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360 SÉRGIO M!

LLIET DIÁRIÓ CRÍTICO 361

Outubro, 25 - Uma leitora, apaixonada poI1 pintura. tal. A linha, e por conseguinte o desenho, é como a letra.
envia-nos um desenho e .pergunta se é arte. Também, de Não interessa a caligrafia da menina qne estudou num cole-
uma feita, em certa peça surrealista, ao homem que tudo gio qualquer; interessa a letra qne I'evela um temperamen-
sabia indagava o compan:a, mostrando um charuto estranha- to, que põe diante de nós uma personalidade. No. entanto
mente ·plantado no alto da 1careca: e isto? Que quer dizer esta ultima letra é deformada e a outra atende ás cxigcncias
isto? Ora, isto não tem explicação. Diante dessa coisa que do manual de caligrafia.
aberra do comum, quando muito se pode ter uma emoção Durante nus poucos anos de nosso seculo pensou-se em
qualquer. Ou nenhuma. Depende da sensibilidade. impor, através das Escolas de Belas Artes, o dogma da al'te
De outra feita, perguntou certo amador ao critico de como copia da natureza. Foi isso uma aberração que teve
.arte se quando via um quadro o aferia pelo padrão das como ponto de partida o II!Üagrie da fotografia. Hoje, a
" cons '"A
tantes estet1cas . ··
o que o critico respondeu que antes propria fotografia, que aspira a ser arte, r~nega um tal pos-
de mais nada gostava ou não. E, se gostasse, então tentava tulado. Arte é expressão qne se comunica por meio de ele-
-u~a analise :r:iais aprofundada, a fim de explicai< a si pro- mentos específicos. No caso da pintura, pela linha é pela
pno o porque de seu entusiasmo, a fim de justificar sua côr. Pouco imiJOrta o grau de semelhança com a realidade,
escolha. pois esta é apenas um pretexto, nm II!Otivo, inspirador. A
Não cabe aqui uma exegese do fato estetico. Isso é da beleza não está na paisagem, mas no qne desta é capaz de
alçada dos escritores e conferencistas, mas, sem qué se entre tirar o artista. Como já dizia um poeta:
em seara alheia, cabem algumas considerações, talvez escla-
recedoras, acerca de dois ou três ·pontos que parecem chocar, Viajante, fecha os oTlws para os campos dromedários,
pura o espanto emplurnad-0 dos coqueiros.
pa;·ticularmente, a missivista. Em primeiro lugar a defor-
Abre-o para dentro de tua alma,
~nação.
Porque não importa a forma da pai.sagem
Não existe arte sem deformação. Nem mesmo do fa. mas tão somente o refkiw q1te ela projetou dentro de ti.
moso equilíbrio grego está ela ausente. Venus e Apolo são
teoremas geometricos e estão longe da realidad,, do corpo Outubro, 26 - Um grande ohstaculo á organização de
humano. o~ bizantinos deformavam até a consecução da pu· uma antologia do humor está na propria definição que de·
reza na inocencia. Botticelli alongou suas figuras de um ver~ orientar a escolha. As constantes confusões entre o hu·
-modo patologico á. procura de um estilo. El Grecco, pelo mor, espírito, ironia, sar.casmo, piadas etc., ai estão a de-
exagero das verticais, exprimiu seu misticismo. Rubens num monstrar a imensidade da tarefa. P1,1rece-nos que no humor,
e;;banjamento de curvas deu a suas mulheres uma sensuali- que visa a pessoa mesma do autor e não a dos adversarios,
dade vigorosa. Picasso, em "Guernica'', obteve das linhas como acontece com a ironia ou. o sarcasmo, há uma conjuga-
quebradas e dos angulos agudos a mais tragica expresf'\ão ção de elementos específicos, tais sejam a gratuidade, a gra-
de nosso tempo. Somente o academismo mediocre tem como vidade do tom, o paradoxo etc. Por out110 lado sua tecnica
ideal não deformar. E ainda assim deforma, porque não !iteraria é caracteristica, consistindo em acentuar cuidadosa-
Teproduz a realidade, mas uma vaga aproximação daquilo mente o lugar-comum; o termo pedante, o adjetivo inadequa-
a que se "convencionou" dar a denominação de realidade. do, a sintaxe arrevezada. Se a causa do humor está numa
O desenho enviado pela missivista é apenas um mau "revolta superior do espirito", como pensa Léon Pie~e-Quint,
desenho. Não porque se afaste da imagem idealizada de uma numa afirmação vitoriosa do eu, segundo Freud, tais vul-
mulher nua dizendo adeus, e sim porque a linha bisonha- garidades se explicariam, na sua insistencia, como "lapsus"
mente traçada pouco ou nada exprime. A missivista con- que o autor sublima ao emprestar-lhes novo sentido, inespe·
funde ignorancia e inabilidade com deformação, 1quando esta rada intenção. Seria um revide da sensibilidade contra li
só é possivel como desobediencia voluntaria ou temperamen- razão, do inconsciente contra o super-ego.

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