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A FIGURA DA MORTE EM DANTE∗

Johan Huizinga

Um antigo texto atribui a um dos dois filhos de Dante, sem saber se se trata de Jacopo ou Piero, um

poema em tercetos que começa assim:

Io son la Morte, principessa grande,


Che la superbia humana in basso pono:
Per tutto mondo 'l mio nome si spande.

Trema la terra tutta nel mio suono:


Gli re e gran maestri in piccol'ora
Per lo mio sguardo caggion del suo trono.

La forza giovenil non vi dimora


Che subito non vada in sepoltura
Fra tanti vermi, che così 'l divora.

Soldato, che ti vale tua armadura,


Che la mia falce non ti sbatta in terra,
Perchè non facci la partenza dura?1

À primeira vista, parece-me possível que estes versos não pertençam à primeira metade do século

XIV, pois revelam um parentesco grande demais com um gênero que apenas surge imediatamente

depois da metade do século XV, e que se baseia em representações imagéticas das danças da morte

– ainda que, no caso desse poema, não seja reproduzida a lista inteira de profissões ou funções cujo

desenlace é a morte, como por exemplo na seguinte poesia espanhola, que assim também se inicia:


tradução de Alexandre Dal Farra.
1
“Eu sou a Morte, sou princesa grande/ Que a soberba humana depõe por terra:/ Por todo o mundo o meu nome se
expande.// Treme a terra toda ao meu som:/ Os reis e grandes mestres num átimo/ Pelo meu olhar caem do seu trono.//
Não persiste força juvenil/ Que súbito não vá para a sepultura/ Entre tantos vermes, que assim a devoram.// Soldado, de
que vale tua armadura:/ Para que a minha foice não te deite por terra,/ Para que não faça a partida dura?” [traduções de
Eduardo Sterzi]
Yo so la muerte cierta á todas criaturas
Que son é seran en el mundo durante;
Demando y digo, o orbe, porque curas
De vida tan breve en punto pasante.2

Sendo fundada ou não essa dúvida sobre a autoria dos Alighieri, o poema é um bom exemplo de

como, na literatura, uma ideia pode gradualmente tanto refinar-se, quanto enrudecer-se.

Teria sido a influência da poesia franciscana, que suplantou aquelas imagens da morte de

tempos anteriores, nobres e sóbrias, e colocou no seu lugar essa visão macabra e assustadora? No

Laude, de Jacopone da Todi, já se toca abertamente no tema da putrefação do cadáver3 – mesmo que

se considere injusta a atribuição a ele do poema que começa assim:

Ecco la pallida Morte,


Laida, scura e sfigurata,4

e que, indo um pouco mais adiante, como diz Emile Gebhart: étale, avec une emphase lugubre,

toutes les misères de la tombe [expõe, com uma ênfase lúgubre, todas as misérias do túmulo].

Todos os poetas cortesãos do Duecento evitavam uma conjuração demasiado apavorante da

morte. A ocasião em que ela entra em cena nos poemas de amor é, na maior parte das vezes, a da

queixa contra a morte, que leva a amada embora, que destrói a beleza. E contudo essas queixas não

são, ali, nem tenebrosas, nem passionais.

Morte, perchè m' ài fatta si guerra


Che m' ài tolta madonna, ond' io mi dolglio?
La flor de le bellezze è morta in terra
Perchè lo mondo non amo nè volglio.
Villana morte, che non ài pietanza...5

2
“Eu sou a morte certa para todas as criaturas/ Que são e serão no mundo perdurante;/ Demando e digo: ó homem, por
que curas/ de vida tão breve, mais que inconstante.”
3 Le laude, ed. G. Ferri, Bari, 1915, no. XII, XXV, p. 22, 51.
4
“Eis a pálida Morte,/ Torpe, escura e desfigurada,”
5
“Morte, por que me fizeste tão grande guerra,/ arrancando minha dama, razão de lamento?/ A flor das belezas mataste
Este deriva do Círculo Siciliano de Frederico II, e é atribuido a Giacomino Pugliese. O seguinte é anônimo:

Dispietata morte e fera,


Cierto se' da biasmare,
Che non ti vale preghera
Nè merzè chiamare...6

Dentre os amigos de Dante, Lapo Gianni encontrou uma variação estranha do motivo da queixa

“Ser Lapo Gianni disse contro la morte”, dizia a velha epígrafe da canzona, que assim se inicia7:

O morte, de la vita privatice,


O di bem guastatrice,
Dinanzi a cui porro, di te lamento?
Altrui non sento ch' al divin fattore.8

Ele ameaça a morte com a certeza de que no dia do Juízo final ela própria terá de sujeitar-se à morte

– e se deleita com essa previsão: por vingança, ele cederia para isso a própria mão:

O morte scura di laida semblanza,


O nave di turbanza...9

Guido Cavalcanti, que como poeta foi de todos o mais próximo de Dante, já dera ao tema um outro

tom:

Morte gientil, rimedio de' cattivi


Merzè merzè a man giunte ti cheggio:
Vienmi a vedere prendimi, chè peggio

na terra,/ donde o mundo não amo nem quero./ Vilã morte, que não tens piedade...”
6
“Desapiedada morte, e feroz,/ Decerto és de reprovar,/ Já que não te vale prece/ Nem misericórdia clamar...”
7 Liriche del dolce stil nuovo, Ed. Ercole Rivalta, Venezia, 1906, p. 115.
8
“Ó morte, que nos priva da vida/ E nos devasta o bem,/ A quem de ti me lamentarei?/ Não encontro outro: o divino
artífice.”
9
“Ó morte escura de torpe semblante,/ Ó nave no turbilhão...”
Mi face amor...10

Dante se deparou, assim, com toda uma convenção poética em relação à figuração da morte. Ele

encontrou essa personagem já representada também na arte – e de diversas maneiras. Sob uma

assinatura italiana do século XII, já se vê a morte a cavalo, como um dos cavaleiros do apocalipse,

que salta sobre um monte de pessoas que caem, fogem ou estão ali largadas11. Assim também, na

personagem comovente do Camposanto de Pisa: a morte como Megera12, com asas de morcego,

voando pelo ar – essa imagem talvez tenha seu protótipo já nos tempos antigos. Como armas da

morte, a iconografia já conhecia tanto a foice e a lança, quanto o arco e flecha.

A parte mais significativa do trabalho de Dante se move em torno do tema da morte. Tanto

para a Divina Commedia, quanto para La Vita Nuova ela é a base e o ponto de partida. E vejam só:

esse poeta, que soube dar a todas as coisas uma só forma, com o som único da sua voz; que mantém

a nossa imaginação gravada por toda a vida pelas suas imagens; esse mesmo poeta se esquivou de

trabalhar sobre, e de dar acabamento à forma daquela personagem da morte, que tão viva e

profundamente habitava a fantasia do seu tempo. Na Commedia a morte só surge quatro vezes,

numa figuração mais ou menos personificada13, e depois só de passagem. Mesmo assim, a mais

pronunciada delas é a imagem do Purgatorio, VII, verso 32, onde Sordello relata que a morte teria o

seu posto no lugar onde não há, nem torturas, nem gemidos, mas só trevas e suspiros:

...co' parvoli innocenti,


Dai denti morsi della morte, avante
Che fosser dall' humana colpa esenti.14

Além dos dentes da morte, Dante fala da sua rede, na qual ela prende os mortos (uma imagem bem

10
“Morte gentil, remédio dos infelizes,/ Mercê, mercê te peço de mãos juntas:/ Vem-me ver e me levar, que pior/ me faz
amor...”
11 K. Burdach, Der Ackermann aus Böhmen, Vom Mittelalter zur Reformation III, p. 244.
12 Megäre, uma das Irínias ou Fúrias da mitologia grega (N.T.).
13 Inferno III, 57, XIII, 118, Purgatório VII, 32, XXVI, 24.
14
“ ... co’as crianças inocentes/ que os dentes da morte morderam antes/ que estivessem da humana culpa ausentes.”
antiga), e do seu arco. Mas Lappo Gianni também a conhece com ambos os atributos.

Em um dos poemas líricos que podem ser atribuídos ao seu trabalho da juventude, Dante

também segue a convenção com que se deparara, referente ao tema da morte. Trata-se do lamento

[Klage] em nome da companheira de Beatriz, em La Vita Nova (VIII):

Morte villana, di pietà nemica,


Di dolor madre antica,
Giudicio incontrastabile, gravoso,
Poi che hai data matera al cor doglioso,
Ond' io vado pensoso,
Di te blasmar la lingua s'affatica.15

Ele censura a morte, assim, por sua “torpeza”, villania – que não aprecia uma vida honrada, feliz e

cortesã, e que destrói o sonho de uma bela vida. Este é, claramente expresso, o ponto de vista da

cortesia – a convenção dominante. Mais tarde, no entanto, não se ouve mais esse tom em Dante. A

morte ganha, para ele, novos adjetivos, e, dentre eles, preferencialmente dolce e soave. No sonho

febricitante (La Vita Nuova, XXIII), tão maravilhosamente vivo, como se o tivéssemos sonhado, ele

escuta com pavor os rostos terríveis que lhe aparecem e dizem “Tu se’ morto”, mas ainda mais alto

soa o seu prório clamor: “Dolcissima Morte, vieni a me e non m'essere villana!” Na canzona “Li

occhi dolenti” (La Vita Nuova , XXXI), assim fala o poeta sobre a morte:

E spesse fiate pensando alla morte


venemene un disio tanto soave,
che mi tramuta lo color nel viso,16

e, em La Vita Nuova, XXXIII, ele a exalta:

15
“Morte vilã, da Piedade inimiga,/ da dor mãe antiga,/ juízo incontestável e gravoso,/ pois que deste matéria ao
coração aflito,/ por onde me vou penseroso,/ de reclamar de ti a língua se cansa.”
16
“e várias vezes, pensando na morte,/ veio-me um desejo tão suave,/ que me transforma a viva cor do rosto.”
come soave e dolce mio riposo.17

Também nos sonetos e canzoni que não fazem parte de Vita Nuova predomina esse suave devotar-se

à morte:

La morte de' passare ogni altro bene18.

E como apresentam-se sublimes também as formas correntes, quando Dante, na canzone “Morte,

poi ch' io non truovo a cui mi doglia”19, transforma as queixas convencionais em um pedido

confidencial que ele dirige à morte, em sua força e majestade. Compare-se agora com a tentativa de

vingança de Lapo Gianni, que dificilmente pode-se levar a sério, esses versos de introdução de

Dante:

Morte, poich'io non truovo a cui mi doglia,


Nè cui pietà per me muova sospiri,
Ove ch'io miri, o’n qual parte ch'io sia;
E perchè tu se' quella, che mi spoglia
D'ogni baldanza, e vesti di martiri,
E per me giri ogni fortuna ria;
Perchè tu, Morte, puoi la vita mia
Povera e ricca far, come a te piace,
A te conven ch'io drizzi la mia face,
Dispinta in guisa di persona morta.
Io vegno a te, come a persona pia,
Piangendo, Morte, quella dolce pace,
Che 'l colpo tuo [a] mi tolle, se disfarce
La donna, che con seco il mio cor porta,
Quella ch'à d'ogni ben la vera porta...20

17
“como suave e doce meu repouso”
18 “A morte ultrapassa qualquer doçura.”Canzone XI (XV) 65, vgl. IX (XII) 56, XIII (XIV), 37, Sonetto XXII
(XXXV), In Canzionere ed. Fraticelli, Firenze, 1894, p. 169, 136, 175, 113.
19 L. c., p. 115.
20
“Morte, já que não acho a quem me lamentar,/ Nem quem a piedade por mim faça suspirar,/ Onde quer que eu olhe,
onde quer que eu esteja;/ E porque tu és aquela que me despoja/ De toda arrogância e de mártir me vestes,/ E por mim
giras toda fortuna má;/ Porque tu, Morte, podes a vida minha/ Pobre e rica fazer, como te apraz,/ E te convém, que eu
O olhar de Dante passa pela morte, mas não se atém nela por muito tempo. No capítulo de La Vita

Nuova que trata da morte de Beatriz, de maneira abertamente proposital, ele simplesmente não usa a

palavra morte. “Sua partita da noi”, a sua partida de nós, é a expressão que entra no lugar. “In quello

giorno nel quale si compiea l'anno che questa donna era facta delli cittadini di vita eterna, io mi

sedea in parte nella quale, ricordandomi di lei, disegnava uno angelo sopra certe tavolette...”21 A

figura do amore ainda está viva, mas da figura da morte nada restou.

As frases tranqüilas e deslizantes com as quais Dante, no tratado do Convivio, retoma e

arremata a imagem de Cícero De Senectute, que falam do homem, que no fim de sua vida como que

retorna para o porto, de uma viagem ao mar; essas frases estão impregnadas daquela profunda paz,

que para Dante era mais cara que tudo, à qual ele aspirava para si e para o mundo, e que ele

encontrou somente na morte; daquela paz, pois, à qual, para ele, até as coisas inanimadas aspiravam

– como nos versos calmamente fluidos do Inferno, os quais como que antevêem a paisagem onde

ele mesmo deveria repousar:

Su la marina dove’l Po discende


per aver pace co' seguaci sui.22

© dr J.Kist/ Huizinga Estate.

corrija minha face,/ Pintando-a à guisa de pessoa morta./ Eu venho a ti, como a pessoa piedosa,/ Chorando, Morte,
aquela doce paz/ Que o golpe teu me tira, se desfaz/ A dama que consigo o meu coração transporta,/ Aquela que tem de
todo bem a verdadeira porta...”
21
“Naquele dia em que se completava um ano de quando esta dama fora feita cidadã da vida eterna, eu me sentava num
lugar no qual, recordando-me dela, desenhava um anjo em certas tabuletas...”
22
“no litoral até onde o Pó desce/ para ter paz com todos seus sequazes.”

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