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Prontuários em choque
Sylvia Arcuri
Sylvia Arcuri
Prontuários em choque
Relatos
e Bobagens
2017
1
Para meus filhos que me permitiram ser o que sou.
2
ÁRBOLES
Me observan en silencio
mientras escribo Y las copas
están llenas de pájaros, ratas,
culebras, gusanos
y mi cabeza
está llena de miedo
y planes
de llanuras por venir
Roberto Bolaño
3
RELATOS
4
Prontuário em choque
- E por quê?
5
- O que é? Perguntei.
- Que hospital?
Ele dizia essa frase com muito carinho e amor no olhar, mas
também tentando receber algo em troca que não conseguia
identificar. Talvez alguma espécie de desculpa, perdão.
- Eu sei.
- O meu tio?
- Não, veja.
6
Folhei a pasta catálogo, li alguns prontuários e
questionei:
- É hindu? Perguntei.
- É. Respondeu.
- Desculpa, mas não queria que você visse o que tem dentro
dos envelopes. Tudo bem?
7
colagem do chão e quando levantei para devolvê-la reconheci
minha letra em um dos papéis.
- Qual? Essa?
- A doença piorou?
8
- Obrigado, disse ele. Deu as costas e foi embora como se
nunca estivera ali.
II
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A senhora o esperava na soleira da porta com um ar entre
desconfiada e surpresa.
- Você não vai ficar chateado comigo não meu filho, mas não
quero ver nada, é muito doído ver coisas que mexem com o
passado. Mas, se você quiser mesmo identificar quem é que
está no pron....
- Prontuário.
-Isso, pode falar com minha filha, ela esteve mais presente,
junto com ele, quando esteve internado.
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eles estiveram internados. Hoje, já não existem mais algumas
daquelas prescrições, principalmente os choques, as
lobotomias. Entendia que era refém da sua própria profissão,
mas não conseguia perceber qual o motivo que o levou a
receitar tantas sessões de choque, poderia ter encarado a
direção do hospital e ter dito que não faria, mas era
demasiado fraco para o embate. Respeitava e seguia sempre a
decisão dos superiores. Arrependimento era pouco, ele queria
o perdão para poder sair da escuridão que estava naquele
momento, para que todos aqueles fantasmas o deixassem em
paz.
Depois de um longo trajeto, chegou ao seu destino,
Pedra de Guaratiba. Na praça central do bairro, perguntou
em um ponto de moto táxi, onde ficava o tal colégio. Teve
sorte, pois o colégio ficava exatamente no final daquela
rua. Estacionou o carro ao lado de uma van que chegava cheia
de músicos, artistas, atores, para o evento que aconteceria
ali. Perguntou a um deles:
- Onde acontecerá a apresentação de vocês?
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A cruz como um fechecler, deitada sobre sua consciência.
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Que lugar era aquele? Nunca havia pisado em um chão tão
gélido. Que lugar era aquele? Nunca tinha visto paredes tão
brancas, frias e dissimuladas. Que lugar era aquele? Nunca
tivera a oportunidade de estar diante de tantos corpos
jovens e sem vida. Mas, naquele momento, deveria, tinha que,
embora contra sua vontade, reconhecer o irreconhecível corpo
desfigurado de sua única filha. Que lugar era aquele? Que
atiçou lembranças e a transportou a um dia especial.
Na porta da igreja, ela começou a se despedir do seu
vestido de noiva de um branco imaculado, dos seus padrinhos,
do seu sorriso largo e seguro que, com o passar dos dias,
seria ameaçador e candidato a um não mais existir, das suas
damas e pajens e das suas angústias. No caminho até ao altar,
ao seu pai, pediu a benção e tentou despedir-se, mas sua
alma interrompeu esse momento, ele não entenderia, ela não
conseguiria. Despediu-se das suas futuras enfermidades, dos
filhos que não pensou em ter, do seu ventre, que alguns dias
depois seria golpeado com força brutal, sem nem saber o
porquê.
Diante do altar, a despedida materna, doída, confusa,
um tanto cúmplice talvez, tendo um buquê de flores pequenas
coloridas e perfumadas como testemunha. Não conseguia
encarar o olhar de sua mãe, pois intuía que ela não
suportaria tremenda ausência. Despediu-se das dívidas
contraídas com a compra dos objetos domésticos, de todas as
faxinas que não faria, dos vizinhos que ainda nem conhecera,
do mar, do sol, da religião e nesse momento tinha como aliada
a imagem de Cristo. Sentia-se acarinhada, ainda que toda
essa despedida a deixava dilacerada por dentro.
Do marido e de todas as noites de amor, carinho e sexo
que, todavia, teria, despediu-se diante do padre, no momento
de proferir as palavras de ligação eterna, no lugar de dizer
o que era esperado, com uma calma sepulcral, afirmou e
proferiu.
Eu,
Não recebo-te por meu amor e esposo.
Nem prometo ser fiel, nem amar-te ou respeitar-te.
Não estarei com você em nenhum momento de alegria, nem de
tristeza, muito menos na saúde e nem na doença. Até que a
minha morte ou a sua morte nos separe.
Tentou disfarçar, como não conseguiu, continuou com a farsa
da felicidade.
Da casa também havia se despedido. Primeiro dos
cômodos, dos móveis, dos bibelôs, dos eletrônicos, dos
livros e de todos os detalhes. Lembrou-se de despedir-se
da borboleta tatuada nas costas tal e qual a estampada na
cortina da janela do seu quarto. Dos sapatos, em cima de um
aparador que ficava na área de serviço, teve certa
dificuldade de despedir-se, pois os adorava, eram cômodos e
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haviam levado a sua alma por muitas viagens, inclusive
àquela onde conheceu aquele que seria seu consorte, a sua
sina e o seu inferno.
Recordou-se do diário e antes da despedida derradeira,
leu o que escreverá por último e na página dobrada jaziam
deitadas algumas letras.
Sinal aberto
- Tudo bem?
- Sim e por aí?
- Nada bem, ele sumiu.
- Quando?
- Desde quinta-feira, não voltou, nunca fez isso, sempre
avisa.
- Estranho mesmo. Estou indo praí.
- Vem, precisamos que nos ajude a procurá-lo. Não sabemos
por onde começar.
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- Saio daqui a pouco, no ônibus das 22h e chego aí no Rio
amanhã cedinho.
- Se pai não tem condições de te buscar.
- Não precisa, eu pego um táxi.
- Estamos nervosos, seus tios e primos estão todos aqui
tentando entender o que está acontecendo.
- Não chore, fiquem calmos, logo estaremos juntos e pensamos
o que fazer. Vou falar com o Rafael.
- Ele pode fazer algo? Está tão longe...
- Pode dar alguma ideia. Deixa eu ir se não perco o ônibus.
- Será que você consegue lugar?
- Lógico mãe, quem vai sair de Campanha essa noite e com
esse frio?
- Pode ser. Cuidado.
- Terei, a bênção. Dê um beijo no papai e se acalmem.
- Deus te abençoe. Vamos tentar.
Angústia
Dor
Incertezas
Noites sem dormir
Calmantes
Procura
Buscas
Necrotérios
Hospitais
Delegacias
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Hotéis
Quebra de sigilo do celular
Casa dos amigos e de algumas possíveis namoradas
Reportagens nos jornais
Nada
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precisamos de uma resposta, não consigo ver meus pais do
jeito que estão.
- Tem um retrato dele?
- Tenho.
- Não, esse não serve, tem que ser de frente e atual.
- Toma.
- Sim, esse...
- ...
- Seu irmão está vivo, pode ter certeza, ele está
desorientado.
- Como pode afirmar isso?
- Veja seu olhar... Assim... Viu como são olhares
diferentes?
- Sim, o olho esquerdo parece de outra pessoa.
- Preciso que me diga o que já fez, onde já procurou, se ele
tem um celular...
- Já procuramos por todos os lugares, até na Floresta da
Tijuca meus tios já fizeram buscas. Não sabemos mais aonde
ir. Ele tem um celular e aqui está a lista dos telefones que
ligaram pra ele.
- Deixa essa lista comigo, vá pra casa e fique lá, mais
tarde vou vê-la, preciso também falar com seus pais. Como é
seu nome?
- Sylvia. E o seu?
- Gilvan, mas pode me chamar de Gil. Deixa o endereço.
- Quem você é?
- Inspetor da Divisão de Homicídios, trabalho com
desaparecidos.
Abismo
Lacuna
Fresta
Medo
Desconfiança
Desesperança
Dúvida
Jornais
Revistas
Entrevistas
Mentiras
Soberba
Incompetência
Sentença
Cesta básica
Anormalidade
Simbólica morte anunciada.
Pagode da saideira
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- Cara, não sei, falta algum verso ainda aí, quem sabe algo
como: estou preparando a comida. De repente ficaria maneiro
assim:
- Assim ficou muito melhor mermo, mas esse verso final ainda
está capenga. Temos que apresentar esse samba na próxima
roda do Samba na Fonte da Pedra do Sal, resta terminar, nada
muito grande Rody, porque o povo tem que cantar logo.
- Edinho, me diz uma coisa, no dia da apresentação na roda,
vamos levar as Pastoras?
- Podemos levar sim, por quê?
- Pensei em levar a Simone, quero ver se me adianto com ela.
- E ela está afim?
- Deixou umas pistas, mas estou inseguro pacas.
- Cara, e a Simone é pro teu bico?
- Tá, tá bom, Edinho, mas não se mete nas minhas paradas com
a Simone, vou tenta desenrolar meu lado com ela, uma mina
de responsa, gosta das paradas certas, é pra casar e venho
pensando nisso, já estou de saco cheio de ficar sozinho.
- Xhi!!!! Casar? Qual é? A parada é séria mermo. Então, leva
ela no dia da apresentação, ela tem mermo uma voz bonita e
juntando com a Jassaña e a Guaciara vai ficar demais!
- Outra saideira?
- Putz, já chega, amanhã tem trampo e preciso pensar no
resto do samba.
- Aí meu camarada, a conta!
Edinho é o filho, irmão, cunhado, primo, amigo, marido,
amante que todo mundo queria ter. Um cara sem estresse que
vive feliz, cantando, o negócio dele é música, sobe morro,
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desce asfalto cantarolando os sambas das antigas, é
fissurado por Cartola, Ivone Lara, Martinho da Vila, Luis
Carlos da Vila, Candeia, mas o preferido mesmo é Paulo Cesar
Pinheiro. Vive falando para o Rody que queria compor que nem
ele, mas faltou estudo e ainda por cima falta inspiração.
Um dia, ele me revelou que o sonho era conhecer esse
compositor. Bem que tentei uns contatos, mas o cara é muito
difícil de achar.
Ele conhece o Rody desde criança, moravam no mesmo beco
e frequentaram a mesma escola. Aprontaram muito na Lauro
Sodré, mas eram queridinhos porque sempre que a escola
precisava fazer uma peça teatral, um concurso de poesia ou
um festival de música eles sempre eram os primeiros a ajudar
e se apresentar. Conheci os dois na roda de Samba do Cacique
de Ramos, ficamos amigos no ato, foi amizade à primeira
vista e sempre que posso, acompanho os dois pelas rodas.
Houve uma época que era louca por ele, mas aqueles olhos não
me viam, ou me viam só como amiga mesmo. Depois desencanei,
deixei pra lá porque ser amiga dele é melhor que ser
namorada. Ele é desses que não quer compromisso, quer viver
a vida, a música, as rodas de samba, então é melhor assim,
nos divertimos juntos. Já até tentei compor com eles, mas
não levo jeito pra coisa, meu negócio é cozinhar.
- Vamos tomar uma? Preciso de um conselho e te mostrar o
resto do samba. Acho que ficou legal, mas ainda falta alguma
coisa, sei lá, não estou convencido e aqueles pregos lá da
roda ainda podem vir com umas críticas que não vou gostar.
- Pô Rody! Sabe que é assim mermo, é pra ser criticado e
melhorar. Vamos ali no Fidelis que é mais perto e você me
conta e mostra o samba.
- Fidelis! Traz uma ai pra gente! Diga.
- Tu sabe que quero me acertar com a Simone, a mina é muito
gente boa, quero ela, goste dela pra caralho, mas...
- Ai caramba! Onde você meteu esse cacete, porra? Te conheço,
já vem merda.
- Calma, não quero esporro, quero conselho. Acho que entrei
numa furada.
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- Mas você sempre se mete em uma, ou melhor, em muitas, num
sossega.
- Dessa vez é uma mulher casada, e o marido é um dos vermes
que anda fazendo ronda pela favela.
- Cara, só te dando muita porrada, logo com mulher de cana!
Tu num sabe que essa parada não pode. Tanta mulher e logo...
- Sei, sei, foi mal pacas, mas a mulher se jogou, quis de
qualquer jeito apareceu lá no barraco altas horas da noite,
madrugada, o verme de plantão.
- E o que tá pegando?
- Hoje ela me passou a visão de que o cara leu umas paradas
nossas no celular
- Além de burro, deixa rastro. Putaquiopariu!! Tu tá é morto!
Quero mais saber disso não, nem sei como te ajudar, podia
dizer para dar um tempo, ir lá para Linhares, mas tem o
samba, porra! Como vai ser agora?
- Não, já resolvi, na minha cabeça tá resolvido, o samba é
amanhã, né?
- É?
- Vou dar um tempo da favela e amanhã apareço direto na
roda, me espera lá que eu vou. Já até avisei pra Simone que
ela será uma as pastoras com as meninas.
- Maluco! Num tô achando essa parada legal, num tô sentindo
firmeza, mermão.
- Calma Edinho, num me deixa mais nervoso.
- Nervoso! E eu Rody, como você acha que estou me sentindo,
ein?
- Sei, sei que já vacilei uma porrada de vez, mas agora vou
consertar, pode deixar, é à vera!
- À verá? Conheço bem teu à vera! Da outra vez foi tão à
vera que quase tu empacotou, esqueceu?
- Bro, pelo amor de Deus, nunca que tu vai esquecer aquela
parada, caramba!
- Não mermo, foi por um triz que nos salvamos. Cuidado jacaré
que um dia a lagoa seca, tu num leva fé.
- Tá, tá tá bom, chega de sermão, deixa mostrar o samba que
tá irado.
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- Fidelis, traz outra!
É que eu trabalho
Ela não entende
Diz pra toda gente
Que sou desnaturado
Fiel não sou
Quero que fique claro
Qualquer dia vou mandar
Todo mundo pro diabo
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deixar um agrado para casa e para as entidades. Rody acredita
nos astros, vive dizendo que é de Aires e que quem nasce sob
esse signo vence na vida.
- Sabe de uma coisa? Os astros nunca me abandonaram, nem as
entidades. Sou um protegido e um privilegiado, diz todas às
vezes que conversávamos. E eu acabo concordando, porque o
cara tem mesmo muita sorte.
Nem preciso dizer que seu amigo preferido é o Edinho,
diz ele que nasceram juntos nessa vida para mudar o mundo.
Sim, eles nasceram bem pertinho um do outro, diferença de
um mês. Além de viverem grudados, durante a infância, agora
são parceiros de composição. Rody afirma que os cariocas
ainda vão cantar um samba composto pelo dois na Marques de
Sapucaí e pela Mangueira. Às vezes, até acredito nos seus
sonhos, mas ele é um moleque sonhador e quando se depara com
alguma dificuldade fica paralisado, e se não fosse a força
de Edinho eles, não continuariam nem compondo. Agora está
muito animado com as composições que tem feito para a roda
do Samba na Fonte, pesquisa, estuda, ouve muitos sambas
antigos, principalmente do Candeia, seu mestre preferido.
Está louco para chegar quarta-feira e mostrar o novo samba
na roda, tem certeza que esse emplacará, já que levarão até
as pastoras para incrementar.
- Escuta Edinho, presta atenção, mudei o diabo e daqui a
pouco vou mandar a letra completa pelo zap, e tu dá um jeito
de imprimir os papéis.
- Já falei com o chegado da lan house, ele vai imprimir pra
gente e diz que é por conta.
- Mas tem que ter muito papel, a roda vai está lotada amanhã.
Com esse calor e com o nosso samba a Pedra do Sal vai tremer
e o coração da Simone vai ser meu, finalmente.
- Cara, incrível, você não esquece a mulherada, eu
preocupado pra que tudo dê certo e tu pensando em mulé.
- Parece que não me conhece. Se liga, tá tudo pronto, já te
mando o samba.
- Ei, espera, não desliga, me diz uma coisa, qual a palavra
que tu colocou no lugar de diabo?
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- Você vai ver quando a letra entrar aí no seu telefone.
- Já estou até vendo que você vai demorar só pra me deixar
nervoso.
- Fica frio Edinho, o samba ficou top. Já que tenho que
ficar entocado, te vejo amanhã na Pedra.
- Vê se não vai demorar, ein? As meninas já estão avisadas
e querem até dar uma incrementada no visu.
- Nosso samba merece, nosso samba merece, até.
- Até.
O samba chegou pelo zap e ele viu logo a mudança e
começou a rir, dizendo para si mesmo:
- Esse Rody é foda! Espero que dê certo.
Dia seguinte, cheguei na Pedra do Sal cedo, antes das
17h30, a roda estava sendo montada, além da roda, tinha a
exposição, Samba Identidade Nossa do fotografo Ierê
Ferreira. Revi uns amigos e logo chegaram as pastoras,
estavam lindas, usavam bata branca de lesie e na cabeça os
turbantes, bem coloridos, estavam impecáveis. Rody, quando
visse Simone ia pedi-la logo em casamento, a nega estava
deslumbrante, todas chamavam atenção e todos na roda queriam
saber com quem elas cantariam.
- Oh! Oh! Calma lá Maurinho, as pastoras estão comigo,
aproveita e já inscreve eu e Edinho na roda de hoje, porque
viemos pra arrebentar!
- Caramba, hoje o bicho pega!
- Rody, olha lá, o Edinho vai pirar.
- Olha lá o quê?
- Olha quem está sentado na cabeceira da roda. Num acredito!
- Caramba Marcinha! É o Paulo César Pinheiro! E cadê o Edinho
que não chega? Não sei se ele vai ficar eufórico ou se cagar
de medo coma presença do seu ídolo. Falou, rindo de perder
o fôlego.
- Já liguei, ele está a caminho.
O samba começou, anunciaram a presença do nobre
compositor e o primeiro samba que ia ser cantado. Rody e
Edinho seriam o quarto a se apresentarem e nada de Edinho,
Rody ficando nervoso, as meninas preparando a voz e dando
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uma ajeitada final no visual. Já estavam apresentando o
terceiro samba quando ouvimos um estrondo vindo lá da pista,
um barulho estranho que parou a roda e que deu início a uma
correria danada. Rody não acreditava que não seria naquele
dia que não apresentaria o samba que compôs com seu parceiro.
O tumulto era tão grande, mas tão grande que resolvi checar
o que acontecia e falei com Rody:
- Cara, vamos lá ver o que aconteceu? Tá tudo muito estranho
as pessoas estão voltando de cabeça baixa.
- Vamos logo.
Saímos da Pedra do Sal em direção à rua Sacadura Cabral,
mas quando chegamos na esquina vimos um corpo tombado na
calçada e um ônibus parado a uns 100 metros. Não queríamos
acreditar que o corpo caído e sem vida era do Edinho e, em
volta dele centenas de papéis espalhados com a letra do
samba, cujas letras destacadas diziam: Saideira da Vida,
letra e música, Edinho de Carvalho e Rody Marques.
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Pai Véio
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- Vovô, posso lhe fazer uma pergunta? Cambono interrompeu o
silêncio do velho.
- Pode sim fio, se preto puder responder...
- Por que vovô faz mandiga e recebe o dinheiro dessa gente
que só sabe pedir quando chega perto das eleições e explorar
o povo?
- Vou expricá pra suncê biem expricadinho. Senta aí nesse
banquinho e escuta que vou dizer.
Cambono trouxe o banquinho para mais perto de Pai Véio
e com semblante sério e inquieto, ouviu...
- Esse povo tudo já bateu, já molestô muito minha gente, lá
nos tempo passados, nos tempo onde os preto tudo era escravo,
suncê entende?
Cambono afirmou com a cabeça que sim e continuou ouvindo
a prosa do vovô.
- Essa é a paga que eles tudo vão ter que me dá, por tudo
que eles fizeram com nós. Suncê pensa que foi fácil apanhar
no lombo, ficar amarrado no pelourinho sem uma gotinha
d’água, sem comê. Sol a sol, trabaio atrás trabaio, sem
descanso, sem nem poder pedir aos nossos Orixás um alívio
pra alma? Além de que tinha que assisti nossas muiê sendo
violentada? Tirar nossos fios dos braços e mandar pra longe?
E nós ter obedecê? Não mizinfio, num foi nada fácil. Eles
vão ter que paga. Pai Véio cansou e hoje em esprito não deve
mais obediência não. Eles vão ter que pagar moeda por moeda
tudo que exploraram do meu povo. Agora todo bango que posso
tirar deles eu dou pros pobres, pros necessitado, e aqui
quase todos que necessitam são preto como eu. Mas esses
políticos, principalmente esse que chamam Justo, acha que
vem aqui e engana Pai Véio.... ê ... ê... ê... nada disso,
preto-velho que está enganando eles tudo. E Zambi lá de
cima, de butuca biem abreta, tá piangando o trabaio de preto-
velho, que vai atender com a premissão dele e realizar os
pedido deles tudo. Zambi só tá espiando o que tão fazendo
por aqui, nessa terra.
- Agora eu entendo porque o senhor os recebe.
- Tá entendendo mesmo, fio? Eles vêm aqui para entrar nesses
cargo de política, Pai Véio consegue, mas em troca precisa
do bango que dessa vez vai lá pro Inácio, aquele que cuida
do asilo dos veinho que nem eu. Inácio veio aqui outro dia
dizendo que tem umas dificulidades para manter aquela casa
grande e cheia, o bango mal dá pra comê. Ê, ê mizinfio.
- Mas Seu Inácio não podia conseguir de outro jeito?
- Suncê conhece Inácio, ele lá sabe pedi? Só sabe vim cá
chorar as mágoas e preto-velho fica com pena. Esse povo,
dessa terra num aprende, quando vão aprender a dividir o que
tem com os outros, né fio? Eu já fiquei pensando muito que
tava fazendo coisa errada, pegando o bango desses
políticos, mas os meus guias chefe, lá de cima, me mostraram
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que não, me disseram que posso pegar porque não fico pra eu,
nem pra casa esprita, eu distribuo para os que mais tem
precisão, dessa vez o asilo de Inácio precisa muito, mas
muito mesmo. Então eu tô perdoado. Faço as mandingas valê,
por isso eles vêm tudo atrás deu, porque mandiga pedida a
esse preto-velho é mandiga realizada e garantida. Eu só num
faço é matá e nem maldade dessas que fazem por ai, aquelas
que deixa a pessoa na tarimba, isso num faço mesmo. Mas
ajeitar um lugazinho pra eles ficá lá dentro dessa política,
eu consigo.
- Tá bom vovô...
- Agora, suncê traz meu pito, meu rosário, meu licor, meu
fumo, meu cafezinho biem quentinho e manda esse político
Justo entrar que nosso convercê vai longe mizinfio...
Assim foi...
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umas pessoas, uma senhora nos deu água e tentava nos acalmar
dizendo que logo chegaria o bombeiro. Papai ficou
conversando com o moço que tinha batido no carro e o vovô
procurava os óculos dele que foram parar na mala da Kombi.
Lembra disso?
- Disso eu lembro, os óculos todo torto. Mas foi um ônibus
que bateu e os passageiros começaram a gritar, dizendo que
tinha um moço machucado ... Cortei a testa, tenho a
cicatriz até hoje. Olha aqui, é essa!
- Um ônibus? Muita gente machucada? Que invenção é essa
agora, meu Deus! E essa cicatriz foi desse dia? Achava que
era do dia que você tinha sumido na praia e o guarda veio
te devolver.
- Nossa! Esse dia da praia foi muito ruim, achei que nunca
mais veria vocês. Mas voltando ao acidente, a senhora
cuidou da gente até o bombeiro chegar, papai ficou nervoso
à beça com o motorista do ônibus e ele só conseguia dizer:
- a minha mulher está me esperando na maternidade. Ela não
vai entender nada se eu demorar e agora nem posso ir mais.
Que coisa! Logo hoje que ia levar a minha caçulinha para
casa! Vovô teve a ideia de pegar um táxi e buscar a mamãe,
nós cismamos e fomos com ele.
- Beto, o papai não queria que fossemos e vovô dizia que
levaria a gente assim mesmo e que a mamãe não podia ficar
esperando. Nesse momento chegou o bombeiro nos examinou. Não
tínhamos nenhum arranhão.
- Como Nena? E o meu corte na testa? O bombeiro fez um
curativo e disse que não era nada grave. Fomos com o vovô,
já no hospital sem o papai, mamãe viu meu corte na testa
ficou logo nervosa e queria saber o que tinha acontecido.
- Você diz que tinha esse corte. Voltamos de táxi com o
vovô, a mamãe e a neném e o papai voltou muito tarde.
- Você dormiu, mas eu esperei por ele que chegou dizendo que
a empresa de ônibus ia pagar o prejuízo.
- Quase 50 anos, lembramos bem, cada um a sua maneira, mas
você com certo exagero e imaginação.
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Prestação de contas com a vida
- “Tô fudido”! Não sei como vou fechar as contas desse mês,
com o pagamento parcelado, esse governo está de brincadeira
com a nossas vidas! O que eles acham? Que temos reservas?
Como vou fazer para comer, pagar a escola dos meus filhos e
a prestação da casa? Já fiz e refiz as contas e elas não
fecham. “Tô fudido”!
- Nem te conto.
- Ele não vai te pagar? Sei que tem uma doença rara, mas que
vivia de maneira precária...
- Pois é, além de tudo, tem essa doença que não tem cura.
Ele assinou dez cheques em branco, como garantia do
empréstimo e me entregou, dizendo que poderia preencher e
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descontá-los todos os dias 20, só que ontem me ligou pedindo
para dar uma segurada, pois o que recebeu mal deu para
pagar os remédios... Não posso cobrar.
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História de um taxista que trancou a boca com a chave do
próprio taxi e a jogou na lagoa Rodrigo de Freitas
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Máscara própria
- Olha!
- Que?
- Olha ali.
- Onde?
- Que faz?
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- Que?
- O homem...
- E?
- Olha!
- Que?
- Olha!
- Que?
- Falta algo.
- Eu?
- ...
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Da mesma maleta, o home retira uma espécie de peruca e
a cola na cabeça morta que ainda está sobre a mesa. Agora
sim, pode ver que está completinha.
- Olha!
- Que?
- Mas... O quê?
- Olha!
- Que acontece?
- O homem...
- Que homem?
- Sim... E?
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Um respingo de vinho tinto e sangue
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O casamento aconteceu quando o sol beijou o mar,
naquele momento que há uma brisa que paira e para sobre a
cabeça dos iniciados. Simplesmente desse jeito.
A estátua de um homem com seu cachorro ao lado, uma
imagem nunca esquecida. Suas pernas compridas, seu cabelo
cheio de cachos, sua maneira amável de transar. Seu corpo
esticado, tensionado até o instante do gozo. Uma paixão
avassaladora, devastadora, abrasadora.
Um apartamento novo, no momento precioso de mudança,
o cheiro do novo quarto, sempre deitados pelo chão, tendo o
cachorro observador como companhia. Um creme que deslizava
pelos corpos, ajudando na entrega, que era de total
comunhão, um dentro do outro. Quando o Sol fazia contato
positivo com Netuno, seus desejos de amar e serem amados se
reforçavam. O sentido erótico também se fazia presente. O
tempo que passavam juntos era agradável para ambos, por isso
se prepararam para saídas românticas. A
Adamastor era paixão, ilusão, satisfação. Um poema
escrito por ele para o momento em que se entregavam, expressa
toda aura que havia ao seu redor. Assim se recordava e a
reconhecia.
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Estamos desgraçadamente em nossa companhia”
A vida é um imenso barco
Com a âncora jogada em um porto
Que, sem querer, é a Terra
Nós estamos e somos esse barco
Maravilhoso?
Não sei. Talvez.
Mas sem escapar
Vivemos
Às vezes à deriva
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A calça jeans o incomodava, retirou-a, se acomodou
melhor no sofá e começou a escrever...
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perdidos e soltos estamos todos diante de tanta crueldade
vestida de metáfora de si mesma.
A possibilidade do amor
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Helenice apresenta Ivo a sua religião, que será
decisiva na vida dos dois. Frequentar o Centro Espírita
Eurípedes de Barsanulfo os aproxima cada vez mais e Ivo é
aceito, de vez, pela família de Helenice e passa a ser mimado
pela futura sogra. - Ai o macarrão dela nunca comi nada
igual! Ele sempre se recorda.
“Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por
algum motivo e, em troca, receber um abraço, um sorriso, um
afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras,
entreguem-se: vocês foram feitos um pro outro”.
Já não tinha mais como adiar, já chegara o momento de
juntarem os Carvalhos, isso mesmo, ambos são Carvalho.
Decidida a data, começam os preparativos para o dia 15 de
outubro de 1960, mas Cotinha está enferma e os dois não
sabiam como fazer. Sábia, Cotinha junta, em maio daquele
mesmo ano, os filhos, também os dois noivos e pede que não
mudem a data do casamento. Sem tristeza, pois a morte é só
uma transformação e a vida continua.
“Se por algum dia você estiver triste, se a vida te deu
uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar
as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa
maravilhosa!: você poderá contar com ela em qualquer momento
de sua vida”.
Casamento marcado, cerimônia realizada, mas ficaram de
fora da foto duas pessoas importantes, vó Cotinha e vó
Nerita, que não esteve presente por um longo tempo, mas essa
é outra história. Passam a viver juntos na casa do vovô
Balduino pertinho do vovô Horácio. Um dia descobrem que
estão grávidos e a felicidade aumenta em torno dos dois.
“Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da
pessoa como se ela estivesse ali ao seu lado…”
Ela bordava o enxoval do neném que estava prestes a chegar.
Ah, seria tão bom que sua mãe voltasse e terminasse de bordar
as roupinhas, me disseram que ela é excelente bordadeira.
Não fora por isso, Tia Estela e a bisavó Manzinha resolvem
escrever para um programa de rádio em busca da irmã e filha,
que tinha passado a perna no mundo e lá tinha ido viver
outras experiências. Resulta que o recado foi ouvido e vó
Nerita voltou para casa para completar a felicidade que
sempre rondou os dois.
“Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo
ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos
emaranhados…”
Depois da primeira filha vieram mais dois, embora, a
caçula afirme e pense que é adotada, sem chances eu e Beto
presenciamos a gravidez da Ana Cristina e a quantidade de
cajá manga e limão que a mamãe chupava.
“Se você não consegue trabalhar direito o dia todo,
ansioso pelo encontro que está marcado para a noite…”
45
Harmonia, paz e tranquilidade vivíamos em Piedade e ainda
tínhamos o tio Zé como irmão mais velho que foi adotado pelo
papai como seu, mesmo com todos os problemas que
aconteceriam depois. Foi, além de cunhado, irmão e pai, pois
o amor era incondicional. Viver a dois é receber a conta do
outro e pagá-la da melhor maneira.
“Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um
futuro sem a pessoa ao seu lado…”
No apartamento da Rua São Bráz, que ela sempre se
recusou a vender, os dois continuaram o caminho traçado na
eternidade, nunca presenciamos brigas, desavenças,
xingamentos entre eles, muito pelo contrário, a porta do
quarto deles sempre fechava depois que íamos dormir, né
Beto?
“Se você tiver certeza que vai ver a outra envelhecendo
e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo
louco por ela…por ele…”
E assim foram passando os anos de amor, compreensão e
sem ciúmes, papai pousando nu para a escola de Belas Artes,
encenando no teatro, viajando para competir como
fisiculturista e mamãe fazendo suas viagens, se dedicando à
religião, cada um respeitando o espaço do outro e mais que
tudo, com muita cumplicidade. Cumplicidade, esta é a palavra
que mais combina com a relação dos dois.
“Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra
partindo: é o amor que chegou na sua vida”.
Os dois, além dessa entrega mútua, se entregaram de corpo e
espírito à religião, construíram juntos o nosso espaços
religioso. Estamos aqui, todos os seus filhos no santo e
somos testemunha dessa entrega.
Hoje alegres estamos por compartilhar, ratificar e
presenciar essa linda história de amor, que teve um ponto
de início, mas com certeza, não terá um ponto final.
“Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas
poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezes
encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam
o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente. É o
livre-arbítrio.”
Eles não deixaram o amor passar, ficaram atentos a
todos os sinais e amor se converteu em o verdadeiro lema de
vida de vocês dois. Vocês nos mostram que vale a pena cada
minuto vivido, que o amor é possível, que as relações entre
casais podem ser sólidas.
Aqui estamos nós: filhos, netos, familiares, amigos e,
junto com essa caixa de recordações, fazemos parte desse
inventário de 60 anos de puro amor e felicidade.
As partes entre aspas são do poema: O Amor de Carlos
Drummond de Andrade.
46
Na livraria
48
O esmalte meio ocre descascado em cada unha de mãos que não
tentam escrever aquilo que se sabe.
49
Os lençóis alvos de Nerita foram estendidos no gramado atrás
do bloco para serem quarados. Debaixo de um sol escaldante,
de meia em meia hora gritam o pedido:
- Molhem os lençóis
Diante da bacia redonda de alumínio com água, sabão e pedras
de anil, ela se deparava e começava o intenso chacoalhar, o
borrifar de água pelos ares que retornava a vida àqueles
lençóis alvos, cheirosos, límpidos, como ela que namorava
sentada no sofá, diante dos olhos de toda família, o beijo
era roubado debaixo do bloco. A vida naquele espaço-temporal
saia das páginas das fotonovelas e por alguns instantes se
tornava real. No final da tarde, cada lençol voltava para
sua devida casa, assistindo a cotidianidade das suas
mulheres e eles ainda insistem em pendurar-se no silêncio
de cada uma delas. Por isso, o pedido persiste:
- Molhem os lençóis de vida.
50
E fui à Pedra do Sal
51
lindo sentimento. E ainda assim, você se sente respeitada
diante disso tudo?
52
A mágica das bochechas
55
Manas, ela continua com a mesma doidice, a treta de
casamento, só que agora eu descobri que ser com outra mulher.
Vocês num tão entendendo, a mana pirou, parece que tá fora
de ordem, igual aos caras trincados lá do beco. Num tá
falando coisa com coisa, não. O que? Casar comigo? Nem
pensar, eu e ela somos amigas desde criança, amor de irmã.
Pô, vocês falando, fiquei pensando, será? Sei não, vocês
também entraram no embalo da doidinha aqui.
- Gabriela deixa essa conversa de zap e vem raspar a
panela, tu não gosta?
As duas se sentam juntas num sofá, no canto da sala
minúscula que mal cabe ele e o móvel com a TV. Um sofá
carcomido, coberto com uma manta que de bege já estava cinza,
não por falta de lavagem, mas porque não tinha mais um pingo
de sabão na casa, aliás esses produtos já não existiam por
aqui faz é tempo. Só se lava roupas apenas com água mesmo,
porque não se paga por ela.
- Mahina já entendi o que é milenar, agora explica essa
parada de cortejo. Não acredito! Meus créditos acabaram.
Libera a senha do wi-fi?
- Não vai dar, cortaram, minha mãe deixou de pagar faz
tempo.
- E os caras não vieram cobrar?
- Vir eles vieram, mas ela desenrolou a parada com o
D’Pedra.
- Corajosa ela. Então, roteia a tua internet?
- Nem pensar! Pode parar! Tenho pouco crédito e vou
precisar para mais tarde. Tu não para com essas conversas
nesses grupos, dá nisso, acaba tudo.
Com a panela com a raspa do brigadeiro no colo e duas
colheres na mão, Mahina encosta a cabeça no ombro da amiga
e começa.
- Cortejo é uma festa com um monte de pessoas, igual
aquelas Bateku do Belga.
- Porra! Gente pracaralhow!
- O meu cortejo milenar de casamento vai ser igual a
essa.
- Posso saber de onde vai tirar o dinheiro para tudo
isso?
- Será que se eu vender uns mil brigadeiros, vai dar?
- Sei que vai ser milenar, mas mil acho pouco, vai ter
que vendar é muito caminhão de brigadeiro e essa panela aqui
nem vai dar pra fazer tudo. Gabriela lambe a colher enquanto
faz um cafuné na cabeça de sua mana mais chegada.
- Pega a visão, viaja comigo. Vou dar um papo nos caras
do movimento pra fechar a pista.
- Como é que é? Que pista?
- A Estrada de Madureira.
- A estrada!? Tu tá piradinha mermo!
56
- Isso mesmo, vou pedir para eles colocarem as
barricadas, começando depois do batalhão dos vermes, ali
onde a gente faz os protestos quando falta luz e água. A
estrada vai ficar fechada dali até depois da UPA, uma
passarela enorme para meu cortejo passar. Porque o espaço
que a noiva tem para andar da porta da igreja até o altar
ou da porta do terreiro até o congá é muito curto e num vou
fazer um vestido só pra dar uns passinhos, né? Uma noiva tem
que aproveitar o seu dia.
- E tu vai vestida de noiva? Achava que seria de noivo,
de terno.
- Que o que! Sou mulher. Lembra das aulas da professora
Patrícia? Uma coisa é gênero e outra é a opção sexual. Nesse
caso, sou mulher e gosto de mulher e vou de noiva, eu e
minha mulher.
- Entendi.
- Vamos atravessar a passarela com nossos vestidos
dourados com uma cauda enorme e muito, muito véu.
- Dourado?
- Sim, de Oxum a Deusa da Beleza. Vai ser que nem
desfile de escola de samba, num já falei. Tem que causar,
né não?
- Quem vai ser o padre? Vai ser aquele da igreja da
Nossa Senhora da Conceição de Marapicu?
- Que padre que nada! Vai ser Pai Ivo de Carvalho, o
meu pai de santo, que não vai me cobrar nada e tem vários
casamentos nas costas, tudo lindo.
- Vai ser mesmo o grande acontecimento, do ano, do
Campo Belo
- Vou entrar desde dali do batalhão. Bem na frente,
igual as escolas, vem a comissão de frente com os moleques
do movimento tudo de fuzil atravessado no peito, fazendo a
dança do passinho, o Silvinho que vai ensaiar e comandar a
tropa. Depois, o abre alas que vai ser o carro do ovo do
seu Toninho.
- Qual?
- Aquele do sacolão que a filha estuda com a gente. O
carro dele vem anunciando o cortejo milenar ao som do funk
da Ludmila, É Hoje.
Gabriela olha para a amiga sem acreditar no que está
ouvindo, faz caras e bocas, mas Mahina com os olhos fechados,
se aconchegando mais, continua.
- Tem que ter um monte de dama de honra, tudo vestida
de vermelho bem forte, iguaizinhas, porque vermelho é a cor
da paixão.
- Quantas damas?
- Muitas, sei lá umas cinquenta, acho que tá bom.
- E você tem cinquentas amigas pra convidar?
57
- E não tenho? Ai mesmo no grupo do zap tem até mais.
E todas vão querer, não vão não? Tá bom pra tu?
- Querer, elas vão, mas e a grana pros vestidos, pros
sapatos, pra maquiagem?
- Do brigadeiro que vou vender. Aliás você bem que pode
me ajudar. Ela diz com tom muito sedutor, passando a mão nas
pernas de Gabriela.
- Tu vai conseguir só se for brigadeiro batizado. Taí
uma boa ideia, vai é vender muito!
- Veada, depois a louca sou eu, é? Mas continuando que
as imagens tão vindo na mente: comissão de frente, abre
alas, ala das damas... e logo depois eu e minha amada,
rainhas, poderosas, lindas depois daquele vermelho todo. Sem
aquelas flores na mão, não gosto. Vamos entrar juntas,
porque não atravesso avenida com homem nenhum segurando a
minha mão.
Mahina, depois que foi abusada pelo padrasto, jurou que
nunca mais queria homem na sua vida, nem filho. A mãe
acreditou, mandou o cara vazar, mas ficou uma sequela
emocional, um transtorno, porque foram muitas vezes e
durante alguns anos, sem ela poder reclamar, pois o sujeito
jurava que mataria todo mundo e esse fazia mesmo porque já
arrastava atrás de si um monte de crimes, era matador. O
cara não só forçava como amarrava a menina na cama, tão
menina, tão meiga, tão doce, dizia ele enquanto passava as
mãos por todo corpo em formação da garotinha. Ela ficava
paradinha, as lágrimas escorrendo de tanta raiva, sem fazer
um ruído porque senão levava porrada do escroto. O revolver
dele ficava ao lado, na cama mesmo, assistindo toda
atrocidade.
- Sabe de uma coisa, você está esquecendo das comidas,
do bolo para esse tanto de gente, das bebidas... Gabriela
não só dá força para a maluquice, como deixa Mahina acariciar
o seu corpo. Estava gostando da sedução, o corpo pedia mais.
Era a primeira vez que rolava esse tipo de intimidade entre
as duas.
- Já pensei, vai ser feijoada feita pelas as tias da
rua, as amigas da minha mãe e vou falar com o diretor Orlando
para emprestar o CIEP, o refeitório de lá é grande e o pátio
também, vai caber todo mundo. Só não vai ter cachaça porque
num gosto.
- Ih! Então esquece esse cortejo porque não vai ninguém,
até parece que não conhece a tropa.
- Então vou deixar, né? O pátio da escola vai estar
todo enfeitado de unicórnio, flamingo, cactos, todas essas
coisas que estão na moda e ficam mais fácil de achar no
calçadão. Sem contar que unicórnio tem tudo a ver comigo.
- Como assim, nem sabia que tu gostava disso?
58
- Gosto, por causa da parada de ser gay, assim como
gosto daquela bandeira toda colorida.
- A tá, mas você está esquecendo das lembrancinhas?
- Que nada, já pensei. Copo de plástico com o nome das
noivas e a data, tudo dourado. E no final, vem a bateria
dos amigos do Bloco Unidos do Conjunto da Marinha com todos
aqueles instrumentos brilhantes.
- Mas eles não são nem dez, vai ficar feião veada.
- Vai nada, eles combinam com os amigos dos outros
bairros de perto, quem não vai querer vir numa festa 0800,
com tudo regado? E num lugar onde nada acontece? Ainda vão
tirar a barriga da miséria.
A raspa do brigadeiro chegou ao final, a panela ficou
limpinha, nem parecia que tinha sido usada. Gabriela se
deita no colo da amiga que a recebe de imediato e com vontade
de querer muito mais do seu corpo.
- Agora, Gabriela, para tudo isso acontecer falta o
principal.
- O que? Já não tem tudo?
- Outra noiva, né sua burra? Tu não quer ser minha
mulher, não?
- Mahina, tu tá na paz, tu tá feliz, né?
- Sei lá, talvez.
- Bora então, temos que vender muito brigadeiro, mas
vou logo avisando só vendo o batizado.
59
COVID 19 in vitro
Para meu filho Lucas Arcuri.
60
Deixando os filhos de lado, entrou no carro e resolveu
mudar os planos, seguiu em direção à capital, como intuito
de matar o presidente. Colocou, no som, a música do Gabriel,
o Pensador – Tô feliz matei o presidente. Gabriel cantava:
61
e eu prometi que ia fazer parte. Afinal temos que passar o
tempo. Disse e despediu-se de Sylvia com dois beijos e muitos
abraços.
62
E não me arrependo nem um pouco do que eu fiz
Tomei uma providência que me fez muito feliz
(Hoje eu 'to feliz, hoje eu 'to feliz
Hoje eu 'to feliz, matei o presidente
Hoje eu 'to feliz, matei o presidente
Matei o presidente, matei o presidente)”
63
MICRORRELATOS
como poemas
Iguaria
64
Short desfiado
Um top
Vermelho batom na boca
Altos saltos para subir na vida
Cabelo bem preso
Pendurado com o rabo de cavalo
Rosto à mostra
Calado
Estava à revelia
Alguém a compraria?
Precisava comer
O corpo pedia
A fome ardia
Quando terminaria?
Corpo tremia
Estômago corroía
Espírito entristecia
Pura judiaria
A inocência vendida
Como iguaria
Em nome de Alá?
Sei lá.
A cidade de Aleppo
tomada,
retoma,
destruída,
desconsolada,
evacuada,
desgovernada,
nada ensolarada.
400 mil pessoas
MORTAS
O
R
T
A
S
pow, pow, pow...
Em nome de Jihad?
Entender, será que dá?
Sei lá.
Soldados turcos
queimados vivos.
Estado Islâmico assume
o fato, de fato.
EI – Extremistas!
Islamitas
Em nome de Alá?
Sei lá.
Caminhão invade,
mata 12
feira natalina na Alemanha.
Papai Noel, o bom velhinho
Entregou um presente sinistro para Deus
66
Matou 39 no ataque à Reina.
EI – Extremistas!
Islamitas
Em nome do capital?
EI – Extremistas!
Individualistas
67
Ela gritou
Disse, voltaaaaa!
Ela gritou
Disse, ficaaaaaa!
Ainda na presença
Do seu corpo estuprado
Mutilado, ensanguentado
Currado
Morto
Ela gritou
Disse, paraaaaa!
69
Flores do quintal
Rua C
70
Hoje Chapadinha
3º andar
Caiu
Piscolha caiu!
Saltou pela janela
Morre?
Nada
Onze tiros no Bolão
E o cara não morreu?
Nada
Tem pacto com Ogum
Corpo pra lá de fechado
Tiro, tiro
Muito tiro
Tiro, tiro
Muito tiro
Tiro, tiro
Muito tiro
Retirem as flores
Dos buracos das paredes
Coloquem nos caixões
Tiro, tiro
Muito Tiro
Rua C
Chapadinha
A infância
No quintal do Alemão.
Exibem poemas
71
Exibem
A pele como camiseta
Nas mãos, de cada um,
Três limões murchos
Que,
Depois do breve espetáculo,
Não dariam uma limonada.
Ágeis
Corpos esquálidos.
Um trepa no ombro do outro.
Começam.
Trocam limões
Que
Descem, sobem,
Dançam.
Tentam cair,
Escondem-se,
Equilibram-se
Por entre mãos magras,
Seguras do ato
Mágica.
Deus é fiel.
Jesus te ama.
Como assim?
Ela se pergunta
Do outro lado da cena
Na ausência presente do momento
Cachê recolhido.
Nesse dia
O produto vendido:
72
Arte.
Malabarismo com limões murchos
E com a vida.
Desmanche
73
tão franzino
pequeno, que
só conseguia
desparafusar
as peças dos
carros, que
chegavam
para o
desman
che
quanto
ganhava?
uma boia
pra lá
de fria
ovo
arroz
feijão
farinha
um
peda
cinho
de goia
bada
só comia
o doce
levava
a fria
boia
e a
dividia
com
os seus
quatro
mais
chega
dos
tão
fran
zi
nos
e
p
e
q
u
e
n
o
s
75
Embolamos-nos
Nus
Guardados
Na verdade
Escondidos
Adormecidos
Nunca esquecidos
Dentro da energia
De nossos
Nus
Completos
76
Palavra que não cabe no pensamento
Nem na folha de papel
Palavra diminuta
Como cárie no dente
Palavra Texto
Palavra Filme
Palavra Pintura
Palavra Dança
Palavra Música
Palavra Criança
Palavra Dicionário
A
R
V
A
L
A
P
77
Golpeiam-nos
Socos,
Pontapés,
Murros,
Sopapos,
Solavancos,
Tapas na cara com as mãos abertas,
Sem misericórdia.
É tempo de temer o Temer?
Tremularemos,
Reformularemos,
Pois quem temer o Temer
Desconhece as lutas
Nas paisagens residuais
Das quebradas dos golpes reais.
É tempo de temer o Temer?
Golpe baixo desferido nas entranhas,
No pensamento,
Na mirada sem horizonte,
Na falta de sentido.
É tempo de temer o Temer
Encará-lo de frente e gritar
Sem temer
Basta!
78
Talvez um sonho
Uma cigana
Leu a sua mão
Aconselhou-lhe
A deixar o Rio
Para passar
Os fins de semana
Em algumas
Praias bacanas
Diego morreu
Mataram Diego
Paulada, uma
Pauladas, duas, três...
Pauladas, um monte
Diego
Nortista, negro
Humano, gay
Ser
De leviano, nada
Sem calça
Na beira da
Baía de Guanabara
Encontraram seu corpo
Inerte
Rígido
Marcado
A cabeleira
Insiste em dizer
Não deixa dúvidas
Era ele
Diego
Mataram
Morreu
No fundão da ilha
Perto do alojamento estudantil
Lutou
Enfrentou
79
Preconceito
Discriminação
Diego morreu
Ninguém nem viu
Nem mesmo o seu algoz furioso
Perdeu a vida
Mas sabe que:
80
Também pudesse dizer que…
81
Tecido da alma
82
Cartola de Mágico
83
Missa de 7º dia
84
Obra de Picasso
85
Putz! Palavras que gosto
86
AMOR com COR
Amo
Amo
87
pOrnOgrÁfIcA
***
88
Pessoas e objetos do passado me fazem existir no presente.
Quando e onde reviro o meu passado.
Sou
Sempre fui
Uma mulher
Feliz
Hoje
A felicidade
É muito maior
Beira ao estágio
Que a ultrapassa
Reencontrei
As palavras
Do poeta.
89
saibamos os seus nomes completos. Venho procurando há anos
um amigo – MUITO QUERIDO – que me embriagou com o seu
perfume, a primeira vez que o vi, no auditório da
Universidade Gama Filho, em um festival de poesias. Toda
vez que sinto o cheiro desse perfume – Sândalo - me embriago
e volto para a mesma cena do passado. Memória olfativa.
Naquele mesmo dia, ainda com a ressaca do seu perfume,
escrevi um poema para ele que dizia assim:
Saboressência
Sylvia Helena
02.12.83
Amigos queridos
jamais,
jamais vão embora de nossas vidas;
as almas não deixam;
os santos não deixam;
jamais se ausentam ou se escondem…
nem o tempo,
nem a força do mar
e tão pouco a tristeza como as lágrimas,
jamais, não nunca…
Amigos Queridos não se mudam,
se mudam,
não ficam mudos nesta vida de alegria e carinho;
nunca se esquecem,
sempre um poema novo,
um ar rarefeito na beira do cais!!!!!
90
Amigos Queridos são queridos para sempre….
beijos… mesmo muito, muito, eternos distantes deles!!!!!!!
Um dia eles vão se reencontrar!!!!
Te amo!!!!!
tadeudefreitas
05.11.2010
Caminhada
91
Meu caminho e descobertas espirituais são feitos junto com
as pessoas.
Não preciso de retiro, preciso de gente para aprender.
Caminhar e me identificar como ser espiritual completo, ou
quase, dentro desse mundo está na alma e no olhar do
semelhante.
A caminhada é coletiva e não solitária
Caminho e aprendo muito no Huasipichay das casas alheias
Que nem dá vontade de ir embora.
Pegando carona
92
Saudade é ausência mais amor. (Wallace Lopez)
Ausência
Bate desesperada na porta da frente
Quando não liga, sem parar, pedindo companhia
A encaro com olhar fixo
Não penso em nada e
Nem me atrevo
Abro a porta, depois de olhar pelo olho mágico
Vejo as chamadas perdidas e ligo de volta
Mas continua sendo ausência…
O amor não bate a porta
E nem liga insistentemente
Penso e questiono
Chego à conclusão
Que ele está dentro de mim
É parte inerente
De qualquer ser
Que sente
Saudade
93
Hoje é dia de Bárbara
Iansã
Que luta,
Que varre as injustiças,
Que liberta e diz para todas as mulheres:
Nosso corpos, nossas regras!
Não tenham medo de dizer não.
Pois, o nossos corpos nos pertence.
Liberdade e Justiça são seus lemas.
Liberdade de dizer, de ser, de expressar-se no mundo,
Justiça para com todos, com igualdade e fraternidade.
Iansã
Guerreira, feminina e feminista.
Iansã
É vento que está em todos os cantos,
Em todas as tendas, terreiros e barracões.
Em todas as cidades, favelas e guetos.
Na raiz do bambuzal deixei oferenda para Iansã.
Para que com sua força, vento, raio e tempestade
Varra todas as mazelas do mundo.
94
As roupas quaradas
Um jorro de água
Sobre os lençóis brancos
Lavados pelas mãos pretas de vovós
Vovó Benedita
Maria Coonga
Catarina
Do Patuá
Nerita
Cotinha
Tantas vovós
Quarando lençóis
Das tristezas vividas
De um bucho cheio de criança
Aos 15 anos, sem esperança
De ser só sua
Mas os lençóis estão alí
Esperam ser recolhidos
Lidos como vida
Como lida
95
Quando eu era criança
Só queria tomar injeção
Com minha vó Lilita
Porque não doía
E depois tinha o afago
Minha vó só queria
Tomar injeção com meu pai
Porque não doía
E depois tinha a bênção
Injeções
Afagos
Bênçãos
96
Sempre tive o hábito
De sentar no colo do papai
Era um colo de pernas firmes
Esse era o momento de mostrar
Que aquele pai
Era meu
Especial
Cúmplice
Jovial
Na troca de confidências
Não ditas
Nunca imaginei
Que o colo do meu pai faltasse
A cumplicidade
A jovialidade
Agora estavam ali
Deitadas
No leito de um hospital
Ainda assim...
Em todas as visitas diárias
Queria mostrar para todos
Que ele era meu
Pai
Cúmplice
Eterno
A bênção
Nós nos amamos.
97
80 tiros nem no bandido
Só me resta chorar
Gritar
Implorar
Parem de matar!
98
Um soco no fragmento, na segregação
Para todas as crianças do CIEP 354 - Martins Pena
Salve as crianças!
99
Todas as vezes que chupo laranja lembro do meu avô
Balduino. Ele gostava de duas espécies da fruta, seleta e
bahia, o vendedor de laranjas cruzava as ruas do I.A.P.I de
Del Castilho gritando para que todos descessem e comprassem
e vovô comprava dúzias delas. Eu gostava da bahia porque,
na bundinha, tinha outra laranjinha que dizíamos que eram
os filhinhos da laranja. Balduino tinha uma faca específica
para descascar a fruta, cujo o cabo ele mesmo confeccionara.
Sim, meu avô fazia os cabos de todas as suas ferramentas,
ele era marceneiro. Não só fez os cabos como desenhou e
construiu alguns dos nossos móveis, um beliche bicama (para
cabermos nós três, eu e meus dois irmãos), uma sapateira
incrível e um móvel onde ficava o nosso telefone. Todos
úteis, resistentes e sob medida. Além dessa habilidade, ele
era hitech, nos anos onde a tecnologia ainda era precária,
sempre tinha uma lanterna que nos salvava durante as nossas
viagens, de ficarmos no escuro. Já bem idoso, ele queria
surfar e saltar de asa delta, mas na época não existia esses
voos duplos que têm hoje, uma pena! Mas para diminuir a
vontade, ele ia até onde acontecia o surfe e o voo e pedia
para tirarmos a foto com ele ao lado de quem fazia. Nós o
apelidamos, carinhosamente de Vovô Camarada e o papai fez
uma música e tudo para ele e ensaiamos e cantamos no seu
aniversário de 80 anos. É assim:
100
O planeta reclama,
Mas é
Lixo, lixo, lixo
O continente reclama,
Mas é
Lixo, lixo, lixo
O país reclama,
Mas é
Lixo, lixo, lixo
101
28 de março de 2020
Segundo o Coronavirus COVID 19 Global Cases
Existem
618.043
Contaminados
135.736
Recuperados
28.823
Mortos
E um messias dizendo
Não passa de exagero, histeria
Como assim?
Mundial?
O mundo parou
Diante de uma potência
MINÚSCULA
Que de tão
MAIÚSCULA
Fez pensar
Em que?
Vida?
Morte?
Fé?
Esperança?
Incerteza?
Alegria?
Tristeza?
Natureza?
Velhos?
Crianças?
Jovens?
Palavras de pauta
Altruísmo
Caridade
Reconstrução
Renovação
Regeneração
Resiliência
Chegará o momento
De organizar
De recosturar
Todos os retalhos
Costurar um no outro
102
Fazendo uma grande
colcha universal
de sentimentos
e ações mundiais.
Tudo isso será emendado
Por uma só linha
AMOR
10 de maio de 2020
Existem
4.101.482
Contaminados
Milhões
Recuperados
281.700
Mortos
E daí? Ironiza o messias
Vamos fazer um churrasco?
E ainda assim,
Cariocas andam
Pelas ruas
Como se nada
Esqueci
“Cariocas
Não gostam de sinal fechado”
E muitos ainda amam
103
BOBAGENS
104
é brasileira a nossa bandeira?
105
Papais
Vocês se lembram?
Existia aquele programa humorístico que um dos personagens
usava um bordão que dizia:
Tem pai que é cego!?
Pois é,
Tem pai
que é mãe,
que é filho
é filho do filho,
que é avô camarada,
que é amigo,
companheiro,
tio jovem, ou velho.
Uns são empresários,
outros taxistas,
professores,
médicos,
engenheiros,
E por ai vai…
Mas todos são filhos de uma mãe
e tiveram seus filhos com uma mãe.
Existem pais por opção.
Pais diferentes.
Pais brancos,
negros,
índios…
Alguns são ricos,
outros pobres
(entendam o conceito, esses conceitos, como quiserem).
Pais cantores,
artistas.
Muitos são emprestados,
outros esqueceram dos filhos.
Agora vou falar sobre o meu,
que sempre esteve, está e estará presente
Pai que afaga,
que compartilha o copo de whisk,
que viaja para outros mundos,
que não tem preconceito,
não julga.
Pai no Santo.
Esse é o meu pai,
que é pai de todos.
Nosso.
Que não fura bolo
e nem mata piolho,
mas que sabe fazer miojo.
106
E aquele pai que era cego no programa humorístico apenas
aceitava a opção sexual do filho sem nenhum julgamento.
107
“Guagua de pan” y “colada morada” para nossos defuntos
108
POEMAZUL
Hoje:
Meus pensamentos
são azuis
Meu corpo
é azul.
Meus desejos,
azuis.
Meu sexo,
azul.
Quer transar
no azul
em azul
comigo?
Esse estar
azul
vem de uma flor
azul
que me contaminou
com uma energia
azul.
Quem me deu essa flor
azul?
Só conto que é
uma pessoa desse planeta
azul.
Quem é?
O resto eu não conto.
O resto é azul...
109
A emoção perpassa o âmbito da razão
110
“Vem meu anjo torto ser meu
bem em cada porto que eu
ancorar”
Lô Borges
111
De Madalena, cantada (forçada) durante a ditadura cívico-
militar, até o pedido de desculpas ao Henfil com o Bêbado e
a equilibrista.
Revejo
As falhas
O que deixei de fazer
Conservo o que foi positivo
Renovo
Limpo as gavetas
os armários
o coração
o sorriso
o pensamento
as ilusões
os amores
Vejo o mar
Converso com Iemanjá
PAZ
SAÚDE
AMOR
AMIZADE
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