a retomada na Europa da moda das especiarias (ja pra- ticada pelos romanos). Foi por meio dos mouros** que os europeus conhece- ram o acticar (considerado especiaria, na época), assim como a noz-moscada, o gengibre e o trigo sarraceno™*. - Como mercadores, 08 arabes levaram para a Europa 0 arroz ¢ 0 acafrio. Com o tempo, ambos os ingredientes se juntaram para eee a paella, prato espanhol que conta com muitas variagdes, mas que basicamente usa arroz, acafrdo e frutos do mar, além de outros ingredientes regionais. Laranjas ¢ limées, de origem asidtica, eram apreciados pelos romanos e muito usados na culindria. Sua cultura desapareceu ap6s as invasdes germa- nicas e s6 reapareceria na Espanha e na Sicilia com os Arabes, no século VIII. Diptaadcom Camscanet 999999995550 CUSCUZ ORIGINAL 1% O cuscuz é um prato tipico da culindria brasileira, com versdes nordestina e paulista. Mas o cuscuz original, em que se inspiraram outros paises, vem dos atuais Marrocos, Tunisia e Argélia, no norte da Africa. Sua existéncia data da época dos berberes, primeiros povos némades que habitaram essa regiao do continente africano. A pesquisadora Lucie Botens {1990} afirma que os berberes jd preparavam cuscuz de 238 a 149 a.C. Feito até hoje de sémola** de cereal, na maioria das vezes trigo, 0 prato leva legumes ou carne, sendo tipico 0 cuscuz de carneiro com caldo. Uma das teorias diz que o prato teria sido difun- dido pelo sul da Europa com a invasdo moura, no século XIll, inclusive em Portugal e na Espanha. Em Portugal, hd registros de receitas de cuscuz nos séculos XVI e XVII. Os judeus sefaraditas** da Europa incorporaram o cuscuz em sua cozinha por conta da influéncia moura e estes levaram 0 prato para os locais em que se fixaram, como Italia, norte da Africa e Oriente Médio. Mas na Sicilia, pela proximidade com o norte da Africa, 0 prato foi introduzido bem antes (entre os anos de 827 e 1063]. Por conta da forte tradi¢ao do prato nesta ilha, existe hoje um festival anual que rene as receitas mais representativas de cuscuz do mundo. 0 objetivo é mostrar a sua evolucao cultural em cada cultura. Vocé deve estar se perguntando por que via esse prato chegou ao Brasil. Embora existam varias teorias - e ainda nenhuma comprovacao -, o mais, provavel é que tenha vindo de Portugal. No Bra- sil - que ja fazia cuscuz no século XVI -, 0 mitho substituiu a sémola de trigo africana. EEE EEE EEE EEE EEE EEE EE CEE Herdeitos de uma alimentago equilibrada e milenar, & base de coalhada seca, queijo, carne de carneiro, legumes, cereais, gros e frutas secas, os 4ra- bes comem até hoje pratos como galinha assada com gengibre, acompanhada de farinha de améndoas e arroz com lentilhas. De sobremesa, receitas como arroz de leite (0 nosso arroz-doce), que virou habito na Europa por volta do século XIII. Faz parte dos costumes arabes comer em pequenas porcdes, os chama- dos mezzés. Estes se difundiram pela Europa mediterranea e fizeram surgi tradigdes como as tapas espanholas e os antepastos italianos, tipo de entradi- nhas ou petiscos que partem do mesmo principio dos mezzés. ‘Também sao herancas arabes o marzipa, os torrdes, améndoas e 0 uso das frutas secas em doces, Uma bebida ganharia espaco nos dominios arabes: Africa, da provincia de Kaffa, 1e**, so muito populares. Os arabes difundiram, portanto, incluindo a Europa. E este passou a ser tio apreciado que, como veremos 0 café teve sua difusio no mundo maometano favorecida pela proibicdo religiosa de tomar bebidas alcodlicas. Assim, a vida social girava em torno dele. Até hoje, alias, bano e Turquia, os cafés, estabelecimentos nos os doces com mel € 0 café, Originario da em muitos paises como Egito, Li- quais se pode fumar nargui-— © consumo do café por seus dominios, Diptaad com Camscanet mo capitulo, logo se tornaria uma bebida colonial importante, tanto na xi bei, a proxi janto no Novo Mundo, a América recém-descoberta. Europa - F pee Daas importantes obras ajudam pesquisadores a reconstituir 0 passado némico arabe. Uma delas € 0 livro Kitab-al-Tabij, com 150 receitas, es- ee século XIII. A outra, da mesma época, intitula-se Wusla ila Habib. “ ie trabes produziam vinagres, faziam conservas e extraiam das flores syomas para usar na comida, como fazem até hoje mo famoso malabie, um wraniar branco com calda de damasco, aromatizado com calda de pétala de cas e almiscar. Também exerceram influéncias na Europa Ocidental em greas como filosofia, astronomia, matemitica, fisica, quimica, medicina, Muitos dos conhecimentos de astronomia, por exemplo, foram aplicados nas Grandes Navegages, como veremos no préximo capitulo. 15 Diptaadcom Camscanet

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