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E' vei•dade que Baudelaire, romantico de esp1nto, é. não se me afigura outro o estado de espírito. Ha orgulho
um cultor da forma, um pré-parnasiano. Entretanto a tu- nesses ver:;os revolta, amarguTa, vaga esperança, masoquis-
berculose, pulando a escola da impassibilidade, foi tornar- mo latente.
se intima dos simbolistas. Laforgue e Samain são prototi- Bem difernnte a obra de um Max Jacob, sadia e. mati-
pos do tuberculoso pulmonar. A esse respeito aponta o zada a principio, cheia de fé mais tarde, nunca amargu·
sr. Tulio Hostilio Montenegro a predominancia dessa for- rada, aunca revoltada, e menos ainda evanescente co~o i'e-
ma nos poetas doentes, quase todos "politrinaires". ' Não ria ·a de Samain que "ouvia morreren1 as rosas".
concordo porem com a identificação que faz o autor dos tu-
berculosos com os mortos de afecçõcs pulmonares sobrevin· O sarcasmo é tarnhcm como observa Tulio Hostilio
das acidentalmente e por vezes na velhice. E' o caso de M:::x Montenegro, uma das formas prediletas do tuberculoso.
Jacob que, preso e torturado pelos alemães mo11re talvPz de Quando Paulo Sergio escreve "sou um homem das cavernas",
pneumonia em nm cam:po ele conce1.1lração. Talvez. . . E o atroz trocadilho pode ser emparelhado com o ve11so de Lnit'!
não concordo com essa identificação 'por que não vejo ne- de Abreu:
nhunia semelhança psicologica entre um tuberculoso e um Respeito, meus senhores, á mem:oria
homem morto de pneumonia. Quem conhece a obra de de quem morreu a longo prazo
Max Jacob, leve, graciosa, cheia de malícia, e constituida
sem soluções de continuidade, sem febres, sem arrancos, há com esse soluço gaTgalhante de laforgue
de convir em que esse poeta nada tinha do tuberculoso.
]e veux bien vivre; mais vraiment
Que caracteriza a produção literaria dos que sofrem
l' ldéal est trop é'lastique!
dos pulmões? Em primeiro lugar, parece, a angustia, depois
a Tevolta, finalmente o langui.do conformismo, a melanco· Nossa literatura critica carece de obras do genero dessa
lia evanescente. De qualquer maneira a introversão. Um que escreve Tulio Hostilio Montenegro. Elas ajudam a com·
olhar para dentro •que amplia as perspectivas interiores e preender melhor a criação artística. Por isso, embora pu•
deforma o "eu", que faz ver mais fundo tambem · levando desse ser mais verticalmente desenvolvida, merece ela um lu·
.
a um m11sto de esperança e de ama~gura, quJando ' não sim- gar ao lado das que nos deram Homero Silveira, Francisco
plesmente ao masoquismo, ao deleite no sofrimento que en- Hantung, Lourival Ribeiro (para citar apenas os que trata·
grandece e compensa, pelo interesse 'provocado nos outros,
ram da tuberculose).
a ausencia forçada na vida normal. A tuberculose como·
que desenvolve no doente uma especie de psicose maníaco·
Novembro, 7 --. E' preciso i·eler de vez em quando os
depressiva e em certos casos mais gr~w~s e demorados a
velhos críticos. São menos velhos do que imaginamos e es·
psicose autis1 a (classificação de Dumas) . Um Panait htrati
tão mais presentes do que fora de esperar. Folheio Sainte
eE]crevendo: "nenhum ideal social. Nenhuma fé na arte.
Beuve e encontro es,te pensamento que vem a calhar na po-
Nenhmna mulher-companheira na vida", é beff' represen··
lemica atual entTe "gagás" e novíssimos: "o principal de•
tativo da primeira fase, a. fase ·da augustia. Á primeira
feito dos artistas de hoje, pintores ou 'poetas, está em tomàr
vista esse pessimismo nos parece avassalador. M~s quando
a intenção pela realização, em imaginar que lhes hasta ter
acrescenta: ·"não queria soçobrar. Queria compreender . as
pensado uma bela coisa para que essa coisa se apresente
monstruosidades da existencia", já se revela a ~aga esperan-
bela (Portraists contemp·orains -Vol. 5)".
ça a envolver a amargura. E quando Paulo Sergio diz:
Quantas e quantas vezes temos .desenvolvido a mesma
Ha mil e uma razões observação, lembrando aos artistas que a intenção só vale
mas nenhuma só verdadeü-a
como referencia exegetica.
e tens o mundo a teus pés
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Fulano imagina ter fixado uma frase musical na tela, doente; e isso é difícil, havendo necessidade de muita obser·
entretanto, não o per•cebe o critico. Fulano se revolta e
vação e de muita cautela por .parte dos medicos. Raros são
"xinga", esquecido ,de que não se tendo alçado á comunica- os alienados que, sem a solicitação dó bom material (no caso
cão falhou em seus intuitos. Ainda que, sem o desejar cons- das artes plasticas, por exemplo, papel, tintas, barro etc.) se
~ientemente, haja realizado "outra" coisa, por vezes, bela e lançam espontaneamente ao trabalho artístico. Largados a
louvavel. Dai apreciar o critico não raro o colorido quando si mesmos, garatujam apenas. Mas diante do tubo de boa
o pintor visa esmerar-se na composição. E vice-versa. tinta e de uma tela conveniente se entusiasmam e fixam na
Outra f11ase de Sainte Beuve me impressiona: "Amadu- obra artistica seus com,plexos, suas obcessões, sob forma mui-
recer! Amadurecer! - enrijecemos em certos lugares, apo- tas vezes espontaneas pela pureza e originalidade das solu-
drecemos em outros; jamais amadurecemos"... Que amar· ções.
gura ! Que ceticismo desolado! Tornamo-nos insensíveis a Infelizmente não se espalhou ainda pelos diversos hos·
certas belezas e sentimentos, porque não chegam á nossa picios do Brasil esse metodo ocupacional, ou não o levaram
alma at1,avés da crosta criada com o tempo, e, se varam a ainda a uma perf~ição suficiente para que os resultados al-
superficie exterior, atingem o amago em decomposição. A cançassem os de Engenho de Dentro. No Hospício de Franco
experiencia pouco adianta, não passa de uma ilusão. da Rocha, pouco se fez nesse sentido e o que lá se obteve
Em suma Sainte Beuve encanecido na leitura, na analise, decorre mais da atividade espontanea dos doentes que de
na meditação, conclui romanticamente, malgrado sua atitude uma atividade provocada e orientada pela medicina. Dai
de juiz impa,rcial e sereno das letras francesas, pelo malogro serem os resultados apresentados de quando em vez, em co-
da erudição e da inteligencia, pela supremacia da sensibili- municações tecnicas, mais curiosos de ponto de vista psicolo-
dade e sobretudo pelo entusiasmo fecundo dos moços. gico que do ponto de vista estetico. ( *)
A' razão que pesa, pondera, e adia prudentemente, á O sr. Osorio Cesar, ha muitos anos preocupado com o
espera do amadurecimento, ele prefere a inspiração que rea- problema, vem reunindo vasta coleção de desenhos e pintu·
liza de imediato e colhe o fruto antes que se desprenda da ras dos alienados de Franco da Rocha, e tentandO' analizá-los,
arvore, imprestavel, corroído 'pelos vermes. Curioso desa· interpretá-los, til'ar deles um ensinamento. No numero 124
bafo e dolorosa confissão ,de quem em vez de continuar no da Revista do Arquivo Municipal de S. Paulo dá-nos esse
caminho ,de "V,olupté" e "Poésies de Joseph Delorm.e" (bau- medico um estudo sobre o simholismo mistico nos desenhos
delairianas antes de Baudelaire) enveredou para as "Cause· de um dos internados, acentuando-lhe o carater erotico.
ries du Lundi". De quem, por ter aguardado o amadureci- Talvez, colocado, como os doentes de Engenho de Den-
mento, deixou de ser autor e tornou o grande leitor inteli- tro, diante de bom material de trabalho, produzisse o esqui-
gente de seu tempo. zofrenico paranoide observado pelo sr. Osorio Cesar, obras
de arte dignas das que conseguem um Rafael ou um Emídio.
Novembro, 8 - Os medicos de hospicio de Engenho de Tal como se apresentam, os desenhos analizados pouco inte-
Dent110 vêem nas atividades ocupacionais uma esperança de resse artístico revelam, embora se observe neles uma execu·
recuperação dos esquizofrenicos. Entre essas atividades, as ção tecnica acima da que fôra de esperar.
artísticas ocupam lugar proeminente e, do proprio ponto de J. . . (ignoramos o nome do doente) insiste em desenhar
vista estetico, seus resultados interessam grandemente, conio episodios da historia sagrada, valendo-se sobretudo de sim·
se viu da exposição realizada pelo Museu de Arte Moderna bolos sexuais, já muito bem definidos por Freud e denun·
de São Paulo. ciadores de um forte complexo de Edipo. A sublimação ruis-
Na terapeutica da esquizofoenia, trata-se, ao que parece,
de descobrir a atividade susceptivel de acordar a atenção do ( *) Posterionnente a este comenta rio tive a oportnnidade de ver
de perto o que se fez em Franco da Rocha. E o comentarei mais tarde.
SÉRGIO MILLIET
no DIÁRIO CRÍTICO 111

tica na adoração á Virgem poderia ter sido incentivada atra· :as coerencias), e cair num esquematismo que, embora ao
vés da atividade artistica e com resultados evidentes na
gosto da epoca e rotulado orgulhosamente de ".cientifico"',
terapeutica, acrescidos de possíveis realizações esteticas va-
de hem pouco nos tem servido.
liosas. Não tendo atentado para essa solução, o que se jun·
tou deixa pequena margem ao comcntario. Quem leu Manheim já duvida bastante da eficacia da
Já se disse que no individuo libertado das peias sociais, sociologia objetiva. Sabendo-nos condicionados em nosso
graças á psicose autista e que se concentra definivamente proprio pensamento pela sociedade, pela classe, pelo grupo,
em seu mundo interior, toda exteriorização artística re- não podemos dar ás observações "objetivas" senão um valor
vela n.nia parcela do inconsciente coletivo, uma parcela es· restrito. A analise daqueles que somente em um mínimo
clarecedora, portanto, dos misterios ·da alma humana e tão de gestos e ações se acham cerceados pela coericão social, hi:l
importante para a cura do proprio doente como para a te- de abrir-nos perspectivas nada despreziveis. ,
rapeutica preventiva dos esquizoides ou o conhecimento mais
vertical do homem são. Novembro, 10 - O ensino da literatura sempre me pa·
Nos ultimos anos as .concepções relativistas tiveram uma receu desobedecer não somente á moderna orientação peda-
voga enorme, senão exagerada. Hoje é de bom tom achar ii;ogica mas ainda ao simples bom-senso. Não sou especia-
que tudo é relativo: verdade, moral, etc. Com essa escapa· lista em neda!".O'!ia: essas observ?<'Ões decorrem apenas (e é
toria todos os cinismos e oportunismos se permitem. Mas muito) da minha propria experiencia como aluno e como
nã:o estamos muito convencidos de que "tudo seja de fato re- profe~sor o<'asional que fui de Jntrodu<'ão á Sociololáa de
lativo, de que não sobre no fundo de nós mesmos um resíduo 'Sociologia da Arte e. de Literatura francesa. L '

pequenino de absolutos, um absoluto talvez, .denominador


Discuti muitas vezes ·a metodologia do ensino e lembrei
comum do universo e de que tenhamos perdido a noção es-
o absurdo de se iniciar um curso d'e literatura pela Idade
sencial através dos sucessivos acumulos de conhecimentos
Média, em um momento da vida do adolescente em que seu
acessorios com que nos brindou a civilização. E. é pelas
interesse se volta inteiramente para a atualidade imediata,
descobertas ocasionais efetuadas no inconsciente, somente
em que os problemas e misterios da lingua arcaica se lhe
possiveis pela analise ·das exteriorizações dos alienados, e
afi,gu~am insipidas, senão estupidas charadas. Eu sugeria
muito raramente da criança (nunca dos :povos pre-letrados,
então que se começasse pelo seculo XIX e se fosse até os
já. por demais envolvidos em suas culturas rígidas) que po·
modernos antes de descer aos classicos a caminho dos mes·
deremos alcançar uma informação util, verificar se algum
tres nrimitivos. Em resposta alegavam os entendidos a im·
sexto sentido se atrofiou em nós, se energias que desconhe·
possibilidade de executar um programa assim racional ·ante
cemos existem capazes de explicar, melhor do que as teorias
as exigencias da administração. Uma tentativa fôra feita en-
materialistas insatisfatorias, a extraordinaria (milagrosa) tretanto ne~se sentido, nas escolas de divulgac,;ão nonular de
ascensão do homem na escala animal. cultura em Paris. E o resultado demonstrara a eficiencia da
Ha que prosseguir nessa·s ·pesquisas, na pior das hipo-
inversão por mim defendida. Iniciando-se um curso de li·
teses apaixonantes e de grande valor estetico.
Não quero negar com isso a necessidade dos outros es- teratura com os contemporaneos, já no segundo ano se ohti·
tudos dos chamados estudos objetivos, ·da orbita da sociolo· nha, do operario, excelente compreensão dos classicos.
gia ou da antropologia. Mas desdenhar o psicologico e con· Tais idéias, algo subversivas, vêm amadurecendo e va•
finar-se exclusivamente no sociologico, seria tentar resolver rando a resistencia dos academicos do ensino. Po~ toda
o problema com metade apenas de seus dados. Seria embi- parte, ao mesmo tempo, uma critica severa se levanta contra
car. pelo totalitarismo, seria perder de vista a complexidade 01'1 metodcs antiquados. Pedagogos ilustres insistem na ~ua
da vida, e suas incoerencias (ás vezes mais fecundas do que renovação.

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