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2017

Prontuários em choque

Sylvia Arcuri
Sylvia Arcuri

Prontuários em choque
Relatos

Microrrelatos como poemas

e Bobagens

2017

1
Para meus filhos que me permitiram ser o que sou.

“Uma loca de remate”

2
ÁRBOLES

Me observan en silencio
mientras escribo Y las copas
están llenas de pájaros, ratas,
culebras, gusanos
y mi cabeza
está llena de miedo
y planes
de llanuras por venir
Roberto Bolaño
3
RELATOS

4
Prontuário em choque

Não sei, muito bem, o que aconteceu.

Acordei dentro de um sonho.

Um evento, parecia que era a apresentação de um coral.

Um colégio público, uma amiga como companhia.

Chegava uma van repleta de cantores e instrumentistas.

Imagino que deveria ser para o evento.

Junto com eles, um homem carregado de pastas e um livro


pequeno.

Um ser diferente, cabelos compridos e grisalhos.

Semblante calmo, meia idade, charmoso.

Usava calças vermelhas largas e uma camiseta branca básica.


Com um caminhar seguro vinha em nossa direção, parou ao
nosso lado, se dirigiu a mim e fez a seguinte pergunta:

- Você é Sylvia Helena de Carvalho?

Achei interessante dizer o meu nome de solteira, pois fazia


tempo que levava Arcuri como sobrenome. Meio pensativa o
respondi:

- Sim, sou eu.

- Que bom que lhe encontrei.

- E por quê?

Ele me estendeu uma pasta, tipo catálogo, preta, a recebi.


Pesava. Não um peso comum, como quilogramas, era outro tipo
de peso, de vida, de sentimentos, de sonhos não realizados.

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- O que é? Perguntei.

- São fichas de doentes psiquiátricos que passaram pelo


hospital.

- Que hospital?

- O Hospital Psiquiátrico da Colônia Curupaiti. Você já


esteve lá.

Ele dizia essa frase com muito carinho e amor no olhar, mas
também tentando receber algo em troca que não conseguia
identificar. Talvez alguma espécie de desculpa, perdão.

- Sim estive, mas não como paciente.

- Eu sei.

- Como você sabe?

- Queria que você lesse alguns prontuários e visse se em


algum deles pode reconhecer...

- O meu tio?

- Sim, o seu tio.

- Mas nos prontuários devem constar os nomes, não?

- Não, veja.

E passava, com muita calma e delicadeza, cada página


da pasta catálogo, cada uma com uma ficha, como um prontuário
de hospital. No cabeçalho de cada uma delas, havia o timbre
da instituição, um número no alto, ao lado direito, e logo
abaixo um espaço em branco, sem nada escrito, como se tivesse
sido apagado e realmente fora.

- Viu? Não tem os nomes e nem as idades, só o sexo e o


parecer dos médicos sobre a enfermidade, com as indicações
e doses das medicações. Gostaria que visse cada uma, com
calma, para ver se reconhece alguma dessas sendo a do seu
tio.

- Você está pesquisando para quê? É alguma tese de doutorado?

Ele sorriu, os dentes límpidos, como jamais havia


visto. Pensei comigo mesma, que homem interessante e por que
essa busca?

- Não, não faço nenhum doutorado, é apenas uma pesquisa


pessoal, gostaria de saber quem foram essas pessoas, nada
demais. Como tive acesso a esses documentos, depois que
mudou o modo de atendimento da Colônia...

6
Folhei a pasta catálogo, li alguns prontuários e
questionei:

- Como posso afirmar que um desses seria meu tio? As


características de alguns aqui são muito parecidas e a
maioria das fichas são de homens, mais ou menos da mesma
faixa etária e faz tanto tempo que essas internações
aconteceram... A diferença mais gritante é a prescrição
médica...medicamentos diferentes para cada um...

- Verdade, pode ser qualquer uma dessas...

Parei em uma delas a que parecia que tinha mais


afinidade com o meu tio, características pessoais, ele tinha
olhos verdes, um verde intenso que muitas vezes nos doía. O
que ele gosta de fazer para passar o tempo, compor sambas,
jogar cartas e fazer objetos em madeira. A profissão,
ajustador mecânico. As características da doença mental,
esquizofrenia, a prescrição médica, muitos comprimidos e
sessões de choque, mas não quis afirmar que era ele, embora
eu soubesse que esse era o meu tio Zé. Afinal o que
adiantaria isso tudo agora? Já faz 29 anos que ele não está
mais conosco. Virei a página e na ficha seguinte, já tinha
um nome escrito a lápis, Malva Corrêa.

- Não, eu não reconheço nenhum desses como meu tio.

- Você já leu esse livro? Ele me perguntou?

Recebi o livro de suas mãos, muito delicadas e delgadas.


Olhei a capa, um ser etéreo, muito iluminado, como se tivesse
várias capas de luzes ao redor e um título que não entendi,
pois estava escrito em outra língua.

- É hindu? Perguntei.

- É. Respondeu.

Ainda com o livro nas mãos, percebi que haviam várias


partes marcadas com envelopes brancos com papéis dentro. Fiz
o movimento de pegar um deles, mas ele tomou o livro com
muito cuidado e disse:

- Desculpa, mas não queria que você visse o que tem dentro
dos envelopes. Tudo bem?

- Sim, afinal são coisas suas.

Quando ele fez o movimento de colocar o livro no colo,


caiu um monte de papéis, colados uns nos outros. A borda
superior de um, colada na borda inferior do outro. Peguei a

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colagem do chão e quando levantei para devolvê-la reconheci
minha letra em um dos papéis.

- Mas essa letra é minha.

- Qual? Essa?

- O que são esses papéis?

- São os relatórios dos familiares quando eram convocados


para algumas sessões junto com os pacientes. Você foi a
alguma?

- Sim, fui um par de vezes. Eles me convocaram a pedido dele


e porque ele estava muito rebelde. Pediu minha presença,
pois já não aguentava ficar mais ali, aqueles médicos eram
choqueiros.

- Choqueiros? Perguntou com ar de curiosidade.

- Sim, os médicos que prescrevem choques como terapia. Eles


indicaram várias sessões e ele não gostava nenhum um pouco.
Fui assinar um termo de responsabilidade suspendendo o
tratamento.

- Como você chegou até aqui? Posso ver esse relatório?

- Lógico. Pela ficha de entrada de cada paciente na


instituição, fui até o endereço que constava. Sua mãe me
atendeu, mas quando soube o que eu queria, só fez chorar e
me disse que não podia ajudar, mas se eu quisesse... tentasse
falar contigo e me disse lugares onde provavelmente poderia
lhe encontrar, sua casa, a universidade, os colégios...

Peguei a colagem e vi ali, em uma das folhas o início


de um relatório, escrito por mim com caneta futura azul. Mas
só apareciam as primeiras linhas, as outras estavam cobertas
com um papel preto, desses que usam para fazer pipa, o papel
estava colado e não dava para ver o que estava por baixo.
Parecia que estava assim há muito tempo.

- Lembro tanto desse dia, levei as rosquinhas doces que ele


gostava e mamãe fazia. Ele era o irmão da minha mãe. Era
como se fosse meu irmão mais velho, já que tinha ido morar
conosco desde que meus pais se casaram...

- E ele como está? Queria conhecê-lo.

- Já não está mais por aqui, vive em outra dimensão.

- A doença piorou?

- Piorou tanto que ele foi assassinado.

8
- Obrigado, disse ele. Deu as costas e foi embora como se
nunca estivera ali.

II

Agarrou todos os papéis que estavam em cima de sua mesa


de trabalho, organizou-os em uma pasta catálogo preta, mas
antes, leu atentamente, cada prontuário, revisou o parecer
e o medicamento receitado. A pasta ficou bem pesada, com
todas aquelas loucuras que levava dentro. Resolveu ir atrás
de cada um, conversar, saber o que acontecerá com aquelas
vidas que foram interrompidas, por um longo e tenebroso
tempo, dentro daquele hospital. Saiu decidido, pela cidade,
em busca de todos os endereços e pensava:

“Será que conseguirei? As chances são mínimas, muitos devem


estar mortos, mas tenho que tentar.”

Já não aguentava mais a presença de tantos fantasmas que o


atormentava. Era refém da sua própria consciência e alma.
Ia atrás de todos, mesmo que levasse várias vidas, mas havia
um paciente específico que lhe interessava e lembrava muito
bem de sua sobrinha, uma jovem que nunca deixou de visitá-
lo, fazia com constância e dedicação, o amor entre eles
ultrapassava qualquer relação familiar, parecia que se
conheciam desde outras existências. Ela o admirava tanto que
a doença dele era apenas um detalhe na vida dos dois.

Peregrinou alguns dias, encontrou alguns deles vivos, outros


já não estavam mais presentes, pois viviam imersos em suas
lembranças difusas, embaralhadas, atordoadas, mas a maioria
morrera. Nutria uma esperança de encontrar aquele paciente
e sua sobrinha, uma necessidade de perdão urgia.

Mesmo com toda ansiedade, atravessou a cidade, chegou até o


endereço que constava na ficha de entrada do hospital, Rua
São Bráz, 68 no bairro de Todos os Santos. Interfonou.

- Que é? Perguntou uma voz do outro lado.

- A senhora não me conhece, estou atrás de uns antigos


pacientes do Hospital Psiquiátrico da Colônia Curupaiti e
aqui consta que um deles mora nesse endereço.

- Como assim? Isso faz tanto tempo...

- Posso subir para conversar melhor com a senhora?

- Pode. Apertou o botão que permitia a entrada daquele


desconhecido.

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A senhora o esperava na soleira da porta com um ar entre
desconfiada e surpresa.

- Oi, sou Dr. Efrain, muito prazer. Estendeu a mão já não


muito jovial, mas ainda delicada.

- Muito prazer, entre. Sou Helenice. Que você deseja?


Devolveu o aperto de mão. Suavidade havia naquelas mãos
distanciadas pelos bairros e pelas idades.

- Estou procurando saber de alguns pacientes e gostaria que


a senhora visse alguns prontuários para ver se reconheceria
algum deles como sendo um parente seu.

- Meu irmão, José de Carvalho.

- Você não vai ficar chateado comigo não meu filho, mas não
quero ver nada, é muito doído ver coisas que mexem com o
passado. Mas, se você quiser mesmo identificar quem é que
está no pron....

- Prontuário.

-Isso, pode falar com minha filha, ela esteve mais presente,
junto com ele, quando esteve internado.

- Onde posso encontrá-la?

- Hoje ela está em um evento, em uma escola, um pouco longe,


mas se quiser ir até lá. Sei o nome do colégio e você
procura, fica em Pedra de Guaratiba.

- Nossa! Longe, nunca fui até lá, mas gostaria mesmo de


continuar a minha busca.

- Qual o nome do colégio?

Ela lhe passou um papel pequeno com o nome do colégio,


Hebe Camargo, achou inusitado, um colégio ter esse nome.

- Como é mesmo nome da sua filha? Queria ter certeza que


seria ela mesma.

- Sylvia Helena de Carvalho.

Ia perguntar pelo irmão, mas não teve coragem,


agradeceu, colocou o papel dentro do bolso e se dirigiu até
a Pedra de Guaratiba. Durante a viagem lembrou que havia
esse nome em alguns dos papéis que tinha recolhido junto com
os prontuários. Só poderia ser a mesma pessoa. Caminho
longo, pensamentos vagueiam. Parecia que tinha uma dívida
com cada paciente e a necessidade de vê-los era grande.
Queria explicar uma série de procedimentos tomados enquanto

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eles estiveram internados. Hoje, já não existem mais algumas
daquelas prescrições, principalmente os choques, as
lobotomias. Entendia que era refém da sua própria profissão,
mas não conseguia perceber qual o motivo que o levou a
receitar tantas sessões de choque, poderia ter encarado a
direção do hospital e ter dito que não faria, mas era
demasiado fraco para o embate. Respeitava e seguia sempre a
decisão dos superiores. Arrependimento era pouco, ele queria
o perdão para poder sair da escuridão que estava naquele
momento, para que todos aqueles fantasmas o deixassem em
paz.
Depois de um longo trajeto, chegou ao seu destino,
Pedra de Guaratiba. Na praça central do bairro, perguntou
em um ponto de moto táxi, onde ficava o tal colégio. Teve
sorte, pois o colégio ficava exatamente no final daquela
rua. Estacionou o carro ao lado de uma van que chegava cheia
de músicos, artistas, atores, para o evento que aconteceria
ali. Perguntou a um deles:
- Onde acontecerá a apresentação de vocês?

- Na quadra da escola, e já estamos meio atrasados.

- Boa sorte e obrigado.

- Valeu, respondeu de volta o menino que carregava um


atabaque.

Colocou para fora toda confiança que tinha e andou, com


passos largos, até a quadra. Ficava nos fundos da escola e
um terreno mais abaixo, tinha que descer uma rampa. Sol,
sede, mas tinha pressa. De longe não conseguia identificar
muito quem estava pela quadra, quase cheia, mas quando
chegou bem embaixo, viu no canto direito, sentada nas
arquibancadas, ao lado de outra mulher, aquela que tanto
buscava. Parece, que na verdade, ele precisava mais do
perdão dela do que do José. Mesmo passando tantos anos não
esquecera o carinho, beirando a admiração e o amor que, por
ela, sentia. Respirou profundamente pensando em cada passo
dado, as pastas pesavam e os gritos que saiam de dentro
delas eram ensurdecedores. Aproximou das duas, dirigiu-se a
ela é perguntou, mesmo sabendo quem era:

- Você é Sylvia Helena de Carvalho?

- Sim, sou eu.

Não conseguiu muita coisa. Guardou seu arrependimento,


sua paixão e sua loucura junto com todos os prontuários e
relatórios, a pasta gritava muito mais alto. Deu as costas
e foi embora como se nunca estivera ali.

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A cruz como um fechecler, deitada sobre sua consciência.

Não, não consegui chegar, só cheguei agora, através


dessas páginas e a borboleta como tatuagem era a mesma
estampa da cortina do quarto de dormir. Será que ela sentiu?
O que ela sentiu? Cheguei tarde e não saberei como suportar
a ausência do meu ventre.

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Que lugar era aquele? Nunca havia pisado em um chão tão
gélido. Que lugar era aquele? Nunca tinha visto paredes tão
brancas, frias e dissimuladas. Que lugar era aquele? Nunca
tivera a oportunidade de estar diante de tantos corpos
jovens e sem vida. Mas, naquele momento, deveria, tinha que,
embora contra sua vontade, reconhecer o irreconhecível corpo
desfigurado de sua única filha. Que lugar era aquele? Que
atiçou lembranças e a transportou a um dia especial.
Na porta da igreja, ela começou a se despedir do seu
vestido de noiva de um branco imaculado, dos seus padrinhos,
do seu sorriso largo e seguro que, com o passar dos dias,
seria ameaçador e candidato a um não mais existir, das suas
damas e pajens e das suas angústias. No caminho até ao altar,
ao seu pai, pediu a benção e tentou despedir-se, mas sua
alma interrompeu esse momento, ele não entenderia, ela não
conseguiria. Despediu-se das suas futuras enfermidades, dos
filhos que não pensou em ter, do seu ventre, que alguns dias
depois seria golpeado com força brutal, sem nem saber o
porquê.
Diante do altar, a despedida materna, doída, confusa,
um tanto cúmplice talvez, tendo um buquê de flores pequenas
coloridas e perfumadas como testemunha. Não conseguia
encarar o olhar de sua mãe, pois intuía que ela não
suportaria tremenda ausência. Despediu-se das dívidas
contraídas com a compra dos objetos domésticos, de todas as
faxinas que não faria, dos vizinhos que ainda nem conhecera,
do mar, do sol, da religião e nesse momento tinha como aliada
a imagem de Cristo. Sentia-se acarinhada, ainda que toda
essa despedida a deixava dilacerada por dentro.
Do marido e de todas as noites de amor, carinho e sexo
que, todavia, teria, despediu-se diante do padre, no momento
de proferir as palavras de ligação eterna, no lugar de dizer
o que era esperado, com uma calma sepulcral, afirmou e
proferiu.
Eu,
Não recebo-te por meu amor e esposo.
Nem prometo ser fiel, nem amar-te ou respeitar-te.
Não estarei com você em nenhum momento de alegria, nem de
tristeza, muito menos na saúde e nem na doença. Até que a
minha morte ou a sua morte nos separe.
Tentou disfarçar, como não conseguiu, continuou com a farsa
da felicidade.
Da casa também havia se despedido. Primeiro dos
cômodos, dos móveis, dos bibelôs, dos eletrônicos, dos
livros e de todos os detalhes. Lembrou-se de despedir-se
da borboleta tatuada nas costas tal e qual a estampada na
cortina da janela do seu quarto. Dos sapatos, em cima de um
aparador que ficava na área de serviço, teve certa
dificuldade de despedir-se, pois os adorava, eram cômodos e
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haviam levado a sua alma por muitas viagens, inclusive
àquela onde conheceu aquele que seria seu consorte, a sua
sina e o seu inferno.
Recordou-se do diário e antes da despedida derradeira,
leu o que escreverá por último e na página dobrada jaziam
deitadas algumas letras.

Sinal aberto

Ele atravessou em um sinal aberto


De uma avenida movimentada
Da zona norte da cidade
Ela acabara de sair do posto de gasolina
Tinha ido trocar o óleo do carro.

Ela o viu e começou a travessia


Ele a viu e esperou que ela acabasse de passar
Ela pensou, eu o conheço,
Mas não o reconheceu de imediato
Ele não só a reconhecera de imediato
Como acenara com a mão, insistentemente.
Intensamente.
Ela, depois de reconhecê-lo,
parou o carro e foi ao seu encontro
E o diálogo se instalou.

- Você acredita em destino? Perguntava enquanto caminhava


na direção dela.
Ela apenas sorriu e entrou nos seus braços que a acolheram.
Sentiu o perfume dele, gostoso! Depois do abraço demorado
se beijaram. Parecia que tinham se visto ontem e continuaram
de onde tinham parado. Mas não, o último encontro acontecerá
há quatro anos.
- Você quase me atropela.
- Foi mesmo, não te reconheci de imediato.
Ela ficou meio sem chão e tremia. Não acreditava muito que
esse encontro estava acontecendo.
- Se alguém perguntar a você quem sou eu, diga que um amigo
de sempre, mas não mencione em que trabalho.
- Sem problemas, o que o senhor queira.
Beijaram-se mais e mais, no rosto, na boca. Passaram a mão
cada um em seus cabelos.
- Você está tão lindo! E reparou que os cabelos grisalhos
dele estavam tingidos.
- Você está maravilhosa! Muito linda mesmo! E reparou que
os cabelos dela começavam a mudar de cor. Permaneceram mais
um pouco abraçados, até que ele voltou a tirar fotos do
lugar.
- Estou em uma missão. Daqui a pouco entro lá pela sua área!
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- E eu vou dar aulas, longe à beça!
- Vamos trabalhar?
- Vamos.
Antes de tomarem cada um o seu rumo, mais um beijo, mais
abraços.
- Falamos, temos ainda o telefone um do outro.
- Temos. Você não tem mais e-mail?
- Não, você sabe como sou para essas parafernálias. Ando
muito pela clínica, o que tem tomado muito o meu tempo, mas
um dia retomo.
- Então ... nos falamos.
- A partir de hoje nossos encontros serão sempre assim, sem
serem marcados.
Ambos sorriram e cada um seguiu seu rumo.

“Só uma palavra me devora


Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que não sofri”
Já no carro, ela ainda tremendo, mandou pra ele uma
mensagem que dizia:
- Amo você, o meu telefone novo é esse. Não some.
Ele ligou de volta dizendo que ela deviria tê-lo
atropelado porque só assim eles teriam mais tempo juntos,
porque só assim se amariam muito mais do que já se amavam.
Alguns meses depois, encontraram-se na porta de uma
Igreja. Um momento único, já em casa, logo após todo os
tramites de festa e lua de mel, um amor jurado aos pés de
uma santa cruz que não se cumpriu, começaram as mentiras e
os enganos. Ela, desapontada com o rumo que estava tomando
a vida ao lado dele, diz que estava pensando em separar,
desistir do compromisso assumido. Ela sabia que não poderia
ter confiado nele, que os planos de modificá-lo, já não
dariam certo, pois cada dia que passava ele a via como um
objeto, como um isso qualquer, pois ele queria ter o controle
de toda a vida dela, repetindo comportamento da própria
família, muitas pessoas tentaram alertá-la, pois ele
carregava uma cruz como um fechecler, deitada sobre sua
consciência. Para ela, o seu amor tinha enlouquecido, mas
ainda acreditava no homem que tinha aceitado como marido.
A fechadura foi trocada, dizendo para ir embora, porque
a chave que tinha já não abria mais aquela porta. Tentou
lutar, buscar ajuda ou fugir pela janela, uma nuvem negra
tomou conta de todo o ambiente e ele conseguiu fazê-la
despedir-se da vida, com marteladas certeiras por todo seu
corpo, oito segundos de acesso de loucura, rasgou e tirou o
sorriso de sua face com a parte do martelo que retira os
pregos. Os espaços psicológicos denunciaram o choro dele e
um corpo gélido deitado no chão do quarto. Escondeu-se atrás
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da cortina da sala e ficou ali esperando a hora de perambular
pelas ruas do bairro, gritando liberdade, enquanto ela era
envolvida com seu sangue quente e grosso. Roupas espalhadas
pelo chão e a sapatilha na janela, espreitando tudo como
testemunha, mas não disseram nada. Tudo aquilo parecia uma
pintura surrealista.
Que lugar era aquele? Não queria deixar sua filha
destruída e sozinha ali, envolta em lençóis que não
reconheciam seu corpo. Que lugar era aquele? Um espaço que
a fez lembrar-se de tudo que tinha sido, mas que terminou
como uma linha tênue, sem graça, sem horizonte, sem vida e
nenhuma resposta. Que lugar era aquele? Nunca pensara em
despedir-se do seu ventre, sem dar tchau, adeus ou até logo.

Morremos na mais absoluta solidão

Domingo, 28 de julho de 2002

- Tudo bem?
- Sim e por aí?
- Nada bem, ele sumiu.
- Quando?
- Desde quinta-feira, não voltou, nunca fez isso, sempre
avisa.
- Estranho mesmo. Estou indo praí.
- Vem, precisamos que nos ajude a procurá-lo. Não sabemos
por onde começar.

16
- Saio daqui a pouco, no ônibus das 22h e chego aí no Rio
amanhã cedinho.
- Se pai não tem condições de te buscar.
- Não precisa, eu pego um táxi.
- Estamos nervosos, seus tios e primos estão todos aqui
tentando entender o que está acontecendo.
- Não chore, fiquem calmos, logo estaremos juntos e pensamos
o que fazer. Vou falar com o Rafael.
- Ele pode fazer algo? Está tão longe...
- Pode dar alguma ideia. Deixa eu ir se não perco o ônibus.
- Será que você consegue lugar?
- Lógico mãe, quem vai sair de Campanha essa noite e com
esse frio?
- Pode ser. Cuidado.
- Terei, a bênção. Dê um beijo no papai e se acalmem.
- Deus te abençoe. Vamos tentar.

Segunda-feira, 29 de julho de 2002

- Alguma notícia dele?


- Não, nada. Seu tio saiu com o Wellington e foram procurar
por aí.
- Por aí, onde?
- Sei lá, saíram de carro e foram atrás dele.
- Já foram na delegacia?
- Nós não, a TV nos ligou perguntando se ele estava em casa,
nós estranhamos, pois eles também disseram que ele não
aparece para trabalhar desde quinta. O chefe disse que vai
dar parte na 15ª delegacia.
- Muito esquisito isso tudo, mãe. Ele nunca faltou ao
trabalho.
- Pois é, o mesmo dia que também não voltou pra casa, não
sei mais o que pensar, porque esse não é o comportamento
dele, sempre avisou quando ficaria ou passaria a noite fora.
- Vamos esperar o tio voltar para ver o que fazemos. Vou
tentar publicar essa carta aberta em algum meio online para
ver se tem alguma repercussão. Pode ser que alguém leia e
diga algo, ideia do Rafael.

Angústia
Dor
Incertezas
Noites sem dormir
Calmantes
Procura
Buscas
Necrotérios
Hospitais
Delegacias
17
Hotéis
Quebra de sigilo do celular
Casa dos amigos e de algumas possíveis namoradas
Reportagens nos jornais
Nada

Quinta-feira, 01 de agosto de 2002

- Antônio! Não aguento mais esperar aqui, ficar sem


notícias.
- Vamos pra onde? Já procuramos em todos os lugares possíveis
e o delegado pediu para aguardarmos que ele vai acabar
voltando, eles têm uma pista a partir das ligações do celular
dele.
- Não, não vou esperar mais nada. Papai e mamãe estão
despedaçados. Vamos até a antissequestro, afinal ele estava
trabalhando com o Tim Lopes naquela reportagem, de repente
levaram ele para algum lugar.
- Será? Vamos.
***
- Pois não.
- Preciso da ajuda de vocês. Meu irmão sumiu faz uma semana
e até agora nada
- Pediram resgate?
- Não.
- Então não podemos ajudá-los.
- Como não?
- Senhora, aqui só tratamos de sequestro e não de pessoas
sumidas.
- O que podemos fazer? Aonde ir?
- Se eu fosse vocês, iria até a delegacia de homicídios.
- Onde fica isso?
- No centro da cidade, perto do IML.
***
- Aonde a senhora vai?
- Falar com alguém que possa me ajudar.
- Mas a senhora não pode entrar aí.
- Posso sim, ninguém vai me impedir.
- Senhora... Calma.
- Calma? Você diz isso porque não é seu irmão.
- Quem disse que não é meu irmão?
- Como assim?
- Se a senhora se acalmar e sentar eu posso ajudá-la.
- Vai mesmo? Há uma semana escuto essa frase e ninguém faz
nada, essa polícia do Rio só enrola a minha família, primeiro
pede que esperemos 72 horas, depois diz que não podem fazer
muito, que é comum as pessoas sumirem e voltarem depois...
Cansei, quero saber onde ele está, se morto ou vivo,

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precisamos de uma resposta, não consigo ver meus pais do
jeito que estão.
- Tem um retrato dele?
- Tenho.
- Não, esse não serve, tem que ser de frente e atual.
- Toma.
- Sim, esse...
- ...
- Seu irmão está vivo, pode ter certeza, ele está
desorientado.
- Como pode afirmar isso?
- Veja seu olhar... Assim... Viu como são olhares
diferentes?
- Sim, o olho esquerdo parece de outra pessoa.
- Preciso que me diga o que já fez, onde já procurou, se ele
tem um celular...
- Já procuramos por todos os lugares, até na Floresta da
Tijuca meus tios já fizeram buscas. Não sabemos mais aonde
ir. Ele tem um celular e aqui está a lista dos telefones que
ligaram pra ele.
- Deixa essa lista comigo, vá pra casa e fique lá, mais
tarde vou vê-la, preciso também falar com seus pais. Como é
seu nome?
- Sylvia. E o seu?
- Gilvan, mas pode me chamar de Gil. Deixa o endereço.
- Quem você é?
- Inspetor da Divisão de Homicídios, trabalho com
desaparecidos.

- Preciso de todos os detalhes desde o dia que ele não


voltou.
- Não estava aqui, minha mãe pode responder.
- Que roupa ele usava, senhora?
- Uma blusa polo laranja e uma calça jeans.
- Sapatos?
- Tênis vermelhos, aquela marca que ele gosta.
- All star, mãe.
- Esse mesmo.
- Alguma bolsa?
- Uma mochila que ele gosta muito, de brim caqui
- Dentro da mochila?
- Com certeza uma escova de dente, fio dental, não fica sem
isso nunca, uma toalha, a agenda e o livro que ele gosta.
- De quem?
- O livro?
- Isso...
- Um filósofo que não sei falar o nome.
- Nietzsche, mãe.
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- Esse palavrão aí mesmo.
- ...
- O que fazemos?
- Nada, sábado o seu filho vai estar aqui, de volta na sua
casa.

Sexta-feira, 02 de agosto de 2002

Abismo
Lacuna
Fresta
Medo
Desconfiança
Desesperança
Dúvida

Sábado, 03 de agosto de 2002

- Que fizeram com você?


- Graças a Deus! Meu filho de volta!
- Ele não sabe, não diz coisa com coisa.
- Mas onde ele estava?
- Depois eu te conto tudo, agora ele precisa tomar um banho
e ir comigo até a homicídios prestar depoimento.
- Eu vou com ele, não vou deixá-lo sozinho desse jeito.
- Pode vir com a gente sim.

Jornais
Revistas
Entrevistas
Mentiras
Soberba
Incompetência
Sentença
Cesta básica
Anormalidade
Simbólica morte anunciada.

Quinta-feira, 28 de agosto de 2002

Quando fizesse 42 anos eu tinha a certeza, sentia que


a morte chegaria sorrateira, disponível, solicita. Mas,
surpreendentemente, se antecipou em um ano, cortante,
fúnebre, nada discreta, declarada e inflamada, mesmo que
estampada e publicada como vida, era morte. Morte inteira e
interna. Morri junto com meu irmão.
De frente para essa morte, um investigador de almas espera
para recolher todos os meus fragmentos e juntá-los,
tentando, com sua doçura, criatividade e suavidade, esculpir
20
outra obra de mim mesma. Outra, com as mesmas
características, sob mesmo princípio físico, psicológico,
emocional e espiritual. Outra, diferente da que estava
estampada nas notícias dos jornais e revistas, apesar de
morta, esculpida como vida.
Mesmo tendo que encarar e aceitar, sem sofrimento, essa
morte antecipada, ficaram faltando alguns fragmentos, o
quebra-cabeça interno não completava e o que restou das
peças que não encaixavam, o investigador de almas recolheu-
as, colocou-as dentro de um saco preto e levou-as para seu
atelier. Essas peças, esses fragmentos eram vitais, não
podiam ter defeitos para que pudessem encaixar no quebra-
cabeça, com perfeição. (O investigador de almas não trabalha
nessa restauração sem ser preciso e honesto com a obra).
Morri, mas fui, pouco a pouco, sendo restaurada, sem
pressa, sem medo, sem culpa, sem sofrimento. Aquele que me
restaura, ensina que os fragmentos podem e serão recuperados
com precisão. Nessa restauração ele deixará impresso não só
sua arte e sua criatividade, ele deixará um pedaço da sua
alma junto da minha que eu já aceito como alento eterno. Meu
irmão nunca mais voltou.

Pagode da saideira

Para Ierê Ferreira, Rodrigo Marques e W. Dias

Suspende a cerveja da mesa cinco


Porta baixou
Já passei o trinco
A nega precisa saber
Que estou voltando

- A saideira! Edinho gritou do outro lado do bar. A cabeça


do samba está pronta, agora é só você continuar, Rody.

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- Cara, não sei, falta algum verso ainda aí, quem sabe algo
como: estou preparando a comida. De repente ficaria maneiro
assim:

Suspende a cerveja da mesa cinco


Prepara a comida
Que estou voltando
Porta baixou
Já passei o trinco
Avisa pra nega
Que vou chegando

- Assim ficou muito melhor mermo, mas esse verso final ainda
está capenga. Temos que apresentar esse samba na próxima
roda do Samba na Fonte da Pedra do Sal, resta terminar, nada
muito grande Rody, porque o povo tem que cantar logo.
- Edinho, me diz uma coisa, no dia da apresentação na roda,
vamos levar as Pastoras?
- Podemos levar sim, por quê?
- Pensei em levar a Simone, quero ver se me adianto com ela.
- E ela está afim?
- Deixou umas pistas, mas estou inseguro pacas.
- Cara, e a Simone é pro teu bico?
- Tá, tá bom, Edinho, mas não se mete nas minhas paradas com
a Simone, vou tenta desenrolar meu lado com ela, uma mina
de responsa, gosta das paradas certas, é pra casar e venho
pensando nisso, já estou de saco cheio de ficar sozinho.
- Xhi!!!! Casar? Qual é? A parada é séria mermo. Então, leva
ela no dia da apresentação, ela tem mermo uma voz bonita e
juntando com a Jassaña e a Guaciara vai ficar demais!
- Outra saideira?
- Putz, já chega, amanhã tem trampo e preciso pensar no
resto do samba.
- Aí meu camarada, a conta!
Edinho é o filho, irmão, cunhado, primo, amigo, marido,
amante que todo mundo queria ter. Um cara sem estresse que
vive feliz, cantando, o negócio dele é música, sobe morro,

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desce asfalto cantarolando os sambas das antigas, é
fissurado por Cartola, Ivone Lara, Martinho da Vila, Luis
Carlos da Vila, Candeia, mas o preferido mesmo é Paulo Cesar
Pinheiro. Vive falando para o Rody que queria compor que nem
ele, mas faltou estudo e ainda por cima falta inspiração.
Um dia, ele me revelou que o sonho era conhecer esse
compositor. Bem que tentei uns contatos, mas o cara é muito
difícil de achar.
Ele conhece o Rody desde criança, moravam no mesmo beco
e frequentaram a mesma escola. Aprontaram muito na Lauro
Sodré, mas eram queridinhos porque sempre que a escola
precisava fazer uma peça teatral, um concurso de poesia ou
um festival de música eles sempre eram os primeiros a ajudar
e se apresentar. Conheci os dois na roda de Samba do Cacique
de Ramos, ficamos amigos no ato, foi amizade à primeira
vista e sempre que posso, acompanho os dois pelas rodas.
Houve uma época que era louca por ele, mas aqueles olhos não
me viam, ou me viam só como amiga mesmo. Depois desencanei,
deixei pra lá porque ser amiga dele é melhor que ser
namorada. Ele é desses que não quer compromisso, quer viver
a vida, a música, as rodas de samba, então é melhor assim,
nos divertimos juntos. Já até tentei compor com eles, mas
não levo jeito pra coisa, meu negócio é cozinhar.
- Vamos tomar uma? Preciso de um conselho e te mostrar o
resto do samba. Acho que ficou legal, mas ainda falta alguma
coisa, sei lá, não estou convencido e aqueles pregos lá da
roda ainda podem vir com umas críticas que não vou gostar.
- Pô Rody! Sabe que é assim mermo, é pra ser criticado e
melhorar. Vamos ali no Fidelis que é mais perto e você me
conta e mostra o samba.
- Fidelis! Traz uma ai pra gente! Diga.
- Tu sabe que quero me acertar com a Simone, a mina é muito
gente boa, quero ela, goste dela pra caralho, mas...
- Ai caramba! Onde você meteu esse cacete, porra? Te conheço,
já vem merda.
- Calma, não quero esporro, quero conselho. Acho que entrei
numa furada.

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- Mas você sempre se mete em uma, ou melhor, em muitas, num
sossega.
- Dessa vez é uma mulher casada, e o marido é um dos vermes
que anda fazendo ronda pela favela.
- Cara, só te dando muita porrada, logo com mulher de cana!
Tu num sabe que essa parada não pode. Tanta mulher e logo...
- Sei, sei, foi mal pacas, mas a mulher se jogou, quis de
qualquer jeito apareceu lá no barraco altas horas da noite,
madrugada, o verme de plantão.
- E o que tá pegando?
- Hoje ela me passou a visão de que o cara leu umas paradas
nossas no celular
- Além de burro, deixa rastro. Putaquiopariu!! Tu tá é morto!
Quero mais saber disso não, nem sei como te ajudar, podia
dizer para dar um tempo, ir lá para Linhares, mas tem o
samba, porra! Como vai ser agora?
- Não, já resolvi, na minha cabeça tá resolvido, o samba é
amanhã, né?
- É?
- Vou dar um tempo da favela e amanhã apareço direto na
roda, me espera lá que eu vou. Já até avisei pra Simone que
ela será uma as pastoras com as meninas.
- Maluco! Num tô achando essa parada legal, num tô sentindo
firmeza, mermão.
- Calma Edinho, num me deixa mais nervoso.
- Nervoso! E eu Rody, como você acha que estou me sentindo,
ein?
- Sei, sei que já vacilei uma porrada de vez, mas agora vou
consertar, pode deixar, é à vera!
- À verá? Conheço bem teu à vera! Da outra vez foi tão à
vera que quase tu empacotou, esqueceu?
- Bro, pelo amor de Deus, nunca que tu vai esquecer aquela
parada, caramba!
- Não mermo, foi por um triz que nos salvamos. Cuidado jacaré
que um dia a lagoa seca, tu num leva fé.
- Tá, tá tá bom, chega de sermão, deixa mostrar o samba que
tá irado.

24
- Fidelis, traz outra!

Suspende a cerveja da mesa cinco


Prepara a comida
Que estou voltando
Porta baixou
Já passei o trinco
Avisa pra nega
Que estou chegando

É que eu trabalho
Ela não entende
Diz pra toda gente
Que sou desnaturado
Fiel não sou
Quero que fique claro
Qualquer dia vou mandar
Todo mundo pro diabo

- Putz! Diabo não rola, esse samba está muito machista, as


minas não vão querer cantar.
- Agora mais essa, esses mimimis dessas minas, pô o samba
sempre foi machista.
- Mas precisamos mudar, tu num acha?
- Sei lá, as minhas rimas são assim, a minha palavra é essa.
Vamos levar ou não?
- Tá, tá bom, vamos levar. Fidelis, a saideira!
Rodiney Marques, nome artístico Rody Marques, o terror
das novinhas, como ele gosta de dizer, adora um rabo de
saia, mesmo que sinta um amor profundo por Simone, não
consegue deixar de lado as outras minas que cruzam o seu
caminho. De terror não tem nada, coração bom tá ali, um cara
fechamento com os amigos, conselheiro, não deixa nenhum na
pista, desenrola grana, lugar para dormir, comida e até umas
minas. Filho de Xangô com Yemanjá, justiceiro e amoroso,
assim como seus Orixás. Sempre vai a Sepetiba bater cabeça
no congá e tomar a benção de Pai Ivo, nunca esquecendo de

25
deixar um agrado para casa e para as entidades. Rody acredita
nos astros, vive dizendo que é de Aires e que quem nasce sob
esse signo vence na vida.
- Sabe de uma coisa? Os astros nunca me abandonaram, nem as
entidades. Sou um protegido e um privilegiado, diz todas às
vezes que conversávamos. E eu acabo concordando, porque o
cara tem mesmo muita sorte.
Nem preciso dizer que seu amigo preferido é o Edinho,
diz ele que nasceram juntos nessa vida para mudar o mundo.
Sim, eles nasceram bem pertinho um do outro, diferença de
um mês. Além de viverem grudados, durante a infância, agora
são parceiros de composição. Rody afirma que os cariocas
ainda vão cantar um samba composto pelo dois na Marques de
Sapucaí e pela Mangueira. Às vezes, até acredito nos seus
sonhos, mas ele é um moleque sonhador e quando se depara com
alguma dificuldade fica paralisado, e se não fosse a força
de Edinho eles, não continuariam nem compondo. Agora está
muito animado com as composições que tem feito para a roda
do Samba na Fonte, pesquisa, estuda, ouve muitos sambas
antigos, principalmente do Candeia, seu mestre preferido.
Está louco para chegar quarta-feira e mostrar o novo samba
na roda, tem certeza que esse emplacará, já que levarão até
as pastoras para incrementar.
- Escuta Edinho, presta atenção, mudei o diabo e daqui a
pouco vou mandar a letra completa pelo zap, e tu dá um jeito
de imprimir os papéis.
- Já falei com o chegado da lan house, ele vai imprimir pra
gente e diz que é por conta.
- Mas tem que ter muito papel, a roda vai está lotada amanhã.
Com esse calor e com o nosso samba a Pedra do Sal vai tremer
e o coração da Simone vai ser meu, finalmente.
- Cara, incrível, você não esquece a mulherada, eu
preocupado pra que tudo dê certo e tu pensando em mulé.
- Parece que não me conhece. Se liga, tá tudo pronto, já te
mando o samba.
- Ei, espera, não desliga, me diz uma coisa, qual a palavra
que tu colocou no lugar de diabo?

26
- Você vai ver quando a letra entrar aí no seu telefone.
- Já estou até vendo que você vai demorar só pra me deixar
nervoso.
- Fica frio Edinho, o samba ficou top. Já que tenho que
ficar entocado, te vejo amanhã na Pedra.
- Vê se não vai demorar, ein? As meninas já estão avisadas
e querem até dar uma incrementada no visu.
- Nosso samba merece, nosso samba merece, até.
- Até.
O samba chegou pelo zap e ele viu logo a mudança e
começou a rir, dizendo para si mesmo:
- Esse Rody é foda! Espero que dê certo.
Dia seguinte, cheguei na Pedra do Sal cedo, antes das
17h30, a roda estava sendo montada, além da roda, tinha a
exposição, Samba Identidade Nossa do fotografo Ierê
Ferreira. Revi uns amigos e logo chegaram as pastoras,
estavam lindas, usavam bata branca de lesie e na cabeça os
turbantes, bem coloridos, estavam impecáveis. Rody, quando
visse Simone ia pedi-la logo em casamento, a nega estava
deslumbrante, todas chamavam atenção e todos na roda queriam
saber com quem elas cantariam.
- Oh! Oh! Calma lá Maurinho, as pastoras estão comigo,
aproveita e já inscreve eu e Edinho na roda de hoje, porque
viemos pra arrebentar!
- Caramba, hoje o bicho pega!
- Rody, olha lá, o Edinho vai pirar.
- Olha lá o quê?
- Olha quem está sentado na cabeceira da roda. Num acredito!
- Caramba Marcinha! É o Paulo César Pinheiro! E cadê o Edinho
que não chega? Não sei se ele vai ficar eufórico ou se cagar
de medo coma presença do seu ídolo. Falou, rindo de perder
o fôlego.
- Já liguei, ele está a caminho.
O samba começou, anunciaram a presença do nobre
compositor e o primeiro samba que ia ser cantado. Rody e
Edinho seriam o quarto a se apresentarem e nada de Edinho,
Rody ficando nervoso, as meninas preparando a voz e dando

27
uma ajeitada final no visual. Já estavam apresentando o
terceiro samba quando ouvimos um estrondo vindo lá da pista,
um barulho estranho que parou a roda e que deu início a uma
correria danada. Rody não acreditava que não seria naquele
dia que não apresentaria o samba que compôs com seu parceiro.
O tumulto era tão grande, mas tão grande que resolvi checar
o que acontecia e falei com Rody:
- Cara, vamos lá ver o que aconteceu? Tá tudo muito estranho
as pessoas estão voltando de cabeça baixa.
- Vamos logo.
Saímos da Pedra do Sal em direção à rua Sacadura Cabral,
mas quando chegamos na esquina vimos um corpo tombado na
calçada e um ônibus parado a uns 100 metros. Não queríamos
acreditar que o corpo caído e sem vida era do Edinho e, em
volta dele centenas de papéis espalhados com a letra do
samba, cujas letras destacadas diziam: Saideira da Vida,
letra e música, Edinho de Carvalho e Rody Marques.

28
Pai Véio

Para meu pai Ivo de Carvalho

O Preto-velho vai embora,


Mas ele vai com Deus,
Ele vai para Aruanda
Abençoando os filhos seus.
O Preto-velho vai...

- Pera, pera, pera... entrou o cambono esbaforido e como uma


corisco por dentro do terreiro.
- Preto-velho não pode caminhar, chegou aquele político.
- Qual mizinfio?
- Aquele que chamam de Justo.
- Será que ele trouxe bango?
- Trouxe sim vovô.
- Bango de papel assinado?
- Não vovô, dessa vez ele trouxe dinheiro vivo, muitas notas.
O senhor vai atender?
-Vou sim, mas espera um pouco deixa volta pro meu banquinho,
Ajuda eu aqui, cambono!
Com o corpo encurvado, com passos pesados e ao mesmo
tempo firmes e espaçados, Pai Véio, com a ajuda do Cambono,
voltou a se sentar no seu banquinho, no cantinho do terreiro.
Colocou sua toalha quadriculada no colo, recolheu um galinho
de arruda, o colocou atrás da orelha e olhou longe, como se
tivesse pensando em algo.

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- Vovô, posso lhe fazer uma pergunta? Cambono interrompeu o
silêncio do velho.
- Pode sim fio, se preto puder responder...
- Por que vovô faz mandiga e recebe o dinheiro dessa gente
que só sabe pedir quando chega perto das eleições e explorar
o povo?
- Vou expricá pra suncê biem expricadinho. Senta aí nesse
banquinho e escuta que vou dizer.
Cambono trouxe o banquinho para mais perto de Pai Véio
e com semblante sério e inquieto, ouviu...
- Esse povo tudo já bateu, já molestô muito minha gente, lá
nos tempo passados, nos tempo onde os preto tudo era escravo,
suncê entende?
Cambono afirmou com a cabeça que sim e continuou ouvindo
a prosa do vovô.
- Essa é a paga que eles tudo vão ter que me dá, por tudo
que eles fizeram com nós. Suncê pensa que foi fácil apanhar
no lombo, ficar amarrado no pelourinho sem uma gotinha
d’água, sem comê. Sol a sol, trabaio atrás trabaio, sem
descanso, sem nem poder pedir aos nossos Orixás um alívio
pra alma? Além de que tinha que assisti nossas muiê sendo
violentada? Tirar nossos fios dos braços e mandar pra longe?
E nós ter obedecê? Não mizinfio, num foi nada fácil. Eles
vão ter que paga. Pai Véio cansou e hoje em esprito não deve
mais obediência não. Eles vão ter que pagar moeda por moeda
tudo que exploraram do meu povo. Agora todo bango que posso
tirar deles eu dou pros pobres, pros necessitado, e aqui
quase todos que necessitam são preto como eu. Mas esses
políticos, principalmente esse que chamam Justo, acha que
vem aqui e engana Pai Véio.... ê ... ê... ê... nada disso,
preto-velho que está enganando eles tudo. E Zambi lá de
cima, de butuca biem abreta, tá piangando o trabaio de preto-
velho, que vai atender com a premissão dele e realizar os
pedido deles tudo. Zambi só tá espiando o que tão fazendo
por aqui, nessa terra.
- Agora eu entendo porque o senhor os recebe.
- Tá entendendo mesmo, fio? Eles vêm aqui para entrar nesses
cargo de política, Pai Véio consegue, mas em troca precisa
do bango que dessa vez vai lá pro Inácio, aquele que cuida
do asilo dos veinho que nem eu. Inácio veio aqui outro dia
dizendo que tem umas dificulidades para manter aquela casa
grande e cheia, o bango mal dá pra comê. Ê, ê mizinfio.
- Mas Seu Inácio não podia conseguir de outro jeito?
- Suncê conhece Inácio, ele lá sabe pedi? Só sabe vim cá
chorar as mágoas e preto-velho fica com pena. Esse povo,
dessa terra num aprende, quando vão aprender a dividir o que
tem com os outros, né fio? Eu já fiquei pensando muito que
tava fazendo coisa errada, pegando o bango desses
políticos, mas os meus guias chefe, lá de cima, me mostraram
30
que não, me disseram que posso pegar porque não fico pra eu,
nem pra casa esprita, eu distribuo para os que mais tem
precisão, dessa vez o asilo de Inácio precisa muito, mas
muito mesmo. Então eu tô perdoado. Faço as mandingas valê,
por isso eles vêm tudo atrás deu, porque mandiga pedida a
esse preto-velho é mandiga realizada e garantida. Eu só num
faço é matá e nem maldade dessas que fazem por ai, aquelas
que deixa a pessoa na tarimba, isso num faço mesmo. Mas
ajeitar um lugazinho pra eles ficá lá dentro dessa política,
eu consigo.
- Tá bom vovô...
- Agora, suncê traz meu pito, meu rosário, meu licor, meu
fumo, meu cafezinho biem quentinho e manda esse político
Justo entrar que nosso convercê vai longe mizinfio...

Assim foi...

- Não, não foi assim.


- Até parece que se lembra mais do que eu.
- Lembro sim, afinal eu ia junto do vovô na parte de trás
da Kombi e você ia na frente com o papai, não lembra não?
-Não, quem ia com o papai na frente era você. Você vivia
brigando comigo que sempre que ia na frente e nesse dia você
bateu o pé dizendo: - Pai, eu também quero ir na frente para
aprender a dirigir igual você faz com o Beto. Papai deixou
você ir com ele e eu fui atrás com o vovô.
- Não me lembro disso, acho que você fantasia muito tudo,
agora só falta dizer que o acidente foi daqueles que todos
vão para o hospital...
- E não foi? Um acidente que parou todo o trânsito naquela
rua... Qual era o mesmo o bairro?
- Tá vendo aí. Era São Cristóvão, nem tinha muito trânsito,
pois era domingo, à tarde e mamãe estava esperando por nós.
- Vovó também estava.
- Mais um dado errado, a vovó não tinha ido, ela nunca saia
de casa e tinha ficado para preparar o lanche da chegada da
mamãe e do neném.
- Aí Nena, você acha mesmo que se lembra de tudo daquele
dia, então como foi o acidente?
- Lembro. Era de tarde e estávamos indo pegar a mamãe na
maternidade, fomos de Kombi, a branca do papai. Você ia na
frente com ele, eu e o vovô estávamos sentados no branco de
trás, num determinado momento papai parou no sinal e um
carro veio e bateu forte na nossa traseira. Eu dei uma
cambalhota e o vovô caiu sentado no chão da Kombi. Apareceram

31
umas pessoas, uma senhora nos deu água e tentava nos acalmar
dizendo que logo chegaria o bombeiro. Papai ficou
conversando com o moço que tinha batido no carro e o vovô
procurava os óculos dele que foram parar na mala da Kombi.
Lembra disso?
- Disso eu lembro, os óculos todo torto. Mas foi um ônibus
que bateu e os passageiros começaram a gritar, dizendo que
tinha um moço machucado ... Cortei a testa, tenho a
cicatriz até hoje. Olha aqui, é essa!
- Um ônibus? Muita gente machucada? Que invenção é essa
agora, meu Deus! E essa cicatriz foi desse dia? Achava que
era do dia que você tinha sumido na praia e o guarda veio
te devolver.
- Nossa! Esse dia da praia foi muito ruim, achei que nunca
mais veria vocês. Mas voltando ao acidente, a senhora
cuidou da gente até o bombeiro chegar, papai ficou nervoso
à beça com o motorista do ônibus e ele só conseguia dizer:
- a minha mulher está me esperando na maternidade. Ela não
vai entender nada se eu demorar e agora nem posso ir mais.
Que coisa! Logo hoje que ia levar a minha caçulinha para
casa! Vovô teve a ideia de pegar um táxi e buscar a mamãe,
nós cismamos e fomos com ele.
- Beto, o papai não queria que fossemos e vovô dizia que
levaria a gente assim mesmo e que a mamãe não podia ficar
esperando. Nesse momento chegou o bombeiro nos examinou. Não
tínhamos nenhum arranhão.
- Como Nena? E o meu corte na testa? O bombeiro fez um
curativo e disse que não era nada grave. Fomos com o vovô,
já no hospital sem o papai, mamãe viu meu corte na testa
ficou logo nervosa e queria saber o que tinha acontecido.
- Você diz que tinha esse corte. Voltamos de táxi com o
vovô, a mamãe e a neném e o papai voltou muito tarde.
- Você dormiu, mas eu esperei por ele que chegou dizendo que
a empresa de ônibus ia pagar o prejuízo.
- Quase 50 anos, lembramos bem, cada um a sua maneira, mas
você com certo exagero e imaginação.

32
Prestação de contas com a vida

- “Tô fudido”! Não sei como vou fechar as contas desse mês,
com o pagamento parcelado, esse governo está de brincadeira
com a nossas vidas! O que eles acham? Que temos reservas?
Como vou fazer para comer, pagar a escola dos meus filhos e
a prestação da casa? Já fiz e refiz as contas e elas não
fecham. “Tô fudido”!

- Como assim? Você não tinha aquele dinheiro guardado na


poupança?

- Tinha, mas emprestei para o Kleber, o cara ia perder o


apartamento se não pagasse as prestações atrasadas, além das
prestações, tinham as cotas condominiais, umas 13 em atraso,
se não quitasse o apartamento ia ser leiloado e com a mulher
desempregada e com os filhos pequenos...

- Não sabia da situação do Kleber.

- Nem te conto.

- Ele já pagou o que devia?

- Pagou sim, quitou o apartamento, saldou as cotas, eu que


fiquei prejudicado, mas vou dar um jeito.

- Ele não vai te pagar? Sei que tem uma doença rara, mas que
vivia de maneira precária...

- Pois é, além de tudo, tem essa doença que não tem cura.
Ele assinou dez cheques em branco, como garantia do
empréstimo e me entregou, dizendo que poderia preencher e
33
descontá-los todos os dias 20, só que ontem me ligou pedindo
para dar uma segurada, pois o que recebeu mal deu para
pagar os remédios... Não posso cobrar.

- E essa doença, o que ele tem de tão grave assim?

- Não quis me contar e nem consegue, porque já não fala, mas


me entregou esse relato que sua sobrinha escreveu, leia.
Retirou do bolso umas folhas de cadernos dobradas e
manuscritas.

E.L.A. se apaixonou por ele e nós somos


apenas coadjuvantes.

E.L.A., por volta de 2006, entrou na vida dele sem ser


convidada, sem pedir licença, sem bater na porta, de
intrometida mesmo! Ele não entendeu nada, nem os
coadjuvantes, nem os especialistas. E.L.A. judia muito dele
e ele não faz nada, pois não tem força para encará-la.
Começou deixando suas pernas bambas e logo depois o
deixou imobilizado, sem dar um passo para o futuro, mas para
que futuro? Depois, o encheu de dor e o deixou dependente
de remédios. Até mesmo para dormir ele não fica sem E.L.A.
Já não consegue se virar sozinho na cama, nessa hora E.L.A.
não ajuda em nada, fica apenas sentada ao seu lado assistindo
a manobra, enquanto um dos coadjuvantes faz o favor de
virá-lo. E.L.A. o acompanha diariamente, não o deixa nem um
segundo sequer. Malvada! Aterradora! E nós, coadjuvantes
dessa paixão avassaladora, unilateral, assistimos com muito
pesar e não podemos fazer quase nada, só ficar ao lado dele
tentando diminuir a presença d’ E.L.A.
O próximo passo foi deixá-lo mudo, sem voz, sem a
capacidade de comunicação oral e comendo na mão d’ E.L.A. e
a comida que E.L.A. determina, são só papinhas, inclusive a
água tem que ser espessa. A língua, como é um músculo,
também fica sem reação, paralisa diante d’E.L.A.
Hoje soubemos da ação futura d’ E.L.A., que o deixará
sem comer, só poderá comer através de um tubo que E.L.A. vai
fazer o favor de enfiar no seu estomago (gastrostomia).
Talvez, não seja essa a única ação cruel, E.L.A. pode vir
com mais crueldade e maldade para colocar também um tudo na
traqueia (traqueostomia) para que ele respire só com e para
E.L.A.
No caso dele, E.L.A. é mais lenta, parece que faz tudo
de caso pensado e de propósito. Nós não vislumbramos nenhuma
saída d’ E.L.A. da vida dele, embora ele diga que a passagem
d E.L.A não demorará muito. Não aguenta mais essa
convivência diária e reclama todos os dias, fica triste, se
deprime, não dorme direito, só consegue porque E.L.A. traz
34
uns amigos indesejáveis para lhe fazer companhia, um tal de
Riluzol e uma tal de Amitriptilina. Ô gente sem graça que
nem gente é! Diz que se for para viver desse jeito com E.L.A.
ele desiste dessa paixão, que ele nem pediu que começasse e
prefere desistir da vida.
E.L.A.?
É a sigla de Esclerose Lateral Amiotófrica uma
enfermidade neurológica degenerativa que não tem cura, que
nenhum especialista sabe a causa, é como o dedo de Deus
determinando quem vai tê-la, ele aponta e diz quem é o
próximo da fila. Caso ainda raro, um entre cem mil sofre
com essa enfermidade que mata lentamente, pois o cérebro não
manda mais estímulos para os músculos que se atrofiam, é só
uma questão de tempo para chegada do final do ato de viver.
Meu tio materno convive com essa enfermidade. Cada dia
que passo ou vou com ele à rede SARA volto com milhões de
questionamentos. As duas únicas certezas são: devemos viver
um dia de cada vez com calma e qualidade; e a de
quem estiver ao lado de uma pessoa nessas condições se
torna outro ser humano, ainda não sei como, mas já sei que
mudei. Já convivi com vários entes queridos que tiveram
enfermidades terminais, mas nada parecido com E.L.A. onde o
paciente fica refém de si mesmo, tendo que recriar o mundo,
descobrir coisas novas para diminuir a dor física, emocional
e espiritual.

- Nossa! Nunca imaginei que o Kleber estivesse assim,


percebi que ele sumira do nosso convívio, mas não sabia que
era tão grave.

- Agora você entende porque “tô fudido”? As contas não


fecham, não tenho um “puto” e sem coragem de cobrar a dívida.
Não vou fazer isso com o cara que precisa, mais do que nunca,
da minha ajuda, aliás, da nossa ajuda. Você devia ir visitá-
lo, pois terá pouco tempo entre nós. “Tô fudido”
emocionalmente também, ver nosso amigo nessas condições...

- Não sei se tenho coragem, nessas horas sou tão covarde.

- Covarde é essa doença que deteriora, inutiliza, arruína,


danifica e estraga a vida humana.

- E quanto as suas dívidas, o que vai fazer?

- Não sei, mas vou dar meu jeito.

35
História de um taxista que trancou a boca com a chave do
próprio taxi e a jogou na lagoa Rodrigo de Freitas

Gosta muito de mortadela de Bologna e defumada, mas


dispensou o lanche oferecido. Embora esteja na idade da
águia, viagra, prótese de silicone e bombinha de ar para
bronquite são acessórios que já fizeram parte do seu kit: “
homem que dá três seguidas sem tirar de dentro”. Agora anda
desanimado e descobriu que as mulheres de sua faixa etária
são as que dão no couro, mas chegou a essa conclusão depois
de ter sido estropiado por uma “ninfa bebê” que o deixou sem
nenhum tostão. Apreciador da lua e de balas halls preta,
precisa ir à missa semanalmente para dirimir todos os seus
pecados. Pobre dele que ainda não sabe que o religioso bebe
do profano e vice-versa! Eu mesma, sempre levo meu Diabo
Guardião para dar umas voltas aos domingos.
Deve ser explicado a esse taxista que não adiante nada
trancar a boca e jogar a chave na lagoa, pois a Filha de
Santo, de Iemanjá, é claro, poderá encontrá-la onde e na
hora que quiser, como num passe de mágica ou de magia, com
apenas um abracadabra, numa leitura das cartas de tarô ou
ainda nas ruas das luas. Ele, o taxista, traz no próprio
nome quase o radical da palavra diamante, muitas vezes se
comporta como uma pedra bruta e outras tantas, como lapidada
por mãos precisas de um ourives qualquer.
Esse relato vai para o Dimas, um taxista que faz muitos rir
e gozarem com suas colocações e histórias, diante de uma
vida tão dura e ao mesmo tempo poética.

36
Máscara própria

- Olha!

- Que?

- Olha ali.

- Onde?

- Olha aquele homem.

- Que faz?

- Olha aquele homem, na mesa, a sua esquerda.

- Sim, o vejo, agora vejo.

- Então... Que acha?

O homem sentado modelava uma máscara que era seu próprio


rosto. Tinha retirado toda uma massa de argila da própria
cara e a modelava.
Da massa compacta surgiam, de modo suave, primeiro o
queixo anguloso, proeminente, depois a boca, grande e
espetacular, mas ainda fechada (teria dentes?) Suas mãos
buscavam traços conhecidos e, de repente, se deteve diante
do nariz que aparecia com um formato de batata, um tanto
deformado. Ao lado figuravam bochechas monstruosas com um
grande sinal depositado no lado direito. Nessa parte, o
homem parou por muito tempo com o intuito de disfarçar a
deformidade aparente. Não via, pois, todavia, necessitava
de olhos, olhos como os de águia. Modelou cada um com
precisão cirúrgica. Eram tão precisos e preciosos, que em
meio a toda aquela monstruosidade já pronta, pareciam duas
joias, cada uma com seu valor individual.
- Olha!

37
- Que?

- O homem...

- E?

- Olha, ele já não pensa.

- Lógico que não, ainda lhe falta a testa.

- Na verdade, toda a cabeça.

Sem pensar, o homem elabora a testa com uma rapidez


incrível, e as mãos, como um raio, sobem modelando todo o
crânio. Quando fica pronto ele o abre, tira outra massa de
uma maleta que estava debaixo da mesa.

- Olha!

- Que?

- O homem retira alguma coisa de dentro daquela maleta


de metal.

- Sim, seu bobo, não percebe que é seu cérebro?

- Sim, vejo, mas...

- É simples, o levou para lavar.

- Certo, ele o necessitava bem limpo, sem pensamentos


prévios.

Agora, o homem abre com muito cuidado a caixa craniana,


bem devagarzinho, mas definitivamente, introduz seu cérebro,
o aprisiona com um pouco de pressão e contempla sua obra,
ainda que monstruosa o que vê, de certa maneira, o agrada.

- Olha!

- Que?

- Falta algo.

- Lógico que falta, não seja inocente.

- Eu?

- Sim. Ainda falta o cabelo.

- Ah! É verdade, mas ele podia ser careca...

- ...

38
Da mesma maleta, o home retira uma espécie de peruca e
a cola na cabeça morta que ainda está sobre a mesa. Agora
sim, pode ver que está completinha.

- Olha!

- Que?

- Não parece que ainda falta algo?

- Sim. Lógico que falta.

- Mas... O quê?

O homem se enche de coragem e fixa na face as marcas e


os golpes recebidos por toda sua vida. Detém-se, a recolhe
com muita delicadeza e, de um só golpe, coloca a máscara
sobre sua própria cara. Sorri.

- Olha!

- Que acontece?

- O homem...

- Que homem?

- Aquele que fazia a escultura da máscara própria.

- Sim... E?

- Nós somos ele!

- E você ainda não sabia? Que bobo!

39
Um respingo de vinho tinto e sangue

“Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho


Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.”

Canto 10 – Os Lusíadas – Luís de Camões

Uma taça de vinho tinto pendurada na parede, tocando


e acariciando o piso. Um derramamento e sangue pela úmida
terra. Como assim? Como assim pode haver conexão entre o mar
de Adamastor e Poseidon com o amor? Deus Baco, Camões com
uma taça de vinho tinto? Nada de respostas, a incógnita
prevalece.
O mar, seus cheiros, suas cores e seus ruídos me
fizeram recordar de tantas coisas queridas, sublimes.
Recordações que foram vividas em uma praia quase igual a
esta, com um mar quentinho e desperto como este. Um mar
calmo e revolto ao mesmo tempo. Um mar que tinha o gosto de
morangos frescos, bananas maduras, creme de abacate,
abacaxis agridoces e água de rio.
Fico impressionada, pois sempre me disseram que os
sentidos nos fazem reviver, a tal sinestesia. Agora, o mar
me faz recordar de um curto encontro entre dois seres
míticos, místicos, ainda que humanos.
Parecia que já se conheciam de outras existências,
almas gêmeas (expressões que entraram na moda, depois do
boom esotérico), soa bobo, simples, mas assim eles eram.
Foram casados por Poseidon, na areia da praia, com todas as
estrelas como testemunhas. Sirena e Adamastor se conheceram
por puro acaso, durante uma caminhada pela praia. Adamastor
foi contagiado por seu canto, brigou com todos os monstros
marinho e viajou por “mares nunca dantes navegados”. Ai
Camões! “Não mais Musa, não mais”...

40
O casamento aconteceu quando o sol beijou o mar,
naquele momento que há uma brisa que paira e para sobre a
cabeça dos iniciados. Simplesmente desse jeito.
A estátua de um homem com seu cachorro ao lado, uma
imagem nunca esquecida. Suas pernas compridas, seu cabelo
cheio de cachos, sua maneira amável de transar. Seu corpo
esticado, tensionado até o instante do gozo. Uma paixão
avassaladora, devastadora, abrasadora.
Um apartamento novo, no momento precioso de mudança,
o cheiro do novo quarto, sempre deitados pelo chão, tendo o
cachorro observador como companhia. Um creme que deslizava
pelos corpos, ajudando na entrega, que era de total
comunhão, um dentro do outro. Quando o Sol fazia contato
positivo com Netuno, seus desejos de amar e serem amados se
reforçavam. O sentido erótico também se fazia presente. O
tempo que passavam juntos era agradável para ambos, por isso
se prepararam para saídas românticas. A
Adamastor era paixão, ilusão, satisfação. Um poema
escrito por ele para o momento em que se entregavam, expressa
toda aura que havia ao seu redor. Assim se recordava e a
reconhecia.

Corpos nus corpus da cama


Transa sem medo e de compasso perfeito
Você e eu partes da engrenagem
Do sistema da máquina do gozo
Não só partes mas a terceira força
Que faz essas partes funcionarem
Num sentir de gozo completo da máquina
Dos corpos nus corpus da cama

A estátua de uma mulher com cabelos negros e lisos,


uma insensatez fora do comum, pernas finas, seios abundante,
regaço acolhedor. Um apartamento em um andar alto de um
edifício, vontade de pular pela janela. Dessa mesma janela,
uma mulher havia pulado para os braços de Adamastor. Uma
vida sem nexos. Uma espera pelo vazio. Um vômito seco.
Uma vida aprisionada. Uma busca desesperada por alguém
que soltasse suas correntes. Sua sexualidade exigia um pouco
mais de atenção, pois era algo comum para ela. O poder da
união do Sol com Vênus traria um novo par e mais sexo. Seu
sentido erótico era forte, assim poderia planejar um
encontro especial com o eterno amor. E um poema escrito por
ela para esse momento. Essa era Sirena. Inspirada,
independente, lutadora e ativa. Assim se recordava e o
reconhecia.

“Nunca estamos sozinhos,

41
Estamos desgraçadamente em nossa companhia”
A vida é um imenso barco
Com a âncora jogada em um porto
Que, sem querer, é a Terra
Nós estamos e somos esse barco
Maravilhoso?
Não sei. Talvez.
Mas sem escapar
Vivemos
Às vezes à deriva

Compartiram desejos, beijos, afetos, carinhos,


cafunés. Um sendo pleno e o outro completo. Amantes. Sirena
e Adamastor. Baco, puro vinho tinto revelando-se diante de
Camões “Não mais Musa, não mais...”
Quem poderá saber se viveram ou vieram juntos de outra
Galáxia, do fundo do berço de Poseidon? Mesmo que fosse uma
breve passagem pela terra, deixaram rastros um no outro, os
dois na vida, nesse instante ilusório, onde não se pode
estabelecer o princípio e o final de ser. O amor deles era
tanto que resolveram terminar com a vida junto em um pacto
de morte. Vinho tinto derramado sobre a terra. Pulsos
cortados e colados. Dormiram em direção à morte. Adamastor
em Sirena. Sirena em Adamastor. Baco e camões. “Não mais
Musa, não mais...”

42
A calça jeans o incomodava, retirou-a, se acomodou
melhor no sofá e começou a escrever...

As ruas da cidade já não me reconhecem, pois sou a


metáfora eloquente de mim mesma. Sândalo, almíscar insistem
em trazer cada esquina do passado, adormecido no canto
longínquo da essência da possibilidade de ser esta a hora
de despertar. Cada passo dado, não dado encolhe a
existência, mas a estrutura perdura incólume, presente quase
como ruína. Muitas vezes eu sou aquele pintinho que nasceu
quadrado, que deve dar conta da vida, mas a própria vida não
me reconhece, ela é metáfora de si mesma, repleta de
eufemismos, hipérboles e sinestesias que, ora estão pregadas
nas caras dos solitários, nos corpos dos amantes, nas almas
dos que tem fomo, ora nas paisagens residuais da cidade. A
fome também é metáfora de si mesma, vive de pão e circo, de
clamor incontrolável de um ser que se conforta com as meias
molhadas que agasalham os pés, não de vida.
Nas prateleiras do coração estão enfileirados poemas,
tragédias, romances, Arturo Belano, Ulisses Lima, Sebastián
Urrutia Lacroix, Cesaria Tinajero, Roberto Bolaño, as putas
assassinas, todos metáforas de si mesmos. Suspenso o tempo,
a coluna lateja, incomoda, dói e as drogarias também já não
me reconhecem, mas uma vida chega ao mundo para arthuarizar
o canto, a brincadeira, a lucidez, a não discórdia que também
se apresenta como metáfora de si mesma.
Deparar-se com as paisagens residuais que ornamentam o
interior daqueles que perderam o sonho, a capacidade de
doação e coletividade é duro, incompreensível, muitas vezes.
Na foto faltava o dedinho em riste grudado na fonte do menino
que se rebela, pois ela ainda não sabe, mas é a metáfora de
si mesmo. O mundo é a metáfora de si mesmo, jogado ao chão
e nem mesmo as ruas o reconhece, perdido está, solto está;

43
perdidos e soltos estamos todos diante de tanta crueldade
vestida de metáfora de si mesma.

A possibilidade do amor

Amor e felicidade não se compram, vive-se.


Inventário de 60 anos de puro amor e felicidade de
Helenice e Ivo de Carvalho
“Quem desdenha quer comprar”, essas foram as palavras de
Cotinha para sua filha Helenice quando esta chegou em casa
contando que estava sendo flertada por um rapaz muito feio.
“Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu
coração parar de funcionar por alguns segundos, preste
atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.”
A partir desse flerte de janela começaram uma amizade
que passou ao estágio de namoro. Cotinha confiava tanto em
Ivo que deixava Helenice sair em sua companhia. Vó moderna
a nossa!
“Se os olhos se cruzarem e, neste momento, houver o
mesmo brilho intenso entre ele, fique alerta: pode ser a
pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu”.
Saídas, passeios, parques, roda gigante o lugar divertido e
“romântico” para acontecer o primeiro de muitos beijos. Na
radiola de ficha uma música para selar o romance. Ela
esperava Nelson Gonçalves ou Altemar Dutra, mas o que soou
foi Garangueijo Uça…autentico Jackson do pandeiro.
“Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for
apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento,
perceba: existe algo mágico entre vocês”.
Decidiram, que depois daquele beijo e de namoro
sacramentado, como tema musical e tudo, nada muito
romântico, ele seria para ela, meu filho e ela seria para
ele, minha filha.
“Se o 1º e o último pensamento do seu dia for essa
pessoa, se a vontade de ficar junto chegar a apertar o
coração, agradeça: algo do céu te mandou um presente divino:
O AMOR”.

44
Helenice apresenta Ivo a sua religião, que será
decisiva na vida dos dois. Frequentar o Centro Espírita
Eurípedes de Barsanulfo os aproxima cada vez mais e Ivo é
aceito, de vez, pela família de Helenice e passa a ser mimado
pela futura sogra. - Ai o macarrão dela nunca comi nada
igual! Ele sempre se recorda.
“Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por
algum motivo e, em troca, receber um abraço, um sorriso, um
afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras,
entreguem-se: vocês foram feitos um pro outro”.
Já não tinha mais como adiar, já chegara o momento de
juntarem os Carvalhos, isso mesmo, ambos são Carvalho.
Decidida a data, começam os preparativos para o dia 15 de
outubro de 1960, mas Cotinha está enferma e os dois não
sabiam como fazer. Sábia, Cotinha junta, em maio daquele
mesmo ano, os filhos, também os dois noivos e pede que não
mudem a data do casamento. Sem tristeza, pois a morte é só
uma transformação e a vida continua.
“Se por algum dia você estiver triste, se a vida te deu
uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar
as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa
maravilhosa!: você poderá contar com ela em qualquer momento
de sua vida”.
Casamento marcado, cerimônia realizada, mas ficaram de
fora da foto duas pessoas importantes, vó Cotinha e vó
Nerita, que não esteve presente por um longo tempo, mas essa
é outra história. Passam a viver juntos na casa do vovô
Balduino pertinho do vovô Horácio. Um dia descobrem que
estão grávidos e a felicidade aumenta em torno dos dois.
“Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da
pessoa como se ela estivesse ali ao seu lado…”
Ela bordava o enxoval do neném que estava prestes a chegar.
Ah, seria tão bom que sua mãe voltasse e terminasse de bordar
as roupinhas, me disseram que ela é excelente bordadeira.
Não fora por isso, Tia Estela e a bisavó Manzinha resolvem
escrever para um programa de rádio em busca da irmã e filha,
que tinha passado a perna no mundo e lá tinha ido viver
outras experiências. Resulta que o recado foi ouvido e vó
Nerita voltou para casa para completar a felicidade que
sempre rondou os dois.
“Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo
ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos
emaranhados…”
Depois da primeira filha vieram mais dois, embora, a
caçula afirme e pense que é adotada, sem chances eu e Beto
presenciamos a gravidez da Ana Cristina e a quantidade de
cajá manga e limão que a mamãe chupava.
“Se você não consegue trabalhar direito o dia todo,
ansioso pelo encontro que está marcado para a noite…”
45
Harmonia, paz e tranquilidade vivíamos em Piedade e ainda
tínhamos o tio Zé como irmão mais velho que foi adotado pelo
papai como seu, mesmo com todos os problemas que
aconteceriam depois. Foi, além de cunhado, irmão e pai, pois
o amor era incondicional. Viver a dois é receber a conta do
outro e pagá-la da melhor maneira.
“Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um
futuro sem a pessoa ao seu lado…”
No apartamento da Rua São Bráz, que ela sempre se
recusou a vender, os dois continuaram o caminho traçado na
eternidade, nunca presenciamos brigas, desavenças,
xingamentos entre eles, muito pelo contrário, a porta do
quarto deles sempre fechava depois que íamos dormir, né
Beto?
“Se você tiver certeza que vai ver a outra envelhecendo
e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo
louco por ela…por ele…”
E assim foram passando os anos de amor, compreensão e
sem ciúmes, papai pousando nu para a escola de Belas Artes,
encenando no teatro, viajando para competir como
fisiculturista e mamãe fazendo suas viagens, se dedicando à
religião, cada um respeitando o espaço do outro e mais que
tudo, com muita cumplicidade. Cumplicidade, esta é a palavra
que mais combina com a relação dos dois.
“Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra
partindo: é o amor que chegou na sua vida”.
Os dois, além dessa entrega mútua, se entregaram de corpo e
espírito à religião, construíram juntos o nosso espaços
religioso. Estamos aqui, todos os seus filhos no santo e
somos testemunha dessa entrega.
Hoje alegres estamos por compartilhar, ratificar e
presenciar essa linda história de amor, que teve um ponto
de início, mas com certeza, não terá um ponto final.
“Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas
poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezes
encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam
o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente. É o
livre-arbítrio.”
Eles não deixaram o amor passar, ficaram atentos a
todos os sinais e amor se converteu em o verdadeiro lema de
vida de vocês dois. Vocês nos mostram que vale a pena cada
minuto vivido, que o amor é possível, que as relações entre
casais podem ser sólidas.
Aqui estamos nós: filhos, netos, familiares, amigos e,
junto com essa caixa de recordações, fazemos parte desse
inventário de 60 anos de puro amor e felicidade.
As partes entre aspas são do poema: O Amor de Carlos
Drummond de Andrade.

46
Na livraria

Depois de encontrá-lo com um longo e suave beijo na


boca...
Foi comprar um livro de astrologia, o retirou da
prateleira e sentou-se para lê-lo, como costumava fazer, no
mesmo banco escondido na parte de cima da livraria. Havia
algumas pessoas, mas não estava cheia.
Em seguida, ele caminhou em sua direção, tranquilo, doce,
sorridente. Sentou ao seu lado e se envolveram em outro
beijo... línguas... lábios... mãos que percorriam os corpos,
os seios, buscando os mamilos. Mão pousada no seu sexo
descansado. Perto, um homem erudito e com óculos lia Umberto
Eco e de vez em quando a olhava e milhões de perguntas
povoavam a sua cabeça.
Permaneceram assim por alguns minutos, nessa troca de
carícias. Um desejo invadia seu pensamento, seu coração e
todo seu corpo, a vontade de deitar ali mesmo, naquele banco,
de abrir-se inteira para aquele homem sedento, apaixonante.
Mas não. Não podia. Desceu as escadas e foi folhear algumas
revistas. O homem que leia Humberto eco acompanhava todos
os seus passos com seus óculos como se fosse uma filmadora.
Que estranho era! Um homem dissimulando uma leitura os
observava com olhos cheios de curiosidade e talvez de
inveja.
De pé, entre as prateleiras, ela olhava as revistas
esperando que seu amante chegasse, Enquanto folheava uma
Geografic Magazine , que trazia uma matéria sobre povos
africanos, ele chegou por trás tocando suas costas com
suavidade. A abraçou, chupou o seu pescoço, passou as mãos
pelo se quadril... que surpresa. Que bunda! Gostosa!
Sussurrava e não tirava a mão dela, até que subiu em direção
a cintura e as meteu por dentro das calças, agora diretamente
pousada na sua pele fria e sem nenhum impedimento, ele dizia
palavras que a fazia desejá-lo muito mais, aumentando seu
prazer e a sua libido. Ela encostou todo o seu corpo no dele
e repousou a cabeça no seu ombro, as mãos dele desceram mais
47
e mais, deixaram a pele suava da barriga e se instalaram na
pélvis suave. Abriu mais as suas pernas, passou suas mãos
quentes, primeiro pelos seus pelos, depois pelas suas
virilhas, pelas suas coxas e, por fim, descendo, a
respiração aumentando, ela ia amassando a revista entre as
mãos, até que ele, com dedos ágeis e firmes tocou o seu
clitóris e sua boceta molhada... ela quase desfaleceu de tão
excitada. Gozou, gozou ali mesmo entre as estantes da
livraria. O homem de óculos não parava de olhar, via a cena
como se estivesse filmando. Que poderia estar passando pela
sua cabeça? Umberto Eco já tinha sido esquecido, jazia
jogado no umbral de uma porta, além de todas as visões.
Depois de terminado o gozo, ele retirou as mãos de
dentro dela, lambeu e chupou cada dedo, olhando-a
profundamente. Ela não podia fazer o mesmo, mas abriu o
fecho da calça dele e tocou, dissimuladamente, seu pau
endurecido. Tinha vontade de metê-lo dentro da boca, mas não
podia, assim que, com as mãos começou a masturbá-lo e no
instante que ele ia gozar, um homem veio em direção a eles
tocou o ombro dele.
-Senhor! Você trabalha nessa livraria?
-Sim... sim... o que deseja? Perguntou sem olhar para
trás e ao mesmo tempo subindo o fecho da calça. Ficou
vermelho. Os amantes começaram a rir, muito engraçada a
cena.
O homem que usava óculos e lia Umberto Eco gozou com
os dois, compartindo com eles todos os seus desejos
secretos, tentou apanhar o livro que estava caído, mas o
livro era teimoso e não obedecia, insistia em ficar ali e
resvalava de suas mãos.

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O esmalte meio ocre descascado em cada unha de mãos que não
tentam escrever aquilo que se sabe.

O descascado do esmalte é cena viva, despertar constante,


passagem de tempo espremido como polpa de fruta em um paninho
de algodão branco. Suco extraído.

O descascado do esmalte revela sombra diurna, destemperada


embaixo de chuva torrencial de medo.

O descascado do esmalte pode não envelhecer se retirado com


algodão embebido de acetona. As unhas e mãos permanecem ali,
esperando cuidado, o seguimento da trama, a hora do baile,
o momento perdido com a aparente felicidade, com a aparência
que não engana e descobre que embaixo de cada esmalte
descascado há luta e sobrevivência, muitas vezes revestidas
de demência e cicatrizadas com sorrisos até que outro
esmalte apareça descascado.

49
Os lençóis alvos de Nerita foram estendidos no gramado atrás
do bloco para serem quarados. Debaixo de um sol escaldante,
de meia em meia hora gritam o pedido:
- Molhem os lençóis
Diante da bacia redonda de alumínio com água, sabão e pedras
de anil, ela se deparava e começava o intenso chacoalhar, o
borrifar de água pelos ares que retornava a vida àqueles
lençóis alvos, cheirosos, límpidos, como ela que namorava
sentada no sofá, diante dos olhos de toda família, o beijo
era roubado debaixo do bloco. A vida naquele espaço-temporal
saia das páginas das fotonovelas e por alguns instantes se
tornava real. No final da tarde, cada lençol voltava para
sua devida casa, assistindo a cotidianidade das suas
mulheres e eles ainda insistem em pendurar-se no silêncio
de cada uma delas. Por isso, o pedido persiste:
- Molhem os lençóis de vida.

50
E fui à Pedra do Sal

O samba estava gostoso, encontrei com dois grandes


amigos, já não os via há algum tempo.
Gostei da Pedra do sal, lugar mais tranquilo, sem a muvucada
da Lapa. Tinha muito gringo, dessa parte eu não gosto muito,
mas faz parte.
Fui deixar a minha amiga no Recreio e na volta pensava
em tantas coisas. O que gosto de fazer, nas coisas que gosto
de curtir, nas pessoas que me são caras e que gosto muito,
das coisas que não gosto.
Durante o trajeto, de volta para casa, ainda pensava
que gosto que as pessoas contem comigo sempre, para um bom
papo, para não fazermos nada, para mostrar trabalhos,
fotografias, textos, coisas sem sentido porque me torno
muito mais poética. Lembrava também da minha visita ao
edifício Balança mais não cai, no centro do Rio de Janeiro.
Muitas pessoas não conhecem, mas eu tive esse privilegio e
lanço um desafio: algum de vocês que me leem já:

Tomou café da manhã com frutas por lá?


Viu uma seleção única de fotos?
Ouviu Luiz Carlos da Vila, Paula Lima, Wilson das Neves e
Dois no Samba?
Compartilhou com um fotógrafo a sua janela com todas as suas
histórias singulares?
Teve uma intimidade nunca dantes imaginada?
Tomou água no gargalo da garrafa pet de dois litros de coca-
cola, durante a madrugada?
Fez amor por lá? (na verdade queria dizer transou, mas o
parceiro não transa, faz amor)
Leu e usufruiu poemas precisos e preciosos?
Fez massagem nos pés de alguém de lá?
Comeu arroz com feijão e bife?
Tomou café, depois do almoço, na xícara do Flamengo?
Ficou balançando na rede só de preguiça enquanto preparavam
o almoço?
Esteve na companhia de um homem digno, que sabe chorar por
amor e que de tão verdadeiro não consegue esconder esse

51
lindo sentimento. E ainda assim, você se sente respeitada
diante disso tudo?

Pois então, sou privilegiada. Vivi todos esses momentos


e tantos outros por lá. Ah! Ia me esquecendo também fiz xixi
por lá.

Vivo um sonho e nesse sonho ninguém dorme no Planalto


Central, ninguém dorme no Brasil.

Nesse sonho, a Presidente nomeia o ex-presidente como


ministro da casa civil.

Nesse sonho, o ex-presidente nomeado tem seu telefone


grampeado e escuta-se as conversas que teve com: o ainda
ministro da mesma pasta que ocupará, com a própria
Presidente, com o prefeito da cidade do Rio de Janeiro,
conversas onde palavrões são vírgulas e pontos.
Nesse sonho, a corrupção anda solta, delações são
investigadas.

Nesse sonho, as disputas são postas sobre a mesa. Ainda


nesse sonho, amanhã, às pressas e sem a sua presença, o novo
ministro tomará posse, a caça a Presidente começará.
Nesse sonho, a Presidente cairá, o vice renunciará, o
presidente da câmara não ficará e quem tomará posse? O novo
ministro da casa civil.

Nesse sonho, onde as disputas estão dadas e garantidas quem


sairá ganhando não sou eu e nem você, quem sairá ganhando,
de forma triunfal, será o CAPITAL.
Quero acordar desse sonho, acho que vou pedir ajuda à
Makandal, porque o meu Reino não é desse mundo.

52
A mágica das bochechas

Hoje, dia 17 de novembro de 2018, fiz a barba de um


home pela primeira vez, meu pai. O banho, no leito 1 da
enfermaria 315 foi testemunha desse momento mágico. A espuma
de barbear espalhada pela face e a lâmina, desvendando os
caminhos de um rosto, nada cansado, mas nesse momento
concentrado no caminho que a lâmina abria. Acho que papai
estava um pouco tenso com toda a situação, porque eu nunca
tinha feito aquilo antes, talvez temesse que eu o cortasse.
Os movimentos seguiam precisos, debaixo para cima, a
lâmina tirava do caminho a espuma que teimava em ficar, mas
sem a força e viscosidade do início do ritual.
No momento de desvendar os sendeiros das bochechas,
papai enchia a boca de ar e elas inchavam para facilitar a
passagem da lâmina. Nesse instante uma cortina se abriu
dentro de mim e diante dos meus olhos, uma memória afetiva
que me fez revisitar um momento do passado.
Eu menina, de uns seis anos, em pé no vaso sanitário
ao lado da pia, assistindo o ritual de barbear do papai.
Um pincel com cabo de marfim (ou seria madrepérola?)
aperolado e cerdas marrons cinzentas macias que recebiam da
embalagem, como as de pastas de dentes, o creme de barbear
que junto com a água e o pincel se desfazia e virava espuma
que era distribuída, de modo uniforme pelo seu rosto. Eu
menina pensava: é mágica, um deslumbre. Posso sentir o
cheiro do creme nesse instante, enquanto escrevo essa
lembrança.
O espelho refletia olhos, nariz, bigode e boca, mas a
mágica da bochecha inflada ainda estava por vir e eu a
esperava como clímax. Cada vez que o papai conduzia a lâmina
pelos caminhos do seu rosto lindo, jovial, eu ficava mais
encantada com meu mágico de bochecha
Mergulhada no profundo de mim mesma, a enfermeira me
trouxe de volta: Sylvia, vamos mudar de lado? Preciso fazer
a higiene do outro braço. Suspirei, voltei de um passado e
percebi que o rosto do meu pai continuava com o mesmo viço
de antes, ainda que acamado, aprendendo várias coisas novas,
muitas informações para uma nova etapa da vida.
Olhei para a lateral do leito, vi minhas coisas e
pensei: preciso arrumar meu puxadinho.
53
54
Cortejo Milenar

Para todas as minhas alunas que ainda têm a capacidade de sonhar.

- Pronto, tá resolvido. Meu casamento vai ser um cortejo


milenar!
- Um que? Agora tu tá com essas paradas de milico, dos
vermes?
- Não é militar, é milenar
- De muito? Milhão?
- Isso, de muito. Desses casamentos que arrastam um
mundo de gente, igual no sambódromo em dia de carnaval,
saca?
Mahina mexe a panela com o brigadeiro que vai levar,
mais tarde, para vender na escola. Mexe com precisão e dança,
ao mesmo tempo, com o som de Djonga.
- Mana, como pode, né? Esse spotify já foi grátis,
agora tem que pagar.
- Leva lá pros caras que eles colocam de grátis pra tu.
Mas me conta essa parada de casamentos milita.... não , não,
de milhão.
- Milenar!
Um grito com um tom debochado sai do fundo da garganta
de Mahina.
Ô galera, escuta, a Mahina pirou aqui, a mana agora diz
que vai casar, sei lá com quem e que vai ser um tal cortejo
milenar. Isso, isso mesmo, eu também pensei que era militar,
mas é de milhão, de muita gente, exagerado igual a ela.
- Pô Gabriela, se liga aqui na conversa, tá falando com
quem?
- Com as manas do grupo babado treta firme, contando
dessa sua maluquice.
- Deixa ver, o que elas falaram?
- Tão me dando razão, que tu é doidinha, uma menina
maluquinha ou menino? Igual daquele livro que a gente leu
na escola
- Num ferra! Tu não leva fé que vou casar, né?
- Fé eu levo, mas como? Se nem tem namorado.
- Na mo ra daaaa! Já te falei, meu negócio é mina. De
macho quero distância. Já viu? Eles só sabem esculachar,
bater, mandar, machucar, ir embora, deixar os filhos. Vê,
eu e você, cadê nossos pais? Com um cara vou ter que cuidar
de tudo, de filho, que não quero ter; da casa, que só vou
arrumar e limpar quando quiser: de fazer comida, que até
gosto, mas faço só quando sinto vontade. Sem falar dessa
porra de futebol, um saco!
-Tu é muito chata. Pracaralhow!
- E tu não é não?

55
Manas, ela continua com a mesma doidice, a treta de
casamento, só que agora eu descobri que ser com outra mulher.
Vocês num tão entendendo, a mana pirou, parece que tá fora
de ordem, igual aos caras trincados lá do beco. Num tá
falando coisa com coisa, não. O que? Casar comigo? Nem
pensar, eu e ela somos amigas desde criança, amor de irmã.
Pô, vocês falando, fiquei pensando, será? Sei não, vocês
também entraram no embalo da doidinha aqui.
- Gabriela deixa essa conversa de zap e vem raspar a
panela, tu não gosta?
As duas se sentam juntas num sofá, no canto da sala
minúscula que mal cabe ele e o móvel com a TV. Um sofá
carcomido, coberto com uma manta que de bege já estava cinza,
não por falta de lavagem, mas porque não tinha mais um pingo
de sabão na casa, aliás esses produtos já não existiam por
aqui faz é tempo. Só se lava roupas apenas com água mesmo,
porque não se paga por ela.
- Mahina já entendi o que é milenar, agora explica essa
parada de cortejo. Não acredito! Meus créditos acabaram.
Libera a senha do wi-fi?
- Não vai dar, cortaram, minha mãe deixou de pagar faz
tempo.
- E os caras não vieram cobrar?
- Vir eles vieram, mas ela desenrolou a parada com o
D’Pedra.
- Corajosa ela. Então, roteia a tua internet?
- Nem pensar! Pode parar! Tenho pouco crédito e vou
precisar para mais tarde. Tu não para com essas conversas
nesses grupos, dá nisso, acaba tudo.
Com a panela com a raspa do brigadeiro no colo e duas
colheres na mão, Mahina encosta a cabeça no ombro da amiga
e começa.
- Cortejo é uma festa com um monte de pessoas, igual
aquelas Bateku do Belga.
- Porra! Gente pracaralhow!
- O meu cortejo milenar de casamento vai ser igual a
essa.
- Posso saber de onde vai tirar o dinheiro para tudo
isso?
- Será que se eu vender uns mil brigadeiros, vai dar?
- Sei que vai ser milenar, mas mil acho pouco, vai ter
que vendar é muito caminhão de brigadeiro e essa panela aqui
nem vai dar pra fazer tudo. Gabriela lambe a colher enquanto
faz um cafuné na cabeça de sua mana mais chegada.
- Pega a visão, viaja comigo. Vou dar um papo nos caras
do movimento pra fechar a pista.
- Como é que é? Que pista?
- A Estrada de Madureira.
- A estrada!? Tu tá piradinha mermo!
56
- Isso mesmo, vou pedir para eles colocarem as
barricadas, começando depois do batalhão dos vermes, ali
onde a gente faz os protestos quando falta luz e água. A
estrada vai ficar fechada dali até depois da UPA, uma
passarela enorme para meu cortejo passar. Porque o espaço
que a noiva tem para andar da porta da igreja até o altar
ou da porta do terreiro até o congá é muito curto e num vou
fazer um vestido só pra dar uns passinhos, né? Uma noiva tem
que aproveitar o seu dia.
- E tu vai vestida de noiva? Achava que seria de noivo,
de terno.
- Que o que! Sou mulher. Lembra das aulas da professora
Patrícia? Uma coisa é gênero e outra é a opção sexual. Nesse
caso, sou mulher e gosto de mulher e vou de noiva, eu e
minha mulher.
- Entendi.
- Vamos atravessar a passarela com nossos vestidos
dourados com uma cauda enorme e muito, muito véu.
- Dourado?
- Sim, de Oxum a Deusa da Beleza. Vai ser que nem
desfile de escola de samba, num já falei. Tem que causar,
né não?
- Quem vai ser o padre? Vai ser aquele da igreja da
Nossa Senhora da Conceição de Marapicu?
- Que padre que nada! Vai ser Pai Ivo de Carvalho, o
meu pai de santo, que não vai me cobrar nada e tem vários
casamentos nas costas, tudo lindo.
- Vai ser mesmo o grande acontecimento, do ano, do
Campo Belo
- Vou entrar desde dali do batalhão. Bem na frente,
igual as escolas, vem a comissão de frente com os moleques
do movimento tudo de fuzil atravessado no peito, fazendo a
dança do passinho, o Silvinho que vai ensaiar e comandar a
tropa. Depois, o abre alas que vai ser o carro do ovo do
seu Toninho.
- Qual?
- Aquele do sacolão que a filha estuda com a gente. O
carro dele vem anunciando o cortejo milenar ao som do funk
da Ludmila, É Hoje.
Gabriela olha para a amiga sem acreditar no que está
ouvindo, faz caras e bocas, mas Mahina com os olhos fechados,
se aconchegando mais, continua.
- Tem que ter um monte de dama de honra, tudo vestida
de vermelho bem forte, iguaizinhas, porque vermelho é a cor
da paixão.
- Quantas damas?
- Muitas, sei lá umas cinquenta, acho que tá bom.
- E você tem cinquentas amigas pra convidar?

57
- E não tenho? Ai mesmo no grupo do zap tem até mais.
E todas vão querer, não vão não? Tá bom pra tu?
- Querer, elas vão, mas e a grana pros vestidos, pros
sapatos, pra maquiagem?
- Do brigadeiro que vou vender. Aliás você bem que pode
me ajudar. Ela diz com tom muito sedutor, passando a mão nas
pernas de Gabriela.
- Tu vai conseguir só se for brigadeiro batizado. Taí
uma boa ideia, vai é vender muito!
- Veada, depois a louca sou eu, é? Mas continuando que
as imagens tão vindo na mente: comissão de frente, abre
alas, ala das damas... e logo depois eu e minha amada,
rainhas, poderosas, lindas depois daquele vermelho todo. Sem
aquelas flores na mão, não gosto. Vamos entrar juntas,
porque não atravesso avenida com homem nenhum segurando a
minha mão.
Mahina, depois que foi abusada pelo padrasto, jurou que
nunca mais queria homem na sua vida, nem filho. A mãe
acreditou, mandou o cara vazar, mas ficou uma sequela
emocional, um transtorno, porque foram muitas vezes e
durante alguns anos, sem ela poder reclamar, pois o sujeito
jurava que mataria todo mundo e esse fazia mesmo porque já
arrastava atrás de si um monte de crimes, era matador. O
cara não só forçava como amarrava a menina na cama, tão
menina, tão meiga, tão doce, dizia ele enquanto passava as
mãos por todo corpo em formação da garotinha. Ela ficava
paradinha, as lágrimas escorrendo de tanta raiva, sem fazer
um ruído porque senão levava porrada do escroto. O revolver
dele ficava ao lado, na cama mesmo, assistindo toda
atrocidade.
- Sabe de uma coisa, você está esquecendo das comidas,
do bolo para esse tanto de gente, das bebidas... Gabriela
não só dá força para a maluquice, como deixa Mahina acariciar
o seu corpo. Estava gostando da sedução, o corpo pedia mais.
Era a primeira vez que rolava esse tipo de intimidade entre
as duas.
- Já pensei, vai ser feijoada feita pelas as tias da
rua, as amigas da minha mãe e vou falar com o diretor Orlando
para emprestar o CIEP, o refeitório de lá é grande e o pátio
também, vai caber todo mundo. Só não vai ter cachaça porque
num gosto.
- Ih! Então esquece esse cortejo porque não vai ninguém,
até parece que não conhece a tropa.
- Então vou deixar, né? O pátio da escola vai estar
todo enfeitado de unicórnio, flamingo, cactos, todas essas
coisas que estão na moda e ficam mais fácil de achar no
calçadão. Sem contar que unicórnio tem tudo a ver comigo.
- Como assim, nem sabia que tu gostava disso?

58
- Gosto, por causa da parada de ser gay, assim como
gosto daquela bandeira toda colorida.
- A tá, mas você está esquecendo das lembrancinhas?
- Que nada, já pensei. Copo de plástico com o nome das
noivas e a data, tudo dourado. E no final, vem a bateria
dos amigos do Bloco Unidos do Conjunto da Marinha com todos
aqueles instrumentos brilhantes.
- Mas eles não são nem dez, vai ficar feião veada.
- Vai nada, eles combinam com os amigos dos outros
bairros de perto, quem não vai querer vir numa festa 0800,
com tudo regado? E num lugar onde nada acontece? Ainda vão
tirar a barriga da miséria.
A raspa do brigadeiro chegou ao final, a panela ficou
limpinha, nem parecia que tinha sido usada. Gabriela se
deita no colo da amiga que a recebe de imediato e com vontade
de querer muito mais do seu corpo.
- Agora, Gabriela, para tudo isso acontecer falta o
principal.
- O que? Já não tem tudo?
- Outra noiva, né sua burra? Tu não quer ser minha
mulher, não?
- Mahina, tu tá na paz, tu tá feliz, né?
- Sei lá, talvez.
- Bora então, temos que vender muito brigadeiro, mas
vou logo avisando só vendo o batizado.

59
COVID 19 in vitro
Para meu filho Lucas Arcuri.

A mãe professora já não conseguia segurar o rojão não.


Os filhos, Alquim, o mais velho e Gel o mais novo, não davam
ouvidos para o que a mãe pedia.

- Meninos! Pelo amor de Deus! Sentem o rabo na cadeira


e façam os exercícios que estão nas folhas.

Sylvia, era professora de matemática da rede estadual


de ensino, fez uma bateria de exercícios para as crias, só
esqueceu que os filhos ainda estavam cursando o ensino
fundamental e ela lecionava para os meninos e meninas do
ensino médio. Os exercícios eram tão complicados assim como
era complicada a quarentena que estavam vivendo há nove dias
por causa da pandemia que assolava o mundo.

- Mas mãe, como vou fazer esse dever, tá muito difícil,


eu ainda nem sei somar direito e esses exercícios estão
cheios de números e letras ao mesmo tempo cortadas por um
traço que nem é igual a uma linha?

- Gel, Gel, Gel, vai fazer e está acabado, me obedeça,


tem que estudar mesmo não tendo aula...

- Mas eu quero jogar bola. Por favorzinho!!!

- Nada de por favorzinho, não. Alquim venha ajudar o


seu irmão!

- Xhi! Agora não posso, estou tentando resolver esses


conjuntos aqui e não estou entendendo nada. Você colocou o
nome de um monte de políticos em um dos conjuntos e no outro,
uns nomes que nem nunca ouvi falar e um conjunto com o nome
do presidente.

- Nem pronuncie esse nome estou cheia desse perverso.

- O que é perverso, mãe? Levantou a cabeça e fez a


pergunta o menor.

- Ai, ai, ai, não tenho cabeça de explicar isso agora


não, preciso ir lá na casa da sua vó que insiste em ir ao
Carrefour, tenho que convencê-la que esse é o momento de
ficar em casa, Não sei que tanto essa velhinha faz no
Carrefour.

- Faz o social, ora. Alquim respondeu


despretensiosamente.

60
Deixando os filhos de lado, entrou no carro e resolveu
mudar os planos, seguiu em direção à capital, como intuito
de matar o presidente. Colocou, no som, a música do Gabriel,
o Pensador – Tô feliz matei o presidente. Gabriel cantava:

“Todo mundo bateu palma quando o corpo caiu


Eu acabava de matar o presidente do Brasil
A criminalidade toma conta da minha mente
Achei que não teria que fazê-lo novamente
Mas tenho pesadelos recorrentes, o Bolsonaro na minha
frente
E eu cantando, 'to feliz, matei o presidente
Fantasmas do passado, dos meus tempos de assassino
Quando eu matei o outro, eu era apenas um menino
Agora, palestrante, autor de livro infantil
Não fica bem matar o presidente do Brasil
Mas a vontade é grande, 'tá difícil segurar
Já sei, vamo pra DP, vou me entregar
Chama o delegado, por favor”

Um trajeto longo para pensar como concluiria o plano.


- Chego lá, peço audiência, digo que sou uma fã
apaixonada, e derrubo nele todo o vírus que vou colocar
nesses vidros de maionese. Mas como capturar o vírus? Já
sei, vou parando nos postos de gasolina e solicito que cada
frentista de uma tossidinha dentro do vidro. Vou recolhendo
do Rio a Brasília, tosses e espirros que serão capturados e
soltos na cara do infeliz. Afinal, são 1.202 Km com muitos
postos e muita gente.

Sylvia conseguiu encher mais de cinco vidros com o


vírus e sabem por quê? Ninguém estava dentro de casa, muita
gente na estrada, uns passeando e outros fugindo do fim do
mundo. Ela não recebeu um não sequer, todos foram solícitos
e nem perguntavam para que estava fazendo aquilo. Só uma
senhora ousou perguntar. Margarida era o seu nome.

- Minha filha, por que está fazendo isso?

Sylvia contou o seu plano achando que a senhora ia


taxá-la como a louca da estrada que queria matar o
presidente, mas qual não foi sua surpresa. Margarida não só
acreditou como quis tossir e espirrar várias vezes, e ainda
fez mais, cuspiu em um plástico e disse que ela passasse a
matéria disposta na lapela do terno ou na gola da camisa
do sujeito.

- Só não te acompanho porque os meus amigos estão


montando um bingo clandestino para o período de quarentena

61
e eu prometi que ia fazer parte. Afinal temos que passar o
tempo. Disse e despediu-se de Sylvia com dois beijos e muitos
abraços.

- Afinal, como você vai chegar pertinho dele, vale a


pena nos tocarmos. Não tome banho, para ser mais eficaz o
seu plano.

Durante a viagem, pensava e pensava, imaginava o filme


que poderia sair no Linha Direta uma professora, respeitada
pelos alunos, uma mulher acima de qualquer suspeita, mas
atrás dessa cara de boa moça, tem uma assassina fria e cruel
que matou o presidente da república. Vamos conhecer agora a
história dela: Sylvia a matadora de Bolsonaro.
Pensou em desistir pelos filhos, pela mãe e pelos
alunos, pelos amigos, pelos amantes, pela possibilidade de
contaminar-se também, mas a vontade de levar o seu plano
adiante era maior, aquele ser era abominável e alguém tinha
que tirá-lo de cena.

Depois de rodar 15h e 23 min, sem dar uma piscadelaa


no volante, Sylvia chegou ao seu destino e conseguiu estar
ao lado do presidente, nem mesmo pediu a audiência, fez coro
com os manifestantes que estavam em frente ao palácio, no
dia 15 de março. Assim foi, o presidente chegou tão perto
que pegou o celular dela para fazer as selfies, enquanto ele
fotografava, Sylvia abria cada frasco e soprava na direção
daquele ser pálido e sem vida. Quando o celular chegou as
suas mãos, ela se agarrou no pescoço dele e tascou o plástico
com o cuspi da Margarida, dizendo baixinho, esse beijo é de
parte de todos os professores, profissionais de saúde,
bombeiros e mães dessa nação que tem um presidente sem noção.
Ele, o presidente, nem ouviu muito o que ela dizia, porque
o burburinho era pesado.

Fez o trajeto de volta aliviada, escutando a música que


tinha elegido como trilha sonora para sua façanha. Cantava
Gabriel:

“Áudio e vídeo divulgados, crime escancarado


Mas nem é julgado
Já tinha comprado vários deputados
Fora o foro privilegiado
Então mata o desgraçado
Na comemoração tem a decapitação
Cabeça vira bola e a pelada vai rolar (chuta!)
Corta a cabeça dele sem perdão
Que essa cabeça rolando vale mais do que o Neymar
(É Pensador, é Pensador, é Gabriel O Pensador
Fácil, um tiro só, bem no olho do safado

62
E não me arrependo nem um pouco do que eu fiz
Tomei uma providência que me fez muito feliz
(Hoje eu 'to feliz, hoje eu 'to feliz
Hoje eu 'to feliz, matei o presidente
Hoje eu 'to feliz, matei o presidente
Matei o presidente, matei o presidente)”

Já em casa, Auquim e Gel nem tinham dado conta da


ausência da mãe, pois estavam entretidos com os jogos de
vídeo game. Tirou toda aquela roupa no quintal, ateou fogo
e entrou nua para o banho quente e reparador. Nem quis comer
nada. Antes de ir para cama gritou:

- Alquim! Gel! Tem comida no fogão e podem comer todo


o sorvete que está no congelador e não precisam mais fazer
os deveres porque hoje to muito feliz, a mamãe aqui matou o
presidente.

63
MICRORRELATOS
como poemas

Iguaria
64
Short desfiado
Um top
Vermelho batom na boca
Altos saltos para subir na vida
Cabelo bem preso
Pendurado com o rabo de cavalo
Rosto à mostra
Calado

Ali, na porta da rua


Vitrine
Exposta como mercadoria

Não sabia o que era


Cafetão
Pedofilia
Muito menos putaria
Ou rebeldia

Estava à revelia
Alguém a compraria?

Precisava comer
O corpo pedia

O pai que esmurrava


Surrava
Batia
E como doía
A mãe que dormia
Ao lado
De mais uma cria

A fome ardia
Quando terminaria?

Corpo tremia
Estômago corroía
Espírito entristecia

Pura judiaria
A inocência vendida
Como iguaria

A era do espetáculo VirtuaReal


65
No outro lado do mundo,
direto das páginas da vida,
em tempo real:

Diplomata russo discursa em museu,


homem entre e atira sem falha
pow, pow, pow...

Em nome de Alá?
Sei lá.

A cidade de Aleppo
tomada,
retoma,
destruída,
desconsolada,
evacuada,
desgovernada,
nada ensolarada.
400 mil pessoas
MORTAS
O
R
T
A
S
pow, pow, pow...

Em nome de Jihad?
Entender, será que dá?
Sei lá.

Soldados turcos
queimados vivos.
Estado Islâmico assume
o fato, de fato.

EI – Extremistas!
Islamitas

Em nome de Alá?
Sei lá.

Caminhão invade,
mata 12
feira natalina na Alemanha.
Papai Noel, o bom velhinho
Entregou um presente sinistro para Deus
66
Matou 39 no ataque à Reina.

EI – Extremistas!
Islamitas

Em nome de Alá, Jihad?


Sei lá.

Aqui, nesse lado, direto das páginas dos sem vida.

Morte aos pobres,


impeachment,
lava-jato,
bandido bom é bandido morto,
pagamento parcelado,
PEC 55 aprovada,
reforma trabalhista,
povo apavorado,
um calor de matar,
favelas em pânico diário,
estupro com 33 homens sem perdão,
exploração,
educação á deriva
massacre e assassinato no metrô de São Paulo
indefeso,
agressor diz que não é uma pessoa má
e se fosse?

Em nome do capital?

EI – Extremistas!
Individualistas

Aqui nem existe Alá?


Será?
Sei lá.

Um modo de não contar

67
Ela gritou
Disse, voltaaaaa!
Ela gritou
Disse, ficaaaaaa!

A faca tipo açougueiro


Essas com o cabo branco
Estava lá, atravessada no pescoço
Perfurou a carótida
Precisa
Passou para outro lado
Saindo na altura da nuca
Na frente só se via o cabo
O restante
Seu pescoço havia engolido
Rosto cinza, sem cor
A pele não fica branca?
A dela não
Era de um cinza encorpado
Talvez porque fosse negra
Será?
A expressão era um misto
De surpresa, dor, angustia e despedida
Os olhos estavam abertos
Sem nenhuma esperança
E ao mesmo tempo perguntavam
Por quê?
O corpo estendido na cama
Sob lençóis com estampas de felinos selvagens
Um contraste entre texturas
O cinza da sua pele
Não conseguia apagar o marrom
Que gritava da estampa
A selvageria tinha acontecido
E nenhuma onça, leoa ou pantera
Saíra daquele mundo ficcional
Para ajudá-la
Nenhuma delas ouvira seus gritos
Perturbados, alucinados
No meio da noite

Não, por favor! Não quero!


Caladinha
Por que tanta violência?
Não puxa mais meus cabelos
Por favor!
Olha só que você fez!

Na mão dele um tufo de cabelo


68
Quieta vadia!

Sangue escorrendo pelo nariz


Tamanho foi o soco bem dado
O oco e o eco do soco entraram
Atropelando sua anima

Agressão e mais violência


Tentando catar as roupas que ele rasgara
E jogara pelo caminho da sala até o quarto
Tentando estancar o sangue que jorrava
Não suportou

Mais um golpe no ventre


Outro no olho
Uma pisada pesada na altura da vagina
Sem entender mais nada
Só conseguia visualizar um vulto
Que se aproximava com a faca na mão
Levantou as mãos tremulas até o rosto
Elevou-as como proteção e em oração
Já não via mais nada
Sentia mais nada
Não tinha forças
A faca atravessou a garganta
Silenciou sua voz
Sua vontade
Alguns desejos
Voz sem vez
Medrosa
Intranquila
Desfalecia
Um fio de sangue quente
Se misturava ao cenário selvagem do lençol

Ainda na presença
Do seu corpo estuprado
Mutilado, ensanguentado
Currado
Morto

Ela gritou
Disse, paraaaaa!

E a cumplicidade das fêmeas feras


Do lençol da cama
Não sabiam o que era

69
Flores do quintal

Rua C
70
Hoje Chapadinha
3º andar
Caiu
Piscolha caiu!
Saltou pela janela
Morre?
Nada
Onze tiros no Bolão
E o cara não morreu?
Nada
Tem pacto com Ogum
Corpo pra lá de fechado

Tiro, tiro
Muito tiro

A benção meu padrinho!


Deus te abençoe meu filho

Tiro, tiro
Muito tiro

Doquinha, Galdino, Anderson


Piscolha, Déa, Sílvia,
Marcelo, Rogério, Bolão

Tiro, tiro
Muito tiro

Retirem as flores
Dos buracos das paredes
Coloquem nos caixões

Tiro, tiro
Muito Tiro

Rua C
Chapadinha
A infância
No quintal do Alemão.

Exibem poemas

71
Exibem
A pele como camiseta
Nas mãos, de cada um,
Três limões murchos
Que,
Depois do breve espetáculo,
Não dariam uma limonada.

Ágeis
Corpos esquálidos.
Um trepa no ombro do outro.
Começam.
Trocam limões
Que
Descem, sobem,
Dançam.
Tentam cair,
Escondem-se,
Equilibram-se
Por entre mãos magras,
Seguras do ato

Mágica.

Com a mesma rapidez da subida,


Escorrega pelas costas do parceiro
Agarradinho,
Agradecendo o momento,

Deslizam entre os carros,


Recolhem moedas.

Na parte da frente da camiseta


Cor da pele transparente,
Quase apagados,
Uns escritos com liquid paper
Ou seria com pasta de dentes?

Deus é fiel.
Jesus te ama.

Como assim?
Ela se pergunta
Do outro lado da cena
Na ausência presente do momento

Cachê recolhido.
Nesse dia
O produto vendido:
72
Arte.
Malabarismo com limões murchos
E com a vida.

Desmanche

era tão franzino e pequeno

73
tão franzino
pequeno, que
só conseguia
desparafusar
as peças dos
carros, que
chegavam
para o
desman
che

quanto
ganhava?
uma boia
pra lá
de fria
ovo
arroz
feijão
farinha
um
peda
cinho
de goia
bada

só comia
o doce
levava
a fria
boia
e a
dividia
com
os seus
quatro
mais
chega
dos
tão
fran
zi
nos
e
p
e
q
u
e
n
o
s

Todos os tons de Antônios: Jobim e Marco Antônio Belquior

O seu tom introdutório Era esse:


74
Águas de Março e de Beber, e escreve sem o menor tom
a Insensatez dela ao dizer maior
que o amava as notas musicais
no momento de dizer que saltavam aos
não. borbotões,
Que não queria mais vê-lo sem nem pedir licença.
por amar e respeitar os Saiam das suas entranhas,
dois. do seu sangue, dos seus
poros de músico
No dia 8 de dezembro de como o esperma do sexo.
1994,
no rádio, a notícia: Pensou num título:
faleceu Tom Jobim em Nova Sem tom.
York.
Aquela simplicidade No dia do ensaio
complexa. Cadê a introdução?
Seu corpo será velado no Não havia.
Jardim Botânico Ou melhor, estava guardada
e será enterrado no São na dimensão paralela
João Baptista. dos outros músicos,
nas pautas do Tom.
A música brota do seu ser
inquieto A Insensatez da
e perturbado pela notícia, Garota de Ipanema
no caminho entre a vigiava você beber das
Figueiredo Magalhães Águas de Março
e o Bairro Peixoto, num tom sem Tom,
junto com a possibilidade Perfeito.
de fugir as notas da Completo.
pauta, Manuscrito.
você para num bar, Nascido de muitos
pede guardanapo Tons.

75
Embolamos-nos

Nus

Dentro de um turbilhão de afetos

Guardados

Na verdade

Escondidos

Adormecidos

Nunca esquecidos

Dentro da energia

De nossos

Nus

Completos

O caô chamado PALAVRA

76
Palavra que não cabe no pensamento
Nem na folha de papel

Palavra falada, sonhada, interpretada, imaginada,


indignada

Palavra do tamanho do universo


Que alcança o infinito

Palavra diminuta
Como cárie no dente

Palavra Texto
Palavra Filme
Palavra Pintura
Palavra Dança
Palavra Música
Palavra Criança
Palavra Dicionário

Palavra que pá!


Lavra as frases, as formas e os discursos

Palavra que vra!


Livra e se torna palavrão

Palavra que fica na gente dando uma pala, uma pinta, um


choque
Palavra potente no mundo da criança
Que interpreta, descobre, brinca e domina
O verbo como pura adrenalina
E alça o sonho da Palavra que vira

A
R
V
A
L
A
P

77
Golpeiam-nos
Socos,
Pontapés,
Murros,
Sopapos,
Solavancos,
Tapas na cara com as mãos abertas,
Sem misericórdia.
É tempo de temer o Temer?
Tremularemos,
Reformularemos,
Pois quem temer o Temer
Desconhece as lutas
Nas paisagens residuais
Das quebradas dos golpes reais.
É tempo de temer o Temer?
Golpe baixo desferido nas entranhas,
No pensamento,
Na mirada sem horizonte,
Na falta de sentido.
É tempo de temer o Temer
Encará-lo de frente e gritar
Sem temer
Basta!

78
Talvez um sonho

Nerita Goulart de Cavalho


Sylvia Helena Arcuri

Uma cigana
Leu a sua mão
Aconselhou-lhe
A deixar o Rio
Para passar
Os fins de semana
Em algumas
Praias bacanas

Diego morreu
Mataram Diego
Paulada, uma
Pauladas, duas, três...
Pauladas, um monte

Diego
Nortista, negro
Humano, gay
Ser
De leviano, nada
Sem calça
Na beira da
Baía de Guanabara
Encontraram seu corpo
Inerte
Rígido
Marcado
A cabeleira
Insiste em dizer
Não deixa dúvidas
Era ele

Diego

Mataram
Morreu
No fundão da ilha
Perto do alojamento estudantil
Lutou
Enfrentou

79
Preconceito
Discriminação

As marcas não enganam


Mataram Diego
Vejam as câmeras!
Procurem pelo campus

Diego morreu
Ninguém nem viu
Nem mesmo o seu algoz furioso
Perdeu a vida
Mas sabe que:

As águas das praias


Que não visitou
São claras
E o vento
Não para de soprar
Pra alguém
Apanhar sereia
Não é preciso
Anzol nem samburá

Diego virou boto rosa


Nas águas de Mamãe Iemanjá.

80
Também pudesse dizer que…

…faz muito pouco tempo


que me divorciei de mim mesma
do meu passado
do meu futuro
das minhas gavetas e espelhos
dos meus saltos altos
das minhas cintas
da minha não maquiagem
sempre presente
na cara alheia

81
Tecido da alma

Um homem cata fragmentos de retalhos de sua vida e os


molda em uma singela colcha.
Um homem transpira sinceridade, carinho e poesia.
Recolhe cada gota e as deixa cair sobre cada fragmento que
tece a singela colcha.
Um homem respira com calma, acolhe seu alento, os seus
desejos, as suas vivências e os transfere para cada
fragmento que tece a singela colcha.
Um homem acorda para o mundo e percebe que a sua singela
colcha feita de vários fragmentos já tinha sido tecida há
muito tempo com toda sinceridade, carinho, poesia, alento,
desejos e vivências doados pelo seu espírito.

82
Cartola de Mágico

Existem muitos textos que estão dentro de mim,


esperando o momento adequado. Daqui a pouco, quando chegar
o ponto certo da fervura, eles sairão, borbulharão, um a um,
assim como saem coisas das cartolas dos mágicos.
Tenho características fortes das filhas de Iemanjá,
gosto de cuidar, sou generosa, mas tenho umas contas, na
ponta que fecha a minha guia de confirmação, que são de
Iansã, dela emana toda minha intensidade de brigar pelo que
acho que é possível. Fazer aula é possível, pessoas e amores
também, mas os textos são mais do que possíveis, basta
acordá-los.

83
Missa de 7º dia

Ele apareceu na Missa de 7º dia do Santos com um ar


sombrio.
Portava um livro muito sugestivo, cujo título era:
“Manual de Vampirismo”.
O Santos fora assassinado e seu assassino não deixara
nenhuma pista.

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Obra de Picasso

- Sabe o que gosto mais numa mulher? Pergunta empolgado.


- Não, não faço a mínima ideia, vocês homens são sempre
tão surpreendentes. Responde incrédula e irônica.
- Adoro a mulher com o seu cheiro normal, entende? Faz
tal comentário e a olha com um ar assim, de bom entendedor.
- Não, não entendo, como assim? Explica. Ela pede,
agora, com um ar de quem não está entendo lhufas.
- Falando claramente, gosto de mulheres com as xanas
com cheiro delas mesmas, não gosto de xana perfumada. E
explica com todos os detalhes.
- Mas uma xana perfumada é muito bom, você não acha
mesmo? Retruca com um ar de deboche, dessa vez olhando
diretamente nos olhos dele.
- Se eu gostasse de xanas perfumadas transaria com um
sabonete e não com uma mulher. Responde infame.
Fica ali parada, pensando em todos os sabonetes íntimos
que têm e conclui que não jogará nenhum deles fora. Quem
será descartado e riscado do seu caderninho será ele. Infame
total.

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Putz! Palavras que gosto

Perplexidade Xangô Luciérnaga Carinho Seios Plenitude


Grisalho Tempo Viável Gente Escandaloso Piru Consciência
Umbanda Universo Pessoas Iemanjá Paparico Luz Verdade
Espírito Vento Zambi Boca Sensualidade Vida Paz Manojo
Singelo Caracol Sorriso Ideias Boquete Palavras Criatividade
Orixá Sol Gesto Música Café Paixão Harmonia Razão Labirinto
Poesia Diversidade Saída Tranquilidade Fé

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AMOR com COR

Tadeu de Freitas inspirou este texto

Às vezes, pensamos que a pobreza é apenas fome, nudez e


desabrigo.
A pobreza de não ser desejado, não ser amado e não ser
cuidado é a maior pobreza.
É preciso começar em nossos lares o remédio para esse tipo
de pobreza.
Madre Tereza de Calcutá,
depois dessas máximas, só posso confessar que:

Amo

o meu eterno amor


os meus filhos
a minha família
os meus amigos
os meus animais

Amo

Mas ainda sou imperfeita e fico devendo o amor à humanidade


como fez Madre Tereza.

87
pOrnOgrÁfIcA

Você bem que podia vir


me comer
Arreganhar meu sexo
Acariciar meu grelo
e me dizer
pUtA
Você bem que podia vir
me meter
Cuspir no meu sexo
Enfiar o dedo
e me dizer
vAdIA
Você bem que podia vir
me tragar
Pinçar meu grandes lábios
Surrar meu pontoG
e me dizer
vAgAbUndA

***

88
Pessoas e objetos do passado me fazem existir no presente.
Quando e onde reviro o meu passado.

Sou
Sempre fui
Uma mulher
Feliz
Hoje
A felicidade
É muito maior
Beira ao estágio
Que a ultrapassa
Reencontrei
As palavras
Do poeta.

“O pintinho que nasceu quadrado” e outras histórias

A rede é muito boa para reencontrarmos pessoas, basta que

89
saibamos os seus nomes completos. Venho procurando há anos
um amigo – MUITO QUERIDO – que me embriagou com o seu
perfume, a primeira vez que o vi, no auditório da
Universidade Gama Filho, em um festival de poesias. Toda
vez que sinto o cheiro desse perfume – Sândalo - me embriago
e volto para a mesma cena do passado. Memória olfativa.
Naquele mesmo dia, ainda com a ressaca do seu perfume,
escrevi um poema para ele que dizia assim:

Saboressência

Você chegou, incomodou


Saber mais de você
me interessa
Tesão. Vontade. Agora.
Já.
Para o tempo impossível
Todos os dias dão quatro horas
Tesão. Gozo, Desgozo.
Racionalização nenhuma.
Emoção o bastante,
Pra querer um instanteS
Com você.

Sylvia Helena
02.12.83

27 anos depois desse poema, o reencontro e ele me escreve


esse lindo poema. Apresento a todos meus amigos queridos o
poeta Tadeu de Freitas.

Amigos queridos
jamais,
jamais vão embora de nossas vidas;
as almas não deixam;
os santos não deixam;
jamais se ausentam ou se escondem…
nem o tempo,
nem a força do mar
e tão pouco a tristeza como as lágrimas,
jamais, não nunca…
Amigos Queridos não se mudam,
se mudam,
não ficam mudos nesta vida de alegria e carinho;
nunca se esquecem,
sempre um poema novo,
um ar rarefeito na beira do cais!!!!!

90
Amigos Queridos são queridos para sempre….
beijos… mesmo muito, muito, eternos distantes deles!!!!!!!
Um dia eles vão se reencontrar!!!!
Te amo!!!!!

tadeudefreitas
05.11.2010

Caminhada

91
Meu caminho e descobertas espirituais são feitos junto com
as pessoas.
Não preciso de retiro, preciso de gente para aprender.
Caminhar e me identificar como ser espiritual completo, ou
quase, dentro desse mundo está na alma e no olhar do
semelhante.
A caminhada é coletiva e não solitária
Caminho e aprendo muito no Huasipichay das casas alheias
Que nem dá vontade de ir embora.

Pegando carona

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Saudade é ausência mais amor. (Wallace Lopez)

Ausência
Bate desesperada na porta da frente
Quando não liga, sem parar, pedindo companhia
A encaro com olhar fixo
Não penso em nada e
Nem me atrevo
Abro a porta, depois de olhar pelo olho mágico
Vejo as chamadas perdidas e ligo de volta
Mas continua sendo ausência…
O amor não bate a porta
E nem liga insistentemente
Penso e questiono
Chego à conclusão
Que ele está dentro de mim
É parte inerente
De qualquer ser
Que sente
Saudade

Iansã – Senhora dos ventos

93
Hoje é dia de Bárbara
Iansã
Que luta,
Que varre as injustiças,
Que liberta e diz para todas as mulheres:
Nosso corpos, nossas regras!
Não tenham medo de dizer não.
Pois, o nossos corpos nos pertence.
Liberdade e Justiça são seus lemas.
Liberdade de dizer, de ser, de expressar-se no mundo,
Justiça para com todos, com igualdade e fraternidade.
Iansã
Guerreira, feminina e feminista.

"Ela é moça linda


Sua estrela é luminosa
Com sua coroa e seu buquê de rosas"

Iansã
É vento que está em todos os cantos,
Em todas as tendas, terreiros e barracões.
Em todas as cidades, favelas e guetos.
Na raiz do bambuzal deixei oferenda para Iansã.
Para que com sua força, vento, raio e tempestade
Varra todas as mazelas do mundo.

"Ê Parrei Oya!


Dona dos ventos
Mensageira de Oxalá
Ê Parrei Bela Oya!"

94
As roupas quaradas
Um jorro de água
Sobre os lençóis brancos
Lavados pelas mãos pretas de vovós

Vovó Benedita
Maria Coonga
Catarina
Do Patuá
Nerita
Cotinha

Tantas vovós
Quarando lençóis
Das tristezas vividas
De um bucho cheio de criança
Aos 15 anos, sem esperança
De ser só sua
Mas os lençóis estão alí
Esperam ser recolhidos
Lidos como vida
Como lida

95
Quando eu era criança
Só queria tomar injeção
Com minha vó Lilita
Porque não doía
E depois tinha o afago

Minha vó só queria
Tomar injeção com meu pai
Porque não doía
E depois tinha a bênção

Os dois tinham mão “pra coisa”

Injeções
Afagos
Bênçãos

96
Sempre tive o hábito
De sentar no colo do papai
Era um colo de pernas firmes
Esse era o momento de mostrar
Que aquele pai
Era meu
Especial
Cúmplice
Jovial

Na troca de confidências
Não ditas

Nunca imaginei
Que o colo do meu pai faltasse

A cumplicidade
A jovialidade
Agora estavam ali
Deitadas
No leito de um hospital

Ainda assim...
Em todas as visitas diárias
Queria mostrar para todos
Que ele era meu

Pai
Cúmplice
Eterno

A bênção
Nós nos amamos.

97
80 tiros nem no bandido

Para que calar?


Se posso chorar

Para que olhar?


Se posso chorar

Para que ouvir?


Se posso chorar

Para que abordar?


Se quem está lá
É negro e não importa

Só me resta chorar
Gritar
Implorar

Parem de matar!

98
Um soco no fragmento, na segregação
Para todas as crianças do CIEP 354 - Martins Pena

Na unidade que está a força da luta, sem tem que matar


a poesis feminina, sem paralisar diante da bala de fuzil que
atravessa o quadro branco da sala de aula, rasgando a
palavra, perfurando o pensamento. Sem calar as vozes das
crianças mudas, telepáticas, rotas, alteradas, inexatas,
porque precisam só serem vistas, visitadas de carinho e
encantadas com abraços e afagos. Mesmo sem perfume, sem
sala, sem raça, sem nada.

Não nos esqueçamos de romper a bola radioativa,


estupida, invalida, inerte, hereditária na qual estamos
inseridos e pensamos que estamos protegidos. Quebremos a
bola do nosso silêncio e lancemos, ao mar interno, barcos
que levarão ao uno, ao outro, ao cerne do ser mais profundo
de todo mundo.

Alteridade sem autoridade, mas com autoria conjunta.

Vamos juntar pra Saravá

Salve as crianças!

99
Todas as vezes que chupo laranja lembro do meu avô
Balduino. Ele gostava de duas espécies da fruta, seleta e
bahia, o vendedor de laranjas cruzava as ruas do I.A.P.I de
Del Castilho gritando para que todos descessem e comprassem
e vovô comprava dúzias delas. Eu gostava da bahia porque,
na bundinha, tinha outra laranjinha que dizíamos que eram
os filhinhos da laranja. Balduino tinha uma faca específica
para descascar a fruta, cujo o cabo ele mesmo confeccionara.
Sim, meu avô fazia os cabos de todas as suas ferramentas,
ele era marceneiro. Não só fez os cabos como desenhou e
construiu alguns dos nossos móveis, um beliche bicama (para
cabermos nós três, eu e meus dois irmãos), uma sapateira
incrível e um móvel onde ficava o nosso telefone. Todos
úteis, resistentes e sob medida. Além dessa habilidade, ele
era hitech, nos anos onde a tecnologia ainda era precária,
sempre tinha uma lanterna que nos salvava durante as nossas
viagens, de ficarmos no escuro. Já bem idoso, ele queria
surfar e saltar de asa delta, mas na época não existia esses
voos duplos que têm hoje, uma pena! Mas para diminuir a
vontade, ele ia até onde acontecia o surfe e o voo e pedia
para tirarmos a foto com ele ao lado de quem fazia. Nós o
apelidamos, carinhosamente de Vovô Camarada e o papai fez
uma música e tudo para ele e ensaiamos e cantamos no seu
aniversário de 80 anos. É assim:

O vovô é um velhinho camarada


Camarada
Camarada
E olha aí
Ele sabe tudo
Ele sabe muito mais
Onde ele chega
Ele transmite muita paz
O vovô é nosso amigo
O vovô é nosso irmão
Esse velhinho mora no meu coração
Sabem por que ele é assim?
Porque gosto dele
Ele gosta de mim.

Ele era mesmo um velhinho camarada e quando descava


laranjas não perdia o fio, a casca saia inteira, parecia uma
cobrinha. E lá íamos nós brincar com aquele fio de casca
rodando no ar e fazendo um monte de cantoria. Como é bom ter
avô. Eu tive o meu por muitos anos.

100
O planeta reclama,
Mas é
Lixo, lixo, lixo

O continente reclama,
Mas é
Lixo, lixo, lixo

O país reclama,
Mas é
Lixo, lixo, lixo

A cidade e o bairro reclamam,


Mas é
Lixo, lixo, lixo

A rua e as casas reclamam,


Mas é
Lixo, lixo, lixo

O ser humano reclama,


Mas ele é o lixo

101
28 de março de 2020
Segundo o Coronavirus COVID 19 Global Cases
Existem
618.043
Contaminados
135.736
Recuperados
28.823
Mortos
E um messias dizendo
Não passa de exagero, histeria
Como assim?
Mundial?

Pedimos a quem ou a que?


Ao universo?
Aos Santos?
Ás Entidades
Aos Orixás
A Deus?
Às Deusas
Zambi?
Alá?
Jeová?

O mundo parou
Diante de uma potência
MINÚSCULA
Que de tão
MAIÚSCULA
Fez pensar
Em que?
Vida?
Morte?
Fé?
Esperança?
Incerteza?
Alegria?
Tristeza?
Natureza?
Velhos?
Crianças?
Jovens?

Palavras de pauta
Altruísmo
Caridade
Reconstrução
Renovação
Regeneração
Resiliência
Chegará o momento
De organizar
De recosturar
Todos os retalhos
Costurar um no outro

102
Fazendo uma grande
colcha universal
de sentimentos
e ações mundiais.
Tudo isso será emendado
Por uma só linha
AMOR

10 de maio de 2020
Existem
4.101.482
Contaminados
Milhões
Recuperados
281.700
Mortos
E daí? Ironiza o messias
Vamos fazer um churrasco?
E ainda assim,
Cariocas andam
Pelas ruas
Como se nada
Esqueci
“Cariocas
Não gostam de sinal fechado”
E muitos ainda amam

103
BOBAGENS

104
é brasileira a nossa bandeira?

representante da nossa nacionalidade.


nacionalidade? nacional idade.
sempre está sendo usada,
mas será que é usada?
suas cores simbolizavam alguma coisa:

o seu verde simbolizava as matas,


que hoje não existem mais.
são apenas mangueirais ou matagais,
nos fundos dos quintais.

o seu amarelo simbolizava as riquezas,


que hoje não são tão naturais.
não são mais do seu povo.
são de outros. estrangeiros reais.

o seu azul simbolizava o céu,


que hoje está coberto por um véu.
um véu negro de ar poluído,
que nós deixamos ao léu.

ordem? já não existe.


ou melhor, será que já existiu?
progresso? só quando enche os bolsos
dos que tem poder.
porque o povo está mal, que nem dá
pra se ver e nem tem pra comer.

aure verde pendão da “minha terra deles”


que a brisa do Brasil beijou e balançou.
suas cores deveriam de ser a deles.
daqueles que estão no poder.

105
Papais

Vocês se lembram?
Existia aquele programa humorístico que um dos personagens
usava um bordão que dizia:
Tem pai que é cego!?
Pois é,
Tem pai
que é mãe,
que é filho
é filho do filho,
que é avô camarada,
que é amigo,
companheiro,
tio jovem, ou velho.
Uns são empresários,
outros taxistas,
professores,
médicos,
engenheiros,
E por ai vai…
Mas todos são filhos de uma mãe
e tiveram seus filhos com uma mãe.
Existem pais por opção.
Pais diferentes.
Pais brancos,
negros,
índios…
Alguns são ricos,
outros pobres
(entendam o conceito, esses conceitos, como quiserem).
Pais cantores,
artistas.
Muitos são emprestados,
outros esqueceram dos filhos.
Agora vou falar sobre o meu,
que sempre esteve, está e estará presente
Pai que afaga,
que compartilha o copo de whisk,
que viaja para outros mundos,
que não tem preconceito,
não julga.
Pai no Santo.
Esse é o meu pai,
que é pai de todos.
Nosso.
Que não fura bolo
e nem mata piolho,
mas que sabe fazer miojo.
106
E aquele pai que era cego no programa humorístico apenas
aceitava a opção sexual do filho sem nenhum julgamento.

107
“Guagua de pan” y “colada morada” para nossos defuntos

Vivi cinco anos em Quito, Equador e presenciei essa tradição


de levar a comida para os mortos e conversar com eles,
contando toda novidade dos familiares naquele ano. Uma
tradição muito interessante que continua nas casas momento
em que comemos “guagua de pan” e tomamos “colada morada” Uma
delícia!

O Dia dos Mortos ou Finados é um dia de fato, cheiro de fé


e rituais dentro da cultura equatoriana. Cada dois de
novembro, milhares de famílias visitam os cemitérios, levam
flores, orações e desfrutam do sabor da tradicional “colada
morada” e “guagas de pan” na companhia dos seus queridos
parentes e recordados mortos.

No norte do país, especialmente na província de Imbabura,


na cidade de Otavalo, famílias inteiras de indígenas
vestidas com suas melhores roupas e trajes típicos visitam
os cemitérios levando flores, coroas de papel, cruzes,
bebidas e comidas, chamado “ricurishca”: panelas de
alimentos, ovos cozidos, frutas e outras iguarias. Símbolo
que expressam o sincretismo dos elementos religiosos
católicos e suas próprias tradições ancestrais, que o povo
mestiço herdou do indígena muitas vezes sem sabê-lo.

Na cosmovisão indígena, seus mortos não morrem, mas passam


para outra vida onde o diálogo é possível. Os ingredientes
principais para “dialogar” com seus mortos são o “champús”
e o pão amassado em casa. A preparação do “champús”, o
alimento ritual funerário dos povoados do norte, precisa de
farinha de milho, rapadura e folhas verdes de limão. Este
preparo é consumido exclusivamente em novembro e no funeral
dos adultos e é considerada como a bebida preferida dos
mortos. A tradicional “colada morada” que se consome nessa
data se originou desta receita.

108
POEMAZUL

Hoje:
Meus pensamentos
são azuis
Meu corpo
é azul.
Meus desejos,
azuis.
Meu sexo,
azul.

Quer transar
no azul
em azul
comigo?

Sem pensar muito,


qual o planeta que
é azul?
Adivinhou?

Esse estar
azul
vem de uma flor
azul
que me contaminou
com uma energia
azul.
Quem me deu essa flor
azul?
Só conto que é
uma pessoa desse planeta
azul.
Quem é?
O resto eu não conto.
O resto é azul...

109
A emoção perpassa o âmbito da razão

Não tive o privilégio de conhecer, pessoalmente, Luiz Carlos


da Vila, mas conheci sua palavra escrita, sua poesia sonora.
Vi e o ouvi cantar junto com Arlindo cruz, no Teatro Riva,
logo depois que cheguei do meu período de afastamento da
minha cidade e das minhas raízes suburbanas. Vi e o ouvi
cantar na roda de Samba do Cacique de Ramos junto com os
Partideiros. Fiquei muito mais perto de sua palavra quando
um amigo me falou dele com tamanho carinho e admiração.
Passei a gostar e a compreender cada palavra de sua poesia
musicada e diante de tal palavra, dotada de tanto
sentimento, as minhas palavras também ganharam outro
colorido. Hoje, as palavras estão tristes com sua partida,
as notas silenciaram. As palavras ficarão mais pobres de
significados sem o poeta Luiz Carlos da Vila, nas as
tamarineiras, certamente, serão guardiãs das suas doces
palavras de amor, das suas palavras que clamavam por um
mundo melhor.

110
“Vem meu anjo torto ser meu
bem em cada porto que eu
ancorar”
Lô Borges

As coisas, para mi, acontecem assim, ou seria com todo


mundo e as pessoas não contam?
Sempre amei as músicas dos mineiros, desse grupo do
Clube da esquina, faço parte de uma geração que escutou
muita música mineira. Beto Guedes com Lumiar; Milton
Nascimento com Canção da América; Toninho Horta com Manuel
o Audaz; Flávio Venturini; Wagner Tiso, todos esses cujas
músicas receberam o rótulo de: “música de acampamento”. Mas
o meu preferido sempre foi e continuará sendo, Lô Borges,
que tocou menos que os outros nas rádios.
O que quero mesmo dizer é que, quando estou apaixonada,
e esse é um período em que vivo uma louca paixão unilateral,
o que é pior, essa música parece. Hoje, ela tocou na rádio
e me fez sentir boba, fraca burra, todos os adjetivos que
me converte em um ser humano que vive o mundo do outro, que
quer conquistar o que não pode e nem deve.
Ela saiu entoada e linda, mais que nunca, na voz de Gal
Costa... “ A primeira vista a paixão não tem defesa tem que
ser um grande artista pra querer se segurar...” Sem defesa,
com a retaguarda baixa, completamente idiota, estou
apaixonada e fico com raiva, fico irritada, porque sinto e
sei que é uma rua de mão única.
Paixões deviam se converter em amor eterno, assim me
perceberia menos idiota, com mais coragem e mais sábia. E
deviam acabar sempre assim “... Vem andar comigo numa beira
de estrada nesse lado ensolarado que achei pra caminhas...”

111
De Madalena, cantada (forçada) durante a ditadura cívico-
militar, até o pedido de desculpas ao Henfil com o Bêbado e
a equilibrista.

O som que saia da janela do primeiro andar não pedia licença


e interrompia a leitura diária. A voz de Elis Regina, vinda
da vitrola da Kátia Marina, penetrava nos ouvidos, uma voz
mais que deslumbrante. Nunca tive chance de agradecê-la por
formar o meu gosto musical. Os discos que nunca pude comprar
eram os de Kátia, eles também eram meus e ela nem sabia, os
emprestava para mim mesma. Ou tinha os livros do
colégio/faculdade ou discos, a grana era curta para tudo.
Chinelos de pneu, fabricados, de modo artesanal, pelo papai,
bata hippie, calça de pijama, cabelos sem pentear (a la
carneirinho) e a voz de Elis a me dizer que amar valia a
pena desde que fosse uma entrega completa e intensa ainda
que pura.

“Eu ein Rosa!


Só vale a jura secreta que não fiz?
Mas chora tanto de prazer e agonia
Num tapete atrás da porta, reclamei baixinho.
E agora me aperta a aflição de chorar...
Se de repente combina da gente se cruzar
Porque as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam
Perdoem a falta de abraços, os dias eram assim...”

De Madalena ao Bêbado existem duas mulheres no meu caminho,


no som que entrava pela janela da sala, dos meus discos de
vinil emprestados, Elis e Kátia, me fizeram sentir, sofrer,
amar e entender que ser feliz é importante, mas do meu jeito.
Ah! Ia esquecendo “Black is beatiful”

Que venha 2019!


Porque 2018 vai durar até 2023.
112
Última segunda do ano, dia de deixar o último post.
Boas energias para 2019
Agradeço

Revejo

As falhas
O que deixei de fazer
Conservo o que foi positivo

Renovo

Limpo as gavetas
os armários
o coração
o sorriso
o pensamento
as ilusões
os amores

Vejo o mar
Converso com Iemanjá

Não dispenso lentilha e champagne


Gosto de estar entre amigos e família
Detesto a solidão que paira sobre as nossas cabeças
mas sei que faz parte. O vazio é necessário.
Shopping já não vou faz tempo!
TV já não assisto há muitos anos!

Coloco na primeira página da minha agenda


As minhas metas
Escrevo:

PAZ
SAÚDE
AMOR
AMIZADE

113

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