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HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Décimo primeiro volume


NICOLA ABBAGNANO

obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.


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VOLUME XI

EDITORIAL PRESENÇA

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILDSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,


LDA. - R. Augusto Gil, 2 clv.-E. - Lisboa

XII

O POSITIVISMO EVOLUCIONISTA

§ 647. POSITIVISMO EVOLUCIONISTA: O PRESSUPOSTO ROMâNTICO

A outra orientação do positivismo é a evolucionista. Esta orientação consiste


em tomar o conceito de evolução como o fundamento de uma teoria geral da
realidade natural e como manifestação de uma realidade - sobrenatural ou
metafísica - infinita e ignota. O ponto de partida desta orientação, ou seja,
o conceito de evolução, é extraído da doutrina do transformismo biológico, que
foi elaborada por Lamarck e Darwin: ele apresenta-se, efectivamente, como a
generalização de tal doutrina. Mas tal generalização é condicionada pelo
pressuposto romântico de que o finito é a manifestação ou revelação do
infinito, já que só em virtude deste pressuposto, os

processos evolutivos singulares, que a ciência pode

verificar fragmentariamente em alguns aspectos da natureza, se unem num


processo único, universal, contínuo e necessariamente progressivo. Sob este
aspecto, o evolucionismo positivista é a extensão ao mundo da natureza do
conceito da história elaborado pelo idealismo romântico. Tal como a história
na doutrina de Fichte ou de Schelling, a natureza, na teoria de Spencer, é um
processo de desenvolvimento necessário, cuja lei é o progresso.

§ 648. HAMILTON E MANSEL

A introdução da filosofia romântica na Inglaterra fez-se através da obra de


Hamilton, que, com a doutrina da incognoscibilidade do absoluto, constitui
também um precedente do positivismo de Spencer.
William Hamilton (nascido em Glasgow a 8 de Março de 1788, falecido em
Edimburgo a 6 de Maio de 1856) foi uma figura notável sobretudo pela sua

vastíssima erudição filosófica, que o levou a contactar directamente com a


filosofia alemã do romantismo.
O seu primeiro escrito foi um estudo intitulado Filosofia de Cousin, aparecido
na "Edinburgh Review" de 1829. Em 1836, foi nomeado professor de lógica e
metafísica na Universidade de Edimburgo. As suas

Lições de metafísica e de lógica, compostas no primeiro ano de ensino, foram


depois repetidas por ele durante vinte anos sem qualquer alteração e
publicadas postumamente por Mansel (4 vol., 1859-60). Em 1852, Hamilton
publicou uma recolha de artigos com o título Discussões de filosofia e
literatura;

e, em 1856, as Obras de Thomas Reid com notas e comentários.

As Lições, de Lógica de Hamilton constituem um

dos mais brilhantes tratados da lógica tradicional no século XIX. Foram tão
importantes as correcções que fez à lógica tradicional, que estas viriam a
revelar-se fecundas no campo da lógica matemática; nomeadamente, o princípio
da quantificação do predicado, segundo o qual nas proposições se deve
considerar a quantidade não só do sujeito mas também do predicado. Tal
quantificação efectua-se, de facto, ou mediante o uso dos quantificadores (por
exemplo, "Pedro, João, Jaime, etc., são todos apóstolos") ou

mediante modos indirectos como a limitação e a

excepção ou, de uma maneira subentendida, como quando se diz: "Todos os homens
são mortais", devendo entender-se: "Todos os homens são alguns mortais".

As Lições de metafísica apresentam em primeiro lugar uma versão da teoria da


percepção imediata própria da escola escocesa, de que, sob certos aspectos,
Hamilton é um continuador. Hamilton, todavia, traz a esta teoria uma
modificação importante, negando que a percepção imediata faça conhecer as
coisas tais como são em si mesmas. "A teoria da percepção imediata, diz ele,
não implica que nós percebamos a realidade material absolutamente e em si
mesma, isto é, fora da relação com os outros órgãos e as

nossas faculdades, pelo contrário, o objecto total e

real da percepção é o objecto exterior em relação com

os nossos sentidos e com a nossa faculdade cognitiva. Mas, embora relativo a


nós, o objecto não é representação, não é uma modificação do eu. Ele é o

não-eu-o não-eu modificado e relativo, talvez, mas sempre não-eu" (Lectures on


Metaphisics, 1, 1870, p. 129). A teoria da percepção imediata, não elimina,
portanto, segundo Hamilton, o relativismo do conhecimento, o qual se baseia em
três razões: 1.o a existência não é cognoscível absolutamente em si mesma mas
só de modos especiais, 2.o estes modos só podem ser conhecidos em relação com
as nossas faculdades,
3.o não podem estar em relação com as nossas faculdades senão como
determinadas modificações dessas mesmas faculdades (Ib., 1, p. 148). Decerto
que nesta forma a doutrina da percepção imediata não tem o mesmo significado
que a escola escocesa do senso comum lhe conferira: esta escola, de facto,
entendia aquela doutrina no sentido de que os objectos são percebidos
imediatamente e em si mesmos. Além disso, entre um objecto condicionado e
tornado relativo pela sua relação com as faculdades humanas e uma "ideia" no
sentido de Descartes e de Berkeley a diferença é puramente verbal.

A relatividade do conhecimento permite a Hamilton afirmar a


incognoscibilidade, e não a inconcebilidade, do Absoluto. Contra Cousin e
Schelling, Hamilton afirma esta incognoscibilidade, ao passo que, de acordo
com eles, defende a existência do Absoluto, cuja realidade se revelaria na
crença.

"Pensar é condicionar, afirma (Discussions, p. 13), e uma limitação


condicional é uma lei fundamental das possibilidades do pensamento. O Absoluto
não é concebível senão como uma negação da possibili-

10

dade de ser concebido". Por outro lado, "a esfera da nossa crença é muito mais
extensa do que a esfera do nosso conhecimento; e, portanto quando nego que o

Infinito possa ser conhecido por nós, estou bem longe de negar que ele possa e
deva ser crido por nós" (Ib., II, p. 530-31). Esta superioridade da crença
sobre o conhecimento vincula Hamilton à escola escocesa; mas para Hamilton, a
crença é, romanticamente, a revelação imediata e primitiva que o próprio
Infinito faz de si ao homem e que, por conseguinte, condiciona o próprio
processo do conhecer. Falando da percepção da realidade externa, Hamilton
reconhece que, propriamente falando, nós não sabemos se o

objecto de tal percepção é um não-eu, e não uma percepção do eu; só a reflexão


faz crer que o seja "porque obedecemos à fé numa necessidade originária da
nossa natureza que nos impõe tal crença" (Reid's Works, p. 744-50).

Ao nome de Hamilton está ligado o de Henry Longuevifie Mansel (1820-71) que


foi o seu intérprete. Em dois livros, Os limites do pensamento religioso
(1858) e Filosofia do condicionado (1866), Mansel construiu sobre as premissas
de Hamilton uma

teologia negativa. Deus como absoluto e infinito é inconcebível. Ele não pode
no entanto ser concebido como causa primeira, já que a causa existe apenas em

relação ao efeito e ao absoluto repugna toda a relação. Toda a tentativa de o


conceber de algum modo dá lugar a dilemas insolúveis. "0 absoluto não pode ser

concebido nem como consciente nem como inconsciente; nem como complexo nem
como simples; não

II

pode ser definido nem mediante diferenças nem mediante a ausência de


diferenças: não pode ser identificado com o universo nem pode ser distinto
dele"

(Limits of Rel. Thought, p. 30). Do mesmo modo, o infinito que deveria ser
concebido como todo em potência e nada em acto revela precisamente nisto a sua
impossibilidade de ser concebido, já que "se pode ser o que não é, é
incompleto, e se é todas as coisas, não tem nenhum sinal característico que o
possa distinguir de uma coisa qualquer" (Ib., p. 48). Esta incognoscibilidade
do Infinito e do Absoluto é, todavia, relativa ao homem, não pertence à
natureza do próprio Absoluto. "Nós somos obrigados, diz Mansel (1b., p. 45),
pela própria constituição do nosso espírito a crer na existência de um Ser
absoluto e infinito". Esta crença funda-se na nossa consciência moral e
intelectual, na estrutura e no curso da natureza e na revelação" (Phil. of the
Conditioned. p. 245). Mas tão-pouco estes fundamentos da crença permitem
afirmar alguma coisa sobre os atributos de Deus. Subsiste uma diferença enorme
entre a mais alta moralidade humana concebível e a perfeição divina, distância
que pode ser de algum modo abolida pelo conceito escolástico de analogia.

A doutrina de Hamilton e Mansel é ao mesmo tempo um cepticismo da razão e um


dogmatismo da fé. O cepticismo da razão foi utilizado como fundamento do
agnosticismo que caracterizava em boa parte o positivismo evolucionista. O
dogmatismo da fé iria ter a sua continuação histórica no espiritualismo inglês
contemporâneo.

12

§ 649. A TEORIA DA EVOLUÇÃO

Se o princípio romântico do infinito que se revela ou realiza no finito é a


categoria tacitamente pressuposta pela filosofia positivista da evolução, a
teoria biológica da transformação da espécie é, de facto, o

seu ponto de partida. Com efeito, o evolucionismo é uma generalização desta


doutrina biológica, generalização tacitamente fundada nesta categoria.

Podem-se encontrar antecedentes imediatos da teoria do transformismo biológico


nalgumas intuições de Buffon (1707-88). O famoso autor da História natural
(1749-88), embora declarando-se explicitamente partidário da doutrina
tradicional da fixidez das espécies vivas, admite hipoteticamente a
possibilidade de que se tivessem desenvolvido a partir de um tipo comum,
através de lentas variações sucessivas, verificadas em todas as direcções. Foi
ainda em Buffon que Kant, provavelmente, se inspirou ao propor a hipótese
(1790), no parágrafo 80 da Crítica do Juízo, de "um verdadeiro parentesco" das
formas vivas e

da sua derivação de uma "mãe comum", assim como a ideia de uma evolução
contínua da natureza da nebulosa primitiva até ao homem. Porém, tais hipóteses
eram apenas intuições genéricas, não apoiadas num sistema coordenado de
observações. O primeiro a apresentar de um modo científico a doutrina do
transformismo biológico foi o naturalista francês João Baptista Lamarck (1744-
1829). Na sua Filosofia zoológica (1809) e na História natural dos animais sem
vértebras (1815-22), Lamarck enunciava quatro leis que deviam presidir à
formação dos organismos ani-

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mais: 1.o a vida, pela sua própria força, tende continuamente a aumentar o
volume de cada corpo vivo e a estender as suas partes; 2.1> a produção de um

novo órgão animal resulta do aparecimento de uma

nova necessidade e do novo movimento que esta necessidade suscita e encoraja;


3.o o desenvolvimento dos órgãos e a sua força de acção estão constantemente
na razão directa do uso dos próprios órgãos;
4.o tudo o que foi adquirido, perdido ou modificado na organização dos
indivíduos é conservado e transmitido mediante a geração dos novos indivíduos.
Estas quatro leis são a primeira formulação científica do modo por que se
verificaria a transformação dos organismos. Tal modo é reportado
substancialmente ao princípio de que o uso dos órgãos, requerido pelas
necessidades e, portanto, pelo ambiente exterior, pode modificar radicalmente
os próprios órgãos.

As ideias de Lamarck não tiveram nenhuma ressonância imediata devido sobretudo


ao enorme apoio que a tese oposta da fixidez das espécies teve durante alguns
decénios mercê da autoridade de George Cuvier (1769-82), o fundador da
paleontologia, ou seja, do estudo dos restos fósseis das espécies extintas. No
seu Discurso sobre as revoluções do globo (1812), Cuvier explicou a extinção
das espécies fossilizadas mediante catástrofes, gerais que periodicamente
destruiriam as espécies vivas de cada época geológica, dando ensejo a que Deus
criasse novas. O transformismo biológico só pôde afirmar-se quando esta teoria
das catástrofes foi eliminada; e

essa eliminação foi obra do geólogo inglês Charles Lye11 (1797-1875). Nos seus
Princípios de geologia

14

(1833), Lye11 expÔs a tese de que o estado actual da terra não é devido a uma
série de cataclismos mas à acção lenta, gradual e insensível das mesmas causas
que continuam a actuar sob os nossos olhos. Tal doutrina tornava impossível
explicar a génese e a extinção das espécies vivas mediante causas
extraordinárias ou sobrenaturais e abria definitivamente a via ao
transformismo biológico.

Este fez a sua entrada triunfal na ciência com a obra de Charles Darwin (12 de
Fevereiro de 1809-19 -Abril de 1882). Sobrinho de um naturalista, chamado
Erasmo, Darwin foi o tipo do cientista inteiramente dedicado à s suas
pesquisas. Depois de uma

viagem por mar durante cinco anos, dedicou-se a recolher e a ordenar o


material para a sua grande obra A origem das espécies, que apareceu em 1859. O
livro teve um sucesso fulgurante e a primeira edição, de mais de 1.000
exemplares, esgotou-se no primeiro dia de venda. Seguidamente, Darwin publicou
A variação dos animais e das plantas no estado doméstico (1868) e Descendência
do homem (1871). O último trabalho notável de Darwin foi a Expressão das
emoções no homem e nos animais (1872), a que se seguiram alguns trabalhos
científicos menores. Em 1887, o filho de Darwin, Francisco, publicou dois
volumes intitulados A vida e a correspondência de Charles Darwin, que contêm
também uma breve autobiografia do filósofo, e que são indispensáveis para a
compreensão da sua personalidade.

O mérito de Darwin consiste em ter elaborado uma completa e sistemática teoria


científica do transformismo biológico, fundando-a num número enorme

15

de observações e de experiências, e em a ter apresentado precisamente no


momento em que a ideia romântica do progresso, nascida no terreno da
investigação histórica, alcançava a sua máxima universalidade e parecia
indestrutível. A teoria de Darwin assenta em duas ordens de factos: LO, a
existência de pequenas variações orgânicas que se verificam nos
seres vivos ao longo do curso do tempo e por influência das condições
ambientais, variações que, em parte, pela lei das probabilidades são
vantajosas aos indivíduos que as apresentam: 2.O a luta pela vida, que se
verifica necessariamente entre os indivíduos vivos pela tendência da cada
espécie a multiplicar-se segundo uma progressão geométrica. Este último
pressuposto é evidentemente extraído da doutrina de Malthus (§ 638). Destas
duas ordens de factos se segue que os indivíduos em que se manifestam mutações
orgânicas vantajosas têm mais probabilidades de sobreviver na luta pela vida;
e em virtude do princípio de hereditariedade haverá neles uma tendência
pronunciada para deixar em herança aos seus descendentes os caracteres
acidentais adquiridos. Tal é a

lei da selecção natural, que "tende, diz Darwin (Origens das espécies, 4.O, §
18), ao aperfeiçoamento de cada criatura viva em relação com as suas condições
de vida orgânicas e inorgânicas, e, por conseguinte, na

maior parte dos casos, com um progresso da organização. Todavia, as formas


simples inferiores podem perpetuar-se por muito tempo se forem
convenientemente adaptadas às suas simples condições de vida. "A acumulação
das pequenas variações e a sua conservação por meio da hereditariedade
produzem as

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variações dos organismos animais que, nos seus termos extremos, é a passagem
de uma espécie à outra.
O que o homem faz com as plantas e os animais domésticos produzindo
gradualmente as variedades que são mais úteis às suas necessidades, pode fazê-
lo a natureza numa escala muito mais vasta, pois "que limites se podem pôr a
esse poder que actua durante longas eras e perscruta rigorosamente a
estrutura, a organização inteira e os hábitos de cada criatura, para favorecer
o que está bem e rejeitar o que está mal?" (1b., 14, § 2).

Desta teoria se segue que entre as várias espécies devem ter existido inúmeras
variedades intermédias que ligavam estreitamente todas as espécies de um mesmo
grupo; mas, evidentemente, a selecção natural exterminou estas formas
intermédias de que, no entanto, se podem encontrar traços nos fósseis (Ib.,
6.o, § 2). Além do estudo dos fósseis, o dos órgãos rudimentares, das espécies
chamadas aberrantes e da embriologia pode conduzir a determinar a ordem
progressiva dos seres vivos. "Se nós, escreve Darwin, não possuímos árvore
genealógica, nem livro de oiro, nem brasões hereditários, temos, no entanto, a
possibilidade de descobrir e seguir os traços das numerosas linhas divergentes
das nossas genealogias naturais, mediante a herança, desde há muito
conservada, dos caracteres de cada espécie" (Ib., 14.O, § 5). A conclusão de
Darwin é nitidamente optimista: crê ter estabelecido o inevitável progresso
biológico do mesmo modo que o romantismo idealista e socialista acreditava no
inevitável progresso espiritual. "Nós podemos concluir com alguma confiança
que nos será

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permitido contar com um futuro de duração incalculável. E como a selecção


natural actua apenas para o bem de cada indivíduo, todo o dom físico ou
intelectual tenderá a progredir para a perfeição" (1b.,
14.-, § 6).
A outra obra fundamental de Darwin, A descendência do homem, tende, em
primeiro lugar, a estabelecer que "não existe nenhuma diferença fundamental
entre o homem e os mamíferos mais elevados no que respeita às faculdades
mentais". A única diferença entre a inteligência e a linguagem do homem e a
dos outros animais é uma diferença de grau que se explica pela lei da selecção
natural e também, em parte, pela escolha sexual a que Darwin atribui, para a
evolução do homem, uma importância bastante maior do que para a evolução dos
animais. Darwin não crê que o conhecimento da descendência do homem de
organismos inferiores diminua de algum modo a dignidade humana. "Quem visse um
selvagem na sua terra natal, escreve em As origens do homem, (trad. ital., p.
579) não sentiria muita vergonha se se visse obrigado a reconhecer que o
sangue de uma criatura mais humilde lhe corre nas veias. Quanto a mim,
preferia muito mais ter descendido daquele heróico macaco que enfrentou o seu
terrível inimigo para salvar a vida ao seu guardião ou daquele velho babuíno
que desceu da montanha para arrancar

triunfante o seu jovem companheiro a uma furiosa matilha de cães, do que de um


selvagem que se compraz em torturar os seus inimigos, oferece sacrifícios de
sangue, pratica o infanticídio sem remorsos, trata as

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suas mulheres como escravas, não conhece o que é a

decência e é dominado por grosseiras superstições".

Darwin, foi e quis ser exclusivamente um cientista. Só raramente, e dir-se-ia


contra vontade, se decidiu a exprimir as suas convicções filosóficas e
religiosas; e sempre em privado, em cartas particulares não destinadas à
publicação. Contudo, estas convicções, foram-lhe inspiradas pela sua doutrina
da descendência inferior do homem, descendência que não pode autorizar uma
grande fé na capacidade do homem para resolver certos problemas fundamentais.
"Per-unto a mim mesmo, escreve numa carta (Vida e

corresp., trad. franc., p. 368), se as convicções do homem, que se desenvolveu


a partir do espírito de animais de ordem inferior, têm algum valor e se se
pode ter alguma confiança nelas. Quem poderia confiar nas convicções do
espírito de um macaco, se é que existem convicções num espírito semelhante?"
Noutra carta de 1789 (1b., p. 353-54) exprime-se assim: "Sejam quais forem as
minhas convicções sobre este tema, elas só podem ter importância para

MI próprio. Mas, já que mo perguntais, posso assegurar-vos que o meu juízo


sofre amiúde flutuações... Nas minhas maiores oscilações, nunca cheguei ao

ateísmo no verdadeiro sentido da palavra, isto é, nunca cheguei a negar a


existência de Deus. Eu penso que, em geral (e sobretudo à medida que
envelheço), a descrição mais exacta do meu estado de espírito é a

de agnóstico". O termo agnosticismo fora criado em


1869 pelo naturalista Thomas Huxley (1825-956) que chegara, antes da
publicação da Origem das espécies, a inferir por si próprio a transformação
das espécies

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biológicas e que se tornou logo um dos mais entusiastas partidários de Darwin.


"0 termo, diz HuXley (Collected Essays, V, p. 237 e sgs.) veio-me à mente como
antítese de "gnóstico" da história da Igreja que pretendia saber muito sobre
coisas que eu ignorava". Tal termo implica já, na mente de Huxley, uma
referência àquela impossibilidade de conceber o

Absoluto e o Infinito em que haviam insistido Hamilton e Mansel. Mas, para


Darwin, este termo tem um

sentido menos explícito, significando simplesmente a

impossibilidade de encontrar no domínio da ciência quaisquer asserções que


confirmem ou desmintam decisivamente as crenças religiosas tradicionais.
Darwin, no entanto, supunha possível negar decididamente qualquer "intenção"
da natureza, isto é, toda a causa final, e aduzia a este propósito a
existência do mal e da dor (Vida e corresp., trad. franc., 1, p. 361-62).
Porém, estava convencido de que "o

homem será no futuro uma criatura bastante mais perfeita do que é actualmente"
(1b., p. 363); e, na

realidade, as suas convicções científicas e toda a estrutura sistemática da


sua teoria da evolução se fundam no pressuposto da ideia do progresso que
dominava o clima romântico da época. Através da obra de Darwin, a ciência
inseriu o mundo inteiro dos organismos vivos na história progressiva do
universo.

§ 650. SPENCER: O INCOGNOSCíVEL

A época era, pois, propícia a uma teoria do progresso que não o restringisse
ao destino do homem no mundo, mas sim o estendesse ao mundo inteiro, na

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totalidade dos seus aspectos. Elaborar a doutrina do progresso universal e pôr


em relevo o valor infinito e, portanto, religioso (mesmo quando só
misteriosamente religioso) do progresso, tal foi o objectivo que Spencer se
propôs ao difundir em Março de 1860 o

plano do seu Sistema de filosofia, de vastas proporções.

Herbert Spencer nasceu a 27 de Abril de 1820 em Derby, em Inglaterra e foi


engenheiro dos caminhos de ferro em Londres. Publicou primeiramente alguns
artigos de carácter político e económico; em
1845, tendo recebido uma pequena herança, obedeceu à sua vocação filosófica e
abandonou a carreira de engenheiro para se dedicar à sua actividade de
escritor. De 1848 a 1853 pertenceu à redacção do "Economist". O primeiro
resultado da sua actividade foram os Princípios de psicologia, publicado em
1855. Em
1857, publicou um ensaio sobre o progresso (0 progresso, sua lei e sua causa),
que é muito significativo pela sua orientação fundamental. E em 1862 saía o
primeiro volume do Sistema de filosofia sintética projectado em 1860,
Primeiros princípios que é a sua

obra filosófica fundamental, a que se seguiram os

dois volumes dos Princípios de biologia (1864-67), e em seguida: Princípios de


psicologia (2 vol., 1870-72), Princípios de sociologia (Parte 1, 1876;
Instituições cerimoniais, 1879; Instituições políticas, 1882; Instituições
eclesiásticas, 1885), Princípios de moralidade (Parte I, As bases da ética,
1879); Parte IV, A justiça, 1891-, Parte 11 e Parte 111, 1892; Parte V,
1893). A estas obras seguiram-se: A classificação das ciências (1864); A
educação (1861); O estudo da

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sociologia (1873); O homem contra o estado (1884); Os factores da evolução


orgânica (1887); Ensaios (2 vol., 1858-63); Estática social (1892); A
inadequação da selecção natural (1893); Fragmentos vários, (1897); Factos e
comentários (1902); Autobiografia (2 vol..
1904)-, Ensaios sobre a educação (1911). Estes últimos dois escritos são
póstumos. Spencer morreu a 8 de Dezembro de 1903 em Brigton.

No artigo sobre o progresso de 1857 (recolhido mais tarde nos Ensaios) que é o
primeiro esboço do seu sistema, pode-se ver claramente qual é a inspiração
fundamental do evolucionismo de Spencer: devia este servir para justificar,
mediante a sua lei e a sua causa fundamental, o progresso, entendido como

facto universal e cósmico. "Quer se trate, dizia Spencer, do desenvolvimento


da terra, do desenvolvimento da vida à sua superfície, do desenvolvimento da
sociedade, do governo, da indústria, do comércio, da linguagem, da literatura,
da ciência, da arte, sempre o

fundo de todo o progresso é a mesma evolução que vai do simples ao complexo


através de diferenciações sucessivas. Desde as mais antigas mutações cósmicas
de que há sinais até aos últimos resultados da civilização, veremos que a
transformação do homogéneo em heterogéneo é a essência mesma do progresso". No
mesmo artigo considerava-se o carácter divino e, portanto, religioso da
realidade velada, mais do que revelada, do progresso cósmico. Este carácter é
o

ponto de partida dos Primeiros princípios.

A primeira parte desta obra intitula-se "0 incognoscível". Tende a demonstrar


a inacessibilidade da realidade última e absoluta, de acordo com o sen-

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tido que Hamilton e Mansel deram a esta tese. Mas Spencer serve-se dela para
demonstrar a possibilidade de um encontro e de uma conciliação entre a
religião e a ciência. Religião e ciência, de facto, têm ambas a sua base na
realidade do mistério e não podem ser

inconciliáveis. Ora, a verdade última incluída em

todas as religiões é que "a existência do mundo com tudo o que contém e com
tudo o que o rodeia é um mistério que exige sempre ser interpretado" (First
Princ., § 14). Todas as religiões falham ao dar esta interpretação, as
diversas crenças em que se exprimem não são logicamente defensáveis. Através
do desenvolvimento da religião, o mistério é cada vez mais reconhecido como
tal de modo que cumpre reconhecer a essência da religião na convicção de que a
força que se manifesta no universo é completamente imperscrutável. Por outro
lado, também a

ciência esbarra no mistério que envolve a natureza


última da realidade cujas manifestações estuda. O que seja o tempo e o espaço,
a matéria e a força, o que é a duração da consciência finita ou infinita -e o
que é o sujeito do pensamento, são para a ciência enigmas impenetráveis. As
ideias científicas últimas são todas representativas de realidades que não
podem ser compreendidas. Isto deve-se ao facto de o nosso conhecimento, como
Hamilton e Mansel puseram a claro, estar encerrado dentro dos limites do
relativo. Decerto, por meio da ciência, o conhecimento progride e se estende
incessantemente. Mas tal progresso consiste em incluir verdades gerais; e

verdades gerais noutras mais gerais ainda de maneira que se segue daqui que a
verdade mais geral, que

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não admite inclusões numa verdade ulterior, não é compreensível e está


destinada a permanecer como mistério (Ib., § 123). Spencer admite, pois,
integralmente, a tese de Hamilton e Mansel, segundo a qual o

absoluto, o incondicionado, o infinito (ou como se queira chamar ao princípio


supremo da realidade) é inconcebível para o homem, dada a relatividade
constitutiva do seu conhecimento. Contudo, não se detém no conhecimento do
absoluto, tal como tinha sido defendido por aqueles pensadores que haviam
tomado como única definição possível do mesmo a sua própria
incognoscibilidade. Dado que o relativo não é tal, observa Spencer, senão em
relação ao absoluto, o próprio relativo é impensável se é impensável a sua
relação com o não relativo. "Sendo a

nossa consciência do incondicionado, em rigor, a

consciência incondicionada ou o material em bruto do pensamento, ao qual, pelo


pensar damos formas definitivas, segue-se que o sentido sempre presente da
existência real é a verdadeira base da nossa inteligência" (First Princ., §
26). Cumpre, pois, conceber o absoluto como a força misteriosa que se
manifesta em todos os fenómenos naturais e cuja acção é sentida positivamente
pelo homem. Não é possível, todavia, definir ou conhecer ulteriormente tal
força. A tarefa da religião será a de advertir o homem do mistério da causa
última, ao passo que o escopo da ciência será o de estender incessantemente o
conhecimento dos fenómenos. Religião e ciência são assim necessariamente
correlativas. O reconhecimento da força imperscrutável é o limite comum que as
concilia e as toma solidárias. A ciência chega inevitavelmente. a

24

SPENCER

este limite ao atingir os seus próprios limites, e bem assim a religião na


medida em que é irresistivelmente orientada pela crítica. O homem tentou
sempre, e continuará a tentar, construir símbolos que lhe representam a força
desconhecida do universo. Mas continuamente e sempre se dará conta da
inadequação de tais símbolos. De sorte que os seus contínuos esforços e os
seus contínuos reveses podem servir para lhe dar o devido sentido da diferença
incomensurável que existe entre o condicionado e o incondicionado e encaminhá-
lo para a mais alta forma da sabedoria: o reconhecimento do incognoscível como
tal.

O facto de a ciência estar confinada ao fenómeno não significa para Spencer


que ela esteja confinada na aparência. O fenómeno não é a aparência: é antes a
manifestação do incognoscível. E a primeira manifestação do incognoscível é o
agrupar-se dos próprios fenómenos em dois grupos principais que constituem
respectivamente o eu e o não-eu, o sujeito

e o objecto. Estes dois grupos formam-se espontaneamente mercê da afinidade e


da desigualdade dos próprios fenómenos. O eu e o não-eu são fenómenos,
realidades relativas; mas o seu carácter persistente permite relacioná-las de
algum modo com o incognoscível. Spencer admite o princípio de que "as
impressões persistentes, sendo os resultados persistentes numa causa
persistente, são praticamente idênticos para nós à causa mesma e podem ser
habitualmente tratados como seus equivalentes" (1b., § 46). Em virtude deste
princípio, o espaço, o tempo, a matéria, o

movimento, a força, noções estas persistentes e imu-

25

táveis, devem ser consideradas de certo modo como produtos do próprio


incognoscível. Não são decerto idênticas ao incognoscível, nem são modos dele:
são "efeitos condicionados da causa incondicionada". Todavia, correspondem a
um modo de ser ou de a-ir desconhecido por nós, desta causa; e neste sentido
são reais. Spencer chama realismo transfigurado a

esta correspondência hipotética entre o incognoscível e o seu fenómeno. "0


númeno e o fenómeno são aqui apresentados na sua relação primordial como os
dois aspectos da mesma mutação, de que somos obrigados a considerar não só o
primeiro como o segundo" (1b., § 50).

§ 651. SPENCER: A TEORIA DA EVOLUÇÃO

Entre a religião, a que cabe o reconhecimento do incognoscível, e a ciência, a


que cabe todo o domínio do cognoscível, que lugar tem a filosofia? Spencer
definiu-a como o conhecimento no seu mais alto grau de generalidade (First
Princ., § 37). A ciência é conhecimento parcialmente unificado; a filosofia,
conhecimento completamente unificado. As verdades da filosofia são em relação
às verdades científicas mais altas o que estas são em relação às verdades
científicas mais baixas, de modo que as generalizações da filosofia
compreendem e consolidam as mais vastas generalizações da ciência. A filosofia
é o produto final desse processo que começa com a recolha de observações
isoladas e termina com as proposições univer-

26

sais. Por isso, deve tomar como material próprio e

ponto de partida os princípios mais vastos e mais gerais a que a ciência


chegou.

Tais princípios são: a indestrutibilidade da matéria, a continuidade do


movimento, a persistência da força-com todas as suas consequências entre as
quais se encontra a lei do ritmo, ou seja, da alternância de elevação e queda
no desenvolvimento de todos os fenómenos. A fórmula sintética que estes
princípios gerais requerem é uma lei que implica a

contínua redistribuição da matéria e da força. Tal é, segundo Spencer, a lei


da evolução, que significa que a matéria passa de um estado de dispersão a um
estado de integração (ou concentração), enquanto a

força que operou a concentração se dissipa. A filosofia é, portanto,


essencialmente uma teoria da evolução.

Os Primeiros princípios definem a natureza e os caracteres gerais da evolução:


as outras obras de Spencer estudam o processo evolutivo nos diversos domínios
da realidade natural. A primeira determinação da evolução é que ela é uma
passagem de uma

forma menos coerente a uma forma mais coerente. O sistema solar (que saiu de
uma nebulosa), um organismo animal, uma nação, mostrando, no seu
desenvolvimento, esta passagem de um estado de desagregação a um estado de
coerência e de harmonia crescentes. Mas a determinação fundamental do processo
evolutivo é o que o caracteriza como passagem do homogéneo ao heterogéneo.
Esta caracterização é sugerida a Spencer pelos fenómenos biológicos. Todo o
organismo, planta ou animal, se desenvolve através

27

cia diferenciação das suas partes, que a princípio são, química ou


biologicamente, indistintas, e logo se diferenciam para formar tecidos e
órgãos diversos. Spencer crê que este processo é próprio de todo o
desenvolvimento, em qualquer campo da realidade: na linguagem, primeiro
constituída por simples exclamações e sons inarticulados e que logo se
diferenciam em palavras diversas como na arte, que, a partir dos povos
primitivos, cada vez mais se vai dividindo nos seus ramos (arquitectura,
pintura, escultura, artes plásticas) e

direcções. Finalmente, a evolução implica também urna passagem do indefinido


ao definido: indefinida é, por exemplo, a condição de uma tribo selvagem em

que não existe especificação de tarefas e de funções; definida a de um povo


civilizado, assente na divisão do trabalho e das classes sociais. Spencer usa,
pois, esta fórmula definitiva da evolução (First Princ., § 145): "A evolução é
uma integração de matéria e

uma concomitante dissipação do movimento, durante a qual a matéria passa de


uma homogeneidade indefinida e incoerente a uma heterogeneidade definida e

coerente; e durante a qual o movimento conservado sofre uma transformação


paralela".

A evolução é um processo necessário. A homogeneidade, que é o seu ponto de


partida, é um estado instável que não pode durar e deve passar ao estado de
heterogeneidade para alcançar o equilíbrio. Por isso, a evolução deve começar;
uma vez começada, deve continuar porque as partes que permanecem homogéneas
tendem, por seu turno, para a sua instabilidade, para a heterogeneidade. O
sentido deste processo necessário e contínuo é optimista. Spencer ad-

28

mite que, na lei do ritmo, a evolução e a dissolução, onde quer que se


verifique, é a premissa de uma

evolução ulterior. Pelo que respeita ao homem, a evolução deve determinar uma
crescente harmonia entre a sua natureza espiritual e as condições de vida. "E
esta é, diz Spencer (1b., § 176), a garantia para crer que a evolução só pode
terminar com o estabelecimento da maior perfeição e da mais completa
felicidade".

Spencer nega que a sua doutrina possa ter um

significado materialista ou espiritualista e considera a disputa entre estas


duas orientações como uma mera

guerra de palavras. Quem esteja convencido de que o último mistério há-de


permanecer sempre, está disposto a formular todos os fenómenos, seja em termos
de matéria, movimento e força, seja noutros termos, mas sustentará firmemente
que só numa doutrina que reconheça a causa desconhecida como coextensiva a
todas as ordens dos fenómenos, pode haver uma religião coerente e uma coerente
filosofia. Verá que a relação de sujeito e objecto torna necessárias as
concepções antitéticas de espírito e matéria; mas considerará uma e outra como
sinais da realidade desconhecida subjacente a ambas (Ib., § 194).

§ 652. SPENCER: BIOLOGIA E PSICOLOGIA

As obras de Spencer dedicadas à biologia, à psicologia, à sociologia e à ética


constituem a aplicação do princípio evolutivo ao campo destas ciências.

29

A biologia é, para Spencer, o estudo da evolução dos fenómenos orgânicos e da


sua causa. A vida consiste na combinação de fenómenos diversos, contemporâneos
e sucessivos, a qual se encontra em correspondência com mutações simultâneas
ou sucessivas do ambiente exterior. Eis porque consiste essencialmente na
função da adaptação; e é precisamente através desta função que se formam e se
diferenciam os órgãos, a

fim de corresponderem cada vez melhor às solicitações do exterior. Spencer


atribui assim o primeiro lugar, na

transformação dos organismos vivos, ao princípio lamarckiano da função que


cria o órgão; reconhece, porém, a acção do princípio darwiniano da selecção
natural (a que ele chama "sobrevivência, do mais apto"), que, todavia, não
pode actuar senão através da adaptação ao ambiente e, portanto, do
desenvolvimento funcional dos órgãos. Insiste, sobretudo, na

conservação e na acumulação das mudanças orgânicas individuais por obra da


hereditariedade; e concebe o progresso da vida orgânica como adaptação
crescente dos organismos ao ambiente por acumulação das variações funcionais
que respondem melhor aos requisitos ambientais.

A consciência é um estádio desta adaptação; e, mais, é a sua fase decisiva.


Spencer não admite a

redução integral da consciência às impressões ou às ideias, segundo a doutrina


tradicional do empirismo inglês. A consciência pressupõe uma unidade, uma
força originária; por conseguinte, uma substância espiritual que seja a sede
desta força. Mas, tal como se verifica na substância e na força material,
também a substância e a força espiritual são, na sua natureza

30
última, incognoscíveis; e a psicologia deve limitar-se a

estudar as suas manifestações. Todavia, é possível uma psicologia como ciência


autónoma; e Spencer afasta-se da tese de Comte, que a negara. Há uma

psicologia objectiva que estuda os fenómenos psíquicos no seu substracto


material; e há uma psicologia subjectiva, fundada na introspecção que "
constitui uma ciência completamente à parte, única no seu

género, independente de todas as outras ciências e C1,1

antiteticamente oposta a cada uma delas" (Princ. of Psych. § 56). Só a


psicologia subjectiva pode servir de apoio à lógica, isto é, pode contribuir
para determinar o desenvolvimento evolutivo dos processos do pensamento. Tal
desenvolvimento explica-se, contudo, como qualquer outro desenvolvimento; é um
processo de adaptação gradual que vai da acção reflexa, que é a primeira fase
do psíquico, através do instinto e da memória, até à razão. No que respeita a
esta última, Spencer admite que existem noções ou verdades à priori no sentido
de serem independentes da experiência pontual e temporal do indivíduo; e nesse
sentido reconhece a parcial legitimidade das doutrinas "apriorísticas", como
as de Leibniz e Kant. Mas o que neste sentido é à priori para o

indivíduo, não o é para a espécie humana, dado que resulta da experiência


acumulada pela espécie através de um longuíssimo período de desenvolvimento, e
que se fixou e tomou hereditária na estrutura orgânica do sistema nervoso
(1b., §§ 426-33). É evidente que aqui o a priori é entendido no sentido da
uniformidade e da constância de certos procediinentos intelectuais, não no
sentido da validez.

31

Não se poderia, de facto, excluir a possibilidade de que as experiências


acumuladas fixadas pela sucessão das gerações contenham, além de verdades,
erros, prejuízos e distorções. Mas uma possibilidade deste género é
tacitamente excluída por Spencer devido ao

significado optimista ou exaltante que o processo evolutivo reveste para ele


em todos os campos. Uma evolução intelectual é, como tal, aquisição e
incremento de verdade; mais ainda, é a própria verdade em progresso através da
sucessão das gerações.

§ 653. SPENCER: SOCIOLOGIA E ÉTICA

Embora utilizando alguns resultados da sociologia de Comte e aceitando o nome


da ciência que Comte inventara, Spencer modifica radicalmente o conceito
desta. Com efeito, para Comte, a sociologia é a disciplina que, descobrindo as
leis dos factos sociais, permite prevê-los e orientá-los, o fim da sociologia
é a sociocracia, a fase da sociedade em que o positivismo se tornará regime.
Para Spencer, ao invés, a sociologia deve limitar-se a uma tarefa puramente
descritiva do desenvolvimento da sociedade humana até ao ponto a que chegou
hoje. É certo que pode determinar as condições a que o desenvolvimento
ulterior deverá satisfazer; mas não as metas e os ideais a que ele tende.
Determinar as metas, isto é, estabelecer qual deve ser o homem ideal numa
sociedade ideal, é o objectivo da moral. A sociologia e a moral, que eram uma
só coisa na obra de Comte, são assim distinguidas claramente por Spencer.
32

A sociologia determina as leis da evolução super-orgânica e considera a


própria sociedade humana como um organismo, cujos elementos são, primeiro, as
famílias, e depois os indivíduos singulares. O organismo social distingue-se
do organismo animal pelo facto de a consciência pertencer apenas aos elementos
que a compõem. A sociedade não tem um sensório como o animal: vive e sente só
nos indivíduos que a compõem. A sociologia de Spencer está nitidamente
orientada para o individualismo e, por conseguinte, para a defesa de todas as
liberdades individuais, em contraste com a sociologia de Comte e, em geral,
com a orientação social do positivismo. Um dos temas principais, tanto dos
Princípios de sociologia, como

das outras obras complementares (0 homem contra o estado, 1884-, Estatística


social, 1892), tema que domina de ponta a ponta a sociologia de Spencer, é o
princípio de que o desenvolvimento social deve ser abandonado à força
espontânea que o dirige e o

impulsiona para o progresso e que a intervenção do estado nos factos sociais


não faz senão perturbar e

obstar esse desenvolvimento. Ã objecção de que o

estado deve fazer alguma coisa para extinguir ou

diminuir a miséria ou a injustiça social, Spencer responde que o estado não é


o único agente que pode eliminar os males sociais, que existem outros agentes,
os quais, deixados em liberdade, podem conseguir melhor esse objectivo.
Ademais, nem todos os sofrimentos devem ser evitados, já que muitos são
curativos, e eliminá-los significa eliminar o remédio. Além disso, é quimérico
supor que todos os males podem ser debelados; existem defeitos da natureza

33

humana que, se se lhes aplicar um pretenso remédio, voltam a surgir noutro


ponto e se tomam ainda mais graves (Social Statics, ed. 1892). O homem contra
o

estado visa a combater "o grande preconceito da época presente": o direito


divino do Parlamento, que substituiu o grande preconceito da época passada: o
direito divino da monarquia. Um verdadeiro liberalismo deve negar a autoridade
ilimitada do Parlamento, como o velho liberalismo negou o ilimitado poder do
monarca (Man versus the State, ed. 1892, p. 292, 369). De resto, a crença na
omnipotência do governo gera as revoluções que pretendem obter pela força do
estado toda a espécie de coisas impossíveis. A ideia exorbitante do que o
estado pode fazer, por um lado, e os insignificantes resultados a que o estado
chega, geram sentimentos extremamente hostis à ordem social (Social Statics,
p. 131).

O conceito de um desenvolvimento social lento, gradual e inevitável, torna


Spencer extremamente alheio às ideias de reforma social que haviam sido
acariciadas pelo positivismo social, incluindo nestes os utilitaristas e
Stuart Mill. "Da mesma maneira que não se pode abreviar a vida entre a
infância e a maturidade, evitando aquele monótono processo de crescimento e de
desenvolvimento que se opera insensivelmente com leves incrementos, também não
é possível que as formas sociais inferiores se tornem mais elevadas, sem
atravessarem pequenas modificações sucessivas" (The Study of Soc., 16,
Concl.).
O processo da evolução social é de tal modo predeterminado que nenhum ensino
ou disciplina pode fazer com que ultrapassem aquele limite de velocidade

34

que lhes é imposto pela modificação dos seres humanos. Antes que se possam
verificar nas instituições humanas transformações duradouras, que constituam
uma verdadeira herança da raça, é necessário que se repitam até ao infinito
nos indivíduos os sentimentos, os pensamentos e as acções que são o seu
fundamento. Por isso, toda a tentativa de forçar as etapas da evolução
histórica, todos os sonhos de visionários ou de utopistas têm como único
resultado retardar ou subverter o processo natural da evolução social.

Isto não implica, segundo Spencer, que o indivíduo deva passivamente


abandonar-se ao curso natural dos eventos. O próprio desenvolvimento social
determinou a passagem de uma fase de cooperação humana constritiva e imposta a
uma fase de cooperação mais livre e espontânea. É esta a passagem do regime
militar caracterizado pela prevalência do poder estatal sobre os indivíduos,
aos quais impõe tarefas e funções, ao regime industrial, que é fundado, pelo
contrário, na actividade independente dos indivíduos, a quem leva a reforçar
as suas exigências

e a respeitar as exigências dos outros, fortalecendo a

consciência dos direitos pessoais e decidindo-os a resistirem ao excesso do


controlo estatal. Contudo, Spencer não julga definitivo o regime industrial
(no qual, aliás, a sociedade actual ainda agora entrou). É possível antever-se
a possibilidade de um terceiro tipo social, o qual, embora sendo fundado, como
o

industrial, na livre cooperação dos indivíduos, imponha móbeis altruístas em


vez dos egoístas, que regem o regime industrial; ou, melhor ainda, concilie o
al-

35

truísmo com o egoísmo. Tal possibilidade porém, não pode ser prevista pela
sociologia, mas unicamente pela ética.

A ética de Spencer é, substancialmente, uma ética biológica, que tem por


objecto a conduta do homem, isto é, a adaptação progressiva do homem mesmo às
suas condições de vida. Tal adaptação implica não só um prolongamento da vida
mas a sua maior intensidade e riqueza. Entre a vida de um selvagem e a de um
homem civilizado não existe só uma diferença de duração, mas também de
extensão: a do homem civilizado implica a consecução de fins muito mais
variados e ricos, que a tornam mais intensa e extensa. Esta crescente
intensidade é aquilo que se deve entender por felicidade. Dado que é bom todo
o acto adequado ao seu fim, a vida que se apresenta, em conjunto, mais bem
adaptada às suas condições é também a vida mais feliz e agradável. Por
conseguinte, o bem identifica-se com o prazer; e a moral hedonística ou
utilitarista é, sob um certo aspecto, a única possível. Spencer, contudo, não
admite o utilitarismo na forma que ele assumira na obra de Bentham e dos dois
Mill. O móbil declarado e consciente da acção moral do homem não é nem pode
ser a utilidade. A evolução social, acumulando com a sua herança um número
enorme de experiências morais que permanecem inscritas na estrutura orgânica
do indivíduo, fornece ao próprio indivíduo um a priori moral, que o é para ele
embora o não seja para a espécie. Deve admitir-se que o homem individual age
por dever, por um sentimento de obrigação moral; mas a ética evolutiva dá
conta do nascimento deste

36

sentimento, mostrando como ele nasce das experiências repetidas e acumuladas


através da sucessão de inúmeras gerações. Estas experiências produziram a

consciência de que o deixar-se guiar por sentimentos que se referem a


resultados longínquos e gerais é, habitualmente, mais útil para se alcançar o
bem-estar do que deixar-se guiar por sentimentos que devem ser

imediatamente satisfeitos, e transformaram a acção externa política, religiosa


e social, num sentimento de coacção puramente interior e autónomo.

Mas esta reflexão sobre a evolução demonstra também que o sentido do dever e
da educação moral é transitório e tende a diminuir com o aumento da moral.
Ainda hoje acontece que o trabalho que deve ser imposto ao rapaz como uma
obrigação se resolve numa manifestação espontânea do homem de negócios
submerso nos seus assuntos. Assim, a manutenção e a protecção da mulher por
parte do marido, a

educação dos filhos por parte dos pais, não têm, o

mais das vezes, nenhum elemento coactivo, mas são deveres que se cumprem com
perfeita espontaneidade e prazer. Spencer prevê, por isso, que "com a

completa adaptação ao estado social, aquele elemento da consciência moral que


é expresso pela palavra obrigação, desapareça de todo, As acções mais
elevadas, requeridas pelo desenvolvimento harmónico da vida, serão factos tão
comuns como o são agora as acções inferiores a que nos impele o simples
desejo" (Data of Ethics, § 46). Esta fase final da evolução moral não implica
a prevalência absoluta do altruísmo a expensas do egoísmo. A antítese entre
egoísmo e

altruísmo é natural na situação presente, que se ca-

37

racteriza pela prevalência indevida das tendências egoístas e na qual, por


isso, o altruísmo assume a forma de um sacrifício destas tendências. Mas a
evolução moral, fazendo coincidir cada vez mais a

satisfação do indivíduo com o bem-estar e a felicidade dos outros ( e é nisto


que consiste a simpatia), provocará o acordo final do altruísmo com o egoísmo.
"0 altruísmo que deverá surgir no futuro, diz Spencer, não é um altruísmo que
esteja em oposição ao egoísmo, mas virá, por fim, a coincidir com este em
grande parte da vida, e exaltará as satisfações que são egoístas por
constituírem prazeres fruídos pelo indivíduo, embora sejam altruístas pela
origem de tais prazeres" (Data of Ethics, App.).

§ 654. DESENVOLVIMENTO DO POSITIVISMO

O positivismo de Comte e de Spencer determinou rapidamente a formação de um


clima cultural que deu os seus frutos fora do campo da filosofia, na
crítica histórica e literária, no teatro e na literatura narrativa. Em
Inglaterra, o positivismo seguiu (salvo algumas excepções, § 638 sgs.) a
orientação evolucionista. Os seguidores de Spencer foram, nos últimos
decénios do século XIX, numerosos, e numerosíssimas as obras que defenderam,
difundiram e expuseram, em todos os aspectos positivos e polémicos, os pontos
fundamentais do positivismo. Trata-se, porém, de uma produção mais divulgadora
do que filosófica, dado que nela os elementos de investigação original são
mínimos e raramente apresentam novos

38

problemas ou novas abordagens dos mesmos problemas. Já nos referimos a Tomás


Huxley (1825-95), que foi o inventor do termo agnosticismo (0 lugar do homem
na natureza, 1864; Sermões laicos, 1870; Críticas e orientações, 1873-,
Orientações americanas,
1877; Hume, 1879; Ciência e cultura, 1881; Ensaios,
1892; Evolução e ética, 1893; Ensaios recolhidos,
9 vol., 1893-1894; etc.). Nas obras de Huxley não se

encontra o carácter religioso e romântico da especulação de Spencer. Matéria e


força não são para ele manifestações de um incognoscível divino, mas

apenas nomes diversos para determinar estados de consciência; nem tão-pouco


corresponde à lei natural uma realidade transcendente qualquer, porque é
apenas uma regra comprovada pela experiência e que se supõe o seja no futuro.
Explicam-se deste ponto de vista as simpatias de Huxley por Hume, ao qual
dedicou uma monografia, reprovando-o contudo por não

ter reconhecido, juntamente com as impressões e as

ideias, uma terceira ordem de impressões: "as impressões de relações" ou


"impressões de impressões", que correspondem ao nexo de semelhança entre as
próprias impressões.

William Clifford (1845-79) procurou elaborar uma

doutrina da coisa em si do ponto de vista do evolucionismo (Lições e ensaios,


1879). O objecto fenoménico é um grupo de sensações que são mutações na minha
consciência. As sensações de um outro ser não podem, porém, tornar-se objectos
da minha consciência: são expulsões (ejections), que consideramos como
objectos possíveis de outras consciências e que nos dão a convicção da
existência da realidade exte-

39

rior. A teoria da evolução, mostrando-nos uma ininterrupta série de


desenvolvimentos, desde os elementos inorgânicos aos mais altos produtos
espirituais, torna verosímil admitir que todo o movimento da matéria seja
acompanhado por um acto expulsivo que pode constituir o objecto de uma
consciência. E dado que estes actos expulsivos não são outra coisa senão as
próprias sensações, a sensação é a verdadeira coisa em si, o ser absoluto, que
não exige relações com nenhum outro, e nem sequer com a consciência. Ela é o
átomo psíquico, cujas combinações constituem as consciências mesmas. O
pensamento não é mais do que a imagem inadequada deste mundo de átomos
originários. A estas estranhas especulações de Clifford se encontra ligado G.
S. Romanes (1848-94), autor de Um cândido exame do teísmo (1878), que conclui
negativamente acerca da possibilidade de conciliar o teísmo com o
evolucionismo, e de outros escritos (Espírito, movimento e monismo,
1895; Pensamentos sobre a religião, 1896), nos quais se inclina para o monismo
materialista de Haeckel.

Outros pensadores desenvolveram o positivismo evolucionista em Inglaterra no


campo da antropologia e da psicologia, como Francis Galton (1822-1911) e como
Grant Allen. (1848-99), que estudou sobretudo a psicologia e a filosofia dos
sentimentos estéticos e foi também autor de uma obra intitulada a Evolução da
ideia de Deus (1879), que é uma crítica do teísmo. Outros desenvolveram o
evolucionismo no terreno das análises morais, como Leslie e Stephen (1832-
1904), autor de uma obra intitulada Ciência da ética (1882), assim como de
meritórios estudos histó-

40

ricos sobre a filosofia inglesa do século XVIII e dos princípios do século


XIX; e como Eduardo Westermarck, autor de uma vasta obra, Origem e
desenvolvimento das ideias morais (1906-08). Exerceu uma influência
notabilissiraa sobre as investigações psicológicas do século XIX a obra de
Alexandre Bain (1818-1903), que foi um rigoroso defensor do associacionismo
psicológico e admitiu, justamente com a associação por contiguidade e
semelhança, uma terceira forma de associação, a "construtiva", que actuará na

fantasia e na investigação científica. O sentido e o entendimento (1855), As


emoções e a vontade (1859) são as principais obras psicológicas de Bain, que
se

ocupou também de lógica, de ética e de educação (Ciência mental e ciência


moral, 1868; Lógica, 1870; Espírito e corpo, 1873; A educação como ciência,
1878).

§ 655. CLÁUDIO BERNARD

No clima do positivismo, de que no entanto não partilhava todas as teses, se


inscreve a obra do fisiólogo francês Cláudio Bernard (1813-78), autor de um

dos mais importantes escritos oitocentistas de metodologia da ciência, a


Introdução à medicina experimental (1865).

A filosofia e a ciência, segundo Bernard, devem unir-se, sem que uma pretenda
dominar a outra. "A sua separação - afirma - seria nociva aos progressos do
conhecimento humano. A filosofia que tende incessantemente a elevar-se, faz
remontar a ciência à causa ou à origem das coisas. Mostra que fora da ciência

41

existem questões que atormentam a humanidade e que a ciência ainda não


resolveu" (Intr. à Pétude de Ia médecine expérimentale, 111, IV, § 4). Se o
liame entre a filosofia e a ciência se rompe, a filosofia perde-se nas nuvens,
e a ciência, ficando sem direcção, pára ou procede ao acaso. Nesta relação,
todavia, a

ciência deve ter a liberdade de proceder segundo o

seu método e deve, sobretudo, evitar fixar em sistemas ou doutrinas as suas


hipóteses directivas. A ciência não tem necessidade de sistemas ou doutrinas,
ruas sim de hipóteses que possam ser submetidas à verificação. " O método
experimental, enquanto método científico, baseia-se inteiramente na
verificação experimental de uma hipótese científica. Esta verificação pode
obter-se tanto por meio de uma nova observação (ciência de observação) como
por meio de uma

experiência (ciência experimental). No método experimental, a hipótese é uma


ideia científica que se

tem de submeter à experiência . A invenção científica reside na criação de uma


hipótese feliz e fecunda, que é dada pelo sentimento ou pelo génio do
cientista que a criou" (Ib., 11, IV, § 4).O axioma fundamental do método
experimental é o determinismo, isto é, a concatenação necessária entre um
facto e as suas condições. "Perante qualquer fenómeno dado, um

experimentador não poderá admitir nenhuma variação na expressão deste fenómeno


sem admitir que ao

mesmo tempo tenham sobrevindo condições novas,

na sua manifestação; além disso, terá a certeza a priori de que estas


variações são determinadas por relações rigorosas e matemáticas" (Ib., 1, 11,
§ 7). Bernard distingue o determinismo como axioma experimental

42

do fatalismo como doutrina filosófica. "Demos o

nome de determinismo à causa próxima ou determinante dos fenómenos. Não


operamos nunca sobre a essência dos fenómenos da natureza mas apenas sobre o
seu determinismo e pelo próprio facto de operarmos sobre ele, o determinismo
difere do fatalismo sobre o qual não se poderia actuar. O fatalismo supõe a
manifestação necessária de um fenómeno independente das suas condições, ao
passo que o determinismo é a condição necessária de um fenómeno cuja
manifestação não é forçada" (1b., 111, IV, § 4). Trata-se, diremos nós, de um
"determinismo metodológico": do ponto de vista do qual, observa Bernard, "não
há nem espiritualismo, nem matéria bruta, nem matéria viva; existem só
fenómenos de que é necessário determinar as condições, isto é , as
circunstâncias que constituem a causa próxima dos mesmos" (1b., HI, IV, § 4).

Deste ponto de vista, Cláudio Bernard recusa-se a

operar a redução (tão cara ao materialismo do seu tempo) dos fenómenos vitais
aos fenómenos físico-químicos. Os fenómenos vitais podem ter, sem dúvida,
caracteres próprios e leis próprias, irredutíveis aos da matéria bruta. Não
obstante, o método de que a biologia dispõe é o método experimental das
ciências físico-químicas. A unidade do método não implica a redução destes
fenómenos às leis que os regem Qb., 11, 1, § 6). Mais especificamente, os
organismos vivos, embora podendo ser considerados como "máquinas", manifestam
com respeito às máquinas não vivas um maior grau de independência em relação
às condições ambientais que lhes permitem o funcio-

43

namento. Aperfeiçoando-se, tomam-se pouco a pouco mais "livres" do ambiente


cósmico geral no sentido de que já não estão à mercê deste ambiente. O
determinismo interno, todavia, não desaparece nunca, antes se torna tanto mais
rigoroso quanto mais o organismo tende a subtrair-se ao determinismo do
ambiente externo" (1b., 11, 1, § 108).

As ideias de Cláudio Bernard conservam ainda hoje, nas linhas gerais que aqui
lembramos, um equilíbrio que as torna apreciáveis, não apenas como fase
histórica importante no desenvolvimento da metodologia das ciências, mas
também como uma indicação ainda válida para os desenvolvimentos das ciências
biológicas. Bernard partilha com o positivismo a aversão à metafísica e a fé
nas possibilidades da ciência: não partilha, porém, as tendências
reducionistas; recusa-se a reduzir a filosofia à ciência, como se recusa a
reduzir o espírito à matéria ou a

vida aos fenómenos físico-químicos. As teses reducionistas do positivismo


foram difundidas em França por Taine e Renan.

§ 656. TAINE E RENAN

Hipólito Taine (1828-93), já no seu Ensaio sobre as fábulas de La Fontaine


(1853), exprimia nestes termos o seu conceito do homem: "Pode-se considerar o
homem como um animal de espécie superior que produz filosofias e poemas, pouco
mais ou menos como os bichos de seda fazem os seus casulos e as abelhas os
seus alvéolos". Em Os filósofos fran-

44

ceses do século XIX (1857), Taine condenava em bloco o movimento


espiritualista e via o progresso da ciência na análise dos factos positivos e
na explicação de um facto pelo outro. Um passo da introdução da História da
literatura inglesa (1836) tornou-se famoso como expressão característica do
método que Taine pretende aplicar à crítica literária e à história como aos
problemas da filosofia. "0 vício e a virtude, - escreve ele - são produtos
corno o ácido sulfúrico e o açúcar, e todo o dado complexo nasce do encontro
de outros dados mais simples de que depende". Por consequência, Taine crê que
a raça, o ambiente exterior e as condições particulares do momento determinam
necessariamente todos os produtos e os valores humanos, e bastam para os
explicar. A Filosofia da arte (1856) obedece ao princípio de que a

obra de arte é o produto necessário do conjunto das circunstâncias que a


condicionam e que, consequentemente, se pode extrair destas não só a lei que
regula o desenvolvimento das formas gerais da imaginação humana, mas também a
que explica as variações do estilo, as diferenças das escolhas nacionais e até
os caracteres originais das obras individuais.

A obra Sobre a inteligência (1870) é talvez a mais rigorosa, e decerto a mais


genial tentativa de reduzir toda a vida espiritual a um mecanismo sujeito a
leis em tudo semelhantes, pela sua necessidade rigorosa, às naturais. Taine
afirma que "é preciso pôr de lado as palavras razão, inteligência, vontade,
poder pessoal e, até o termo eu; como também se devem pôr de parte as palavras
força vital, força curativa, alma vegetativa. Trata-se de metáforas
literárias, cómodas,

45

quando muito, como expressões abreviativas e sumárias para exprimir estados


gerais e efeitos de conjunto" . A observação psicológica não descobre outra
coisa mais do que sensações e imagens de diversas espécies, primárias ou
consecutivas, dotadas de certas tendências e modificadas no seu
desenvolvimento pelo concurso ou pelo antagonismo de outras imagens
simultâneas ou contíguas (De Vínte11--- 1903, 1, p. 124). Por outros termos,
toda a vida psíquica se reduz ao movimento, ao choque, ao contraste e ao
equilíbrio das imagens, que, por seu turno, derivam totalmente das sensações.
"Chegados à sensação, estamos no

limite do mundo moral; daqui ao mundo físico há um abismo, um mar profundo que
nos impede de praticar as nossas sondagens ordinárias" (1b., p. 242). Mundo
físico e mundo psíquico são duas faces da mesma realidade, uma das quais é
acessível à consciência, a outra aos sentidos. Mas, ao passo que o

ponto de vista da consciência é o imediato e directo, a percepção externa é


indirecta. "Não nos informa dos caracteres próprios do objecto; informa-nos
somente de uma certa classe dos seus efeitos. O objecto não nos é mostrado
directamente mas é-nos indicado indirectamente pelo grupo de sensações que ele
desperta ou despertaria em nós" (1b., 1, p. 330). Taine apoia-se, neste ponto,
na autoridade de Stuart Mill: mas acha possível, contra Stuart Mill,
"restituir aos

corpos a sua existência efectiva", reduzindo o testemunho da consciência e a


percepção sensível externa (que são as únicas duas maneiras de conhecer) a um

mínimo de determinação comum que seria a sua comum objectividade e, portanto,


o seu objecto real.

46

Neste caso, sensação e consciência reduzem-se ao movimento (porque o movimento


é a mínima objectividade comum que elas possuem), e podem, por isso, ser
consideradas como duas traduções do texto originário da natureza (Ib., 11, p.
117, n. 1). quanto aos conceitos, são, para Taine, simplesmente "sons
significativos", produzidos originariamente pelos objectos e empregados
depois, independentemente deles, por razões de semelhanças ou analogias. O
conhecimento racional é constituído por juízos gerais que são cópias de signos
ou sons deste género. Assim como os últimos elementos de uma catedral são
órgãos de areia ou de silex aglutinados em pedras e formas diversas, assim
também os últimos elementos do conhecimento humano se reduzem a sensações
infinitesimais, todas iguais, que com as

suas diversas combinações produzem as diferenças do conjunto (1b., 11, p.


463),

Emesto Renan (1823-92) foi outro grande expoente do positivismo francês da


segunda metade do século XIX. Na sua obra filológica, histórica e crítica,
Renan inspirou-se constantemente num positivismo que, embora não tendo a
lucidez e a força do de Taine, deixando-se arrastar às vezes por nostalgias
espiritualistas e religiosas, não é, em substância, menos rigoroso. O futuro
da ciência, escrito em 1848 mas publicado em 1890, é o credo filosófico
positivista de Renan e um verdadeiro hino de exaltação romântica à ciência. Aí
se pode ver, decerto, a influência que exerceu sobre Renan o materialismo do
químico Marcelino Berthelot (1827-1907), seu companheiro de juventude; mas,
conquanto Renan depressa tenha dei-

47

xado esmorecer o seu entusiasmo optimista pela ciência, as suas ideias


permaneceram substancialmente imutáveis. "A ciência, e só a ciência, pode dar
à humanidade aquilo que lhe é indispensável para viver, um símbolo e uma lei",
escrevia Renan (Av. de la sc.,
1894, p. 3 1) -, e via o fim último da ciência na "organização científica da
humanidade". A religião do futuro será o "humanismo, o culto de tudo o que
pertence ao homem, a vida inteira santificada e elevada a um valor moral"
(1b., p. 101). A própria filosofia depende da ciência, pois que o seu escopo é
recolher e

sintetizar os resultados gerais desta última. "A filosofia é a cabeça comum, a


região central do grande feixe do conhecimento humano, em que todos os raios
se confundem numa luz idêntica" (1b., p. 159). Ela não pode resolver os
problemas do homem senão dirigindo-se às ciências particulares que lhe
fornecem os

elementos destes mesmos problemas. . Mas, dado que a humanidade está em


permanente devir, a história é a verdadeira ciência da humanidade (1h., p,
149). E à história Renan dedicou boa parte da sua actividade. Os estudos sobre
Averróis e averroísmo (1852) tendem a demonstrar que a ortodoxia religiosa
impediu entre os maometanos a evolução do pensamento científico e filosófico.
As origens do cristianismo, cujo primeiro volume é a famosa Vida de Jesus
(1863), baseiam-se inteiramente no pressuposto de que as doutrinas do
cristianismo não podem ser valorizadas do ponto de vista do miraculoso ou do
sobrenatural, mas apenas como a manifestação de um ideal moral em perfeito
acordo com a paisagem e com as condições materiais em

48

TAINE

que nasceu. A História do povo de Israel, que Renan começou a compor aos
sessenta anos, devia mostrar como se formou entre os profetas uma religião sem

dogmas nem cultos. Os Diálogos e fragmentos filosóficos (1876) e o Exame de


consciência filosófico (1889, em Folhas soltas, 1892) confirmam
substancialmente a atitude positivista de Renan. Nestas obras, a

filosofia ainda é concebida como "o resultado geral de todas as ciências"; e


afirma-se que a filosofia decaiu e degenerou quando pretendeu ser uma
disciplina à parte, como aconteceu com a escolástica medieval, na época do
cartesianismo, e nas tentativas de Schelling e de Hegel. Nestes últimos
escritos de Renan acentua-se a nostalgia sentimental pela religião; contudo,
não lhe reconhece outra utilidade senão a de uma hipótese capaz de sugerir
determinadas atitudes morais. "A atitude mais lógica do pensador perante a
religião, afirma Renan (Feuilles détachées, 1892, p. 432), é a de proceder
como se ela fosse religiosa. É preciso agir como se Deus e a alma existissem.
A religião entra assim no número de muitas outras hipóteses, como o éter, os
diversos fluídos, o eléctrico, o luminoso, o calórico, o nervoso e o próprio
átomo, os quais sabemos bem serem apenas símbolos, meios cómodos para explicar
os fenómenos, e que, no entanto, conservamos".

A psicologia positivista francesa parte de Taine e tem por fundador Teodoro


Ribot (1839-1916), cujo primeiro trabalho é precisamente um estudo intitulado
A psicologia inglesa contemporânea (1870) e que em seguida se dedicou,
sobretudo, ao estudo psicológico

49

da vida afectiva, reivindicando a independência desta contra as teses


clássicas do associacionismo.

§ 657. POSITIVISMO: A SOCIOLOGIA

O clima positivista foi particularmente favorável ao desenvolvimento da


sociologia no sentido que Spencer dera a esta disciplina, ou seja, como
ciência descritiva das sociedades humanas na sua evolução progressiva.

Em Inglaterra John Lubbock (1834-1913) procurou mostrar, através do estudo e


interpretação de um abundante material etnológico, que existiram e

existem povos que nunca conheceram qualquer forma de religião (Tempos pré-
históricos, 1865). E. B. Taylor (1832-1917) viu, ao invés, no mito o
precedente não só das religiões mas também das filosofias espiritualistas
modernas. Considera o animismo, isto é, a crença difundida em todos os povos
primitivos, de que todas as coisas estão animadas, a forma primitiva da
religião e da metafísica (Investigações sobre a história primitiva da
humanidade, 1865; A cultura primitiva, 1870; Antropologia, 1881; Ensaios,
antropológicos, 1907).

Nos Estados Unidos da América a sociologia spenceriana foi introduzida por


William. G. Summer (1840-1910), cuja obra principal, Folkways (1906), é

considerada clássica como estudo comparativo dos modos de vida e dos costumes
próprios de grupos sociais diversos.

50

Em França, a sociologia sofre a primeira viragem metodológica importante por


obra de Emilio Durkheim (1858-1917), cujo ensaio As regras do método
sociológico (1895), ao mesmo tempo que põe em

crise a sociologia sistemática de Comte e Spencer, que pretende ser o estudo


do mundo social na sua totalidade, delineia as normas que devem guiar as

investigações sociológicas particulares. A primeira destas regras prescreve


que se devem considerar os factos como "coisas", isto é, como entidades
objectivas independentes das consciências dos indivíduos que estão envolvidos
nelas e também da consciência do observador que os estuda. Durkheim insistiu
também no carácter non-nativo ou construtivo que os factos sociais assumem,
sendo antes eles que determinam a

vontade dos indivíduos e, não esta que os determina, e constituindo portanto


uniformidades de tipo científico, das quais é possível determinar as leis.
Esta preeminência do factor social sobre o individual conduz Durkheim a ver na
religião o mito que a

sociologia constrói a partir de si mesma",, no sentido de que as realidades


admitidas pelas religiões seriam objectivações ou personificações do grupo
social (Formes élémentaires de la vie réligieuse, 1912).

A orientação iniciada por Durkheim foi depois continuada no período


contemporâneo por uma numerosa plêiade de sociólogos; e, mais directamente,
por Lucien Lévy-Brhul (1857-1939) (A moral e a ciência dos costumes, 1903; As
funções mentais nas sociedades inferiores, 1910; O sobrenatural e a natureza
lia mentalidade primitiva, 1931).
51

Mas desde então a sociologia cada vez mais se desligou das suas conexões
sistemáticas com o positivismo e, em geral, com todo o tipo de filosofia,
reivindicando a sua natureza de ciência autónoma e definindo de um modo cada
vez mais rigoroso os caracteres e o alcance dos seus instrumentos de
investigação. A esta orientação veio dar um contributo fundamental a obra de
Max Weber (§ 743).

§ 658. POSITIVISMO EVOLUCIONISTA: ARDIGó

O positivismo evolucionista teve na Itália um vigoroso defensor em Roberto


Ardigó, que exerceu notável influência sobre o clima filosófico italiano dos
últimos decénios do século XIX. Nascido em Casteldidone (Cremona) a 28 de
Janeiro de 1828, foi padre católico e abandonou o hábito aos 43 anos (em 1871)
quando considerou incompatíveis com o mesmo as

convicções positivistas que tinham vindo a amadurecer lentamente no seu


cérebro. Em 1881, foi nomeado professor de história da filosofia na
Universidade de Pádua. Ardigó pôs termo à vida a 15 de Setembro de
1920, quando o clima filosófico italiano se orientara já para o idealismo, que
tenazmente combatera nos últimos anos da sua vida. A sua primeira obra é um
ensaio intitulado Pedro Pomponazzi (1869), no

qual vê um precursor do positivismo. Seguiram-se: A psicologia como ciência


positiva (1870); A formação natural no fenómeno do sistema solar (1877); *
moral dos positivistas (1889); Sociologia (1879); * facto psicológico da
percepção (1882); O verda-

52

deiro (1891); Ciência da educação (1893); A razão (1894); A unidade da


consciência (1898), A doutrina spenceriana do incognoscível (1899) e outros
numerosos ensaios de carácter doutrinário ou polémico que expõem, sem os
alterar, os pontos fundamentais contidos nas principais obras citadas.

A doutrina de Ardigó é análoga à de Spencer: como Spencer, Ardigó considera


que a filosofia se reduz à organização lógica dos dados científicos; como
Spencer, admite que esta organização se efectua em virtude do princípio de
evolução; como Spencer, finalmente, sustenta que os dados fundamentais da
filosofia, o sujeito e o objecto, o eu e o mundo exterior, não são duas
realidades opostas, mas sim duas organizações diversas de um único conteúdo
psíquico (segundo a doutrina que Hume fizera prevalecer no empirismo inglês).
Sobre o primeiro ponto, Ardigó reivindica para si uma certa originalidade em

relação a Spencer e, em geral, à concepção positivista da filosofia, urna vez


que divide esta em ciências especiais, que seriam duas: a psicologia
(compreendendo a lógica, a gnóstica ou teoria do conhecimento, e a estética) e
a sociologia (incluindo a ética, a diceica ou ciência do justo e a econoraia);
e numa ciência geral, que teria por objecto o que está para além dos domínios
particulares destas ciências e a

que, por isso, dá o estranho nome de peratologia (ciência do que está para
além). Mas, precisamente, a

peratologia não tem outro objecto senão as noções mais gerais das disciplinas
científicas e filosóficas, e por isso é considerada por Ardigó como a sín-
53

tese das noções gerais destas ciências, segundo o conceito habitual do


positivismo.

De Spencer, distingue-se Ardigó em dois pontos: na geração do incognoscível e


na determinação do conceito de evolução; ambos os pontos se fundam na
orientação empírico-psicológica da sua doutrina. Acima de tudo, Ardigó rejeita
o raciocínio que ascende da relatividade do conhecimento humano à necessidade
do incondicionado que Spencer tomara de Hamilton. Todo o conhecimento
particular é relativo, mas isto não significa que o conhecimento seja relativo
na sua totalidade. Os conhecimentos particulares acham-se, de facto,
concatenados, de modo que uns são relativos aos outros; mas desta concatenação
nenhuma ilação se pode extrair sobre a relatividade do conhecimento total. Por
conseguinte, o

incognoscível não é o absoluto ou o incondicionado que está para lá do


conhecimento huniano e o sustenta, mas é antes o ignoto, ou seja, o que não se
tornou ainda conhecimento distinto, Opere, 11, 1884, p. 350). Tais
considerações implicam já o conceito de um indistinto, isto é, de um algo
apercebido confusa ou genericamente, que, todavia, impele o pensamento para a
análise e, por conseguinte, para um

conhecimento articulado e distinto. Ora, precisamente esta passagem do


indistinto ao distinto é o que constitui a evolução ou, corno Ardigó diz, a
"formação natural" de todo o tipo ou forma da realidade. Enquanto Spencer
extraíra da biologia o seu

conceito de evolução como passagem do homogéneo ao heterogéneo, Ardigó


preferiu definir a evolução em termos psicológicos ou de consciência. O indis-

54

tinto é tal relativamente, isto é, em relação a um

distinto que dele procede assim como todo o distinto é, por sua vez, um
indistinto para o distinto sucessivo, porque é o que produz, impele e explica
tal distinto. Toda a formação natural, no sistema solar como no

espírito humano, é uma passagem do indistinto ao

distinto; tal passagem dá-se necessária e incessantemente, segundo uma ordem


imutável, regulada por um ritmo constante, quer dizer, por uma alternância
harmónica de períodos. Mas o distinto nunca exaure o indistinto, que permanece
por debaixo dele e ressurge para além dele; e dado que o distinto é o finito,
é necessário admitir, para além do finito, o infinito como indistinto. "Tal
necessidade do infinito - diz Ardigó - como fundo e razão do finito, não
existe só na natureza mas também no pensamento. Mais ainda: existe no
pensamento precisamente porque existe na

natureza. Mesmo quando o pensamento o perde de vista, fixando-se no distinto


finito, ele, oculto, assiste-o e constitui a própria força da lógica do seu
discurso... Um pensamento isolado da mente de um

homem é aquele pensamento que existe com a evidência que possui, pelo conjunto
de toda a vida psíquica do homem, no qual se formou; mais ainda: que existe
pela vida de todos os outros homens desde o primeiro; e, portanto, pela
participação com o todo, na actualidade e no passado" (Op., 11, p, 129). E
Ardigó defende este infinito, que é um incessante desenvolvimento progressivo,
contra todas as negações que queiram interrompê-lo com o recurso a uma causa

ou a um fim último transcendente. Toda a formação natural, incluindo o


pensamento humano, é um "me-

55

teoro" que, nascido do indistinto, acabará de novo

por afundar-se no indistinto e perder-se nele (1b., p. 189).

Uma atenuação do determinismo rigoroso que o

positivismo admite em todos os processos naturais é introduzida por Ardigó com


a doutrina do acaso. A ordem global do universo pressupõe infinitas ordens
possíveis, e a actualização de uma ou de outro é devida ao acaso. Isto sucede
porque um acontecimento é, em geral, o produto da intersecção num dado ponto
do tempo, de séries causais diversas e divergentes; e, embora cada uma destas
séries seja necessária e determinada, o encontro delas não o é (1b., p. 258).
O pensamento humano é um destes produtos casuais da evolução cósmica. "0
pensamento que hoje encontramos na humanidade é um pensamento que se

formou pela continuação de acidentes infinitos, que se sucederam e se juntaram


por acaso uns aos outros; por isso, a justo título, se pode chamar ao
pensamento global da humanidade uma formação acidental, tal qual como a forma
bizarra de uma nuvenzinha, que no céu é impelida, antes de se desvanecer, pelo
vento e dourada pelo sol" (lb., p. 268). A acção do acaso determina a
imprevisibilidade e a relativa indeterminação de todos os acontecimentos
naturais, incluindo as acções humanas. Mas a imprevisibilidade e

indeterminação não significam liberdade para a vontade humana, do mesmo modo


que não é livre qualquer fenómeno natural. "A liberdade do homem, ou

seja, a variedade das suas acções, afirma Ardigó (Op., 111, p. 122), é o
efeito da pluralidade das séries psíquicas, ou dos instintos, se assim os
quisermos

56

chamar. E se ela é imensamente maior do que nos

outros animais, isso depende unicamente do facto de que a complexidade da sua


constituição psíquica, quer pela sua disposição intima, quer pelas suas
relações com o exterior, se presta a um número de combinações imensamente
maior". A liberdade humana é, portanto, um efeito daquele acaso que se

encontra em todas as ordens de fenómenos e que procede da variedade de


combinações das diversas séries causais.

O eu e o não-eu, a consciência humana e o mundo exterior são, eles também,


combinações causais e variáveis, e são constituídos ambos pelas sensações. As
sensações são a "nebulosa" em que se forma
e se organiza a psique, o indistinto, subjacente aos

distintos que se constituem, ligando-se, num único organismo lógico. Mas são
também a nebulosa e o indistinto de que se origina o mundo exterior na
distinção dos seus objectos. Ardigó chama auto-síntese à formação do eu e
hetero-síntese à formação do mundo objectivo; mas, salvo a do nome, não existe
qualquer diferença entre os processos formativos. "Assim como no cosmo
material os elementos que lhe pertencem, o hidrogénio, o oxigénio, o carbono,
o azoto, são comuns e se convertem ou no indivíduo orgânico ou nas coisas
ambientais mediante os agrupamentos formativos que as fixam ou no indivíduo ou
nas coisas, assim no cosmo mental os elementos da sensação são de si comuns e
se convertem ou no eu ou no não-eu mediante os agrupamentos formativos que os
fixam ou na auto-síntese ou na hetero-síntese" (1b., V. p. 483-84).

57

Os escritos morais de Ardigó são essencialmente uma polémica contra todas as


formas de ética religiosa, espiritualista e racionalista e respeitam a
tentativa, empreendida por Spencer, de reproduzir a

formação das ideias morais do homem a factores naturais e sociais. Segundo


Ardigó, as idealidades e as máximas da moral nascem da reacção da sociedade
aos actos que a prejudicam; reacção que, impressionando o indivíduo, acaba por
se fixar na sua consciência como norma ou imperativo moral. Os caracteres
intrínsecos do dever, a sua obrigatoriedade, a sua

transcendência, e a responsabilidade que lhe é inerente, são devidos, pois, à


interiorização progressiva, através das experiências constantemente repetidas,
das sanções exteriores que o acto moral encontra na sociedade, enquanto acto
anti-social (1b., 111, p. 425 sgs.; X, p. 279). Assim, Ardigó entende a
sociologia como "a teoria da formação natural da ideia de justiça". Por
consequência, a justiça é a lei natural da sociedade humana e, precisamente,
regula o exercício do poder jurídico, que se transforma, interiorizando-se, em
exigência moral. Assim a primeira forma da justiça é o direito, como a
primeira forma do direito é a prepotência; mas ao direito positivo contrapõe-
se em seguida o direito natural, que é o ideal do direito, que se reforma nas
consciências sob o mesmo impulso que o direito positivo, mas se realiza
imperfeitamente nas formas deste. O direito positivo está sempre atrasado em
relação ao direito natural, que exprime as idealidades sociais mais avançadas;
e a luta destas contra o direito positivo, para o reformar

58

à sua imagem, constitui a incessante evolução da justiça (lb., IV, p. 165,


sgs.).

§ 659. O EVOLUCIONISMO MATERIALISTA (MONISMO)

O positivismo evolucionista é, na sua forma mais rigorosa, igualmente alheio


ao materialismo e ao espiritualismo. Spencer afirma explicitamente (First
Princ. § 194) que o processo da evolução pode ser interpretado em termos de
matéria e de movimento como

em termos de espiritualidade e de consciência; e, por outro lado, o Absoluto


que este processo manifesta, enquanto é incognoscível, não pode ser definido
como matéria nem como espírito. Mas a insuprimível tendência romântica do
positivismo dificilmente podia conservar-se nesta posição de equilíbrio; e as
tentativas para interpretar num sentido ou noutro o significado da evolução
foram tanto mais repetidas e

enérgicas quanto, numa ou noutra das duas formas, a evolução se prestava


melhor a adquirir um significado, infinito e divino e a justificar uma
exaltação religiosa ou pseudo-religiosa.

Mais numerosas talvez, e decerto de maior ressonância, foram as orientações


para o materialismo. Nos últimos decénios do século XIX, uma plêiade de
cientistas, físicos, biólogos e psicólogos de todos os

países, adoptaram o credo positivista, declarando ater-se rigorosamente ao


estudo dos factos e das suas leis e repudiando qualquer explicação não
mecânica dos mesmos. A resposta que o astrónomo Laplace

59

deu a Napoleão, que o interrogava sobre o lugar que reservava a Deus na sua
doutrina astronómica: "Não tenho necessidade dessa hipótese", torna-se o lema
da época. Combatem-se todas as formas de transcendência religiosa e de
"metafísica", entendendo-se por metafísica toda a explicação não mecânica do
mundo mas cai-se amiúde, e sem se dar conta de tal, na metafísica: numa
metafísica materialista.

Na Alemanha o florescimento positivista teve início com a descoberta que


Robert Mayer (1847-78) fez do equivalente mecânico do calor, que permite
formular o princípio da conservação da energia. Este principio e a tentativa
de reduzir a vida a um conjunto de fenómenos físico-químicos, excluindo o que
até então se chamara "força vital", constituem o ponto de partida da
metafísica materialista. O zoólogo Carlos Vogt (1817-1895) afirmava, numa obra
de 1854, A fé do carbonário e a ciência, que "o pensamento está para o cérebro
na mesma relação em que a bílis está para o fígado ou a urina para os rins". E
esta tese era apresentada identicamente e condimentada com a mesma violenta
polémica antireligiosa nas obras de Jacob Moleschott (1822-93), um alemão que
foi, desde 1879, professor de filosofia em Roma, e numa obra famosa de Ludwig
Büchner (1824-99), Força e

matéria (1855).

Outros naturalistas mantiveram, em compensação, uma atitude mais cauta e


cingiram-se, como Darwin, a um rigoroso agnosticismo. O fisiólogo alemão
Emílio du Bois-Reymond (1818-96) publicou um escrito em 1880 intitulado Sete
enigmas do mundo. Eis os

enigmas: 1.11 a origem da matéria e da força; 2.O a

60

origem do movimento; 3.o o aparecimento da vida;


4.o a ordenação finalista da natureza; 5.O o aparecimento da sensibilidade e
da consciência; 6.o o pensamento racionalista e a origem da linguagem; 7.o a

liberdade do querer. Perante estes enigmas, Du Bois-Reymond pensava que o


homem devia pronunciar não só um ignoramus mas também um ignorabimus: a
ciência nunca poderá resolvê-los.

Ernesto Haeckel (1834-1919) teve, ao invés, a pretensão de os resolver com a


doutrina do evolucionismo materialista. Haeckel foi professor de zoologia na
Universidade de lena; e a sua actividade de cientista é, indubitavelmente,
notável. Em 1866 publicou a Morfologia geral dos organismos, que aduzia um
grande número de observações e de factos em apoio da teoria darwiniana da
evolução, e era a primeira tentativa para estender esta tentativa a todas as
formas orgânicas. Este ensaio antecipava-se, por conseguinte, à segunda obra
de Darwin, Descendência do homem, que só apareceu em 1871. Já nesta obra,
porém, Haeckel concebia a teoria do transformismo biológico como uma nova
filosofia, destinada a suplantar inteiramente todas as outras filosofias e
todas as religiões. Dois anos depois expunha em forma popular as suas ideias
na História da criação natural (1868), à qual se seguiram: Antropogenia
(1874), O monisino como elo entre a religião e a ciência (1893) e Os enigmas
do mundo (1899). Esta obra, que é a exposição mais completa e menos prolixa
das ideias de Haeckel, teve uma difusão enorme. Venderam-se, ao todo, cerca de
400 000 exemplares, mas depois de
1920 a venda cessou e não se publicaram mais edições. Haeckel publicou ainda
numerosas outras obras de polémica e de divulgação científica que, todavia,
nada acrescentam ao conteúdo das obras citadas.

O principal contributo que Haeckel trouxe à teoria da evolução é a que ele


chama "a lei biogenética fundamental", isto é, o paralelismo entre o
desenvolvimento do embrião e o desenvolvimento da espécie à qual pertence.
Pelo que respeita ao homem, "a ontogénese, ou seja, o desenvolvimento do
indivíduo é uma breve e rápida repetição (uma recapitulação) da filogénese ou
evolução da estirpe a que pertence, isto é, dos precursores que formam a
cadeia dos progenitores do indivíduo, repetição determinada pelas leis da
herança e da adaptação" (Natur. Schõpfungesch, 1892). Haeckel efectuou sobre
esta lei uma

série de investigações que ilustravam e confirmavam em vasta escala a hipótese


da transformação da espécie. Mas a par desta que, segundo lhe parecia,
demonstrava de maneira indubitável a continuidade e a unidade do
desenvolvimento orgânico, Haeckel propunha uma outra lei fundamental que
deveria demonstrar a unidade e a continuidade de todo o mundo real, isto é, a
chamada lei da substância, cujos pressupostos seriam a lei da conservação da
matéria descoberta por Lavoisier (1789) e a lei da conservação da força,
descoberta por Mayer (1842). Esta lei, demonstrando a unidade e uniformidade
do universo inteiro e concatenação causal de todos os fenómenos, leva à
conclusão, segundo Haeckel, de que a

matéria e a força não são mais que dois atributos inseparáveis de uma única
substância (Weltrãtsel, trad. franc., 1902, P. 248). O monismo é assim
estabelecido

62

sobre estas duas leis e, em nome do monismo, Haeckel combate todas as formas
de dualismo, isto é, todas as formas de separação ou de distinção do espírito
da matéria e, por conseguinte, toda a doutrina que, de qualquer modo, admita
uma divindade separada do mundo, a espiritualidade da alma e a liberdade do
querer.

Assim, dos sete enigmas enumerados por Du Bois-Reymond, o último, concernente


precisamente à liberdade do querer, é, sem mais, eliminado como uma
superstição antiquada. Quanto ao primeiro, respeitante à natureza da matéria e
da força, quanto ao segundo, que concerne à origem do movimento e quanto ao
quinto, que concerne à origem da sensação e da consciência, o monismo, resolve
a coisa facilmente porque, na realidade, força, movimento, matéria,
consciência, não tiveram origem, mas foram sempre presentes desde as primeiras
fases evolutivas da única substância cósmica. Os outros três enigmas (a vila,
a finalidade e a razão) são, pois, resolvidos em sentido materialista: a vida
e a razão são produtos da evolução, a finalidade é reduzida ao mecanismo.

A evolução começa, segundo Haeckel, com a condensação de uma matéria primitiva


em centros individuais ou picnátomos dotados de movimento e de sensibilidade.
Haeckel resume assim os pontos capitais da sua "religião monista": 1.o O
espaço é infinitamente grande e ilimitado, nunca vazio e sempre preenchido
pela substância, 2.O o tempo é igualmente infinito e ilimitado, não tem nem
princípio nem fim, é a eternidade, 3.O a substância encontra-se em toda a
parte e em todos os tempos num estado de movi-

63

inento ininterrupto: o repouso perfeito não existe; mas a quantidade infinita


da matéria permanece invariável como a da energia eternamente mutável, 4.o o
movimento eterno da substância no espaço é um

círculo eterno, cujas fases evolutivas se repetem periodicamente, 5.o estas


fases consistem na alternância periódica das condições de agregação, sendo a
principal a diferenciação primitiva da massa e do éter;
6.o esta diferenciação assenta numa condensação crescente da matéria e na
formação de inúmeros pequenos centros de condensação (picnátomos) cujas causas
eficientes são as propriedades originárias imanentes à substância: a
substância e o esforço; 7.o enquanto numa parte do espaço se produzem, pelo
processo picnótico - corpos celestes, primeiro pequenos, depois maiores, e
aumenta entre eles a tensão do éter, na outra parte do espaço produz-se
simultaneamente o processo inverso: a destruição dos corpos celestes que se
chocam uns com os outros; 8.O as enormes quantidades de calor produzidas neste
processo mecânico pelo choque dos corpos celestes em rotação são representadas
pelas novas forças vivas que produzem o movimento das massas de poeira cósmica
e, por conseguinte, uma nova formação de esferas em rotação: o jogo eterno
recomeça desde o princípio" (Weltrãtsel, p. 278-79).

É fácil dar-se conta do carácter arbitrário e diletantista destas especulações


de Haeckel. Contudo, o

seu enorme sucesso junto do público e o número extraordinário de seguidores


que tiveram em toda a europa, e especialmente na Alemanha, convertem-nas hum
documento do espírito romântico da época. Tão

64

significativo com a enorme difusão e o entusiasmo que haviam suscitado,


algumas décadas antes, as doutrinas do romantismo idealista. É a tendência
romântica a procurar e a dar realidade ao infinito que conduz cientistas do
tipo de Haeckel a revestir de um significado absoluto e religioso hipóteses e
factos da ciência, e efectivamente, a característica fundamental do
positivismo materialista é uma espécie de exaltação anti-religiosa, que nem
por isso é menos religiosa e mística, pois não faz mais do que pôr a natureza
no
lugar de Deus, embora não vendo nela senão leis e factos necessários, e
pretender laicizar e tornar "científicas" atitudes próprias da religião. O
desenvolvimento da ciência superou decerto este fervor religioso que animava
muitos dos seus cultores, mas devia acabar por destruir os entusiasmos
românticos e as construções metafísicas com que o positivismo se

pavoneava, conduzindo gradualmente a reconhecer o essencial do procedimento


científico precisamente no que tem de mais avesso e mais alheio a qualquer
interpretação metafísica ou religiosa.

Em França, um monismo materialista análogo ao de Haeckel foi defendido por


Felix le Dantec (1869-1917) numa numerosa série de escritos (A matéria viva,
1893; O ateísmo, 1907; Elementos de filosofia biológica, 1911, etc.). E em
Itália, o positivismo materialista manifestava-se de uma forma original na

obra de César Lombroso (1863-1909), fundador da "Escola positiva do direito


penal" segundo a qual "os criminosos não praticam delitos por um acto cons-

65

ciente e livre de má vontade, mas porque têm tendências más, tendências cuja
origem se encontra numa organização física e psíquica diversa da normal".
Deste pressuposto, a escola positivista deduzia a consequência de que o
direito da sociedade a punir o delinquente não se funda na maldade ou na sua
responsabilidade, mas apenas na sua perículosidade social. O estudo das
características físico-psíquicas que determinam a delinquência foi chamado por
Lombroso "antropologia criminal". Lombroso distinguia, com

respeito à periculosidade social, quatro tipos de delinquentes: o delinquente


antropológico ou delinquente nato, cujos instintos, inscritos na constituição
orgânica, são inalteráveis; o delinquente ocasional, o delinquente louco, o
delinquente por paixão ou por hábito (0 homem delinquente, 1876). A outra tese
de Lombroso que suscitou também polémicas vivíssimas é a aproximação entre
génio e loucura (Génio e degeneração, 1897). Lombroso partia da consideração
dos chamados fenómenos regressivos da evolução pelos quais um grau de
desenvolvimento muito avançado numa determinada direcção é acompanhado, a
maior parte das vezes, por um atraso nas outras direcções. Sendo assim,
compreende-se como se "torna necessário, quase fatal, que à forma, em
numerosas direcções, mais evoluída do génio, corresponda um atraso, um
regresso, não só nas outras direcções, mas amiúde também no órgão que é a sede
da mais importante evolução", isto é, no cérebro; eis a razão por que existem
formas mais ou menos atenuadas de loucura e de perversão nos indivíduos
geniais.

66

§ 660. O EVOLUCIONISMO ESPIRITUALISTA

A interpretação espiritualista da evolução desenvolve-se paralelamente à


interpretação materialista e

propõe-se essencialmente adaptar o conceito evolutivo da realidade às


exigências morais e religiosas tradicionais. O principal expoente desta forma
de positivismo é Wundt, mas tem também os seus representantes em Inglaterra,
em França e na Itália.
Guilherme Wundt (16 de Agosto de 1832-31 de Agosto de 1920) foi médico e
professor de fisiologia em Heidelberg. Em 1875 estabeleceu-se como professor
de filosofia em Leipzig, onde fundou o primeiro "Instituto de filosofia
experimental". A sua actividade orientou-se para investigações de filosofia e
de psicologia fisiológica. A sua primeira obra importante foi os Princípios de
psicologia fisiológica (1874), a que se seguiram: Lógica (2 vol., 1880-83);
En,,aios (1885)-, Ética (1886); Sistema de filosofia (1889); Compêndio de
psicologia (1896), Psicologia dos povos: 1, A linguagem (1900), 11, Mito e
religião (1904-09), obra que foi aumentada sempre nas edições seguintes, e que
inclui na última volumes dedicados a várias disciplinas, Direito (1918) e
Civilização e Cultura (1920); Introdução à filosofia (1901); Elementos de
psicologia dos povos (1912); Pequenos escritos (2 vol., 1910-11); Introdução à
psicologia (1911); A psicologia na luta pela vida (1913); Discursos e esboços
(1913); Mundo sensível e mundo supra-sensível (1914). Wundt fundou também, em
1881, uma revista, "Estudos filosóficos", em que foram publicados escritos
seus e de

67

seus discípulos; e em 1905 uma outra revista, "Estudos psicológicos",em que


foram publicados os trabalhos dos Institutos de Psicologia de Leipzig.

O maior mérito de Wundt consiste no impulso que deu à psicologia experimental.


Teodoro Fechner havia já abordado o problema de uma psicologia experimental de
base matemática. Partindo da doutrina do animismo universal aplicara-se a
estudar a relação entre a alma e o corpo, chegando a estabelecer a chamada
"lei psicofísica fundamental", que diz respeito à relação quantitativa entre a
intensidade do estímulo e a intensidade da sensação que este produz. A lei diz
que se a intensidade do estímulo cresce em progressão geométrica, a
intensidade da sensação cresce em progressão aritmética, de modo que a própria
sensação é proporcional ao logaritmo do estímulo. Fechner chamara psicofísica
à psicologia que procura determinar as leis quantitativas dos fenómenos
psíquicos em relação com os seus correlatos físicos.

O clima do positivismo iria estimular poderosamente a tendência da psicologia


a constituir-se como ciência positiva e rigorosa, análoga às ciências
naturais. Wundt é o primeiro que faz seu este ideal e leva avante a sua
realização. Os seus Princípios de psicologia fisiológica (publicados pela
primeira vez em
1874 e continuamente aumentados em edições sucessivas) representam a primeira
sistematização completa do que ele denominou "psicologia sem alma": isto é, a
psicologia que estuda os fenómenos psíquicos prescindindo de qualquer pretensa
substância espiritual, considerando-os em estreita relação com os fenó-

68

menos fisiológicos e servindo-se da experiência como instrumento de


investigação. No que se refere à caracterização dos fenómenos que podem e
devem ser objecto da psicologia, Wundt não crê que a psicologia possa ser
considerada como a ciência da experiência interna, enquanto as ciências
naturais seriam as ciências da experiência externa. Experiência interna e
experiência externa são apenas dois pontos de vista diversos pelos quais se
podem considerar os

fenómenos empíricos; e não existe fenómeno natural que não possa, de um certo
ponto de vista, tornar-se objecto de uma investigação psicológica. Mas, dado
que todos os fenómenos são, como tais, representações, a psicologia pode ser
caracterizada como a "ciência da experiência imediata". As representações são
consideradas pela psicologia na sua imediatez, isto é, precisamente tais quais
são. Para as outras ciências, valem, pelo contrário, na sua relação mediata e
objectiva, isto é, como partes ou elementos de um mundo objectivo.

A psicologia de Wundt é inteiramente dominada pela ideia da evolução; é,


essencialmente, uma psicologia genética, que mostra a gradual e progressiva
formação dos produtos psíquicos mais complexos, a partir dos mais simples. A
evolução psíquica tem, no

entanto, para Wundt, um carácter original, que a distingue da evolução física;


isto é, surgem no curso dela novas propriedades que não pertencem aos
elementos que a determinaram. Este é o princípio da síntese criadora e vale
para todos os fenómenos psíquicos, desde as percepções e os sentimentos
sensíveis até aos mais altos processos psíquicos. Por exemplo, o espaço e o

69

tempo, corno imagens psíquicas, têm propriedades que não pertencem aos
elementos sensoriais de que resultam. E, em geral, "no curso de todo o
desenvolvimento individual ou social geram-se valores espirituais que não
estavam originariamente presentes nas suas qualidades especificas e isto vale
para todos os valores, lógicos, estéticos e éticos" (Logik, 111, 1921, p.
274).

O carácter espiritualista da posição de Wundt patenteia-se na superioridade


que ele concede à experiência imediata, isto é, à consciência, superioridade
pela qual a psicologia, que é a ciência desta experiência, adquire um nível
privilegiado em relação a todas as outras disciplinas filosóficas e
científicas. A filosofia de Wundt é um positivismo evolucionista revisto e
corrigido em conformidade com este pressuposto espiritualista. Wundt crê que o
escopo da filosofia consiste na "recapitulação dos conhecimentos particulares
numa intuição do mundo e da vida que satisfaça às exigências do intelecto e às
necessidades do coração" (Syst. der Phil., 1, 1919, p. 1; Ein leitung in die
Phil., 1904, p. 5); e, por consequência, define a filosofia como a "ciência
universal que deve unificar num sistema coerente os conhecimentos universais
fornecidos pelas ciências particulares". Este era o conceito positivista da
filosofia, tal como o haviam estabelecido Comte e Spencer, incluindo a
exigência espiritualista segundo a qual a filosofia devia satisfazer "as
necessidades do coração". A filosofia divide-se em duas partes: a gnoseologia
que considera a origem do saber e a metafísica que considera os princípios
gerais do saber. A gnoseologia, por sua vez,

70

divide-se em lógica formal e teoria do conhecimento. A metafísica tem por


missão reunir os resultados gerais das diversas ciências num sistema coerente.

Quanto às ciências particulares, dividem-se em

dois grandes grupos: ciências da natureza e ciências do espírito, sendo a


psicologia a ciência fundamental destas últimas. As matemáticas têm lugar à
parte, e

constituem uma ciência formal, isto é, uma ciência que considera as


propriedades formais dos objectos naturais.
O paralelismo entre ciências naturais e ciências espirituais baseia-se no
paralelismo próprio da realidade que Wundt considera, à semelhança de
Espinosa, como algo que se manifesta em duas séries infinitas e paralelas, a
natureza e o espírito. Wundt confere a estas duas séries causais um
significado evolutivo e progressivo conformemente à orientação geral do
positivismo; mas nega que interfira uma na outra e que os termos de uma possam
de qualquer modo participar nos caracteres da outra. As duas séries paralelas
não são, no entanto, duas realidades separadas, mas sim duas manifestações
necessariamente distintas da mesma realidade. A sua duplicidade nasce da
reflexão, que divide o originário objecto-representação em objecto e
representação: fundam-se numa distinção que existe apenas no nosso pensamento
abstractivo, mas não na realidade mesma (Syst. I, p. 402).
O que seja tal realidade, como deverá ser concebida a única distância que
subjaz às duas manifestações paralelas, é um problema que só pode ser
resolvido, segundo Wundt, recorrendo à experiência imediata que é o fundamento
da psicologia. Esta expressão diz-

71

-nos a condição de toda a percepção, a que Kant chamava "apercepção


transcendental", é a vontade. A vontade é a única actividade que nos é dada
imediatamente. Esta actividade não é nunca pura actividade, o querer não é
nunca puro querer. Mas a passividade que é própria do nosso querer só pode ser

explicada recorrendo a um outro querer e, portanto, à acção recíproca do agir


e do sofrer que é o fundamento de toda a actividade representativa. Através
desta acção recíproca, a vontade torna-se vontade real ou representativa, isto
é, dá lugar ao mundo da representação. Wundt retoma assim ao conceito de
Schopenhauer da vontade como única substância do mundo. Mas a vontade de que
ele fala não é uma

realidade em si, um númeno transcendente, como Schopenhauer a concebia, mas


manifesta-se e realiza-se exclusivamente na acção recíproca das vontades
singulares e, portanto, no desenvolvimento evolutivo das comunidades a que dão
lugar. Este desenvolvimento tende à ideia da unidade infinita da vontade ou de
uma "comunidade de vontade" perfeita. A comunidade das vontades do género
humano é também o

último objectivo de toda a acção moral (Ib., 11, p. 237). Também sob este
ponto Wundt permanece fiel à ética positivista, que fez da humanidade o fim
moral supremo. Mas a humanidade é definida por ele como

concordância e unidade das vontades individuais; e, uma vez que tal


concordância e unidade nunca se realizam perfeitamente, nasce a ideia de uma
unidade absoluta, que é a ideia mesma de Deus. Esta ideia não pode ser
demonstrada, mas pode-se assumir como pressuposto último a que chega o
pensamento

72

quando passa da experiência do progresso a um fundamento do mesmo para além de


todos os seus limites reais (1b., 1, p. 430).

A ideia de Deus é assim, para Wundt, uma ideia-limite do progresso humano,


ideia-limite que é ao

mesmo tempo considerada como fundamento da unidade que o progresso realiza. A


história para Wundt, é também, uma teoria do progresso. Mas o progresso
histórico não se realiza em virtude de uma providência transcendente ou de uma
finalidade intencional. As forças da história são os motivos psicológicos que
actuam nos indivíduos e nas comunidades humanas; e a ciência da história não é
outra coisa mais do que "uma psicologia aplicada". Assim se torna operante na
história aquele princípio a que Wundt chama ,"princípio da heterogénese dos
fins", pelo qual os fins que a história realiza não são os que os indivíduos
ou as comunidades se propõem, mas antes a resultante da combinação, da relação
e do contraste das vontades e das condições objectivas (1b., I, p. 326 sgs.;
11, p. 221 sgs.).

Wundt dedicou a última fase da sua actividade preferentemente a amplas


investigações sobre "a psicologia dos povos". O nome é novo, mas, na
realidade, trata-se da sociologia, no sentido restrito e puramente descritivo
que Spencer dera a esta disciplina. A psicologia dos povos é uma ciência da
história referida às suas condições e às suas leis psicológicas e, portanto,
considerada sobretudo nas suas

instituições e nos seus produtos espirituais. Nos diversos volumes que compõem
a grande Psicologia dos povos, Wundt considera separadamente a evo-

73

lução histórica da linguagem, do mito, do costume e do direito; enquanto nos


Elementos de psicologia dos povos, considera o desenvolvimento progressivo da
sociedade humana na sua totalidade e na conexão dos produtos espirituais a que
dá origem. Ambos os tratados se fundam no princípio de uma evolução histórica
gradual e constante. "A psicologia dos povos, diz Wundt (El. der Volkerpsych.,
1912, p. 4), com a consideração dos diversos graus do desenvolvimento
espiritual que a humanidade hoje apresenta, abre-nos o caminho a uma
verdadeira psicogénese. Mostra-nos as condições primitivas e fechadas em si
mesmas, a partir das quais, através de uma série ininterrupta de graus
intermediários, se pode lançar uma ponte até às civilizações mais
desenvolvidas e

superiores. Por isso, a psicologia dos povos é, no

sentido mais eminente da palavra, uma psicologia do desenvolvimento".

Wundt delineou esta evolução, servindo-se de uma

soma enorme de material filológico e descritivo, sobretudo no que se refere à


linguagem, o mito e os costumes, que têm a sua origem última nos três momentos
psicológicos: a representação, o sentimento e a vontade.

O positivismo espiritualista, de que Wundt é decerto o maior representante,


encontrou também fora da Alemanha manifestações análogas, quase simultâneas.
Tal positivismo é caracterizado pela tentativa de se servir do princípio da
evolução como garantia da progressiva afirmação e consolidação dos valores
espirituais e, portanto, da doutrina do paralelismo psicofísico, que permite
eliminar (ou atenuar) aquela

74

subordinação do espírito à matéria que parecia um

resultado inevitável do evolucionismo positivista.


Em Itália, o positivismo espiritualista encontra o

seu melhor representante em Filipe Masci (1884-1923) que foi durante muitos
anos professor de filosofia na Universidade de Nápoles e dedicou a sua
actividade a artigos e ensaios académicos que tiveram uma escassa difusão (As
formas da intuição, 1881; Sobre o sentido do tempo, 1890; Sobre o conceito do
movimento, 1892; O materialismo psicofísico e a doutrina do paralelismo em
psicologia, 1901; A lei da individuação progressiva, 1920). Só nos últimos
anos da sua vida Masci pensou em recolher num volume global os resultados
principais das suas investigações (Pensamento e consciência, 1922). Alguns
cursos de liçpes foram publicados postumamente (A sociedade, o direito e o
Estado, 1925; Introdução geral à psicologia, 1926). Situa-se geralmente Masei
na corrente neocrítica e consideram-no mesmo o principal expoente desta
corrente em Itália. Mas nada justifica tal asserção. Na introdução a
Pensamento e conhecimento, o próprio Masci declarava que não admitia na
doutrina kantiana, "a distinção do númeno e fenómeno", o a priori como
anterior ao conhecimento, as antinomias, a coisa em si, as formas da intuição
e das categorias como formas belas e factos da sensibilidade e do pensamento",
assim como "a negação de toda a investigação psicológica para a formação do
conhecimento". É difícil ver o que fica de Kant depois de se rejeitar isto
tudo. Na verdade, é próprio do neocriticismo contemporâneo (como se verá no §
722) a redução da filosofia a reflexão crítica sobre

75

a ciência e a renúncia à metafísica. Masci, pelo contrário, entende a


filosofia (segundo o conceito do positivismo e de Wundt) como uma reelaboração
dos resultados da ciência e cultivou uma metafísica evolucionista de carácter
espiritualista. Como "ciência do pensamento", a filosofia deve, de facto,
conhecer a realidade na sua universalidade e, portanto, elaborar a experiência
para lá dos limites do conhecimento científico, sem deixar de tê-lo sempre
presente como ponto de partida e de referência (Penso e con., p. 93 sgs.). Tal
como Spencer, Masci concebeu a inteligência e as suas categorias como "um
produto da evolução que progride lentamente através da escala humana" (Ib., p.
386). Concebeu a realidade como uma substância psicofísica, cuja lei
fundamental é a da individuação progressiva, isto é, o nascimento

e a afirmação progressiva da individualidade. Por isso, viu no espírito, que é


autoconsciência ou eu, a mais elevada manifestação da substância psicofísica
e, portanto, nas formas superiores da vida espiritual - arte, religião,
filosofia - o grau supremo da evolução cósmica e a realização da finalidade
última que a substância psicofísica persegue mesmo nas formas mais inferiores
da natureza. Analogamente, Masci via na

evolução social, e em particular na do direito, "o progresso da consciência ou


da liberdade" e, por conseguinte, a realização gradual e progressiva de uma
liberdade cada vez mais completa.

Em Inglaterra, o positivismo adoptou uma forma análoga nos escritos de


Hobhouse e de Morgan. L. T. Hobhouse (1864-1929) foi professor de sociologia
em Londres e autor de escritos de gnoseologia

76

e de ética, em que domina o conceito de evolução (Teoria do conhecimento,


1896; O espírito em evolução, 1901; A moral em evolução, 1906; Desenvolvimento
e finalidade, 1913; A teoria metafísica do Estado, 1918; O bem racional, 1921;
Elementos de justiça social, 1923; O desenvolvimento social, a sua

natureza e as suas condições, 1924). A orientação espiritualista de Hobhouse


patenteia-se na sua tentativa de conciliar os resultados da ciência, com a
exigência da fé. "A verdadeira função de todo o

método não analisado, sobretudo o da fé, não é a de travar uma guerra


desesperada contra a massa

compacta da verdade científica, mas estender-se aquém e além dos limites da


ciência, adquirindo o

direito de sentir o que não podemos ainda exprimir e esperar o que não podemos
ainda concretizar" (Theory of Knowledge, p. 617-18). Para tal fim valer-se-á
de Lotze e de Hegel, assim como de Mill e de Spencer (1b., pref., p. IX); mas,
na realidade, os resultados a que chega são substancialmente idênticos aos de
Wundt e, em geral, aos do positivismo espiritualista. A recusa da subordinação
do espírito à matéria condu-lo também a um paralelismo psicofísico. A relação
entre o físico e o mental é a de uma concomitância provavelmente constante,
não a

da conexão causal. O corpo não actua sobre a alma, nem a alma sobre o corpo,
mas "as suas mutações entrelaçam-se como fases conexas na complexa
constituição do grande todo de que são ambos elementos" (Ib., p. 572-73). "0
facto central da experiência é o

conceito da evolução, o qual nos permite compreen-

77

der que a estrutura mental saiu de uma origem humilde e que os seus métodos, a
sua lógica e a sua

filosofia se desenvolveram na tentativa contínua de apreender e organizar a


sua experiência e assim dirigir e entender a sua vida. A evolução natural tem
a sua continuação e o seu cumprimento na evolução intelectual e moral. A
viragem decisiva da evolução intelectual e moral dá-se quando o espírito, que
se

dirige primeiro unicamente para os objectos, se volta depois para si mesmo,


isto é, para os métodos e para os procedimentos que lhe permitem apreender e

dirigir os objectos. Esta viragem conduz a vida moral e a vida intelectual ao


plano da racionalidade,

e em particular para a vida moral, do plano do hábito ao de uma ordem racional


da conduta (MoraIs in Evolution, II, p. 277 sgs.). O progresso espiritualista
consiste no progressivo domínio da consciência racional e tem por isso como
objecto final a

própria humanidade. Hobhouse crê que é necessário admitir, como garantia deste
progresso real, um Ser divino que preserve e mantenha as condições da efectiva
realização do mesmo.

C. Lloyd Morgan (1852-1937) é também defensor de um evolucionismo de matizes


espiritualistas (Vida animal e inteligência, 1890; Introdução à psicologia
comparada, 1894; Hábito distinto, 1896-, Interpretação da natureza, 1905;
Comportamento animal, 1908; Instinto e experiência, 1912; Evolução emergente,
1923; Vida, mente e espírito, 1926, A emergência da novidade, 1933). Os factos
psíquicos e os factos físicos não estão, segundo Morgan, ligados por uma

relação causal, mas são inseparáveis. Todo o facto

78

físico é também um facto psíquico, e recIprocamente; de maneira que o mundo


não é nem um mundo físico nem um mundo psíquico, mas um mundo psicofísico.
Deve-se admitir por isso um correlato psíquico em

todo o sistema físico, seja o átomo, o cristal, ou o corpo orgânico. Morgan


insiste no carácter não mecânico, mas criador, da evolução natural em todos os
seus graus, mas neste ponto não faz mais do que repetir uma das teses
fundamentais da Evolução criadora (1907) de Bergson. Fala-nos de uma evolução
emergente no sentido de que cada fase da evolução não é a mera resultante
mecânica das fases precedentes, mas contém um elemento novo, que é irredutível
àquele. Este novo elemento que se junta à resultante mecânica (a qual garante
a continuidade do processo) é o que torna a evolução num progresso. A
consciência é uma dessas qualidades emergentes no curso da evolução cósmica,
como a vida é uma qualidade emergente em relação à resultante físicoquímica. O
carácter de criatividade espiritual que a

evolução toma neste sentido, postula, segundo Morgan, um Ser divino como
garantia do progresso gradual e incessante do universo.

Em França, esta posição ideológica do pensamento, caracterizada pelo monismo


psicológico, e pela finalidade espiritual da evolução, é representada
tipicamente por Alfredo Fouillée (1838-1912), autor de numerosas obras
históricas e de várias escritos sistemáticos (A liberdade e o determinismo,
1872-, A evolução das ideias-forças, 1890; O movimento idealista e a reacção
contra a ciência positiva, 1896; Os elementos, sociológicos da moral, 1906; A
moral das

79

ideias-forças, 1908-, Ensaio de interpretação do mudo, 1913). Fouillée aceita


o conceito positivista da filosofia, no sentido de Wundt. A ciência positiva
não dá a imagem global do todo; para ela, o mundo é como um espelho quebrado.
A filosofia, reagrupando os fragmentos, esforça-se por entrever a grande
imagem (Le mouv. idéal, p. XXXIX). Não pode, por isso, ser considerada, por
seu turno, como uma ciência positiva no sentido da previsão e da produção dos
fenómenos; mas é também, a seu modo, uma previsão enquanto se esforça por
conceber a marcha da humanidade e a do próprio mundo. Todavia, o que a
filosofia tem a mais em relação à ciência é a sua atitude espiritualista,
graças à qual o seu olhar se dirige à interioridade das coisas para descobrir
nelas essa mesma vida interior que a consciência nos permite apreender em nós
mesmos (Esquisse d'une inter-' pretation du monde, p. XXV). Neste sentido, o
seu

postulado fundamental é a unidade do físico e do psíquico; o monismo


psicofísico. E o monismo psicofísico conduz Fouillée a elaborar o seu conceito
central, do qual se serve para interpretar os fenómenos mais dispares: a
ideia-força. "A ideia, diz (L'évolutionisme, p. XV), com as representações, os
sentimentos e os desejos que implica, é um encontro do interior e do exterior;
é uma forma que o interior toma mediante a acção do exterior e a reacção
própria da consciência; implica, portanto, movimentos e não actua de fora, do
alto de uma esfera espiritual, sobre o curso material das coisas; não
obstante, actua. A ideia-força não é, por conseguinte, mais do que a

substância psicofísica, a unidade individualizada, dos

80

factos físicos e dos factos psíquicos. A ideia-força permite, segundo


FouilIée, entender a acção finalista que, no mundo da natureza, como no do
espírito, determina a evolução e o progresso. A evolução não é uma lei, como
Spencer a concebera, mas antes um resultado: o resultado do progresso
apetitivo da ideia-força, que constitui a existência interior de nós mesmos, e
provavelmente, a de todas as coisas (Ib., p. LIII).

O conceito da ideia-força é empregado por Fouillée como fundamento da


psicologia e da sociologia. Mas, para ele, a própria biologia é uma
psicologia, visto que a luta pela vida de que falam os darwinistas, não se
pode entender senão entre seres que desejam alimentar-se e reproduzir-se, isto
é, seres cujo dinamismo interior é constituído precisamente pela ideia-força
(Psychologie, 1, p. XIX). A ideia-força permite também unir o determinismo dos
processos naturais com

a liberdade da consciência. E de facto um evolucionismo que reconheça que as


ideias e os sentimentos são factores da evolução, introduz no determinismo um
elemento de reacção sobre si mesmo: a influência da ideia. Ideias-forças são,
pois, as instituições e as

formas da consciência social, que apresentam, por seu

turno, uma conciliação entre o determinismo do ambiente exterior e a livre


reacção da consciência individual.

João Maria Guyau (1854-1888) é o representante de um positivismo


espiritualista orientado para os problemas morais. A moral sem obrigação nem
sanção (Esboço de uma moral sem obrigação nem sanção,
1885), de que Guyau se faz apóstolo, é a mesma

81

moral evolutiva de Spencer, que tende incessantemente a uma crescente expansão


e intensidade da vida, num tom de exaltação optimista e lírica. Esta moral
indica como objectivo final uma humanidade concorde, pacifica e fraterna: o
ideal sociológico da humanidade. Este ideal explica, segundo Guyau, o

valor da arte, que "vincula o indivíduo ao todo e cada parte do instante à


duração eterna" (L'Art au point de vue social., p. 80). A arte é, por outros
termos, a

extensão progressiva à natureza da sociabilidade humana. E este ideal


constitui a religião ou, melhor, a

irreligião do futuro (L'Irréligion de Favenir, 1887). A ideia fundamental da


religião é, de facto, a de um limite social entre o homem e as potências
superiores e a sociabilidade, é o fundo duradouro do sentimento religioso,
fundo que persistirá e se enriquecerá na irreligião do futuro. Esta tenderá
para a sociabilidade universal da vida, para a solidariedade não só dos seres
reais e viventes mas também para ' o dos possíveis e ideais. As
especulações de Guyau representam uma amplificação lírica dos ideais morais do
positivismo.

Uma curiosa inversão do princípio positivista da evolução em sentido


espiritualista é representada por André Lalande (1867) no seu escrito A ideia
da dissolução oposta à da evolução no método das ciências físicas e morais
(1898, 2.a ed. com o título As ilusões evolucionistas, 1931). Spencer definira
a evolução como a passagem do homogéneo ao heterogéneo; Lalande faz ver que a
passagem inversa do heterogéneo ao homogéneo (dissolução ou involução) é
aquela a que se deve o progresso da realidade em

82

todos os campos, e especialmente no espiritual. "Toda a acção, toda a palavra,


todo o pensamento, quando tem por fim uma das três grandes ideias directrizes
da nossa natureza (o belo, o verdadeiro e o bem) faz progredir o mundo em
sentido inverso à evolução, isto é, diminui a diferenciação e a integração
individuais. As consequências destas são tornar os homens menos diferentes uns
dos outros para que cada qual tenda, não como os animais, a absorver o mundo
na fórmula da sua individualidade, mas a libertar-se do egotismo em que a
natureza o encerra, identificando-se com os

seus semelhantes" (p. 172-73). Na parte editada de um curso professado na


Sorbonne, Razão constituinte e razão constituída (1925), Lalande distingue uma
razão

activa e crítica (a razão constituinte), e uma razão expressa em fórmulas e


materializada, (a razão constituída), atribuindo à primeira o poder da crítica
e

da direcção no conhecimento humano. É mister, enfim, recordar que ele é o


autor de Leituras sobre * filosofia das ciências (1893) e que a ele se deve *
iniciativa do Vocabulário técnico e crítico da filosofia (1926), editado pela
Sociedade Francesa de Filosofia.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

648. Sobre Hamilton; J. STUART MILL, An examination of Sir W. H.s Philosophy,


Londres, 1865; JOHN WE1M4, H., the Man and his Philosophy, Londres,
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83

Sobre Mansel: J. MARTINEAU, A.L.M. in. Essays, III, Londres, 1891. Sobre a
lógica de Hamilton e Mansei: T. H. GREEN, The logic of the FormaZ 1.o~ans, in
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§ 649. Indicações históricas e bibliográficas sobre a teoria da evolução; J.


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Evolution, Londres, 1879; CESEA, Llevoluzionismo di H.s, Verona, 1883; J.
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§ 654. Sobre Huxley, Clifford, Romanes, etc., além da,s obras cit. no § 649:
L. HUXLEY, T. H. Huxley, Londres, 1920; F. POLLOCK, Life of Clifford, in
CLIFFORD, Lectures and Essays, Londres, 1879; G. I. ROMANES, Life and Letters,
Londres, 1896.

§ 655. De Bernard, além da Introdução: La science experimentale, 1878,


Pensées. Notes détachées, ed. Delhoume, Paris, 1937; Philosophie, Manuscrit
inédit, Ed. Chevalier, Paris, 1938; P. MAURIAC, C.B., Paris, 1941; H. COTARD,
La pensée de C.B., Grenoble, 1945.
§ 656. Sobre Taine: STUART MiLL, Dissertations and Discussions, IV, Londres,
1874; G. BARZELLOT, H.T., Roma, 1895; V. GIRAUD, Essai sur T., 2.1 ed., Paris,
1903; ID., Bibliographie critique de T., Paris, 1904; P. LACOMBE, T.,
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85

Sobre Renan: BRUNSCHVIG, La phil. dIE.R. ia <@Revue de Mét. et de Morale",


1893; G. SÉAILLES, E.R.: Essai de biographie psychologique, Paris, 1894; R.
AI,LIER, La philosophie, dIE.R., Paris; ID. Êtudes sur Ia phil. morale au
siècle, Paris, 1904; W. BARRY, E.R., Nova Iorque, 1905; G. SOREL, Le système
historique de R., Paris, 1906; G. STRAUSS, La politique de R. Paris, 1909; H.
PARIGOT, R., 1'égoisme intellectuel, Paris, 1910; L. F. MOTT, E.R., Nova
Iorque, 1921, A. CPESSON, E.R., Paris 1949; R. DuSSAUD Llocuvre scientifiq"
"E.R., Paris, 1951.

§ 658. ARDIGõ, Opere filosofiche, 12 vol., Pádua,


1882-1918; Scienza delVeducazione, Pádua, 1893; Scritti vari, ed. Marchesini,
Florença, 1912.

No 70.1 aniversário de R.A., escritos vários ae cuidado de G. MARCHESINI e A.


GRoPPALI, Turim, 1898; BARTOLOMEI, Il principi fondamentali dellIetica di
R.A., Roma, 1899; AL. ILEVI, Il diritto naturale nella f"ofia di R. A., Pádua,
1904; G. MARCHESINi, La vita e il pensiero di R.A., Milão, 1907; ID. Lo
spirito evangelico di R.A., Bolonha, 1911; ID. R.A., l'uomo e l'umanista,
Florença, 1922; E. TROILO, Il maestro del positivismo italiano, Roma, 1921; R.
MONDOLFO, Il pensiero, di R.A.,
1908; J. BLUWSTEIN, Die Weltanschauung R.A.s., Leipzig, 1911; E. TRomo, A.
(perfil), Milão; F. AMERio, A. Milão, 1957. 1

§ 659. Sobre o monismo: R. EISLER, Geschichte des Monismus, Leipzig, 1910.

Sobre Haeckel: E. VM HARMANN, E. H., in. Ge-sammelte Studien und Aufsãtze,


Berlim, 1876; W. BOLScHE, E. H., ein Lebensbild, Dresden, 1900; E. ADICKES,
gant contra H. Berlim, 1901; F. PAULSEN, E. H., ats Philosaph, in Philosophia
militans, Berlim, 1901; M. APELT, Die Weltanschauung, H.s., Berlim, 1908; K.
HAUSER, E. H. Godesborg, 1920; H. SCHMIDT, E. H. Leben und Werke, 1908; K.
HAusER, E.H., Godesborg, 1920; H. SCI-1MIDT, E. H., Leben und Werke, Berlim,
1920,

86

§ 660. Sobre Feclmer: K. LASSVITZ; G. Th. F., Estugarda, 1896, 3.a ed. 1910.

Sobre Wundt: EDm. KõNIG; W. W., seine Philosophie und Ps-ychologie, Estugarda,
1901, 3.1 ed. 1909; H. HOFFDING, Moderne Philosophen, Leipzig, 1906 - Sobre a
teoria do conhecimento e a psicologia: G. LACHELIER, La théorie de Ia
connaissance de W., in "Revue Philosophique", 1880, ID., Les lois
psychologiques dans Vécole de W., ibid., 1885. Sobre a metafisica: G.
LACHELIER, La metaphisique de W. ibid., 1890.

Sobre Hobhouse. TH. GREENWOOD, Le principe de Ilévolution emergente, in


"Sigma", Roma, 1948.

Sobre Fouillée, H~DING, Op. Cit.; A. GuiAyu, La philosophie et Ia sociologie


dIA.F., Paris, 1213; E. CANNE de BEAuCOUDREY, La Psychologie et Ia
metaphysiqu-e des idées-forces chez A.F., Paris, 1933.

Sobre Guyau: "uiLLÉE, La morale, Ilart et Ia religion d'après G., Paris, 1889;
HOFFDING, Op. Cit.; J. ROYCE, in Stu4es of Good and Evil, Nova lorque, 1910;
A. PASTORE, J.M.G. e Ia genewi delllidea di tempo, Lugano, 1910.

87

NIETZSCHE

XIII

NIETZSCHE

§ 661. A FIGURA DE NIETZSCHE

A doutrina de Nietzsche liga-se a correntes diversas, embora não se file em


nenhuma: o evolucionismo, o irracionalismo, a filosofia da vida; e apesar de
ser ainda dominada pela aspiração romântica ao

infinito, opõe-se ao idealismo e pretende estabelecer uma clara inversão dos


valores tradicionais. A sua influência exerceu-se, analogamente, em
orientações dispares; e as suas interpretações mais populares são as mais
alheias ao espírito autêntico do filósofo. Uma destas interpretações é a de um
estetismo hedonístico e decadente que foi representado pela obra e pela figura
de D'Annunzio-, outros viram nela uma teoria da raça superior e no super-homem
o expoente ou exemplar dessa raça. Mas a primeira destas interpretações é
falsa, dado o carácter trágico e cruel

89

que Nietzsche, tal como Schopenhauer, atribui à vida; carácter que exclui todo
o comprazimento hedonístico ou estetizante; e a segundo é igualmente falsa,
uma vez que Meusche identificou o super-homem com o filósofo na acepção de
profeta de uma nova

humanidade e, deste ponto de vista, a noção de uma

"raça, de super-homens" apresenta-se-nos absurda e

pueril. Tais utilizações da doutrina de Nietzsche têm relação com alguns


aspectos mais aparentes dela, mas sã o decerto estranhas à sua orientação
fundamental, que, como veremos, é de natureza cosmológica. No plano
antropológico e ético, o que Nietzsche quis propor foi uma nova técnica de
valores, os valores vitais, que, de facto, entraram de algum modo na

consideração do pensamento filosófico e científico e constituem o contributo


maior da sua doutrina para a problemática da filosofia contemporânea.

§ 662. NIETZSCHE: VIDA E OBRA

Frederico Nietzsche nasceu em Rõcken perto de Lutzen a 15 de Outubro de 1844.


Estudou filologia clássica em Bona e em Leipzig, sob a orientação de Frederico
RistchI, e nestes estudos se foi desenvolvendo o seu entusiasmo romântico pela
antiguidade grega. Em Leipzig leu pela primeira vez a obra de Schopenhauer O
mundo como vontade e representação, que o entusiasmou. Num fragmento
autobiográfico de 1867, escreveu: "Nela cada linha denunciava renúncia,
negação, resignação; nela via o mundo

como um espelho, a vida e a minha própria alma,

90

cheias de horror; nela, semelhante ao sol, o grande olho da arte me fixava,


separado de tudo; nela, via enfermidade e cura, desterro e refúgio, inferno e
céu". Os trabalhos do jovem filólogo atraíram sobre ele a

atenção dos ambientes científicos; e em 1869, aos

vinte e quatro anos, Nietzsche foi chamado à cátedra de filologia clássica da


Universidade suíça de Basileia. Aí, Nietzsche travou amizade com Ricardo
Wagner, que se retirara com Cosima Bullow para a

vila de Triebschen, no lago dos Quatro Cantões, e

se tornou um fervoroso admirador do músico. Em


1872, Meusche publicou o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, que
suscitou a hostilidade dos filólogos e foi ignorado pelo grande público. No
ano

seguinte (1873), Meusche publicou as suas quatro Considerações intempestivas.


Entretanto, a amizade com Wagner ia esmorecendo: Nietzsche via cada vez

mais nele o extremo representante do romantismo e

parecia-lhe aperceber na última fase da sua obra, orientada nostalgicamente


para o cristianismo, um abandono daqueles valores vitais que eram próprios da
antiguidade clássica e um espírito de renúncia e de resignação. Humano,
demasiado humano, publicado em 1878, assinala a sua separação de Wagner e de
Schopenhauer.

Entretanto, a saúde do filósofo ia-se debilitando. Já em 1875 fora obrigado a


interromper o seu ensino em Basileia e em 1879 renunciou definitivamente à
cátedra. Daí em diante a sua vida foi a de um enfermo inquieto e nervoso;
viveu quase sempre na Suíça e

na Itália setentrional, ocupado inteiramente pela com-

91

posição dos seus livros e pela esperança, impaciente, mas sempre desiludida,
de que suscitassem à sua

volta uma legião de discípulos e de sequazes. Em


1880 saiu a segunda parte de Humano, demasiado humano, que tem o título O
viajante e a sua sombra, que é um hino de esperança na morte. A morte, no
entanto, não veio. Em 1881 Nietzsche publicou A aurora, livro em que se
apresenta pela primeira vez

abertamente as teses típicas da doutrina nietzscheana. Seguiu-se A gaia


ciência (1882) em que se firma, vitoriosamente a esperança do filósofo de
poder conduzir a humanidade a um novo destino. Meusche crê que pode fugir à
solidão e encontrar a compreensão e o êxito. Mas sobrevèm um incidente que o
desilude. Em 1882 conheceu uma jovem finlandesa de
24 anos, Lou Salomé, em quem julga ter encontrado um discípulo e uma
companheira excepcionais. Mas ela recusou desposá-lo, e casou-se algum tempo
depois com o amigo e discípulo de Nietzsche, Paulo Rée. Nietzsche sentiu-se
abandonado e traído. Entre 1883 e 1884 compôs o seu poema filosófico Assim
falou Zaratustra; mas este livro foi publicado apenas em

1891 quando Nietzsche já se afundara nas trevas da loucura. Em 1885 publicou


Para além do bem e do mal, uma das suas obras mais significativas, mas que,
como todas as outras, 'não teve êxito imediato. Seguiram-se: A genealogia da
moral (1887), e, a seguir,
O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos. O anticristo, Ecce homo, Nietzsche
contra Wagner, opúsculos e

libelos que Nietzsche compôs em 1883. O Ecce Homo

92

é uma espécie de autobiografia. Entretanto, Nietzsche estabelecera-se em


Turim, "a cidade que se revelou, como a minha cidade". Ali continuou a
trabalhar na sua última obra, a Vontade de poderio, que ficou incompleta. Mas
em Fevereiro de 1889, num acesso de loucura, lançou-se ao pescoço de um cavalo
maltratado pelo dono diante da habitação do filósofo, em

Turim. Nietzsche permaneceu ainda durante dez anos

imerso numa demência mansa, em que afloravam de quando em quando as


reminiscências e as desilusões da sua vida atormentada. Num bilhete a Cosima
Wagner escreveu: "Ariana, amo-te", e, numa outra

carta, refere-se a Cosima-Ariana. Falou-se, por isso, num amor infeliz de


Nietzsche por Cosima Wagner: mas na realidade, a vida e as obras do filósofo
não mostram sinais (salvo o episódio isolado de Lou Salomé) de um autêntico
amor. Os amigos que teve e em que tanto confiava foram-se afastando pouco a
pouco da sua obra. E a sua fama começou precisamente, quando, afundado na
loucura, já não podia dar-se conta dela. Nietzsche morreu a 25 de Agosto de
1900; os livros que publicara a suas expensas corriam agora o mundo.

A obra de Nietzsche choca com demasiadas e demasiado arraigadas convicções e


tradições para que não se tenha tentado atribuí-Ia inteiramente à sua loucura.
Mas tão-pouco seria lícito considerar o

fim infeliz da sua vida como puramente acidental e insignificante para a


compreensão da sua obra.

Isto não é lícito, porque Nietzsche entendeu e realizou a existencialidade da


filosofia e, por isso, a

93

sua obra inscreve-se profundamente no ciclo da sua vida e dele deve receber a
sua justa elucidação e o

seu autêntico significado. A investigação filosófica, como ele a concebeu e


praticou, é explicitamente subjectiva e autobiográfica, e daqui extrai a sua
força e a sua validez. "0 desinteresse - diz Nietzsche (Die froeliche Wiss, §
345) -não tem valor nem no céu nem na terra; todos os grandes problemas exigem
um grande amor e só espíritos rigorosos, claros e
seguros, somente os espíritos sólidos, são capazes de tal. Uma coisa é um
pensador tomar pessoalmente posição frente aos seus problemas para encontrar
neles o seu destino, o seu infortúnio e também a sua maior felicidade, outra é
aproximar-se desses problemas de modo "impessoal", isto é, abordá-los e
atingi-los só com fria curiosidade. Neste último caso, nada pode resultar, já
que uma coisa é certa: é que os grandes problemas, mesmo admitindo que se

deixem alcançar, não se deixam apreender pelos débeis e pelos seres de sangue
de rã". Além disso (Will zur Macht, pref.), Nietzsche declara querer ser, na
sua investigação, absolutamente pessoal, dizer as

coisas mais abstractas da maneira mais corporal e

sanguínea, e considerar toda a história como se a houvesse vivido e sofrido


pessoalmente, Não se pode deixar de ter em conta estas suas explícitas
afirmações que encontram correspondência em toda a sua obra. O centro do
filosofar de Meusche deve fornecer a chave não só das suas doutrinas
fundamentais mas também do mosaico da sua vida e da dissolução da sua
personalidade.

94

§ 663. NIETZSCHE: DIONISO OU A ACEITAÇÃO DA VIDA

O encontro de Meusche com Schopenhauer não se repercutiu apenas na primeira


fase da vida de Nietzsche. Na realidade, o diagnóstico de Schopenhauer sobre o
valor da vida foi o pressuposto constante da obra de Nietzsche, mesmo quando
este rejeita o condena a atitude de renúncia e de abandono que daquele
diagnóstico Schopenhauer extraíra. A vida é dor, luta, destruição, crueldade,
incerteza, erro.

É a irracionalidade mesma: não tem, no seu desenvolvimento, nem ordem nem


finalidade, o acaso domina-a, os valores humanos não encontram nela nenhuma
raiz. Duas atitudes são então possíveis frente à vida. A primeira é a da
renúncia e da fuga, que dá lugar ao ascetismo; esta é a atitude que
Schopenhauer extraiu da sua diagnose e é, segundo Nietzsche, própria da moral
cristã e da espiritualidade comum. A segunda é a da aceitação da vida tal como
é, com as suas características originárias e irracionais, e conduz à exaltação
da vida e à superação do homem. Esta é a atitude de Nietzsche. Toda a obra de
Meusche visa a esclarecer e a defender a aceitação total e entusiástica da
vida. Dioniso é o símbolo divinizado desta aceitação, e Zaratustra o seu
profeta.

Dioniso é "a afirmação religiosa da vida total, não renegada nem dilacerada".
É a exaltação entusiástica do mundo tal como ele é, sem diminuição, sem
excepção e sem escolha: exaltação infinita da infinidade da vida. O espírito
dionisíaco é diametral-

95

mente oposto à aceitação resignada da vida, à atitude de quem vê nela a


condição negativa destes valores de bondade, de perfeição, de humildade, que
são a

sua negação. É a vontade orgiástica da vida na totalidade da sua potência


infinita. Dioniso é o deus da embriaguez e da alegria, o deus que canta, ri e
dança; ele execra toda a renúncia, toda a tentativa de fuga frente à vida.
Isto quer dizer, segundo Nietzsche, que a aceitação integral da vida
transforma a dor em alegria, a luta em harmonia, a crueldade em justiça, a
destruição em criação. Renova profundamente a

tábua dos valores morais. Nietzsche crê que todos os valores fundados na
renúncia e na diminuição da vida, todas as chamadas virtudes que tendem a
mortificar a energia vital, e a destroçar e a empobrecer a esperança e a vida,
degradam o homem e, por conseguinte, são indignas dele. Nietzsche dá à virtude
o significado amoral que ela teve no Renascimento italiano. É virtude toda a
paixão que diz sim à vida e ao mundo: "0 orgulho, a alegria, a saúde, o amor
sexual, a inimizade e a guerra, a veneração, as atitudes belas, as boas
maneiras, a vontade inquebrantável, a disciplina da intelectualidade superior,
a

vontade do poder, a gratidão à terra e à vida - tudo quanto é rico e quer


gratificar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la - todo o poder destas
virtudes que transfiguram, tudo o que aprova, afirma e age por afirmação"
(Wille zur Macht, § 479). Estas paixÕes que já nada têm de primitivo, porque
são o regresso consciente do homem às fontes originárias da vida, constituem a
nova tábua dos valores fundada na aceitação infinita da vida. Nietzsche põe
crua-

96

mente o dilema entre a moral tradicional e a que ele defende: mas, na


realidade, este dilema está incluído no outro, que é o solo fundamental, entre
a aceitação da vida e a renúncia à vida, entre o sim e o não frente ao mundo.
Somente o acto da aceitação, a

escolha livre e jovial do que a vida é na sua força primitiva, determina a


transfiguração dos valores e

orienta o homem para a exaltação de si mesmo, e não para o abandono e a


renúncia-

O carácter romântico da atitude de Nietzsche é evidente nesta infinitização ou


divinização da vida. Dioniso ignora e desconhece todos os limites humanos. A
vida é, na verdade, essencialmente dor e toda a arte, como toda a filosofia,
pode ser considerada como uma medicina e um auxilio à vida que cresce e luta.
Mas aqueles que sofrem de um empobrecimento da vida pedem à arte e à filosofia
a calma e o silêncio ou então a embriaguez e o atordoamento, e esses vão ao
encontro do que Nietzsche chama o romantismo filosófico e artístico, o
romantismo de Schopenhauer e de Wagner. O homem dionisíaco possui, ao invés,
uma superabundância de vida e

tende para uma visão trágica da vida interior e exterior. Dioniso não só se
compraz no espectáculo terrível e inquietante, senão que ama o fado terrível
em si mesmo e o luxo da destruição, da desagregação, da negação; a malvadez, a
insânia, a brutalidade, parecem-lhe, de qualquer modo, permitidas por uma

superabundância vital que é capaz de converter num

país fértil qualquer deserto (Die froeliche Wiss, § 730). Por isso, nos males
e horrores da vida, Dioniso não distingue um limite insuperável que encerre o
homem
97

em confins bem definidos, mas antes o sinal de uma riqueza superior a todos os
limites, a infinidade de uma força que se expande para lá de todos os
obstáculos e que fecunda e transfigura tudo. Pelo mesmo motivo, Dioniso
rejeita e afasta a ideia da morte.

Os homens imaginam que o passado não é nada ou é pouca coisa e que o futuro é
tudo. Cada qual quer ser o primeiro no futuro e, todavia, a morte e o silêncio
da morte são as únicas certezas que todos temos em comum. "Como é estranho-
nota Nietzsche (Ib., § 278)-que esta única certeza, esta única comunhão seja
incapaz de agir sobre os homens e que estes estejam tão longe de sentir a
fraternidade da morte". E, contudo, o próprio Nietzsche rejeita e anula esta
fraternidade, rejeitando a ideia da morte. "Apraz-me verificar que os homens
se recusam absolutamente a conceber a ideia da morte e quereria contribuir
para tornar ainda mais digna de ser pensada a

ideia da vida". Rejeitando a ideia da morte rejeita-se a marca mais evidente


da finitude humana. Dioniso é o símbolo da aceitação da vida e também o
símbolo da negação de todos os limites humanos.

§ 664. NIETZSCHE: A TRANSMUTAÇÃO DOS VALORES

Na transmutação dos valores, Nietzsche vê a sua missão, o seu destino. "A


minha verdade -diz ele (Ecce Homo, § 4) - assusta porque até agora se chamou
verdade à mentira. Inversão de todos o valores; eis a minha fórmula para um
acto de supremo reconhecimento de si, de toda a humanidade, acto que em

98

mim se tomou carne e génio. O meu destino exige que eu seja o primeiro homem
honesto, que eu me

sinta em oposição às mentiras de vários milénios". A inversão dos valores


apresenta-se na obra de Nietzsche como uma crítica à moral cristã, reduzida
por ele substancialmente à moral da renúncia e do ascetismo. A moral cristã é
a revolta dos indivíduos inferiores, das classes submetidas e escravas, à
casta superior e aristocrática. O seu verdadeiro fundamento é o ressentimento:
o ressentimento daqueles a quem a verdadeira reacção, a da acção, é interdita,
e que encontram compensação numa vingança imaginária". Enquanto toda a moral
aristocrática nasce de uma afirmação triunfal de si, a moral dos escravos opõe
desde o princípio um não ao que não faz parte dela mesma, ao que é diferente
de si e constitui o seu não-eu; e é este o seu acto criador. Esta inversão do
olhar valorativo, este ponto de vista que se inspira necessariamente no
exterior, em vez de se fundar em si mesmo, é próprio do ressentimento
(Genealogie der Moral, 1, § 10). Os fundamentos da moral cristã: o
desinteresse, a abnegação, o sacrifício de si, são fruto do ressentimento do
homem débil frente à vida. É a vida que se põe contra a vida, a fuga perante a

vida. O ideal ascético é um expediente para conservar a vida no estado de


degeneração e decadência a que o reduziu a frustrada aceitação da mesma. E os
puros de coração, as almas belas que se vestem poeticamente da sua virtude,
são, também, seres ressentidos, que albergam dentro de si um subterrâneo
espírito de vingança contra os que encarnam a riqueza e a potência da vida. A
própria ciência não está longe do

99
ideal ascético do cristianismo pela sua adoração à verdade objectiva, pelo seu
estoicismo intelectual que proíbe o sim e o não frente à realidade, pelo seu
respeito aos factos e a renúncia à interpretação deles. A crença na verdade
objectiva é a transformação última do ideal ascético. O homem verídico,
verídico no sentido extremo e temerário que a fé na ciência pressupõe, afirma
assim a fé num mundo diverso do da vida, da natureza e da história, e na
medida em que afirma este mundo diferente, deve negar o

outro (Die froeliche Wiss, § 344). O resultado é também aqui o empobrecimento


da energia vital: a dialéctica torna o lugar do instinto, a gravidade imprime
a sua marca no rosto e nos gestos como sinal infalível de uma evolução mais
penosa da matéria, e de um afrouxamento das funções vitais (Genealogie der
Moral, 3, § 25).

O tipo ideal da moral corrente, o homem bom, existe apenas à custa de uma
mentira fundamental; já que fecha os olhos perante a realidade e não quer, de
forma alguma, ver como ela é feita: de facto, a realidade não é de molde a
estimular, a cada instante, os instintos de benevolência nem sequer a permitir
a

cada momento uma intervenção bem intencionada e

estúpida. O resultado último da concepção do mundo fundada na não aceitação da


vida é o pessimismo, que, na sua expressão final, é o niilismo. Nega-se a vida
porque inclui a dor e o mundo é desaprovado em benefício de um mundo ideal em
que se repõem todos os valores antivitais.

A estas noções do ascetismo, contrapõe Nietzsche as mais vigorosas e


entusiásticas afirmações. Tudo o

100

que é terrestre, corpóreo, anti-espiritual, irracional, é exaltado por


Nietzsche com a mesma violência com que a moral ascética o condena. "0 meu eu-
diz Zaratustra - ensinou-me um novo orgulho e eu ensino-o aos homens: não
enterreis a cabeça na areia das coisas celestes, mas levantai-a altivamente,
uma cabeça terrestre que cria o sentido da terra. Eu ensino aos homens uma
vontade nova: seguir voluntariamente a via que os homens seguiram cegamente,
aprovar esta vida e não procurar fugir-lhe cegamente, como' os doentes e "os
decrépitos". A existência do homem é uma existência inteiramente terrestre: o
homem nasceu para viver na terra e não há outro mundo para ele. A alma, que
deveria ser o sujeito da existência ultra-terrena, é insubsistente: o homem é
apenas corpo. "Eu sou inteiramente corpo e nada mais, diz Zaratustra: a alma é
apenas uma palavra que indica uma partícula do corpo. O corpo é um

grande sistema de razão, uma multiplicidade com um

único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor". O verdadeiro eu


do homem é o corpo, a que Nietzsche chama "a grande razão", em que o

homem consubstancia o seu eu singular. A verdadeira subjectividade do homem


não é a que ele indica com o monossílabo eu, mas o si mesmo que é a um

tempo corpo e razão. Encontra-se também em Nietzsche uma crítica do princípio


cartesiano, que é uma
das mais radicais. "Dizer que quando se pensa é mister que haja algo que
pense, é - diz Nietzsche simplesmente a formulação do hábito gramatical que à
acção junta um agente. Se se reduz a proposição a

isto: "Pensa-se, logo existem pensamentos", ela re-

101

sultará numa simples tautologia e "a realidade do pensamento" fica excluída, o


que leva a reconhecer apenas a aparência do pensamento. Mas Descartes queria
que o pensamento fosse, não uma realidade aparente, mas um em si" (Wille zur
Macht, § 260).

A reivindicação da natureza terrestre do homem está implícita na aceitação


total da vida que é própria do espírito dionisíaco. Em virtude de tal
aceitação, a terra e o corpo do homem transfiguram-se: a

terra deixa de ser o deserto em que o homem se encontra desterrado e converte-


se na sua residência jubilosa; o corpo cessa de ser prisão ou túmulo do homem
e converte-se no seu verdadeiro eu, A transfiguração dos valores é entendida
por Nietzsche como a anulação dos limites, como a conquista de um domínio
absoluto do homem sobre a terra e o seu corpo, como a eliminação do carácter
problemático da vida e de toda a perda ou transvio a que o homem possa estar
sujeito.

§ 665. NIETZSCHE: A ARTE

Ao espírito dionisíaco se vincula a arte, que assim se torna para Nietzsche a


expressão mais elevada do homem. Na sua primeira obra, O nascimento da
tragédia (1872), Nietzsche reconhecera como fundamento da arte a dualidade do
espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, o primeiro dos quais domina a arte

plástica, que é harmonia de formas, e o segundo a música, que é, ao invés,


destituída de forma por ser embriaguez e exaltação entusiástica. Foi graças

102

ao espírito dionisíaco, afirma Nietzsche, que o povo grego logrou suportar a


existência. Sob a influência ZD

da verdade contemplada, o grego via por toda a parte o aspecto horrível e


absurdo da existência. A arte veio em seu auxílio, transfigurando o horrível e
o absurdo em imagens ideais, em virtude das quais a

vida se tomou aceitável. Tais imagens são o sublime,

com o qual a arte domina e sujeita o horrível, e o cómico, que liberta da


repugnância do absurdo (Die Geburt der Trag, § 7). A transfiguração foi
realizada pelo espírito dionisíaco, modulado e disciplinado pelo espírito
apolíneo, e deu lugar, respectivamente, à tragédia e à comédia. O pessimismo,
transfigurado pela arte, obstou a que os Gregos fugissem perante a vida.

Isto acontecia na juventude do povo grego, depois, com o aparecimento de


Sócrates e do platonismo, o espírito dionisíaco foi combatido e perseguido, e

foi assim que começou, com a renúncia à vida, a decadência do povo grego.
As subsequentes especulações de Meusche sobre a

arte confirmam a estreita conexão desta com o espírito dionisíaco. A arte é


condicionada por um sentimento de força e de plenitude, que se manifesta na
embriaguez. Não são estados artísticos os que dependem de um empobrecimento da
vontade: a objectividade, a abstracção, o empobrecimento dos sentidos, as
tendências ascéticas. O feio, que é a negação da arte, está ligado a tais
estados: "De cada vez que nasce

a ideia de degeneração, de empobrecimento da vida, de impotência, de


decomposição, de dissolução, o

103

homem estético reage com um não" (Wille sur Macht, § 357). A beleza é a
expressão de uma vontade vitoriosa, de uma coordenação mais intensa, de uma
harmonia de todas as vontades violentas, de um equilíbrio perpendicular
infalível. "A arte -diz Nietzsche
- corresponde aos estados de vigor animal. Por um lado, é o excesso de uma
constituição florescente que se desentranha no mundo das imagens e dos
desejos; por outro, é a excitação das funções animais mediante as imagens e os
desejos de uma vida intensificada, uma sobrevalorização do sentimento da vida
e um estimulante desta". É essencial à arte a perfeição do ser, o cumprimento
e orientação do ser para a plenitude; a arte é, essencialmente, a afirmação, a
bênção, a divinização da existência. O estado apolíneo não é mais do que o
resultado extremo do inebriamento dionisíaco; uma espécie de simplificação e

concentração da embriaguez mesma. O estilo clássico representa este repouso e


é a forma mais elevada do sentimento de poder.

Isto não implica que na arte o homem se abandone sem freio aos seus instintos.
Se o artista não quer ser inferior à sua missão, deve dominar-se e adoptar um
modo de vida sóbrio e casto. É precisamente o seu instinto dominante que exige
isto dele e não lhe permite dispersar-se de maneira a permanecer inferior às
exigências da arte (Wille zur Macht, § 367). Em geral, um certo ascetismo, uma
renúncia aceite de bom grado, dura e serena, faz parte das condições
favoráveis de uma espiritualidade superior (Genealogie der Moral, 3, § 9). "
Reconhece-se o

104

filósofo - diz Nietzsche (Ib., 3, § 8) - por evitar três coisas brilhantes e


ruidosas: a glória, os princípios e

as mulheres, o que não quer dizer que elas não venham ter com ele. Foge da luz
demasiado viva: foge também do seu tempo e à luz que ele irradia. Nisso
assemelha-se à sombra: quanto mais o sol baixa, mais a sombra cresce". Mas
nada parece a Nietzsche tão estéril como a fórmula da arte pela arte e o

chamado desinteresse estético. Recordo a frase de Stendhal que definiu a


beleza como "uma promessa de felicidade" (Ib., 3, § 6). O pessimismo artístico
é a

contrapartida exacta do pessimismo moral e religioso. Este sofre com a


corrupção do homem e da vida. A arte, ao invés, considera belo também o que o
instinto de impotência considera como digno de ódio, isto é, feio. A arte
aceita o que há de problemático e de terrível na vida, é a mais total e
entusiástica afirmação da vida. "A profundidade do artista trágico consiste em
que o seu instinto estético abarca as consequências longínquas e não se detém
nas coisas mais próximas; afirma, a economia em grande, a economia que
justifica o que é terrível, mau e problemático e não se contenta apenas em
justificá-lo" (Will zur Macht, § 374). Nietzsche repete aqui, a seu modo, a
ide.-*a central da estética de Kant: a arte transforma, com um acto de
aceitação, a debilidade humana em força, a impotência em poder, a
problematicidade em certeza. Mas para Kant a arte confirma e consolida assim a
finitude do homem, da qual é uma das manifestações positivas fundamentais.
Para Nietzsche, a arte abre ao homem o infinito do poder e da exaltação de si.

105

§ 666. NIETZSCHE: O ETERNO RETORNO

"Tu és profeta do eterno retomo, esse é o teU destino", dizem a Zaratustra os


seus animais. E, na realidade, o eterno retomo é a fórmula simples e

completa que abarca e reduz à unidade todos os aspectos da doutrina de


Nietzsche, e exprime igualmente o destino do homem e o do mundo. O eterno
retorno é o sim que o mundo diz a si mesmo, é a auto-aceitação do mundo. O
eterno retorno é a expressão cósmica daquele espírito dionisíaco que exalta e
abençoa a vida.

O mundo apresenta-se a Nietzsche desprovido de todo o carácter de


racionalidade. "A condição geral do mundo é, para toda a eternidade, o caos,
não como ausência de necessidade, mas como falta de ordem de estrutura, de
forma, de beleza, de sabedoria e de todos os nossos esteticismos humanos" (Die
frofiche Wiss, § 109). O mundo não é perfeito nem belo nem nobre e não admite
nenhuma qualificação que possa referir-se de algum modo ao homem. Os nossos
juízos estéticos e morais não o concernem, nem têm qualquer finalidade. Se o
devir do mundo devesse tender a um término definitivo, a uma condição final de
estabilidade, ao ser ou ao nada, esse termo definitivo devia ter já sido
alcançado; esta é a única certeza que temos acerca do mundo, segundo Nietzsche
(Wille zur Macht, § 384). Deste modo se exclui do mundo todo o carácter
racional: o acaso domina-o. "Um pouco de razão, diz Zaratustra, um grão de
sabedoria disperso de estrela em estrela, este fermento mistura-se a todas as
coisas; mas só graças à loucura a

106

sabedoria se mistura a todas as coisas. Um pouco de sabedoria é possível; mas


eu encontrei em todas as coisas esta certeza feliz: elas preferem dançar sobre
os pés do acaso".

Mas esta explosão de forças desordenadas, este "monstro de forças sem


princípio nem fim", este mundo tem em si uma necessidade que é a sua vontade
de se reafirmar e, por isso, de retomar eternamente a si mesmo. Tal mundo
"afirma-se a si mesmo, até na sua uniformidade que permanece a mesma no

curso dos anos; bendiz-se a si mesmo, porque é o

que deve eternamente regressar, porque é o devir que não conhece saciedade,
nem desgosto, nem fadiga" . Este mundo dionisíaco da eterna criação de si e da
eterna destruição de si, não tem outra finalidade senão a "finalidade do
círculo"; não tem outra vontade se não a do círculo que tem a boa vontade de
seguir o seu próprio caminho (Ib., § 385). A necessidade de devir cósmico não
é, portanto, mais do que a vontade de reafirmação. Desde a eternidade, o mundo
aceita-se a si mesmo, e repete-se. O eterno retomo é uma verdade terrível que
pode destruir o homem ou exaltá-lo: frente a ele mede-se a força do homem, a

sua capacidade de se superar. O pensamento de que esta vida, tal como a


vivemos, terá de ser revivida ainda outra vez e uma quantidade inúmera de
vezes, que não haverá nada de novo e que tanto as coisas maiores como as mais
pequenas voltarão, para nós, na mesma sucessão e na mesma ordem, este
pensamento é tal que pode lançar no desespero o homem aparentemente mais
forte. E, contudo, não existe outra alternativa, a não ser que se feche os
olhos

107

ante esta verdade sobrehumana: o homem deve conformar a sua vida ao enigma de
Dioniso. Cumpre fazer muito mais do que suportar tal pensamento: é mister, diz
Nietzsche, entregar-se ao anel dos anéis. Cumpre fazer o voto do regresso de
si mesmo com

o anelo da eterna bênção de si mesmo e da eterna auto-afirmação; cumpre


alcançar a vontade de querer que retorne tudo o que já aconteceu, de querer no
futuro tudo o que acontecerá (Ib., § 385). É preciso amarmos a vida e a nós
mesmos para lá de todos os limites, a fim de não podermos desejar outra coisa
senão esta eterna e suprema confirmação (Die froeliche Wiss., § 341). O mundo
oferece ao homem o espelho em que deve mirar-se. O espírito dionisíaco é o
espírito do universo inteiro, ainda antes de ser o

que leva o homem à superação de si.

§ 667. NIETZSCHE: "AMOR FATI"

"A fórmula de grandeza do homem - diz Nicusche - é amor fati; não querer nada
de diverso daquilo que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a
eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo". Este amor liberta
o homem da servidão do passado, uma vez que por ele o que foi se transforma no
que eu queria que fosse. A vontade não pode fazer com que o tempo volte para
trás: por isso, o passado se lhe impõe e a faz prisioneira. Deste cativeiro é
expressão a doutrina de que tudo o que passou merecia passar e que o tempo
exerce sobre as coisas uma justiça punitiva infalível. O espírito do
ressentimento preside a estas doutrinas que sepa-

108

ram a existência do tempo e vêem neste o castigo e a maldição da existência.


Zaratustra afirma, ao invés, a criatividade da vontade com respeito ao tempo.
"Tudo quanto foi é fragmento, enigma, acaso terrível, até que a vontade
criadora afirme: eu quis que fosse assim, eu quero que assim seja, eu quererei
que seja assim". Por esta aceitação o passado cessa de ser

um vínculo da vontade e a vontade compreende o passado no ciclo do seu poder.

Na segunda das Considerações intempestivas ("Da utilidade e dos inconvenientes


dos estudos históricos para a vida", 1873), Nietzsche estabelecera um
antagonismo entre a vida e a história. Um fenómeno histórico, estudado de modo
absoluto e completo, reduz-se a um fenómeno objectivo e morto para aquele que
o estuda, porque este reconheceu a loucura, a injustiça, a paixão cega e, em
geral, todo o horizonte obscuro e terrestre do próprio fenómeno. Por outro
lado, Nietzsche afirmara que a vida tem necessidade dos serviços da história.
"A história pertence ao ser vivente sob três aspectos: pertence-lhe porque é
activo e aspira; porque conserva e venera; porque sofre e necessita de
libertação. A esta trindade de relações correspondem três espécies de história
e podem-se distinguir no estudo da história um ponto de vista monumental, um
ponto de vista arqueológ*co e um ponto de vista crítico". Que os grandes
momentos da luta dos indivíduos formem uma só cadeia, que as manifestações
mais altas da humanidade se unam através dos milénios, que o que existe de
mais elevado no passado possa ainda reviver e avultar, tal é a ideia que serve
de fundamento à história mo-

109

numental. Em virtude deste tipo de história, o homem activo, o lutador,


encontra no passado os mestres, os exemplos, os consoladores de que tem
necessidade e

que o presente lhe nega. Deste modo, conclui que a

grandeza que aconteceu foi decerto possível, e por isso será também possível
no futuro. A história arqueológica nasce, ao invés, quando o homem se detém a
considerar o que foi convencionado e admirado no passado, a mediocridade
constitutiva da vida quotidiana. A história arqueológica dá às conclusões
modestas, rudes e mesmo precárias da vida de um homem ou de um povo, um
sentimento de satisfação, radicando-a no passado, mostrando-a como a herdeira
de uma tradição que a justifica. Mas para poder viver, o homem tem também
necessidade de romper com o passado, de o aniquilar, para se refazer e se
renovar. É para isso que serve a história crítica que arrasta o passado ao
tribunal, instrui severamente um juízo contra ele e, por fim, o condena. Todo
o passado é, de facto, merecedor de condenação porque, nas coisas humanas, a
debilidade e a força andam sempre unidas. Quem condena não é verdadeiramente a
justiça, mas a vida; mas, o mais das vezes, a sentença seria a mesma se a
justiça em pessoa a tivesse pronunciado. Fora destes serviços que a história
pode prestar à vida, Nietzsche julgava o excesso dos estudos históricos nocivo
à vida e sobretudo ruinoso para as personalidades fracas, ou seja, não
bastante vigorosas para valorizarem a

história em função de si próprias e levadas por isso a modelarem-se sobre o


passado. Com efeito, concebia ainda a vida como uma potência não histórica,

Ho

à qual a consideração histórica fosse estranha e subordinada.

O eterno retorno e o amor lati mudaram implicitamente este ponto de vista. A


aceitação total da vida implica, como se viu, a aceitação do passado, a
vontade que ele seja tal como foi. No acto desta aceitação, a vida mesma se
põe como historicidade, e se liga ao passado, assumindo-o voluntariamente.

§ 668. NIETZSCHE: O SUPER - HOMEM

Se a doutrina do eterno retorno é a fórmula central, cósmica, do filosofar de


Nietzsche, a do super-homem é o seu termo final, a sua última palavra. A
aceitação da vida não é, para Nietszche, a aceitação do homem. Este é o ponto
posto a claro pela espera messiânica do super-homem defendida por Zaratustra.
"0 homem deve ser superado, diz Zaratustra. O super-homem é o sentido da
terra... O homem é uma corda tensa entre o animal e o homem, uma corda sobre o
abismo. O que existe de grande no homem é que ele é uma ponte e não um termo.

O que o toma digno de ser amado é ele ser uma ponte

e um pôr-de-sol". O super-homem é a expressão e a encarnação da vontade do


poder. Não subsiste, afirma Zaratustra contra Schopenhauer, uma vontade de
vida. O que não vive não pode querer, mas aquilo que vive deseja algo mais que
a vida, e na base de todas as suas manifestações está a vontade de poder. A
vontade de poder determina as novas valorações, que são o fundamento da
existência sobrelmmana.

111

O homem deve ser superado: isto quer dizer que todos os valores da moral
corrente, que é uma moral de rebanho e tende ao nivelamento e à igualdade,
devem ser transmudados.

A primeira característica do super-homem é a sua

liberdade. Ele deve libertar-se dos limites habituais da vida e renunciar a


tudo o que os outros prezam: deve pôr todo o seu empenho em voar livremente,
sem temor, por cima dos homens, dos costumes das leis e das apreciações
tradicionais (MenschUches, All zumenschUches, § 34). O seu espírito deve
abandonar toda a fé , todo o desejo de certeza e habituar-se a firmar-se na
corda bamba de todas as possibilidades (Die froeliche Wiss., § 37). A sua
máxima fundamental é: torna-te no que és -não no sentido da concentração numa
escolha ou numa tarefa única, mas no sentido da máxima diferenciação dos
demais, de se encerrar na própria excepcionalidade, na busca de uma solidão
inacessível. A liberdade interior própria do super-homem é uma riqueza de
possibilidades diversas, entre as quais ele não escolhe, porque as

quer dominar e possuir todas. Daqui nasce a renúncia à certeza, que é, pelo
contrário, limitação e renúncia às diversas possibilidades do erro; daí,
também, a

profundidade do super-homem, a impossibilidade de centrar a sua vida interior,


de que nunca se atinge mais do que a máscara. "Tudo quando é profundo -

diz Nietzsche (Jenseits von Gut und Bõse, § 40) -

gosta de encobrir-se; as coisas mais profundas odeiam a imagem e a


semelhança". O super-homem tem "fundos e duplos fundos que ninguém conseguiria
percorrer até ao fim". Esta essência misteriosa do

112

super-homem, este insondável segredo da sua interioridade, em que Nietzsche vê


o signo da profundidade super-humana, não é talvez o indício da falta de um
empenho e de uma missão que o liguem aos

outros homens e o tornem portanto humanamente reconhecível?

O super-homem é o filósofo do futuro. Os obreiros da filosofia, como Kant e


Hegel, não são os verdadeiros filósofos; os verdadeiros filósofos são
dominadores e legisladores: dizem "como deve ser", preestabelecem a meta do
homem e para isso utilizam os
trabalhos preparatórios de todos os obreiros da filosofia e de todos os
dominadores do passado. "Impulsionam para o futuro a mão criadora e tudo
quanto existe e existiu se toma para eles um meio, um instrumento, um martelo.
O seu conhecer equivale a criar, o seu criar a legiferar, o seu querer a
verdade ao

desejo de poder" (Jenseits, § 211). As suas virtudes nada têm a ver com as dos
outros, podem suportar a verdade, a inteira e cruel verdade sobre a vida e
sobre o mundo; e assim podem aceitar verdadeiramente a vida e o mundo.

§ 669. NIETZSCHE: A PERSONALIDADE IMPOSSíVEL

A filosofia de Nietzsche é a filosofia de um grande romântico. A rede do


infinito manifesta-se em todas as suas atitudes, em todos os elementos da sua
doutrina, em cada página dos seus escritos. Mas Nietzsche quis atingir e
realizar o infinito para o homem e no

113

homem. Quis que o homem reabsorvesse em si mesmo e dominasse o infinito poder


da vida. Por isso a aceitação da vida e do mundo não é para Nietszche a

aceitação do homem como criatura finita: não pretende fundamentar as positivas


capacidades humanas na sua própria limitação, senão que procura transferir
para o homem a infinidade e a limitação do seu poder.

Tal é a característica do espírito dionisíaco do qual derivam todas as


características da atitude e da obra de Nietzsche. Em primeiro lugar, procede
daqui a fórmula cósmica da aceitação de si: o eterno retorno. A reafirmação de
si, de que nasce a transmutação dos valores e o super-homem, não é, para
Nietszche, algo especificamente humano. É a necessidade que preside ao devir
do mundo e em virtude da qual o próprio mundo retoma continuamente sobre os
seus passos, repetindo eternamente os mesmos

acontecimentos. Ao aceitar a vida, o homem não faz mais do que olhar-se no


espelho do mundo que se

reafirma, se exalta e se bendiz a si mesmo. Esta fórmula generalizadora, que


diminui o significado original da existência humana e a responsabilidade da
livre reafirmação do homem, tem um pressuposto cosmológico: a crença (que
chega a Nietzsche através de Schopenhauer) na identidade substancial do homem
e do mundo, e, por conseguinte, na absoluta homogeneidade de todos os
acontecimentos do mundo.

A doutrina de Nietszche tem, por consequência, um carácter cosmológico, e não


teológico. O uso de símbolos ou de procedimentos religiosos, a polémica
anticristã que condiciona de algum modo a orientação da sua doutrina e outros
dispersos elementos desta doutrina que nos fazem pensar numa espécie de
nostalgia religiosa de Nietzsche ou num seu novo

anúncio teológico são, na realidade, os aspectos decorrentes de uni


naturalismo cosmológico, segundo o qual a iniciativa do nascimento e da
destruição do inundo, na sua eterna mudança, é devida ao próprio mundo; ou
seja, à vontade de poder que é a natureza dele.

Por outro lado, esta mesma orientação cosmológica torna inútil e


insignificante a filosofia como investigação. O filosofar não é, para
Nietzsche, um

esforço paciente e metódico que se autodisciplina na

razão, mas o fruto de uma vontade irracional, de uma explosão orgiástica de


entusiasmo. Em lugar de Sócrates, o símbolo da filosofia como investigação,
elege Dioniso, como símbolo da infinidade da vida. A sua obra mais
significativa, Zaratustra, é tudo menos um

livro de investigação: é poesia, profecia, esperança lírica e entusiástica, e,


como tal, revela já a inspiração do filósofo. A máxima torna-te no que és
exclui a busca de si: prescreve somente um amor de si levado à exasperação,
Sendo assim, o acto de auto-afirmação renuncia a toda a justificação e
fundamentação autónoma: torna-se num puro facto que se opõe ao outro facto da
não aceitação de si, sem que possa pretender a qualquer superioridade de
valor.

Mas sobre estes fundamentos, a unidade da pessoa é impossível. A unidade da


pessoa é a unidade, de uma missão que transcende o indivíduo e na qual este
encontra a razão da sua solidariedade com os outro homens, Toda a finalidade
humana é investigação e

115

trabalho metódico, autolimitação, reconhecimento do valor e da dignidade dos


outros. Sem um fim determinado, em que o homem concentre e reconduza à unidade
a multiplicidade dos seus aspectos e das suas

relações com o mundo e com os outros, o indivíduo, o eu, a pessoa, não são
mais do que vazias generalidades, que não podem concretizar-se numa substância
vivente.

Contra tal impossibilidade veio esbarrar o próprio Nietzsche. A tentativa de


divinizar o homem, de o transformar, de criatura limitada e necessitada como
é, num ser auto-suficiente no qual a vida realizasse o infinito do seu poder,
sofreu um golpe decisivo na personalidade mesma daquele que a empreendeu.
Durante toda a sua vida, Nietzsche procurou conquistar os valores que
constituíam para ele as características do super-homem: a boa saúde e a força
física, a ligeireza do espírito, o entusiasmo vital, a riqueza e energia
interna, a compreensão e amizade dos iguais, o êxito do dominador. Tudo lhe
foi negado, como lhe foi negado por último a unidade e o equilíbrio da sua
própria pessoa.

A trágica conclusão da sua vida é um ensinamento não menos fecundo que as


grandes palavras que ele soube encontrar para subtrair o homem à existência
banal e restituir-lhe o sentido da excepcionalidade da grandeza e do risco.
Mas a excepção, quando é verdadeiramente tal, não quer mais do que referir-se
à regra, e todo o objectivo excepcional exige a humildade e a compreensão dos
demais. Toda a

grandeza é tal no homem e pelo homem, não é pretensão de uma impossível


superação do próprio ho-

116

inem. E o risco é inevitável na condição humana, mas em vez de ser desafiado e


exaltado, há que ser reconhecido e enfrentado.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 662. A edição completa das obras de Nietszche foi publicada pela irmã E.
FOERSTER-NIETZSCHE; W@-,rke,
15 vol., Leipzig, 1895-1N1. Uma reprodução desta edição em formato mais
pequeno foi publicado em Leipzig,
1899-1912 ("Kleine Ausgabe"). Outra edição ainda mais manejável foi publicada
em Leipzig em 1906 em 10 vol. ("Taschenausgabe"), a que se seguiu o volume X1
(1913). Msta edição foi seguida por nós no texto. Outra edição "clãssica"
apareceueni Leipzig em 3 vol.,
1919. -Outra edição em .19 vol. é a "Musarion", Munique, 1923-29, e uma nova
edição está em curso ao cuidado do Nietzsehe-Archiv de Weimar, 1933 sgs. -

Ge~melte Briefe, 5 vol., Berlim, 1900-09.

Sobre a vida de Nietszche: E. FoERsTER-NIFTZSCHF,, D" Leben F.N., 3 vol,


Leipzig, 1895-1904; 1d., Der junge N., Leipzig 1912; Der c@ns"me N., Leipsig,
1913; Lou AND~-SALOMÉ F.N., Viena, 1994 (trad. frane., Paris, M2); GEORGES
WALTZ, La vie de P.N. dlaprès sa

correspow~e, Paris, 1923; e as monografias citadas a seguIr.

A monografia fundamental é a de CH. ANDLER, N., sa vie et sa peméc, 6 vol.,


Paris, 1920-31. A obra de E. BERTRAm, N. Vermwh einer Mythologie, Berlim,
1919 (tradução frane., Paris, 1923) subtrai N. à história para o projectar no
simbolo, e na lenda. A monogra.fía de K. JASPERS, N. Einführung in das
Verstandnis sei?ws Phiiosophi~, Berlim, 1936, é uma inteijwetaçFio nos termos
da filosofia da existència de Jaspets.

117

A. RMIL, F.N. der Kunster und der Dc.,rker, Estugarda, 1897 E.; ZOCCOLI, N.,
Modena, 1898; H. LiGHTENBERG, La phil. de N., Paris, 1898; P. DEuSSEN,
Erinnerugen an F.N., Leipzig, 1901; J. DE GAULTIER, N. et ta Réforme soc~
Paris, 1904; H. VAIHNGER, N. aIs Philosoph., Berlim, 1902; C. A. BERNOULILLI,
Franz Overbeck mi-d F.N., 2 volumes, lena 1908; MENCKEN, The philosophy of
F.N., Londres 1909; M. A. MUGGE, F.N. His Life and Work, Londres, 1909; M. A.
FRIEMANDER, F.N., Leipzig, 1911; R. M. 3~, N., Munique, 1912; C. BRANDES,
F.N., Londres, 1914; A. WOLF, The Philosophy of N., Londres, 1915; H. RõMER,
N., 2 vol. Leipzig 1921; F. KõHLER, F.N., Leipzig; C. Sc~pF, N., Gottinga,
1922; A. VETTER, N., Munique,
1926; C. LESSING, N., Leipzig, 1931; G. BLANQuis, N., Paris, 1933; T. MAULMER,
N., Paris, 1933; H. LEF£BVEE, N., Paris, 1939; E. HEINTEL, N.s. System in
seinem Grundbegriffe, Leipzig, 1940; K. LIEBMANN, F.N., Munique, 1943; W. A.
KAUFMANN, N., Priweton, 1950-1956; A. GRESSON, N., Paris, 1953; R. BLUNcK,
F.N., Basel, 1953; HEIDEGGER, N., 2 vol., Pfüllingen, 1961.

§ 663. Sobre Nietzsche e Schopenhaucr: G. SimMEL, Schope~er und N., Berlim,


1907.

Sobre o romantismo de Nietzsche: K JOEL; N. und die Roma-ntik, Jena, 1950;


ANDLER, op. Cit, I e VI.

§ 664. P. MESS, N. aIs Gesetzgeher. Leipzig, 1931,


E. M=, N.s. Wertphilosophie, Heidelberga, 1932.

§ 665. J. ZEITLER, N.s. Aesthetic, Leipzig, 1900; E. SEILLÈRE, Les idées de N.


s-ur Ia musique, Paris,
1910; H. ToPFER, Deutung und Wertung der Kunst bei Schopenhauer und N.,
Dresden, 1933.

§ 666. A. FOUILLÉE, in "Revue philosophique",


1909.

§ 668. A. FouILLÉE, N. et 1'imn@oralisme, Paris,


1902.

118

§ 669. Sobre a doença de Nietzsche: E. F. PODACII, N.s Zusabmenbruch,


Heidelberga, 1930 (trad. franc., Paris, 1931): ID., Gestalten um N., Berlim,
1932; P. COHN, Um N.s. Untergang, Hannover, 1931; G. VORBERG, Ueber N.s
Krankheit und Zusamenbruch, Berlim,
1934. Sobre o carácter cosmológico da doutrina de Nietzsche: K. LoWITII, N.s.
Philosophie der Ewigen Wiederkehr des Gleichen, Estugarda, 1956; ID., in
Pascal e Nietzsche, "Archivio di MIosofia", 1962, p. 107, Sg8.

119

SÉTIMA PARTE

A FILOSOFIA NO SÉCULO XXX E XX

O ESPIRITUALISMO

§ 670. ESPIRITUALISMO: NATUREZA E CARACTERISTICAS

DO ESPIRITUALISMO

A identidade fundamental entre filosofia e ciência, que é a palavra de ordem


do positivismo, deu origem à crise, a partir dos meados do século XIX, do
próprio conceito de filosofia. Em virtude desta identidade a filosofia fica
sem na-da que fazer se

prescindir dos conhecimentos positivos que lhe são dados pela ciência e pelos
problemas a que tais conhecimentos dão origem. A metafísica tradicional com a
sua teologia, a sua cosmologia e a sua psicologia, fundadas em noções e
procedimentos que nada têm a ver com os objectos e os procedimentos da
ciência, parecia definitivamente fora de jogo e

suplantada por outras disciplinas positivas: a cosmologia pelas ciências


naturais, a psicologia pela

123

psicofísica e a teologia por uma reflexão sobre as forças actuantes no mundo


social; e a técnica, a economia, o direito e a historiografia afirmavam a sua

pretensão de se constituírem, por seu turno, como ciências positivas o


autónomas, isto é, fundadas nos factos e independentes da filosofia.

Não se pode dizer, no entanto, que o positivismo negligenciasse os problemas


do "espírito" se por espírito se entende a esfera das actividades propriamente
humanas em que se inserem a religião, a arte, a moral e a própria ciência como
actividades produtoras de conhecimentos. Mas negava que se pudesse aceder a
essa esfera de modo diferente dos processos por que se chega ao resto da
natureza, dado que também esta esfera fazia parte da natureza. Na sua vo-

cação mais funda, o positivismo é um naturalismo, ou antes um reducionismo


naturalístico: nada existe ou pode existir, tanto no "espírito" como na
"natureza externa", que não seja um fenómeno ou um conjunto de fenómenos
sujeito a leis e determinado por estas leis. Sendo assim, a investigação
directa que procura descobrir ou justificar aspectos ou determinações que a
indagação positiva ignorava ou até mesmo excluía, tais como o finalismo da
natureza, a liberdade da vontade humana na história, os fins ou os valores
transcendentes próprios da esfera moral e religiosa, parecia que não podia
efectuar-se se não utilizasse outras vias de acesso à realidade, outros
instrumentos considerados mais eficazes para tal fim, portanto mais próprios
de uma filosofia que pretendesse distinguir-se da ciência e reivindicar, por
sua

vez, a sua autonomia em relação à ciência.

124

O espiritualismo constitui, nesta direcção, a primeira reacção ao positivismo:


urna reacção sugerida por interesses fundamentalmente religiosos ou morais e
que pretende utilizar, no trabalho filosófico, um instrumento que o
positivismo desprezara por completo: a auscultação interior ou consciência. Se
o

termo de espiritualismo como nome de uma corrente filosófica é relativamente


recente (remonta provavelmente a Cousin), a atitude própria da filosofia
espiritualista é bastante antiga: o "retorno da alma a si" de Plotino, o "noli
foras ire" de Santo Agostinho, o "cogito" de Descartes, a "autoconsciência" ou
"a consciência" dos românticos, "a reflexão ou a experiência interior" de
empiristas e psicologistas são tudo conceitos que se referem à atitude pela
qual o homem toma como objecto de investigação a sua própria "interioridade".
A partir da segunda metade do século XIX até aos nossos dias, unia corrente
muito forte de pensadores retoma esta tradição apresentando a

investigação que gira em torno da consciência como uma alternativa fundamental


da investigação que gira em torno da "natureza" ou da "exterioridade". Em
polémica com a ciência e, sobretudo, com a ciência positivista, à qual
reconhece um valor simplesmente preparatório, aproximativo ou prático, esta
corrente reconhece como tarefa própria e específica da filosofia a
descriminação e a explicação dos dados da consciência. Ao passo que para o
positivismo o único texto é constituído pelos fenómenos naturais, para o
espiritualismo o único texto é constituído pelos testemunhos da consciência.
Por tais testemunhos entende-se, as mais das vezes, não só os dados da "expe-

125

riência interior" ou "reflexão", como Locke lhe chamava, mas também as


exigências do coração e do sentimento, os ideais morais ou religiosos
tradicionais, como, por exemplo, a liberdade, a transcendência dos valores e a
manifestação do divino. Nalgumas destas exigências, o espiritualismo mantém-se
fiel a alguns aspectos do romantismo, especialmente àquele em que a
consciência é considerada como a

primeira manifestação originária ou privilegiada do divino. Viu-se já como


este aspecto foi utilizado em

todas as formas de tradicionalismo da primeira metade do século XIX (Cap. X)


que, também são, por isso, em certo sentido, formas de espiritualismo. Mas sob
outro aspecto, o espiritualismo da segunda metade do século XIX e da primeira
metade do século XX contrapõe-se polemicamente ao idealismo romântico na
medida em que se recusa a identificar o Infinito como o finito e insiste na
transcendência do Infinito (Absoluto ou Deus) em relação às suas manifestações
na consciência. Do ponto de vista gnoseológico, porém, o espiritualismo mantém
em regra a

atitude idealista e isso devido à sua própria orientação, dado que, fazendo da
consciência o seu ponto de partida, considera qualquer objecto como possível
só para a consciência e só na consciência. Deste ponto de vista, o problema
principal, o obstáculo maior que o espiritualismo encontra no seu caminho é o
da natureza ou da "exterioridade" em geral, sobretudo nos aspectos que a
ciência pôs em relevo, os mais inacessíveis à consciência ou ao espírito tais
como

matéria, mecanismo e necessidade causal. O modo

126

como esta necessidade é em regra superada constitui a negação da matéria como


tal e a sua redução ao espírito, com a consequente subordinação do mecanismo e
de todo o sistema da necessidade causal a uma ordem providencial ou divina
dominada pelo finalismo. O finalismo permite, de facto, reconhecer, em certa
medida, a realidade do mecanismo e, ao mesmo tempo, considerá-lo subordinado a
um desígnio superior que leva à conclusão de que existe um

principio ordenador do mundo. A exigência que estabelece este princípio é


outro dos aspectos fundamentais do espiritualismo.

§ 671. O ESPIRITUALISMO ALEMÃO: M. FICHTE

Na Alemanha, o espiritualismo afirma-se numa

polémica com o idealismo hegeliano e com o positivismo. A sua primeira


manifestação, que só mais tarde se revelou significativa, é obra do filho de
Fichte, Manuel Hermann Fichte (1796-1879). Editor das obras impressas e
manuscritas do pai, assumiu por sua conta a tarefa de delinear uma concepção
espiritualista do mundo. Entre os numerosos escritos de Fichte júnior, os mais
notáveis são: Contributos para a caracterização da filosofia moderna (1829);
Esboços de um sistema de filosofia (3 vol., 19-33-46); Sistema de ética (2
vol., 1850-53); Antropologia (1856); Psicologia (2 vol., 1864-73); A intuição
**teíslíca do mundo (1873); O espiritualismo moderno

127

(1878). Manuel Fichte foi também fundador de uma revista em que colaboraram
muitos outros filósofos e teólogos: a "Zeitchrift flir Philosophie und
Spekulative Theologie", que começou a publicar-se em
1873 e que se propunha defender os interesses da especulação cristã e
aprofundar filosoficamente os

problemas da dogmática e da teologia prática.

A principal preocupação de Fichte consistiu em

defender a concepção finalista do mundo. O mundo apresenta-se-lhe como "uma


série gradual do meios e fins": e esta ordenação pressupõe um ordenador e um
criador do mundo. "A ciência da natureza, segundo afirma, não é em si nem
teística nem antiteística: a questão do supremo princípio está para além do
seu campo de investigação. Mas tal questão, devidamente considerada, é o mais
firme ponto de apoio para uma concepção teística porquanto demonstra, na
natureza inteira, e de um modo explícito e evidente no mundo orgânico e
psíquico, o facto universal de um finalismo interior e de uma completa
ordenação total. "As chamadas leis da natureza não são mais do que a
particular expressão e ao mesmo tempo a confirmação desse facto" (Anthrop., p.
293). Deste ponto de vista, a natureza não é mais do que um

meio que visa a tornar possível a vida espiritual do homem. E no homem actua
uma força espiritual superior à sua natureza finita, força que se manifesta,
na vida religiosa, na inspiração e no êxtase e a cuja acção Fichte atribuiu
também os fenómenos do espiritualismo, que estudou sobretudo nos últimos anos
da sua vida.

128

LOTZE

§ 672. ESPIRITUALISMO ALEMÃO: LOTZE

A doutrina do filho de Fichte foi muito pouco conhecida e apreciada antes que
o espiritualismo conseguisse consolidar-se e chamar as atenções sobre si. Para
tal consolidação muito contribuiu a obra de Rodolfo Hermann Lofte (Bautzen, 21
de Maio de
1817, Berlim, 1 de Julho de 1881) que foi médico e professor de filosofia em
Gotinga e em Berlim. A sua obra principal é o Microcosmo, Ideias sobre a
história natural e sobre a história da humanidade, em três volumes, 1856-58,
1864. Mas esta obra havia sido precedida por uma Metafísica (1841) e uma
Lógica (1843) como por outros escritos de medicina e de psicologia; em seguida
foi publicada uma História da estética alemã (1868) e um Sistema de filosofia,
que compreende uma Lógica (1874) e uma Metafísica (1879). Na Metafísica de
1841 (p. 329) Lotze definiu a sua doutrina como um "idealismo teleológico",
cuja tese fundamental é a de que a substância do mundo é o bem. O Microcosmo
revela as características típicas da atitude espiritualista: as necessidades
da alma, o sentimento, as aspirações do coração, as esperanças humanas, são
invocadas a cada momento como guia e objectivo da investigação. Lotze não
considera, no

entanto, que estas exigências espirituais se encontrem em contradição efectiva


com os resultados da ciência moderna, que o mecanismo propugna. Crê, pelo
contrário, que o mecanismo se estende a todos os campos da investigação
científica e cada vez mais se reforça; mas, segundo diz, a filosofia deve
demonstrar que a

"tarefa que compete ao mecanismo na ordenação do


129

universo é universal sem excepções quanto à sua ex-

tensão, mas ao mesmo tempo verdadeiramente secundária quanto à sua


importância". Com efeito, o facto incontestável de que a natureza obedece a
leis necessárias, é um facto incompreensível; mas torna-se compreensível se se
admitir que não é um facto último mas apenas um meio que manifesta e revela,
na sua própria organização, o objectivo último que tendo a

realizar: o bem. O mundo é uma máquina, segundo Lotze, mas uma máquina que
visa à realização do bem. A unidade, a ordem mesma desta máquina, demonstram a
subordinação a um plano racional, a um princípio superior ao mecanismo.

Porém, deste ponto de vista, o mecanismo e a própria natureza, que parecia


deverem ser mantidos na sua realidade, revelam-se como mera aparência. De
facto, nos átomos, que são os elementos primeiros do mecanismo, Lotze só vê os
pontos imateriais, centros de força supra-sensíveis, isto é, mónadas no
sentido leibniziano do termo (Microcosmo, 1, trad. ital., p. 50), Nestes
elementos imateriais, as leis já não têm o seu carácter; ao juntarem-se,
alternando com a sua

acção recíproca, a sua força, alteram a lei reguladora dessa mesma força,
privando-a assim da sua imutabilidade necessária (1b., p. 59). Deste modo, a
natureza material cessa de ser algo de estranho ao espírito, espiritualiza-se
e torna-se parte de um sistema em que não existe outra realidade senão a do
espírito. Com efeito, se se admite que a ciência chega a provar que toda a
realidade se desenvolve por um contínuo processo evolutivo que culmina na vida
espiritual do homem, isso demonstrará apenas que a vida

130

espiritual é o fim intrínseco de todo o processo natural e que este tende a


produzi-lo e a conservá-lo. Os resultados da ciência nunca poderão eliminar o

milagre da criação imediata, mas tão-só fazê-la recuar para uma época mais
remota, para o acto em que a sabedoria infinita conferia ao caos a faculdade
incomensurável de toda a evolução ulterior (Ib., p. 382). O espiritualismo é,
por conseguinte, um

teísmo. Deus é a condição de todo o fenómeno natural, de todas as leis, de


toda a ordem causal, porquanto é a unidade que liga tudo. "Todas as
actividades e todas as mutações das coisas se sucedem com aparente necessidade
intrínseca dentro do âmbito daquelas leis em que o Uno eterno ordenou para
sempre cada um dos seus efeitos" (Ib., p. 397). Toda a coisa finita é uma
criatura do infinito. "Todo o ser, tudo o que recebe o nome de forma ou de
figura, de coisa ou de acontecimento, tudo aquilo, em suma, de cujo conjunto
resulta a natureza, não pode considerar-se senão como uma condição preliminar
para a realização do bem, não pode existir tal como é, senão porque é assim e
não de outro modo que se manifesta o valor eterno do bem" (1b., p. 404).

Por outro lado, esta convicção é necessária para a acção do homem. "0
sustentáculo da nossa esperança e a alegria da nossa existência, afirma Lotze
(Microcosmo, II), repousam sobre a fé na unidade premeditada do sistema
cósmico, que nos preparou o nosso lugar e que, já nos cegos efeitos da
natureza, infundiu o germe da evolução que a vida espiritual deve acolher e
continuar". A acção moral, tal como o conhecimento, supõe a religião entendida
como

131

consciência da caducidade do mundo e, ao mesmo tempo, da missão eterna que


Deus confiou ao mundo (1b., p. 415). E Lotze crê que se pode chegar a Deus
através do testemunho interior da consciência e da consideração das exigências
do coração. Neste sentido, renova o significado da prova ontológica. "Há uma
certeza imediata, afirma (Microcosmo, 111 p. 557), de que o ser maior, mais
belo e mais rico de valor não é um puro pensamento, mas deve ser realidade.
Seria, de facto, insuportável crer num ideal que fosse uma representação
produzida pela actividade do pensamento e que não tivesse, na realidade,
nenhuma existência, nenhum poder e nenhuma validez. Se o Ser mais perfeito não
existisse, não seria o

mais perfeito e isto é impossível, porque não seria então o mais perfeito de
tudo quanto é pensável". Deus é personalidade porque a personalidade é a mais
alta forma da existência. A ele se reduzem as verdades eternas, que não são
arbitrariamente criadas por ele, senão que constituem os modos da sua acção.
Lotze quis assim assinalar a antítese entre o mundo dos valores espirituais e
o mundo da natureza, antítese que se

lhe apresentava como o resultado da ciência positivista do seu tempo. Todavia,


limitou-se em muitos pontos

a um prudente agnosticismo. A unidade entre os

valores e as formas naturais pode ser afirmada e crida, mas não


verdadeiramente conhecida. A própria liberdade humana é possível, mas não pode
ser claramente afirmada como real (Microcosmo, 1, p. 405-407). E quando na
Metafísica (que é a segunda parte do seu Sistema de filosofia) ao reelaborar
de forma sistemática a trama dos pensamentos do Mi-

132

crocosmo, chega à conclusão de que a acção recíproca das substâncias finitas


no universo só é concebível como acção do Absoluto sobre si mesmo, declara
ainda impossível esclarecer o modo por que o absoluto pode dar lugar às suas
manifestações finitas.

A sua Lógica, que constitui a primeira parte do Sistema de filosofia possui um


valor independente do seu espiritualismo. Foi elaborada fundamentalmente em
polémica com o psicologismo. O acto psicológico do pensar é distinguido do
conteúdo do pensamento: o primeiro apenas existe como um determinado fenómeno
temporal; o segundo tem outro modo de ser, que Lotze designa por validade. O
facto de uma proposição ou conclusão serem válidas exprime o facto de que são
significativas: a validade identifica-se, portanto, com o significado dos
tempos lógicos, sejam eles proposições, raciocínios ou conceitos. Lotze
atribui esta doutrina a Platão, cujas ideias seriam existentes precisamente no
sentido da validez. Esta doutrina encontrará continuadores e desenvolver-se-á
com o neocriticismo, sobretudo na escola de Marburgo.

§ 673. ESPIRITUALISMO ALEMÃO: SPIR

A tendência, implícita em todo o espiritualismo, para contrapor o espírito à


natureza e para considerar esta última como aparência, é levada até às suas
últimas e paradoxais consequências por Afrikan Spir (1837-90), um russo, ex-
oficial de marinha, que viveu

133

muito tempo na Alemanha e morreu em Genebra. Spir cria que a sua doutrina
representava a mais alta expressão do século XIX e que inaugurava uma nova

era da humanidade, a da sua completa maturidade espiritual. Esta esperança


apocalíptica liga-se ao tom

profético da sua filosofia, exposta em numerosos escritos, entre os quais se


destacam: A verdade, 1867; Pensamento e realidade, 1873; Moralidade e
religião,
1874; Experiência e filosofia, 1876; Quatro problemas fundamentais, 1880;
Estudos, 1883; Ensaios de filosofia crítica, 1887.

Spir parte da convicção de que os dados da experiência não concordam com o


princípio lógico da identidade. Enquanto este último exige que todo o

objecto na sua própria essência seja idêntico a si mesmo, a experiência


mostra, pelo contrário, que nenhum objecto singular é completamente idêntico a
si próprio. Deste ponto de vista, resultam imediatamente duas consequências.
Em primeiro lugar, o principio da identidade exprime um conceito acerca da
essência das coisas, o qual não pode derivar da experiência, mas deve ser,
originariamente e a priori, imanente ao pensamento. Em segundo lugar, a
experiência não nos mostra as coisas em si, na sua essência incondicionada e
conforme ao conceito a priori, senão que implica elementos que são estranhos a
tal essência.
O princípio de identidade, ainda que os dados empíricos não concordem com ele,
vale, relativamente a

tais dados, como princípio sintético e, por conseguinte, como fundamento de


todo o conhecimento. Spir reconhece (com Kant) que as duas leis fundanlcntais
do conhecimento são a lei da permanência

134

da substância e a lei da causalidade. Ora, deste princípio decorre


imediatamente: 1.o que a essência incondicionada das coisas, isto é, a sua
substância, é imutável em si, quer dizer, permanente; 2.O que toda a

mudança é condicionada, ou seja, depende das mutações antecedentes. E estas


são precisamente as duas leis fundamentais do conhecimento.

Mas - e é este o ponto mais original (e paradoxal) da doutrina de Spir - entre


a substância incondicionada e a realidade empírica não é possível nenhuma
relação. A realidade empírica contém elementos que excluem absolutamente tal
relação. Estes elementos são: a multiplicidade e a consequente relatividade
das coisas, a mudança, o mal e a falsidade. "Toda a tentativa, afirma Spir,
para fazer derivar estes elementos do absoluto constitui, do ponto de vista do
pensamento, um absurdo, e do ponto de vista da religião, uma impiedade".
Querer encontrar no incondicionado a razão suficiente da realidade empírica é
o erro fundamental, o erro originário, que falseia todas as intuições
religiosas e filosóficas dos homens e implica consequências funestas para as
ciências naturais. Duas alternativas se oferecem a esta crença errada: ou o
mundo é o próprio incondicionado ou
é um efeito (ou uma consequência) cuja razão suficiente reside no
incondicionado. A primeira alternativa constitui as concepções panteístas e
ateístas; a

segunda, as teístas. Uma e outra são impossíveis. Tem de se reconhecer, pelo


contrário, que o mundo é condicionado e que, no entanto, não depende de
nenhuma condição, de qualquer razão suficiente, porque inclui elementos que
são estranhos ao incondicio-

135

nado, à essência das coisas e que não podem derivar dele. Toda a coisa
singular condicionada, tem, necessariamente, a sua condição, mas o
condicionado em geral, como tal, não a tem nem a pode ter. Por outros termos,
toda a mutação singular tem a sua condição ou a sua causa; mas quando se dá em
geral uma mutação, quando as coisas do mundo mudam em

vez de permanecerem idênticas, não podem ter nenhuma condição nem nenhuma
causa.

Estas teses expostas em Pensamento e realidade (que é a obra principal de


Spir) são ilustradas, no

que respeita ao domínio moral e religioso, pela sua outra obra, Moralidade e
religião, e defendidas polemicamente nos escritos menores. A vida moral é
também dominada pelo princípio de identidade, ou

seja, pelo esforço próprio da natureza interior do homem de ser idêntica a si


mesma; e, portanto, pela consciência ou pelo pressentimento de uma natureza
mais alta, não empírica, que seja também a unidade do todo. A este esforço são
estranhos todos os impulsos sensíveis do homem e a sua própria
individualidade. Por conseguinte, o fundamento da moralidade é a não-
coincidência da natureza empírica do homem com o seu conceito a priori. Devido
a esta não coincidência, o conceito a priori (a identidade consigo mesmo)
assume o valor de um imperativo, ao passo que seria uma pura lei de facto da
conduta humana se a natureza empírica coincidisse com o conceito a priori. E
deste ponto de vista, a liberdade não é um poder, mas apenas uma condição,
precisamente a condição da vontade pela qual ela está de acordo com a lei da
sua verdadeira natureza.

136

Toda a doutrina de Spir é essencialmente religiosa.


O incondicionado de que nos fala é Deus; e como ele próprio reconhece, a sua
doutrina do conhecimento e a sua moral não são outra coisa senão teologia. "As
provas da validez objectiva dos conceitos a priori são também provas da
existência de Deus. A teologia obedece, na verdade, ao mesmo princípio que a
doutrina do conhecimento e a moral. A lei da identidade exprime a essência de
Deus" (Moralitãt und Religion, p.114). Contudo, a religiosidade não se radica
numa representação conceptual, mas no sentimento, e ela é "o sentimento
interno do parentesco com Deus". Se a relação do homem com Deus fosse uma
relação externa, como a de um efeito com a sua causa, a religião seria pura
teoria. Mas, na realidade, Deus não é mais do que a verdadeira essência do
homem, e, por conseguinte, a religião não é a consideração da relação entre o
homem e Deus, mas é essa mesma relação enquanto se faz valer na natureza
subjectiva dos homens e, portanto, na forma do sentimento interior. Deus é
para o homem um facto da sua vida interior, de que ele é imediatamente
consciente. Mas Deus está em relação apenas com a verdadeira essência do
homem, não com a sua natureza empírica; por isso, não implica nenhum motivo de
temor ou

de esperança para o egoísmo humano, não actua como causa eficiente e só pode
ser objecto de amor. Mas não pode ser invocado, de forma alguma, para explicar
o mundo da realidade empírica. Este mundo não tem fundamento, nem razão
alguma; é algo que não deveria existir, e por isso é absolutamente
inconcebível e inexplicável. É evidente que, deste ponto de

137

vista, a imortalidade pessoal cai fora da religião,


O desejo de imortalidade tem o seu fundamento empírico, no instinto de
conservação, e a individualidade a que ela se refere é um elemento empírico,
estranho à natureza normal do homem. Além disso, a duração efectiva da
individualidade depois da morte é indiferente ao homem que tem interesse
apenas em crer

nela; o homem não pode viver no futuro mas só no presente, portanto, só a fé


na imortalidade, não a imortalidade mesma, tem interesse para ele.

A doutrina de Spir apresenta acentuados, por vezes até à deformação, alguns


traços salientes do espiritualismo contemporâneo: a oposição entre a natureza
e o espírito, a tendência para considerar a

natureza como mera aparência, a tonalidade religiosa. Mas o lugar que nas
formas mais frequentes do espiritualismo é ocupado pelas "exigências do
coração" é aqui tomado como uma exigência puramente lógica. A consciência que
é o princípio de todo o

espiritualismo é aqui essencialmente pensamento na

sua exigência geral e abstracta, exigência de identidade. A esta forma de


espiritualismo se vincula em parte o italiano, e, especialmente, a obra de
Martinetti.

§ 674. E. HARTMANN. EUCKEN

À metafísica espiritualista pertencem também duas filosofias cujas obras


tiveram grande popularidade no

período em que apareceram, mas que deixaram poucos traços na filosofia


posterior: E. Hartmann e Eucken.

138

A actividade literária de Eduardo von Hartmann (1842-1906) (que permaneceu


fora do ensino univertário) foi muito grande e afortunada. A sua primeira obra
e a mais notável, Filosofia do inconsciente (1896), publicada aos vinte e seis
anos, teve onze edições. Seguiram-se a esta numerosas obras, entre as quais se
destacam as seguintes: Fenomenologia da consciência moral (1879); Filosofia da
religião (1881); Estética (1886-87); O problema fundamental da teoria do
conhecimento (1889); Doutrinas das, categorias (1896); História da metafísica
(1899-1900); A psicologia moderna (1901); A intuição do mundo da física
moderna (1902), Sistema de filosofia em oito partes (1. Teoria do
conhecimento, 11; Filosofia da natureza; III. Psicologia; IV. Metafísica; V.
Axiologia; VI. Princípios de ética; VII. Filosofia da religião; VIII.
Estética, 1906-09),

Hartmann apresenta o princípio da sua filosofia como a síntese do espírito


absoluto de Hegel, da vontade de Schopenhauer e do inconsciente de Schelling.
Este principio é, portanto, um Absoluto espiritual inconsciente que se revela
no homem e nos seres finitos como vontade. Hartmann crê que pode chegar a ele
por via indutiva, partindo do exame de determinados factos naturais e
mostrando que eles não podem explicar-se senão mediante o recurso a

uma actividade espiritual inconsciente, a saber: o finalismo da natureza, que


nunca toma o aspecto de um plano consciente, ou seja, a actividade
organizadora do mundo orgânico, o acto reflexo, o instinto, as emoções
humanas, incluindo nelas a simpatia e o amor. Tudo isto são manifestações do
inconsciente

139

e podem ser reconhecidas como tais pelo facto de que o seu mecanismo de acção
não aparece nunca

como um claro saber da consciência. Mesmo a vida moral e a vida estética são,
segundo Hartmann, produtos do inconsciente, que nunca deixa de actuar no
pensamento, uma vez que parte de ideias a priori de que não é claramente
consciente. A consciência colhe apenas os resultados do funcionamento das
ideias a priori: por isso, não pode deixar de reconhecê-las a posteriori como
um a priori inconsciente (Phil. des Unbe~sten, trad. franc., 1, p. 341). Sobre
o princípio do inconsciente se funda também o que Hartman chama o seu
"realismo transcendental", que é um monismo do inconsciente e um dualismo da
consciência. Para a consciência, a ideia e o ser não se identificam porque ela
nasce precisamente da sua separação; para o inconsciente, ao invés,
identificam-se porque ele é o princípio de tudo quanto existe (System, 1, p.
124).

Entendido assim, o inconsciente é o Uno-Todo, Deus. Como espírito absoluto, ou


seja, como substância do mundo, Deus é inconsciente; só se toma consciente nas
zonas separadas e periféricas que não são as suas actividades específicas mas
os produtos da sua colisão (1b., IV, p. 109). Pelo seu carácter inconsciente,
Deus transcende as suas manifestações parciais que são as consciências
individuais e não é multiplicado ou cindido pela sua multiplicação e

separação (1b., VII, p. 64-65). Hartmann admite o

pessimismo de Schopenhauer e considera que o desenvolvimento da consciência,


reduzindo gradualmente ao nada a vontade (que é o princípio incons-

140

ciente criador) anulará deste modo a manifestação da vontade que é o mundo.


Mas, sem muita coerência, admite também o progresso, interpreta como

obra do inconsciente o plano providencial, que Hegel atribuíra à História, e


afirma que o nosso mundo "é o melhor dos mundos possíveis".

A outra figura representativa do espiritualismo é mais a de uni profeta do que


a de um filósofo. Rodolfo Eucken (1846-1926), professor na Universidade de
Iena (1874-1920), recebeu o prémio Novel da Literatura em 1908. Os temas
habituais do espiritualismo foram por ele expostos, sem originalidade nem
profundeza, mas com muita arte e convicção, em numerosas obras abundantemente
difundidas e traduzidas (A unidade da vida espiritual na consciência da
humanidade, 1888; A visão da vida nos grandes pensadores, 1890; A validez da
religião, 1910; Delineamento de uma visão da vida, 1907; O sentido e o valor
da vida, 1908; etc.).

A convicção fundamental de Eucken é a de que a existência do homem não tem


significação alguma se for pura e simples existência imediata, isto é,
existência que se preocupa apenas com os valores materiais e com as relações
exteriores entre os homens, e que só adquire um significado se se torna
existência espiritual, isto é , existência que aprofunda e desenvolve as
relações do homem com o Espírito do universo. A existência imediata oferece ao
homem a escolha entre dois rumos: o que conduz à individualidade e o que leva
à colectividade. Mas ambas as orientações são incapazes de encher a vida com
um conteúdo de valores positivos e de a subtrair à

141

insignificância e ao vazio. Na vida espiritual, pelo contrário, a existência


humana revela-se como um estado particular do mundo: um estado cujo fim não
reside nas relações eternas do homem mas no contínuo desenvolvimento de si
próprio. Dado que a religião é a forma de actividade que dá maior relevo à
intimidade espiritual, Eucken defende o sentido religioso da vida e a validez
da religião, sem no entanto se referir a nenhuma religião positiva.

§ 675. O ESPIRITUALISMO EM FRANÇA. LEQUIER

O espiritualismo constitui a tradição clássica da filosofia francesa.


Montaigne foi em França o iniciador de uma forma de filosofia que consiste na
investigação introspectiva, na pesquisa conduzida em torno

da interioridade da consciência. Através de Descartes, Malebranche e Pascal,


esta forma de filosofia inseriu-se na filosofia moderna e contribuiu para a

formar. O grande movimento iluminista do século XVIII representa um parêntesis


na tradição filosófica francesa: esse movimento actua sob a égide de Newton e
constitui a irrupção e o triunfo do empirismo inglês. Na primeira metade do
século XIX, Maine de Biran restabelecia a continuidade da tradição filosófica
francesa representando, contra o iluminismo e os seus últimos defensores, o
método e a finalidade do espiritualismo. Não é sem razão, por isso, que uma
grande parte dos filósofos franceses vê em Maine de Biran o seu imperador e o
seu guia.

142

Uma figura singular que só nos últimos tempos pôde ser valorizada
adequadamente é a de Júlio Lequier (1814-62), cuja vida obscura e atormentada
se encerra com um misterioso afogamento ao largo da costa bretã. Lequier não
publicou nenhuma obra porque nunca chegou a concluir nenhum dos numerosos
escritos iniciados. Renouvier, que foi seu amigo, publicou alguns fragmentos
póstumos com o título Investigação de uma verdade primeira (1865). Em seguida
foram publicados outros textos, mas só recentemente os escritos de Lequier
foram recolhidos numa

edição completa (1Oeuvres complètes, ao cuidado de J. Grenier, 1952).


Lequier é um pensador religioso, e o tema fundamental da sua filosofia é a
consciência. "Eu remeto-me à consciência, - afirma ele - submeto tudo, no que
me respeita, à consciência e submeto a própria ciência só a ela... É sempre
Deus, o verdadeiro Deus que fala na consciência" (Oeuvres complètes, p. 396-
97). Mas o tema em torno do qual se desenvolvem as meditações de Lequier é o
da relação entre necessidade e liberdade: um tema que, na mesma época,
inspirava as meditações de um outro pensador solitário: Kierkegaard. A
necessidade é, segundo Lequier, o postulado fundamental da ciência que tem
como escopo mostrar a ordem ou uniformidade da natureza (1b., p. 385 sgs.).
Mas, por outro lado, a

noção de necessidade dissipa-se logo que a examinamos mais de perto: e não só


porque leva a confundir o bem com o mal, que seriam ambos frutos da mesma

necessidade, mas também porque só pode ser reconhecida e afirmada pela própria
liberdade. "Aperce-

143

bo-me, - afirma Lequier - de que se tudo em nós está submetido à necessidade,


nem sequer posso afirmar que tudo está submetido à necessidade, porque esta
proposição será necessária e, por consequência, não poderei distingui-Ia de
qualquer outra. Se tudo é necessário, a própria ciência é impotente, e não
posso procurar distinguir a verdade do erro: nem sequer sei se verdade e erro
existem porque não posso saber nada. Para poder distinguir a verdade do erro,
deverei, ao que me parece, ser livre; mas esta liberdade é contestada; uns
negam-na, outros divergem sobre a maneira de a definir, nenhum a compreende"
(1b., p. 314). Se, portanto, a necessidade é um postulado (o postulado da
ciência), a liberdade é igualmente um postulado: o postulado da consciência;
portanto, da consciência e da acção. Sem a- liberdade, nenhuma verdade é
possível: o que quer dizer que a liberdade é a condição da crença, e,
portanto, do conhecimento que não é mais do que crença (lb., p. 324). Sem a
liberdade, o dever e a responsabilidade não seriam possíveis. Ora, é
precisamente o elo liberdade-responsabilidade que coloca o homem, segundo
Lequier, perante Deus: "Como pessoa responsável só posso ser responsável
perante uma outra pessoa. Dirijo-me, com tudo o que constitui a minha pessoa,
para esta outra pessoa que deve ser irresponsável, porque deve ter em si mesma
a sua razão de ser, deve ser absoluta. Eu só posso atribuir a esta outra
pessoa irresponsável as perfeições que descobri em mim mesmo, sem no entanto
esquecer que tais perfeições, que são finitas em mim, pessoa responsável,
devem ser infinitas no ser a que chamarei Deus, pessoa irres-

144

EUCKEN

ponsável" (1b., p. 321). Ora, o homem é livre porque, "é senhor do possível",
e o possível é o "campo indefinido aberto à actividade do homem" (lb., p. 38).
"0 necessário é o limite do possível. O que é, na

realidade, o possível? O que pode existir, e é necessário o que não pode


deixar de existir. Definem-se mutuamente, já que, na realidade se limitam um
ao outro" (Ib., p. 390). Lequier serve-se da noção de possível para definir a
natureza da ciência divina, que é ciência de possíveis. "Deus, vendo, a cada
instante da sua eternidade, toda a série dos possíveis, isto é, uma infinidade
de infinidades infinitamente repetidas, atinge com a sua vista as coisas nos
mais ínfimos pormenores, abarca todas as circunstâncias, discerne as mais
pequenas e todas as suas consequências" (lb., p. 413). Isto quer dizer que
Deus vê não só o

que o homem fez e realiza mas também o que ele não fez e poderia no entanto
fazer em virtude da sua liberdade: de modo que, nesta visão, têm o seu
fundamento objectivo as possibilidades que o homem. agindo ou realizando,
afasta a cada passo, as possibilidades que não se realizaram ou não se
realizarão mas que devem, todavia, considerar-se autênticas se o homem é livre
na escolha dos possíveis. Deste modo, segundo Lequier, pode entrever-se uma
solução para o problema da relação entre presciência (ou predeterminação)
divina e liberdade humana que, de outro modo, permanece insolúvel. A chave
deste problema é a concepção de Deus como "criador e contemplador dos
possíveis" (Ib., p. 414).

O espiritualismo, em todas as suas manifestações, é levado a considerar a


liberdade como um dado úl-

145

timo da consciência, quer dizer. como algo testemunhado de modo directo e


indubitável pela observação introspectiva, Lequier nega esta noção da
liberdade e considera-a antes como um simples postulado, justificado, em certa
medida, pelas consequências que dele se extraem (1b., p. 349, sgs.). O seu
ponto de partida é, portanto, menos dogmático do que o que o espiritualismo
habitualmente escolhe: e a conexão entre liberdade e possibilidade abre a
Lequier (como acontecia na mesma altura com Kierkegaard) a via de uma análise
mais penetrante da condição humana no mundo e em relação a Deus.

§ 676. AMIEL. SECRÉTAN

A filosofia de Lequier, que se manteve quase desconhecida, não pôde trazer


nenhum contributo para a problemática do espiritualismo francês. O tema deste
é, no entanto, como para Lequier, a liberdade; e é, precisamente, a liberdade
como energia ou força criadora da consciência humana.

Uma obra que contribuiu para formar o tom intimista do espiritualismo francês
foi a do genebrino Henrique Frederico Amiel (1821-81), autor de um Diário
íntimo (publicado postumamente em 1833-84, e numa edição mais completa em
1923). Até a forma literária do diário é, a este propósito, significativa da
atitude de Amiel, que ele próprio define dizendo: "A filosofia é a consciência
que se compreende a si mesma com tudo o que contém em si" (Grains de mil.,
1854, p. 194).

146

O tema da liberdade torna-se central na obra de Carlos Secrétan (1815-95),


também nascido na Suíça francesa, e autor de uma obra sobre Leibniz (1840),
bem como de outras obras de interesse essencialmente moral (A filosofia da
liberdade, 1849; A razão e o

cristianismo, 1863; O princípio da moral, 1883; A civilização e a crença,


1887; A sociedade e a moral,
1897).

"A experiência sensível-afirma Secrétan (Phil. de Ia liberté, 11, 1879, p. 5)


-, não sobrepassa o múltiplo, o contingente e o subjectivo; mas na consciência
encontramos o ser. Toda a nossa ideia do ser vem daí". A consciência dá-nos o
testemunho da liberdade, mas uma liberdade limitada na sua extensão pela
natureza e determinada na sua direcção pelo dever. Esta liberdade condicionada
significa que o homem não existe por si e que a sua existência depende de um
ser incondicionado e absolutamente livre. Este ser não pode ser identificado,
como faz o idealismo, com o eu do homem. Ele é espírito, mas é espírito
infinito e incriado, ao passo que o homem é espírito finito e criado. É,
portanto, Deus. E Deus é para Secrétan absoluta liberdade; é expresso pela
fórmula "Eu sou o que quero", é pura actividade, que não encontra nenhum
limite e cuja natureza é, precisamente por isso, a liberdade (lb., 1, 1879, p.
364 sgs.). Mas esta absoluta liberdade é para o homem incompreensível. Ele
pode saber onde ela se encontra, mas não possui qualquer ideia dela, pois não
possui a intuição correspondente. Todavia, do reconhecimento de Deus como
absoluta liberdade decorre imediatamente que a vontade é a essência universal
do mundo. "A,,

147

diversas ordens do ser são os graus da vontade. Existir significa ser querido
(por Deus); ser substância significa querer; viver significa querer-se; ser
espírito significa produzir a própria vontade, querer o próprio querem (1b.,
p. 373). O nome de pessoa designa um

ser livre que se apresenta e se reconhece como tal. Neste sentido Deus é
pessoa e é pessoa a criatura enquanto realiza a sua liberdade. Mas a
realização da liberdade é, por isso mesmo, amor de Deus, que é liberdade
absoluta. "0 bem da criatura consiste em unir-se a Deus, A penetração
recíproca das duas vontades pode fazer da vontade finita uma vontade plena e
fecunda; separada por Deus, a criatura livre abisma-se no nada da contradição.
Para ser, e para ser ela mesma, a criatura deve distinguir-se de Deus por um
acto que a une a ele; o nome deste acto é amor. A liberdade que requer a
liberdade, tal é a forma da criação: o sentido dela é o amor que espera o
amor" (Phil. de la liberté, 1, 1879, p. 5). Deste ponto de vista, a história é
a realização da liberdade mediante a unidade; e o seu termo está, para lá do
tempo, na

eternidade. Secrétan vincula intimamente a sua filosofia às concepções


fundamentais do cristianismo e chega a defini-Ia como "uma apologia do
cristianis mo" (lb., 1, p. IX). O esforço pela liberdade que constitui a vida
histórico-temporal do homem é, ao

mesmo tempo, o esforço pela realização de uma comunidade humana perfeita,


fundada na solidariedade e no amor. No Princípio da moral (1893, p. 6)
Secrétan formula do modo seguinte o preceito fundamental do dever: "Agir como
membro livre de um todo solidário, procurar a realização do próprio ser verda-

148

deiro, do próprio bem e da própria felicidade na realização e no bem do todo


de que se faz parte". Se antes do pecado original o homem possuía apenas a
unidade natural e depois do pecado, na história, passou a possuir apenas uma
unidade oculta e virtual, no fim dos tempos alcançará a unidade livre, a
unidade moral: "Todos num, todos em cada um, fórmula do bem supremo que
procede imediatamente da fórmula do dever: eu quero que nós sejamos" (Phil. de
Ia liberté, 11, p. 413).

§ 677. RAVAISSON
Vincula-se directamente a Maine de Biran a obra de Félix Ravaisson Mollien
(1813-1900), notável sobretudo pelas suas obras históricas (o Ensaio sobre
* metafísica de Aristóteles, 1837-46 e o Informe sobre
* filosofia em França no século XIX, 1868), mas que também forneceu ao
espiritualismo francês alguns dos seus temas preferidos em breves ensaios e
artigos (Filosofia contemporânea, 1840; A filosofia de Pascal,
1887, Metafísica e moral, 1893; Testamento filosófico,
1901) o mais importante dos quais é a tese de doutorado O hábito (1838).

O Ensaio sobre a metafísica de Aristóteles tende a apresentar o aristotelismo


como a doutrina originária e típica do espiritualismo. O próprio Ravaisson, no
seu Informe (p. 25), afirma que o escopo da sua

exposição consistia em mostrar "corno aquele que criou o própria nome da


ciência sobrenatural, e que foi o primeiro a constituí-Ia, lhe deu por
princípio,

149

em lugar do número ou da ideia - entidades equívocas, abstracções erigidas em


realidade - a inteligência, que numa experiência imediata apreende em si mesma
a realidade absoluta, da qual todas as outras dependem. Por outros termos,
Ravaisson viu no princípio da metafísica aristotélica o princípio mesmo do
espiritualismo: a consciência. Segundo ele, este princípio havia sido
restituído à filosofia francesa por Maine de Biran. o qual ajudou a filosofia
"a libertar-se da física, sob a qual Locke, Hume e o próprio Condillac a
tinham quase oprimido" (Informe, p. 14). Maine de Biran assinalou "o facto
capital que nos

revela a nós mesmos, como uma existência situada fora do curso da natureza e
que nos faz compreender que toda a verdadeira existência é assim, e que o que
ocupa o espaço e o tempo é, em comparação com ele, apenas aparência" (1b., p.
15). Perante a experiência exterior a que se haviam apegado os iluministas e
os seus epígonos, Ravaisson afirma a supremacia da "experiência. de
consciência", da apercepção interior. Quando se serve dela, a filosofia é "a
ciência por excelência das causas e do espírito de todas as

coisas, porque é, acima de tudo, a ciência do Espírito interior na sua


Causalidade vivente "(Phil. contemp., trad. ital., em Ensaios filosóficos, p.
117). Mas se a consciência, em que o espírito é ao mesmo tempo espectador e
actor, não revela outra coisa por toda a parte senão actividade espiritual,
como se explica a aparência da inércia, do mecanismo, numa palavra, da
natureza material?

A esta pergunta procurou Ravaisson responder (nas pisadas de Maine de Biran)


no seu ensaio

150

intitulado O hábito. Concebe o hábito como o termo médio entre a natureza e o


espírito, como o que permite entender a sua unidade. O hábito é uma actividade
espiritual, inicialmente livre e consciente, que,

com a repetição dos seus actos, dá lugar a movimentos nos quais o papel da
vontade e da reflexão é cada vez menor e que acabam, portanto, por se

realizar automaticamente. No entanto, os movimentos habituais não provêm da


inteligência, porque se dirigem sempre para um fim e o fim implica a
inteligência. Mas o fim acaba por se confundir com o movimento, e o movimento
com uma tendência instintiva que actua sem esforço e com segurança. Devido a

esta presença do fim, diz Ravaisson que o hábito é uma ideia substancial, isto
é, uma ideia que se transformou em substância, em realidade, e que actua como
tal. "A compreensão obscura, que advém do hábito da reflexão imediata em que o
sujeito e o objecto se confundem, é uma intuição real, em que se confundem o
real e o ideal, o ser e o pensamento" (Do hábito, em Escritos fil., p. 39-40).
O hábito não é, portanto, um puro mecanismo, uma necessidade exterior, mas é
antes uma lei de graça, dado que indica o predomínio da causa final sobre a
causa eficiente. Permite, por isso, compreender a natureza como espírito e
actividade espiritual. Demonstra que o espírito pode volver-se natureza
(degradando a

actividade livre em instinto), assim como a natureza pode tornar-se espírito.


Permite, enfim, ordenar todos os seres numa série, em que natureza e espírito
representam os limites extremos. "0 limite inferior é a necessidade, ou o
destino, se se preferir, mas na

151

espontaneidade da natureza; o limite superior é a

liberdade do entendimento. O hábito desce de um ao outro, aproxima estes dois


contrários e, aproximando-os, revela-lhes a íntima essência e a necessária
conexão" (Do hábito, em Escritos fil., p. 55). Isto permite a Ravaisson
consolidar a sua tese de que mecanicismo e necessidade são apenas aparência; a

realidade é apenas espontaneidade e liberdade, revela em toda a parte a acção


de Deus, que é vontade e amor, e no qual vontade e amor se identIFicam
(Rapport, p. 254.).

No seu Testamento filosófico Ravaisson chama ao espiritualismo "a filosofia


heróica ou aristocrática", em oposição à "filosofia. plebeia", o materialismo
ou o positivismo empirista. Segundo a filosofia aristocrática, o mundo é a
revelação progressiva da divindade criadora e da alma, que é a sua imagem e
intérprete. "Separação de Deus, retomo a Deus, encerramento do círculo
cósmico, restituição do equilíbrio universal, tal é a história do mundo. A
filosofia heróica não constrói o mundo com unidades matemáticas ou lógicas com
abstracções separadas de realidade do entendimento, é com o coração que ela
atinge a realidade viva, alma em movimento, espírito de fogo e de luz" (Revue
de Mét. et de Mor., 1901, p. 31).

§ 678. LACHELIER. JAURÈS

Menos retórica, mas não menos rica, é a produção filosófica de Júlio Lachelier
(1834-1918), autor de dois ensaios: O fundamento da indução (1817) c

152

BOUTROUX

Psicologia e metafísica (1885), de Estudos sobre o silogismo (1907) e de


alguns escritos menores. A influência que Lachelier exerceu sobre os
pensadores espiritualistas do seu tempo, é devida sobretudo à sua
obra de professor da Escola Normal Superior de Paris. Os temas da sua
filosofia nada têm de original.
O ensaio sobre o fundamento da indução visa substancialmente a contrapor a
realidade da ordem finalista da natureza à aparência da ordem mecânica. A
natureza fundada na lei necessária das causas eficientes tem uma existência
puramente abstracta, idêntica à ciência de que é o objecto; a natureza fundada
na lei contingente das causas finais tem uma existência concreta que se
identifica com a própria função do pensamento. Mas a própria existência
abstracta só é concebível tomando por base a existência concreta: o retorno de
uma causa natural a outra detém-se apenas quando se considera o fim; de modo
que a

verdadeira realidade da natureza é a contingência universal, a liberdade. Por


isso, "a verdadeira filosofia da natureza é um realismo espiritualista aos
olhos do qual todo o ser é uma forca e toda a força um pensamento que tende a
uma consciência cada vez mais completa de si mesmo" (Du fond. de 1'ind., p.
102).

Em Psicologia e metafísica, a diferença entre estas duas tendências funda-se


na diversidade de atitudes interiores do homem. "0 homem interior é dúplice e
não é de admirar que seja objecto de duas ciências que se completam
mutuamente. O domínio próprio da psicologia é a consciência sensível: só
conhece o pensamento pela luz que irradia sobre a sensação: a ciência do
pensamento em si mesmo, da luz

153

na sua fonte, é a metafísica" (Psych. el. Mét., P. 172-173). O que distingue o


espiritualismo de Lachelier do de Ravaisson e de Maine de Biran é que o
princípio espiritual não é entendido como vontade mas sim como pensamento, ou
seja, como actividade que se objectiva na realidade existente para retornar a
si mesma como consciência. O pensamento que não pusesse espontaneamente o ser
concreto seria abstracto e vazio; mas depois de ter posto o ser concreto, deve
procurar não ser senão ele mesmo, isto é, "pura consciência e pura afirmação
de si". Mas reportar tudo ao pensamento significa reportar tudo a Deus. O
espiritualismo tem em Lachelier a mesma tonalidade religiosa que nos outros
espiritualistas. Ns seus cursos inéditos da Escola Normal, expressou
claramente esta religiosidade: "A conclusão da filosofia da natureza é que a
realidade do mundo é Deus; a conclusão da filosofia do homem é que tudo o que
há de real, de espiritual, de imortal no homem é Deus" (in Séailles, La phil.
de Lachelier, p. 115).

No espiritualismo se inspira também um dos mais eminentes representantes do


socialismo francês, Jean Jaurès (1859-1914), que na sua obra, A realidade do
mundo sensível (1891), sustentou a íntima união entre Deus, por um lado, e o
homem e o mundo, pelo outro. O nexo desta união é a consciência, e Deus é
consciência absoluta. "Chamo consciência absoluta à força de unidade
omnipotente, na qual todas as consciências individuais participam
necessariamente quando dizem eu" (p. 345). O eu particular do homem nunca se
identifica, porém, com. o eu infinito de Deus. " O eu absoluto, perfeito,
eterno

154

e divino é-nos externo e superior, ao mesmo tempo que nos é interior (p. 332).
Jaurès procura conciliar este espiritualismo com o materialismo económico de
Marx. Admite, com Marx, que os ideais são o reflexo dos fenómenos económicos
no cérebro humano, mas acrescenta que também existe o cérebro humano e,
portanto, a preformação cerebral da humanidade. Assim, a evolução da
humanidade para o socialismo será, sem dúvida, determinada pelas forças
económicas mas "com a condição de que existam já no

cérebro, juntamente com o senso estético, a simpatia imaginativa e a


necessidade de unidade, as forças fundamentais que intervêm na vida económica"
(Pages choisies, 1922, p. 369).

§ 679. BOUTROUX

Exerceu uma grande influência no espiritualismo francês contemporâneo, quer


com as suas obras quer através do seu ensino (na Sorbonne e na Escola Normal
Superior), Emílio Boutroux (1845-1921), autor de dois ensaios: A contingência
das leis da natureza (1874) e A ideia de lei natural na ciência e na filosofia
contemporânea (1895), que tratam do mesmo tema, e de um livro, Ciência e
religião na filosofia contemporânea (1908), bem como de numerosos estudos
históricos, alguns dos quais publicados depois da sua morte.

Boutroux. capitaneou e conduziu em França uma

polémica contra o positivismo, travando a luta no próprio baluarte da ciência:


o conceito de lei moral.

155

O seu primeiro escrito A contingência das leis, da natureza toma em


consideração as realidades sobre as

quais versa a investigação científica: a matéria e os corpos, o organismo e o


homem. Todas estas realidades apresentam uma crescente riqueza de qualidade,
de variedade, de individualidade, que não se

deixa reduzir à uniformidade de tipos e à necessidade mecânica. Toda a ordem


de realidades apresenta um

certo grau de originalidade e de novidade com respeito à ordem inferior e não


pode por isso ser explicada por ela. Toda a ordem é, portanto, contingente em
relação às outras; e contingência significa liberdade. O princípio de
causalidade, com o qual se

costuma exprimir a necessidade. -"Tudo o que sucede é um efeito proporcionado


à causa"-suporia uma uniformidade entre o efeito e a causa, uma, uniformidade
que excluiria no efeito qualquer variação, qualquer aparecimento de novos
caracteres. Mas isto não se verifica, porque o efeito apresenta sempre
qualquer coisa de novo em relação à sua causa. Além disso, as várias ordens de
realidade não são redutíveis uma à outra; e também neste sentido são
contingentes. Os corpos não se reduzem à matéria (isto é, à extensão e ao
movimento), mas têm outras qualidades que são por isso contingentes em relação
à própria matéria. A vida, por seu turno, não se pode reduzir aos corpos e às
leis fisico-químicas que os governam. A vida humana, como vida espiritual, é
irredutível à vida puramente orgânica: a consciência de si, a reflexão sobre
os próprios modos de ser, a personalidade, não se podem reduzir a nenhum outro
elemento da realidade. Na vida interior do homem, o

156
motivo não é causa necessitante: a vontade dá a sua preferência a um motivo e
não a outro, e o motivo mais forte não o é independentemente da vontade, mas
precisamente em virtude dela (p. 124). São estas as considerações que
inspirarão a primeira obra de Bergson, o Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência.

Deste ponto de vista, o universo apresenta-se como uma série de mundos


irredutíveis uns aos outros, que constituem uma hierarquia que tem por cume
Deus. "Nos mundos inferiores a lei tem um lugar tão amplo, que quase se
substitui ao ser; nos mundos superiores, pelo contrário, o ser faz quase
esquecer a lei. Assim, todo o facto depende não só do princípio de
conservação, mas também, e desde o início, de um princípio de criação" (1b.,
p. 139). As teses do espiritualismo encontram-se confirmadas: o mundo é
liberdade, harmonia, finalidade. "Deus não é apenas o criador do mundo; é
também a providência e vela tanto pelos pormenores como pelo conjunto" Qb., p.
150).

O outro ensaio de Boutroux, A ideia da lei natural na ciência e na filosofia


contemporânea (1894) coloca-se mais directamente no terreno das ciências
positivas, submetendo à crítica o próprio conceito de lei. Examina os vários
grupos de leis (lógicas, matemáticas, físicas, químicas, biológicas,
psicológicas, sociológicas) e mostra não só que todo o grupo de leis é
irredutível ao grupo inferior e, portanto, contingente em relação a ele, mas
também que todas as leis são tanto mais necessárias quanto mais abstractas são
e

afastadas estão da realidade, e perdem o seu valor

157

necessário à medida que se aproximam da realidade concreta. A única lei


absolutamente necessária é o princípio de identidade A = A; mas este princípio
não diz absolutamente nada acerca da existência e natureza de uma realidade
qualquer. Ao passo que as outras leis da lógica, concernentes ao silogismo,
não são necessárias e contêm uma margem de contingência; e esta margem aumenta
nas ordens sucessivas de leis, até alcançar o máximo nas leis psicológicas,
que exprimem uniformidades sugeridas pela experiência, mas excluem toda e
qualquer necessidade. Assim, o conceito de lei, tal como existe na ciência,
não se opõe ao testemunho da consciência humana em favor da liberdade. "As
leis que denominamos leis da natureza são o conjunto dos métodos que
encontrámos para assimilar as coisas à nossa inteligência e obrigá-las ao
cumprimento dos nossos desejos... Uma noção justa das leis naturais toma o
homem senhor de si mesmo, e ao mesmo tempo mostra-lhe que a sua liberdade pode
ser eficaz e pode dirigir os fenómenos" (De l'idée de loi natur., p. 142-43).

Desmantelado o reduto do determinismo, Boutroux pode passar a defender a


validez da religião. A conciliação entre o espírito científico e o espírito
religioso só se pode obter colocando-se no ponto de vista da razão humana em
geral. A ciência consiste em substituir as coisas por símbolos que exprimem um
certo aspecto delas: o aspecto traduzível em

relações relativamente precisas, inteligíveis e utilizadas para fins humanos.


Mas, para lá destes aspectos, existe uma realidade irredutível às
representações científicas; e existem, além das faculdades intelectuais que a

158
ciência utiliza, outras faculdades humanas que ela não utiliza. O significado
da existência individual e

social, a arte, a moral, implicam valores que a ciência é incompetente para


julgar. O postulado da vida pode ser, segundo Boutroux, enunciado deste modo:
"Agir como se entre a infinidade das combinações, equivalentes do ponto de
vista científico, que a natureza produz ou pode produzir, alumas possuíssem um

valor singular e pudessem adquirir uma tendência para serem e subsistirem"


(Science et réligion, p. 362). Este postulado gera atitudes mentais que a
ciência não justifica. A primeira destas atitudes é a fé, que pode ser guiada
pela razão ou pelo instinto, mas

que se move sempre no domínio do incerto, que está fora do campo da ciência.
Mas a fé gera novos objectos de pensamento, representações intelectuais
originais; e gera, outrossim, o amor e o entusiasmo por tais objectos ideais.
Na fé, a religião encontra o seu

próprio terreno. A religião é, em primeiro lugar, vida, acção, realização; em


segundo lugar, é relação e comunhão com Deus como pai do universo; em terceiro
lugar, é dever de amor. A sede própria de uma

religião purificada de superstições é a consciência; e nesta sede a ciência já


não pode afectá-la. "0 escopo da religião difere do da ciência; ela não é, ou
antes, deixa de ser, a explicação dos fenómenos. Não pode sentir-se afectada
pelas descobertas da ciência relativas à natureza e à origem objectiva das
coisas. Os fenómenos, observados do ponto de vista da religião, valem pelo seu
significado moral, pelos sentimentos que sugerem, pela vida interior que
exprimem e suscitam; e nenhuma explicação científica lhes pode
159

tirar tal carácter" (1b., p. 383). Fundada nos dois dogmas fundamentais, a
existência de um Deus vivo, perfeito e omnipotente, e a comunhão entre Deus e
o homem, a religião conserva o seu antigo carácter de génio tutelar das
sociedades humanas, na medida em que pretende a união de todas as
consciências. E neste sentido, conservará precisamente os ritos exteriores
que, "transmitidos por tantos séculos e povos, são os símbolos incomparáveis
da perpetuidade e da amplitude da família humana" (1b., p. 390).

A filosofia de Boutroux caracteriza-se pela tentativa de chegar ao


espiritualismo através da crítica intrínseca da ciência. A certa altura,
porém, esta crítica torna-se extrínseca, porque desemboca no terreno da
consciência, que, como pura interioridade espiritual, toma incompreensível a
existência mesma da ciência, voltada para a exterioridade natural, Deste ponto
de vista, a conciliação entre espírito científico e espírito religioso torna-
se ilusória: o espírito científico é, inteiramente, absorvido e destruído pelo
outro.

§ 680. HAMELIN

A doutrina de Octávio Hamelin (1856-1907) foi apresentada pelo seu autor, e é


comummente considerada como "idealismo". Na realidade, não tem nenhuma das
características históricas do idealismo póS-kantiano. É, pelo contrário, uma
dialéctica, mas uma dialéctica do finito, que considera o desenvolvimento das
determinações finitas até à consciência humana como tal; não identifica este
desenvolvimento com o
160

do infinito, isto é, o da Razão absoluta; e termina com o reconhecimento de um


Deus transcendente, isto é, de um Deus que se encontra fora e para além da
evolução concebido, à maneira de Leibniz, como o centro de unificação das
consciências finitas. Estes traços são próprios do espiritualismo; e a
doutrina de Hamelin distingue-se do restante espiritualismo francês apenas por
uma maior sistematicidade e uma

acentuação mais decididamente racionalista.

Hamelin é autor, além de alguns estudos históricos (sobre Aristóteles,


Descartes e Renouvier) de um Ensaio sobre os elementos principais da
representação (1907). O pressuposto desta obra é que a representação não é
(como a palavra sugere) a reprodução ou a imagem da realidade, mas a realidade
mesma. "A representação é o ser e o ser é a representação" (1b., p. 374). É
este o princípio que já os epígonos do kantismo, desde Reinhold a
Schopenhauer, tinham admitido como indubitável. Para Hamelin, trata-se de
assumir a representação ou os seus "elementos principais" como princípio de
explicação de todos os

aspectos da realidade, e demonstrar a génese lógica desses aspectos pela


própria representação. Para este fim, o método analítico é ineficaz, segundo
Hamelin: não faz mais do que desenvolver o conteúdo já implícito nos
conceitos, mas não conduz a nenhuma nova conquista. A dedução, que se serve
deste método e que, partindo de certos princípios fundamentais, pretende
reconstruir a realidade, é incapaz de manter o que promete. Vê-se obrigada a
admitir esses princípios sem os justificar, limitando arbitrariamente a

actividade do pensamento. É necessário, portanto, um

161

método sintético, isto é, construtivo, capaz de progredir de conquista em


conquista. Este método nasce da insuficiência das noções abstractas e, por
isso, partindo delas procura enriquecê-las gradualmente até alcançar o ser
concreto na sua máxima expressão: a consciência. Todavia, o método sintético
não criará o mundo da representação, que já vive na consciência que se serve
do método: reconstituí-lo-á logicamente, mostrando que cada um dos seus
elementos terá o lugar próprio no desenvolvimento dialéctico em virtude de uma
lei que o liga às precedentes. Assim, a

ordem lógica das ideias, a sua concatenação racional, não coincide com a ordem
cronológica ou histórica em que se apresentaram à consciência. "0 facto de uma
noção - diz Hamelin (1b., p. 402) - ter uma história, o facto de se
desenvolver tão tarde, em nada diminui a sua aprioridade". Esta não-
coincidência entre a ordem lógica e a ordem histórica coloca Hamelin em nítida
oposição a Hegel, que afirmava a identidade entre as duas ordens, e torna
impossível entroncar a

sua doutrina no idealismo romântico.

O método sintético é o método da relação: consiste em mostrar a conexão


necessária das noções opostas. Hegel errou, segundo Hamelin, ao considerar a
contradição a mola real da dialéctica; a mola desta é, ao invés, a correlação,
pela qual os opostos se atraem e colaboram uns com os outros. Hamelin conserva
a forma triádica da dialéctica que procede mediante a tese, a antítese e a
síntese, mas tira a esta força aquilo que, segundo Hegel, era a alma dela e
constituía a essência da dialéctica: a contradição. Através do movimento
triádico, o universo revela-se

162

como "uma hierarquia de relações cada vez mais concretas, até atingir um termo
último em que a relação acaba por se determinar, de modo que o absoluto é
ainda o relativo. É o relativo porque é o sistema das relações e também porque
não é apenas o termo da progressão, mas também, por excelência, o ponto de
partida da regressão" (1b., p. 20).

Partindo destes pressupostos, a dialéctica de Hamelin procede à reconstrução


da realidade finita, da categoria mais geral e mais abstracta, a de relação, à
categoria mais concreta, a da consciência. A primeira tríade é a da relação,
do número e do tempo; a ela se seguem as outras (tempo, espaço e movimento;
movimento, qualidade, alteração; alteração, especificação, causalidade;
causalidade, finalidade, personalidade), concatenadas de um modo que
pretenderia ser rigoroso mas que, como sempre acontece nestas tentativas
dialécticas, é simplesmente arbitrário e fantástico. A última tríade marca,
evidentemente, a passagem do mundo da natureza, caracterizado pela
causalidade, ao mundo do espírito, caracterizado pela finalidade, que
subordina a si a causalidade, porquanto "o que é inarmónico está condenado a
uma

existência precária e talvez também algumas vezes à inexistência" (Ib., p.


341). A personalidade é constituída essencialmente pela liberdade, e a
liberdade implica a passagem à consciência. A consciência é a

existência para si. "0 facto de existir por si deriva do facto de que o ser
actua, e actua no sentido mais forte da palavra. E esta acção verdadeira e
originária, esta acção livre e contingente, é a que dá a consciência" (1b., p.
410). A consciência é, essencialmente,

163

pensamento. "Ê necessário conhecer o pensamento como uma actividade criadora


que produz a um

tempo o objecto, o sujeito e a sua síntese: mais exactamente, uma vez que não
é preciso pôr nada por debaixo da consciência, o pensamento é este processo
bilateral mesmo, o desenvolvimento de uma realidade que é a um tempo sujeito e
objecto, ou

seja, consciência" (Ib., p. 373). Quando o objecto predomina, como sucede na


actividade contemplativa, trata-se da representação teórica; quando, ao invés,
predomina o sujeito, como acontece na acção livre, trata-se da representação
prática. A primeira exprime-se no raciocínio, de que são abreviações ou
condensações o conceito e o juízo. A segunda realiza-se na vontade livre, que
escolhe entre os possíveis e

assim infunde vida à ordem ideal e substitui a lógica pura pela história (Ib.,
p. 443). A consciência é o

cume da realidade, o ser concreto por excelência, e fora dela nada existe. Com
ela se cerra a marcha progressiva do pensamento e termina a construção
sintética do universo (1b., p. 480-81).
Mas a conclusão da dialéctica não chega a calar a inquietação humana e,
portanto, a exigência de uma investigação ulterior. Contudo, esta, como não
pode utilizar o método sintético, alcançará resultados simplesmente prováveis.
Neste plano, Hamelin admite uma Consciência universal, centro e fundamento das
consciências inferiores: Deus. Exclui quer o materialismo, quer o panteísmo
idealista: e inclina-se para o teísmo. "A existência , de per si, quando a
tomamos em sentido absoluto, o universo, com a sua organização tão
extraordinariamente vasta e profunda, são

164

prodigiosos fardos: só Deus pode carregar com eles" (Ib., p. 494). No entanto,
o mundo não pode ter saído das mãos de Deus, que é a bondade mesma; cumpre
admitir, com Renouvier, que ele é o produto de uma

queda original. Poderá, no entanto reerguer-se, para se converter no "teatro


do triunfo e do reino integral e sim fim da justiça" (1b., p. 504).

§ 681. O ESPIRITUALISMO EM INGLATERRA

A consideração da filosofia inglesa oferece vasta matéria que desmente o


carácter nacional da filosofia do século XIX e torna ilegítima qualquer
tentativa para a dividir ou coordenar por nações. Com efeito, esta filosofia
alimentou-se sempre da sua própria tradição; e só de vez em quando se deixou
penetrar e

estimular pela filosofia que se pode considerar como

a mais robusta, ou pelo menos, a mais poderosa filosofia: a germânica. Apesar


disto, a filosofia inglesa apresenta os mesmos traços típicos que o resto da
filosofia europeia e aparece, em todas as suas fases, solidária com esta.
Vimos já que tiveram representantes em Inglaterra o tradicionalismo
espiritualista, fundado na metafísica da revelação (§ 628), e o positivismo
espiritualista, fundado na metafísica da evolução (§ 660). Manifesta-se em
Inglaterra com iguais características o espiritualismo contemporâneo, fundado
no princípio da consciência e defensor da pessoa e da transcendência dos
valores.

165

Entre as mais eminentes manifestações deste espiritualismo figura a obra


filosófica de Atur James Balfour (1848-1930), homem político e autor de
escritos filosóficos destinados à defesa da espiritualidade religiosa (Defesa
da dúvida filosófica, 1879; As bases. da fé, 1895; Decadência, 1908;
Interrogações sobre a

crítica e sobre a beleza, 1909; Teísmo e humanismo,


1915; Teísmo e pensamento, 1923). Balfour polemiza contra o positivismo
naturalista em nome dos direitos da consciência, que vê testemunhados e
expressos pelas exigências da vida moral. O ponto de vista e o

fundamento da sua investigação é "o sentido íntimo individual"; considera que


toda a atitude humana e todo o saber, incluindo a ciência, deve admitir uma
certa harmonia entre este senso íntimo e o universo de que o homem faz parte.
Esta harmonia é algo menos necessário do que o liame que existe entre as
premissas e a conclusão, mas mais estável e permanente do que a relação que
existe entre uma necessidade e a sua satisfação. "Que não tenha a força lógica
do primeiro, é coisa já admitida ou, melhor, concedida; que não possua o
carácter acidental, flutuante e puramente subjectivo do segundo, é algo que é
preciso antes reconhecer como verdadeiro. De facto, a harmonia requerida não
se encontra entre as fugazes fantasias do indivíduo nem entre as verdades
imutáveis do mundo invisível, mas sim entre as características da nossa
natureza, que reconhecemos em nós, se não corno algo necessariamente mais
forte, decerto como algo mais elevado, e se nem sempre como a coisa mais
universal, indubitavelmente como a mais nobre" (The Fundations of Belief,
trad. ital., p. 209).

166

Em nome deste acordo, Balfour exclui a legitimidade do naturalismo que se opõe


ao sentido íntimo da consciência. "Se o naturalismo fosse verdadeiro, ou,
melhor, se contivesse toda a verdade, a moral reduzir-se-ia a um simples
catálogo de prazeres utilitários, a beleza, ao ensejo acidental de um prazer
efémero, a razão, à passagem obscura de uma série de hábitos irreflectidos a
outra série. Tudo o que confere dignidade à vida, o que toma estimáveis os
esforços, cairia, para desaparecer sob o esplendor cruel de uma teoria
semelhante; e até a curiosidade, a mais intrépida das paixões mais nobres da
alma, deveria perecer sob a convicção de que, nem nesta geração nem em nenhuma
outra futura, nem nesta vida nem na outra, se romperá inteiramente o vinculo
pelo qual a razão, tal como o apetite, se mantém em dependência hereditária em
relação aos nossos desejos materiais" (1b., p. 58).

Mas não se deve confundir o naturalismo, negador da consciência, com a


ciência, pois a missão desta não é, de facto, negar a realidade de um mundo
que não nos é revelado pela percepção dos sentidos e a existência de um Deus
que pode ser conhecido, embora imperfeitamente, por aqueles que o buscam com
ardor. A ciência diz unicamente, ou deveria dizer, que isto são coisas que
estão fora da sua competência, que devem ser levadas a outros tribunais e
perante juízos que apliquem outras leis. Por outro lado, Balfour polemiza
igualmente contra o idealismo, o qual identifica o homem com Deus ou, pelo
menos, faz dele uma manifestação necessária de Deus. Se assim fosse-observa
ele (Ib., p. 115)-, não se ex-

167

plicaria o carácter contingente e finito do homem. No testemunho da


consciência assenta a fé religiosa, a qual constitui um auxílio indispensável
da acção moral. E a fé só pode assumir a forma do teísmo, uma vez que Deus não
pode ser considerado como um longínquo arquitecto do universo, mas sim como
partícipe dos sofrimentos humanos e como auxílio eficaz para os superar (The
foundations of Belief, trad. ital., 1906, p. 271). A polémica contra o
naturalismo domina em Teísmo e humanismo e em Teísmo e pensamento. Os valores
espirituais não podem ser o produto acidental de uma evolução mecânica; supõem
a acção de Deus, como a obra de arte supõe o artista.

Enquanto Balfour desenvolve o seu espiritualismo sobretudo em polémica com o


naturalismo, Andrew Seth Pringle-Pattison. (1856-1931) elabora-o em oposição
ao coetâneo idealismo hegelianizante. A obra mais conhecida de Pringle-
Pattison é a que se intitula A ideia de Deus à luz da recente filosofia
(1917). Outros escritos notáveis são: O desenvolvimento desde Kant a Hegel,
1882; A filosofia escocesa, 1885; Hegelianismo e personalidade, 1887; Duas
conferências sobre o teísmo, 1897, O lugar do homem nos cosmos,
1897; A ideia da imortalidade, 1922. Para Pringle-Pattinson, "a consciência
absoluta" de que falam Green e Bradley é uma abstracção lógica hipostasiada.
O erro dos idealistas é o de confundir a ontologia com a gnoseologia: se na
gnoseologia, que é a ciência das representações como símbolos ou sinais da
realidade, todo o dualismo é inconcebível, na ontologia, ao invés, é
inevitável o dualismo entre a consciência indi-

168

vidual e o mundo trans-subjectivo. A psicologia distingue-se, portanto, da


ontologia e da gnoseologia e é precisamente dela que se exige o testemunho do
Absoluto, que é o fundamento da religião. Com efeito, a consciência moral e
religiosa dá-nos, pelo menos, um conhecimento parcial da vida divina e bem
assim a certeza de que as possibilidades do pensamento não podem exceder a
realidade do ser. As nossas concepções do ideal no seu estádio superior
revelam uma

perfeição real na qual se encontra unificado tudo quanto existe no coração dos
homens e também o que é mais do que isso (The idea of God, p. 241). Mas a
experiência interior que revela ao homem a realidade de Deus, revela também a
sua transcendência. A transcendência não significa que Deus e o

homem sejam duas realidades reciprocamente independentes. Deus não tem sentido
para nós fora da relação com a nossa consciência e com os espíritos que nos
são afins na busca dele. A transcendência implica uma distinção de valor e de
qualidade, não uma separação ontológica, e exprime apenas a infinita grandeza
e riqueza da vida divina comparada com a

das criaturas finitas. Pringle-Pattison crê que Deus pode ser concebido como
"uma infinita experiência" que parcialmente se manifesta e se efectua na
experiência finita dos homens, mas não se exaure nela. A divindade não
preexiste ao mundo, mas vive só nele e para ele, como o fundo finito vive só
para a

divindade e na divindade. Deus vive na contínua dádiva de si mesmo (Ib., p.


411). Como pode, pois, a

realidade de Deus conciliar-se com a individualidade e independência moral das


pessoas finitas é, segundo

169

Pringle-Pattison, o mistério último, oculto mas não explicado pela palavra


criação. E é um mistério que deverá necessariamente permanecer sempre um
mistério porque explicá-lo significaria para o homem transcender as condições
da sua individualidade e

refazer efectivamente o processo da criação. (lb., p. 390).

O interesse religioso é dominante nos escritos de Clement C. J. Web (1865-


1954): Os problemas, da relação entre o homem e Deus, 1911; Estudos de
história da teologia natural, 1915; Teoria global da religião e do indivíduo,
1916; Deus é personalidade,
1919; Personalidade divina e vida humana, 1920; A filosofia e a religião
cristã, 1920; Esboços de uma

filosofia da religião, 1924. Webb crê que a filosofia da religião deve tomar
como ponto de partida a experiência religiosa e que esta consiste na certeza
de uma relação pessoal com Deus. Mas como objecto da consciência religiosa,
Deus não pode ser concebido como o Absoluto impessoal de que falam os
idealistas; somente, a forma da personalidade espiritual justifica e satisfaz
as exigências do coração e a necessidade da humildade religiosa. Como pessoa,
Deus é ao mesmo

tempo transcendente e imanente. É imanente enquanto está presente na natureza


e na história; é transcendente enquanto é superior a uma e a outra e alimenta
com forças sempre novas a vida religiosa do homem. Enquanto é experimentado
pelo homem na consciência religiosa, Deus é um ser distinto do homem; no
entanto, esta mesma experiência inclui-se na

vida divina como seu elemento constitutivo.

170

James Ward (1834-1923), autor de numerosos escritos de psicologia


introspectiva e de um tratado de psicologia (Princípios psicológicos, 1918)
desenvolveu a sua concepção espiritualista do mundo, em

oposição à doutrina naturalista, em dois cursos de Gifford Lectures:


Naturalismo e agnosticismo (1899) e O reino dos fins ou pluralismo e teísmo
(1911). Segundo Ward, o naturalismo e o agnosticismo cometem o erro de reduzir
a experiência ao seu conteúdo objectivo e de desprezar completamente o seu
aspecto subjectivo e vivido. Sob este aspecto, a experiência, na sua
totalidade, manifesta-se como vida, autoconservação, auto-realização, e
apresenta a sua estrutura central não no conhecimento mas na vontade. "Não é o
conteúdo dos objectos, que o sujeito não pode alterar, que lhes dá o seu lugar
na experiência, mas

sim o seu valor positivo ou negativo, o seu carácter bom ou mau que deles faz
fins ou meios para a vida" (Naturalism and Agnosticism, II, p. 134). O mesmo
conceito da natureza como sistema de leis uniformes encontra o seu fundamento
naquilo que nós somos

como indivíduos autoconscientes e livres. A unidade da natureza é a


contrapartida ideal da unidade actual de cada experiência individual. É um
ideal para o

qual damos o primeiro passo quando iniciamos as re-

lações intersubjectivas e o raciocínio, e do qual nos aproximamos cada vez


mais à medida que a ciência toma o lugar da mitologia e a filosofia da ciência
Qb., p. 235). Ward tende, por isso, a identificar o conceito de natureza com o
de história. Tanto na natureza como na história, devemos distinguir a acção de
uma multiplicidade de seres psíquicos, de mónadas,

171

em graus diversos de desenvolvimento, e todas dominadas pela tendência à


autoconservação. A ordem

e a regularidade do mundo não são um pressuposto desta multiplicidade de


mónadas, mas antes o resultado da sua coordenação progressiva. As leis
naturais são apenas a mecanização da originária actividade finalista das
mónadas. Este pluralismo monadológico supõe, como Leibniz vira, um teísmo. E o
teísmo implica que Deus se limite a si mesmo na criação das mónadas, já que
uma divindade que não concedesse a liberdade à criatura não seria uma
divindade criadora. Bem certo que a única prova possível da existência de Deus
é, como Kant reconhecera, a que se funda na vida moral e por isso mesmo cai no
âmbito da fé; não do saber. Mas entre fé e saber não existe oposição nem
dualidade. O que sabemos devemos também crê-lo, e sem fé não se pode viver nem

agir. A doutrina de Ward é uma das mais límpidas e

equilibradas exposições dos temas fundamentais de todo o espiritualismo


contemporâneo.

§ 682. O ESPIRITUALISMO EM ITáLIA.

MARTINETTI

O espiritualismo foi, juntamente com o positivismo, um elemento constitutivo


do clima filosófico italiano; mas, as mais das vezes tomou as formas
tradicionais do espiritualismo católico, sem dar lugar a elaborações originais
nem provocar, de algum modo, o aparecimento de novos problemas. As mais
notáveis manifestações do espiritualismo italiano cri-

172

contram-se nas doutrinas de Martinetti, Varisco e Carabellese, as quais se


opõem tanto ao positivismo como ao idealismo e têm pontos de contacto com

correntes análogas do espiritualismo germânico, especialmente com Lotzo e


Spir.

O espiritualismo de Pedro Martinetti (Castellamonte, 1871-1943) possui uma


tonalidade religiosa, mas caracteriza-se pela redução da própria religião e

das demais atitudes humanas ao conhecimento. Os escritos de Martinetti são


constituídos pela exposição e crítica de numerosas doutrinas filosóficas
modernas, principalmente das alemãs, a que se dá amiúde um

relevo superior à importância que verdadeiramente têm. Mas, em troca,


apresentam escassas referências precisas à filosofia antiga e medieval. Entre
estes escritos, os mais importantes são a Introdução à metafísica (1904) e A
liberdade (1928), assim como as colectâneas: Ensaios e discursos (1929), Razão
e fé (1942). Martinetti ocupou-se também de estudos religiosos que influíram
muito no seu pensamento (0 sistema Sankhya, 1897; Jesus Cristo e o
cristian.`Smo,
1934).

Martinetti põe a ciência e a filosofia no mesmo plano, mas considera as


ciências como formas de conhecimento imperfeito e preparatórias em relação à
filosofia. A distinção entre ciência e filosofia, assim como a que se deve
estabelecer entre ciência e ciência, tornou-se necessária por causa da divisão
do trabalho mas não alimenta a unidade fundamental. "A filosofia tem o seu
fundamento nas ciências; as ciências têm como escopo a filosofia" (Intr., ed.
1929, p. 33).
O terreno em que a filosofia se coloca e se deve

173

colocar é o da consciência: "A forma universal e fundamental do ser é o ser


para a consciência, o ser na forma de acto consciente" (1b., p. 410). A
consciência é constituída essencialmente pela relação entre uma multiplicidade
dada, que é o objecto, e uma unidade, que é o sujeito. Mas também a
multiplicidade objectiva é constituída por uma unidade subjectiva inferior
"que o sujeito, elevando-se a uma reflexão superior, contrapõe à sua própria
unidade como multiplicidade objectiva". Isto não é mais do que o monadologismo
leibniziano renovado por Lotz; e conformemente à lógica deste monadologismo,
Martinetti admite uma

multiplicidade de sujeitos particulares, unificados e

sustentados por um Sujeito absoluto. "Só um é o

sujeito, embora reflectido num número infinito de seres: todo o movimento,


todas as vidas, toda a existência mais elevada, não é mais do que um tender
para a Unidade suprema; e todo o conhecimento, não é mais do que o desvanecer-
se de uma ilusão, o reconhecimento imperfeito do Sujeito universal que se vê a
si mesmo em todas as coisas. Ele é o que conhece tudo e que por ninguém é
conhecido, porque é o que todo o ser consciente chama eu. Somente esta unidade
das coisas pode explicar as relações recíprocas que na

consciência, na piedade e nas altas intuições da arte e da religião se


estabelecem entre o que eu chamo o meu próprio eu e a alma secreta das coisas"
(Ib., p. 158). O Sujeito absoluto, embora estando sempre presente nos sujeitos
individuais no acto da "síntese aperceptiva suprema", não se identifica com
eles, e com esta diversificação origina neles a distinção entre sujeito e
objecto. O progresso do conhecimento, desde

174

os seus graus sensíveis ao racionais, é um progresso para a unidade do Sujeito


absoluto. A intuição desta unidade é o único elemento a priori, no sentido de
uma virtualidade intrínseca que representa constantemente na vida psíquica do
homem o ideal intelectivo.

O Sujeito absoluto está para além do múltiplo, do tempo e de todo o processo,


para além dos esforços com que os seres particulares tendem a ele. E
Martinetti, enquanto insiste no valor destes esforços (que constituem as
verdadeiras e próprias actividades humanas, o conhecimento, a arte, a
moralidade, a religião) e coloca a unidade absoluta como termo deles, é também
levado a insistir na transcendência da Unidade, em relação à qual todo o resto
é aparência insignificante. Assim, a vida moral é, decerto, a comunhão dos
espíritos, a qual se desenvolve historicamente no tempo, mas não é mais do que
o símbolo da realidade absoluta que é o fundamento dela: "a comunhão perfeita,
eternamente presente dos espíritos em Deus" (Razão e fé, p. 402). Perante esta
realidade transcendente, as próprias religiões não são mais do que um
conhecimento aproximativo e

simbólico, em relação às quais a filosofia exerce uma função crítica e


renovadora. Quando a religião degrada e se fixa nas formas dogmáticas, a
filosofia

intervém para renovar o material teorético dos seus símbolos e assim a impele
a mover-se e a renovar-se.

Esta mesma função é por vezes exercida pelos místicos. A filosofia e a


religião não são, portanto, duas forças estranhas: a sua luta é a mesma luta
que existe "entre as tendências conservadoras e as inova-

175

doras, a qual em todos os campos da vida prepara o

progresso para as formas superiores" (Ib., p. 493).

A única caracterização possível de Deus é a que nele vê uma Razão infinita,


isto é, "a unidade viva de uma multiplicidade infinita de relações e de
elementos essenciais à mesma" (A liberdade, p. 490), Trata-se ainda, sem
dúvida, de um conceito simbólico de Deus, mas é o símbolo supremo e mais
adequado. E é o único conceito que permite compreender a liberdade humana, a
qual não pode pertencer ao homem como fenómeno mas só ao homem como
personalidade divina, como pura razão (1b., p. 491). Mas, neste sentido, a
liberdade não é mais do que a

espontaneidade da razão; e a espontaneidade da razão é a necessidade mesma. Em


todas as suas formas, segundo Martinetti, liberdade é espontaneidade, e
espontaneidade é concatenação necessária (lb., p. 349). Aqui está,
indubitavelmente, representado o conceito espinosano da liberdade como
coincidência com a necessidade; e neste conceito se cifra o ideal da vida
moral. "Na realidade humana, esta liberdade imutável, que se identifica com a
necessidade da razão, é somente um ideal: o homem deve lutar por ela cada dia
e nesta libertação consiste a finalidade da sua vida" (lb., p. 403) A
liberdade não é, portanto, uma iniciativa humana, mas a acção que exerce no
homem o princípio inteligível que constitui a sua razão, ou seja, o Sujeito
absoluto. É uma espécie de graça iluminadora, que se realiza através do acto
de conhecer (1b., p. 483).

A doutrina de Martinetti tem todos os traços típicos do espiritualismo


oitocentista: a orientação mo-

176

nadológica, a aceitação de algumas exigências naturalistas (por ex. de


causalidade) e da ideia do progresso, a afirmação do Sujeito absoluto. É uma

espécie de misticismo da razão, que tem o seu precedente na obra de Spir.

§ 683. VARISCO. CARABELLESE

A concepção monadológica reaparece na filosofia de Bernardino Varisco (Chiari,


20 de Abril de 1850-21 de Outubro de 1933. Varisco atravessou uma fase
positivista, que se manifesta sobretudo na sua obra Ciência e opiniões (1901),
em que, pretendendo ex-

plicar toda a realidade física e psíquica mediante o

atomismo, acaba por atribuir aos próprios átomos (como o fizera Haeckel) uma
certa força psíquica. Mas já nesta obra, reconhecendo a fé religiosa e a

sua visão da vida como um facto, deixava aberta a

possibilidade de opiniões, isto é, de crenças, que coexistiriam com a ciência


e que portanto deveriam, em última análise, reduzir-se à unidade com esta
última. Nas obras seguintes: Máximos problemas (1909) e Conhece-te a ti mesmo
(1912), Varisco aceita explicitamente o espiritualismo monadológico de
Leibniz, completando-o com a doutrina do ser ideal de Rosmini. A realidade é
constituída por uma multiplicidade de sujeitos particulares, cada um dos quais
é um centro do universo fenoménico. Tais sujeitos são constituídos, não só
pela consciência clara ou

actual, mas também por uma esfera muito mais vasta: a subconsciência. Não
existe númeno ou coisa em

177

si. Cada sujeito varia segundo uma espontaneidade que lhe é própria; mas as
suas variações interferem com as de todos os outros sujeitos, e esta
interferência é um fenómeno, ou seja, um facto objectivo. O aparecimento de um
facto implica um factor alógico (mas nem por isso irracional), que é a
actividade espontânea à qual é devida a variação dos sujeitos; e um factor
lógico que é a unidade dos sujeitos, unidade pela qual eles se ligam uns aos
outros e que é constitutiva de cada um deles. Nesta unidade repousa a

ordem do universo, e, por conseguinte, a possibilidade das leis que o regulam.

Para a explicar, Varisco recorre à ideia rosminiana do Ser. O Ser unifica os


sujeitos particulares porque é, em primeiro lugar, o conceito comum a todo o
ser pensante e, em segundo lugar, o elemento comum de todas as coisas ou
objectos. É o objecto pensado que, como tal, não se resolve no acto pensante,
mas constitui a necessidade e a finalidade de todo o pensamento (Mass. prob.,
2 a ed., p. 262 sgs.). Quando o Ser não é pensado de forma explícita é
sempre pensado de forma implícita ou subconsciente. Mas o ser pensado do Ser
por parte dos sujeitos particulares é o pensar-se mesmo do Ser como Sujeito
universal. De modo que "o existir dos sujeitos particulares, e, portanto, o
existir do universo fenoménico, não são mais do que pensamentos do Sujeito
universal: scientia Dei est causa rerum". Há um sujeito universal na medida em
que o Ser (do qual todo o fenômeno e toda a unidade secundária de fenómenos é
uma determinação) é consciente de si, ou, antes, é consciência de si. O mundo
fenomé-

178

nico existe, na medida em que o Ser, consciente de si, realiza em si aquelas


determinações (Conhece-te a ti mesmo, 2.a ed., p. 280).

As duas obras citadas, que são também as mais notáveis, deixam indeterminado o
carácter do ser supremo e, por isso, indecisa a escolha entre panteísmo e
teísmo. "Tais determinações, que constituem o mundo fenoménico, diz Varisco
(Conhece-te a ti mesmo, p. 323-24), são ou não são essenciais ao Ser. No
primeiro caso, é gratuito e vão supor outras determinações no Ser: estamos no
panteísmo. No segundo caso, é inevitável supor no Ser outras determinações,
que o constituam como pessoa: estamos no

teísmo". Varisco admitia que, para reconhecer o finalismo do universo, e,


portanto, a conservação providencial dos valores, cumpriria ver no Ser o
conceito universal de Deus, mas considerava ainda "uma hipótese não
justificada" a existência de um Deus pessoal (Mass, proble., p. 305). Nas
obras seguintes, Linhas de filosofia crítica (1921), Sumário de filosofia
(1928), e no escrito póstumo, Do homem a Deus (1939), Varisco resolve a
alternativa no sentido do teísmo, isto é, de um Ser pessoal, e dá à sua
filosofia um tom puramente religioso. "Como consciente de si mesmo, e não
simplesmente nos indivíduos, mas em si mesmo, o espírito é Deus" (Sumário, p.
84). Varisco preocupa-se, no entanto, em garantir, frente a Deus, a
espontaneidade do homem. Atribui a Deus uma autolimitação da sua própria
omnisciência e, portanto, uma presciência limitada ao desenvolvimento global
do mundo, a fim de que a actividade humana possa ser livre para agir por sua
conta e

179

colaborar na obra da criação. Isto permite-lhe, finalmente, afirmar o


finalismo e a providência do mundo e justificar (na sua obra póstuma) as
categorias fundamentais da religião e especialmente do cristianismo.

Está relacionada com o pensamento de Varisco a obra de Pantaleo Carabellese


(1877-1948), que se poderia definir como um espiritualismo objectivista. A
melhor obra de Carabellese é a que se intitula
O problema teológico como filosofia (1931). Também é autor de numerosos
escritos teoréticos e históricos (Crítica do concreto, 1921; Filosofia de
Kant,
1927; O problema da filosofia desde Kant a Fichte,
1929; O idealismo italiano, 1937; O que é a filosofia,
1924), nos quais incessantemente expôs um ponto de vista que apresenta como a
verdadeira "revolução copernicana" do pensamento moderno. Este ponto de vista
é, segundo Carabellese, o da consciência comum: a única realidade concreta é a
consciência, e a consciência é a consciência que o sujeito tem do ser. Mas - e
este é o ponto fundamental - o ser, que é objecto da consciência, não é
estranho à consciência. Não é, de modo algum, alheio a ela: é o objecto da
consciência, absolutamente imanente nela, objecto que Carabellese chama em si
unicamente para o distinguir, como puro ser universal, dos objectos empíricos
dotados de existência particular. Não se

deve pensar que, dos dois termos da consciência, um, o sujeito, seja
consciência, e o outro, o objecto, seja não consciência. Deve-se pressupor
antes o todo concreto que é a consciência racional: o sujeito consciente do
objecto, o ser em si que está presente na consciência. O ser em si, como
objecto puro da

180

consciência, não é a coisa real que resulta da experiência, é, antes, a coisa


em si, que é o fundamento daquela. A coisa real é relativa; a coisa em si é
absoluta: a primeira é a coisa na sua génese, a segunda é o princípio imanente
deste génese. Mas se a

alteridade não pertence à objectividade da consciência, que é pura imanência,


pertence, em troca, à subjectividade. O outro, que cada qual encontra no

eu consciente como momento essencial da consciência, é o outro eu. A


alteridade não é estranheza e não implica a diversidade, mas a homogeneidade:
o outro

do sujeito é, portanto, outro sujeito, outro eu; e a

relação da alteridade é a relação de que resulta a

multiplicidade dos sujeitos. A consciência concreta implica, portanto, não só


a consciência de ser em si, mas também a subjectividade multíplice, que
germina no ser e é por ele constituída. A subjectividade é sem-

pre particular, individual, múltipla: a universalidade e a unidade estão no


objecto. Isto indica que a experiência não é constituída pela relação sujeito-
objecto, mas

pela dos sujeitos particulares entre si. A experiência implica uma


multiplicidade de experimentantes; e este ser conjunto dos experimentantes
forma as coisas experimentadas, cujo complexo e cuja compenetração é a
natureza. Ora, a coisa em si, o objecto puro da consciência, é o próprio Deus.
Com efeito, os seus caracteres, a unicidade, o carácter absoluto, a
universalidade, são os caracteres de Deus. Mas, como objecto puro, Deus é o
ser, não o existente. A existência é própria das coisas particulares e
empíricas em que se fragmenta, através da multiplicidade dos sujeitos, o
objecto puro. Mas o objecto puro é, não

181

existe. Nem existe sequer como sujeito, uma vez que em tal caso teria ainda
uma forma de existência. A afirmação de Deus é a objectividade implícita em

todo o acto de pensamento: o conceito do filósofo, a intuição do crente só têm


valor graças a ela. O argumento ontológico, que na tradicional forma
existencial é insustentável, toma-se inconcebível se o exprimirmos dizendo: eu
penso, portanto afirmo Deus, se negas Deus, não pensas. Pensar significa, de
facto, pensar o ser ou o objecto em si, isto é, Deus. Mas Deus não tem nenhuma
das características que as religiões lhe atribuem, porquanto toda a religião
assenta na consciência pontual e imperfeita do ser em si. Ele não é eu, não é
sujeito, nem é sequer consciência, já que a consciência como conhecimento do
ser em si não pode nunca tomar-se objecto (Prob. teol., p. 137). Deus é a
ideia pura da razão, o em si do concreto e da consciência: não a consciência.

Esta posição de Carabellese é a invenção simétrica do idealismo actualista de


Gentile. As características que este idealismo atribui ao sujeito atribui-as
Carabellese ao objecto: não é o eu, mas o objecto, que é pura actividade,
unidade, e universalidade. E, reciprocamente, as características que o
idealismo atribui ao objecto, atribui-as Carabellese ao sujeito: os sujeitos
opõem-se ao objecto como o singular ao universal, o múltiplo ao ú nico, o
relativo ao absoluto (1b., p. 55). A natureza, que para o idealismo é
objectividade, torna-se subjectividade. A objectividade é Deus, a
subjectividade é coisa real, natureza. Os próprios sujeitos são pura e
simplesmente constituídos pelo objecto (Probl. teol., p. 105), assim como

182

para o idealismo os objectos são constituídos pelo sujeito. Esta simetria


esclarece o significado histórico da doutrina de Carabellese, que é a
transcrição do espiritualismo rosminiano nos termos do imanentismo actualista.
Qual é a missão da filosofia deste ponto de vista? Evidentemente, a de atingir
e libertar a objectividade da consciência na sua pureza. "0 verdadeiro e
próprio saber filosófico, para que seja possível na sua indispensabilidade,
deve ser explicação da objectividade pura de consciência e deve, por isso, ter
as

características de transcendentalidade, a qual o aparenta ao saber religioso,


ou de problematicidade, a
qual, ao invés, o distingue desta" (0 que é a filosofia, p. 266). A filosofia
é o esforço para alcançar o princípio absoluto, o ser em si. Não está
subordinada à vida, mas é antes a vida que está subordinada à filosofia, uma
vez que, como toda a forma de existência, supõe o ser em si. Neste sentido a
filosofia é inútil, é "uma divina inutilidade" (Ib., p. 279). É destituída de
qualquer normatividade, porque também a normatividade, pondo-a ao serviço da
vida, a subjugaria a ela (lb., p. 300). Está para além das vicissitudes
humanas e recusa toda a historicidade: "o filósofo, mais do que qualquer outro
homem que pensa, deve viver despreocupado do seu tempo, absorvido por tudo o
que na consciência é superior à vida" (lb., p. 287). Há, indubitavelmente
nesta posição de Carabellese o honesto propósito de garantir a autonomia e a
dignidade da filosofia. Mas, -na forma que assume no seu pensamento, semelha
aquele que, para se libertar da sujeição de respirar, quisesse viver fora do
ar.

183

§ 684. ESPIRITUALISMO EXISTENCIALISTA

A partir da terceira década do nosso século o espiritualismo, embora mantendo-


se fiel ao seu teor fundamental que é a "consciência" e os seus "dados
imediatos", começa a abordar, nalgumas das suas

formas, alguns temas existencialistas extraídos primeiramente de Kierkegaard e


depois de Heidegger e Jaspers. A crítica do conhecimento racional e
"objectivo", a distinção entre ser e existência, a instabilidade (ou o sentido
do risco) da relação entre o homem e o mundo, portanto a angústia (ou a
inquietação) que caracteriza esta relação, são os mais importantes destes
temas, aos quais, por vezes, se junta o emprego da noção característica do
existencialismo: a possibilidade. Estes temas são, no entanto, integrados no
quadro do espiritualismo e servem, as mais das vezes, para ilustrar os seus
aspectos mais especificamente religiosos.

Na França, este tipo de espiritualismo tem o seu primeiro documento no Journal


Métaphysique (1927) de Gabriel Marcel e tomou o nome significativo de
"filosofia, do espírito".

Gabriel Marcel (nascido em 1889), dramaturgo e crítico literário, é autor das


seguintes obras filosóficas: Diário metafisico (1927); Ser e Ter (1935); Da
recusa à invocação (1939); Homo viator (1944),
O mistério do ser (1952); O homem problemático (1955). A tendência intimista
da filosofia de Marcel transparece já na preferência que dá no diário à
exposição do seu pensamento (Diário metafisico e
184

primeira parte de Ser e Ter); e é, além disso, evidente em todas as suas obras
que tomam frequentemente a forma de uma confissão íntima do seu autor. O tom
existencialista do Diário metafisico consiste exclusivamente no facto de que
nele Gabriel Marcel se

recusa a considerar o problema do eu e o problema de Deus como resolúveis no


plano objecivo, isto é, mediante análises ou demonstrações racionais. Mas
Gabriel Marcel chega até ao ponto de nem sequer os considerar como problemas:
o ser, tanto o ser do eu humano, como o ser de Deus, não é problema, mas
mistério. Em Ser e Ter define assim a distinção entre problema e mistério: "Um
mistério é um problema que usurpa os seus próprios dados, que os invade e,
portanto, os supera eliminando o
problema". Assim, por exemplo, a união da alma com o corpo (constitutiva do
eu) é um mistério porque se situa para lá da análise e não pode ser

reconstruída sistematicamente a partir de elementos logicamente anteriores:


não só é dada, mas é também dante (donnante), no sentido de uma contínua
presença do eu a si mesmo. Por outros termos, para Gabriel Marcel, um problema
é um conjunto de dados que se trata de unir e de conciliar sinteticamente.
Dada esta noção tão originária de problema, não é de admirar que Gabriel
Marcel negue que a

existência seja um problema. O problema domina a

categoria do ter, própria da consideração objectivante. Com efeito, nesta, os


termos considerados são objectivos estranhos ao sujeito que os considera, e o
acto de os reunir e descobrir o seu liame sintético é o que constitui o
problema. A exterioridade dos termos

185

condiciona o ter na medida em que supõe a exterioridade da coisa possuída e o


domínio sobre ela. Mas a categoria do ter é, na realidade, a categoria da
sujeição do homem em relação ao mundo, uma vez

que o domínio sobre a coisa possuída tende a inverter-se e a tornar-se o da


coisa possuída sobre o

possuidor. O homem que vive na categoria do ter é o homem esquematizado na sua


função social ou vital, ligado à vacuidade do mundo e dos seus problemas.

Mas para lá do ter e dos problemas que estão com ele relacionados, o ser
revela-se no mistério de que se rodeia; e a única atitude possível frente a

ele é, não já a da análise e da problematização, mas a

do amor e da fidelidade, pela qual o homem se abre à sua acção e se torna


disponível para ele. Com efeito, no amor e na fidelidade, o mistério
apresenta-se na

forma de um Tu a que o eu pertence e ao qual não se pode recusar sob pena de


se anular a si próprio (Du refus à Finvocation, 1940, p. 135).
O reconhecimento do mistério é a condição do amor

entre os homens. "Os seres não podem unir-se senão na verdade, mas esta é
inseparável do reconhecimento do grande mistério que nos rodeia e no qual se

encontra o nosso sem (Ib., p. 197). A fidelidade, o

amor, fazem o homem empenhar-se numa realidade que não se pode problematizar,
e que por isso o

funda na sua subjectividade. A filosofia deve conduzir o homem até ao ponto em


que se torne possível "a irradiação fecundante da revelação"; mas não leva o
homem a aderir a uma religião determinada. Não obstante, segundo Gabriel
Marcel, a verdadeira

186
atitude metafísica é a do santo que vive na adoração de Deus.

As últimas obras de Gabriel Marcel são dedicadas em especial à crítica da


sociedade contemporânea e exaltam os valores da espiritualidade religiosa como
remédios para os males desta. E com esta tendência se relaciona também a obra
do russo Nicolau Berdiaev (1874-1948) que viveu em França desde 1919 até à sua
morte. Nas suas obras: O sentido da história (1923); Espírito e liberdade
(1927); O homem e a máquina (1933); O destino do homem (1936); Cinco
meditações sobre a existência (1936), Ensaio de uma metafísica escatológica
(1946), Berdiaev defende um espiritualismo de carácter profético que anuncia a
revivescência de um cristianismo renovado de fundo social. O que o vincula ao
existencialismo é o reconhecimento da impossibilidade de objectivar e
materializar a personalidade humana, que só pode viver e prosperar na
atmosfera daquela liberdade que o cristianismo revelou aos homens. Este ponto
de vista é acompanhado dos habituais filosofemas sobre a decadência que a
técnica e a máquina determinam no homem e na sociedade, filosofemas que
constituem o património do espiritualismo vulgar.

São dotadas de uma estrutura mais filosófica as obras dos "filósofos do


espírito". Luis Lavelle (1883-1951) foi professor no Collège de France e autor
dos seguintes livros: Dialéctica do mundo sensível (1921) O ser (1928); A
consciência de si (1933); A presença total (1934), O eu e o seu destino
(1936);
O acto (1937); O erro de Narciso (1939); O mal e o sofrimento (1940); A
filosofia francesa entre as

187

ditas guerras (1942); O tempo e a eternidade (1945); Introdução à ontologia


(1947); As potências do eu

(1948)-, Da alma humana (1951); e o primeiro volume de um Tratado dos valores


contendo a Teoria geral do valor (1951); O Ser, O Acto, O tempo e a eternidade
constituem três volumes de um único ciclo intitulado Dialéctica do eterno
presente. É uma característica de Lavelle a interpretação da consciência como
relação entre o ser e o eu, ou melhor, como presença total do ser ao eu. O
acto de autoconstituição do eu, que tem a sua própria liberdade, é o acto da
sua participação no ser: é um acto participado, o qual supõe o acto
participante que é próprio do ser; e é, por isso, em última análise, um acto
de autoparticipação do ser em si próprio. Este pressuposto leva-o a

descobrir na própria existência humana a "dialéctica do eterno presente": e


toda a sua especulação visa, fundamentalmente, a reduzir à presencialidade do
ser

a si mesmo as características mais salientes da existência humana. Contudo,


Lavelle atende -sobretudo nas últimas obras O tempo e a eternidade (1945),
Introdução à ontologia (1947), Os poderes, do eu (1948) - às exigências do
existencialismo. A sua análise do tempo, por exemplo, assenta no princípio da
existência possível. O tempo é a "possibilidade do futuro e do passado" (Du
temps et de l'eternité, p. 24) e constitui por isso a natureza mesma do eu,
que pode ser definido como "uma possibilidade que se realiza" (1b., p. 38).
Ora, uma vez que a possibilidade está ligada ao futuro, o futuro é a primeira
determinação do tempo na ordem da existência, conquanto o passado seja o
primeiro na ordem do co-
188

nhecimento. "Pelo passado - diz Lavelle (1b., p. 260) -aprendemos a viver no


tempo, mas só o futuro nos faz viver no tempo". Este primado existencial do
futuro não lhe confere, porém, aquele poder nulificador que Heidegger e Sartre
lhe atribuíram. A angústia surge quando se faz do futuro a única experiência
de vida, isto é, quando se esquece que mesmo o futuro é uma forma da análise
do presente e que a possibilidade é já uma manifestação do ser. "0 futuro
- afirma Lavelle (1b., p. 279) - determinará o nosso lugar no ser: mas a
experiência mesma do ser, já
* possuímos. Até que ponto nos será permitido levar

* nossa participação no ser e qual é o nível que ela nos permitirá adquirir no
ser, é o que permanece incerto para nós e basta para gerar o sentimento que
experimentamos perante o futuro, sentimento em que o temor e a esperança se
encontram sempre misturados". Mas o futuro, enquanto possível, existe já no
ser, a ausência que ele denuncia é já uma presença. A consciência não se pode
identificar com uma possibilidade única, que seria então determinante em
relação a ela; ela é "a unidade de possibilidade de todas as possibilidades".
E é evidente que "se toda a possibilidade se destina a ser actualizada e só
tem sentido em relação a esta actualização, existe um intervalo que a separa
da própria actualização, e este intervalo é o tempo" (1b., p. 261). O tempo
não nos faz, pois, sair da presença total, mas estabelece entre os modos desta
uma sucessão que é a

condição de possibilidade da própria participação (1b., p. 227).

É fácil compreender que "uma possibilidade des-

189

tinada a realizar-se" não é, de forma alguma, uma possibilidade mas uma


potencialidade no sentido de Aristóteles e da metafísica clássica. Ela não
pode por isso explicar o carácter problemático da existência humana no mundo,
nem mesmo da distância, que Lavelle quereria justificar, entre tal existência
e o ser. Lavelle faz valer a exigência da liberdade na

própria relação com a liberdade. "A própria eternidade - afirma (Du temps et
de 1'éternité, p. 411) -

deve ser escolhida por um acto livre, deve ser sempre permitida ou recusada.
Mas, além disso, é a eternidade que age no tempo e determina as
características do mesmo (lb., p. 418 sgs.). De modo que a verdade do tempo é
a eternidade: e todas as determinações do tempo devem ser directa ou
indirectamente reconduzidas à instantânea presencialidade do ser eterno.

A filosofia de Lavelle pode ser definida como um espiritualismo ontológico.


Pode considerar-se, por sua

vez, um espiritualismo axiológico a de Renê Le Senne (1882-1954) que foi


professor na Sorbonne e autor dos seguintes escritos: Introdução à filosofia
(1925);
O dever (1930); Obstáculo e valor (1934); Tratado de caracteriologia (1945); O
destino pessoal (1951); A descoberta de Deus (recolha póstuma de ensaios,
1955).

Numa página de diário, Le Senne escreveu: "É essencial ao meu pensamento


manter no centro de toda a vida intelectual e prática a ideia da sua comunhão
com o Absoluto. A ontologia intelectualista clássica substituía a filosofia do
Homem pela de Deus. O kantismo inaugurou a filosofia da huma-

190

nidade. Importa agora fazer a da relação do homem com Deus" (La découverte de
Dieu, p. 20-21). A este tema da relação entre o homem e Deus, que constitui a
conscienci .a mesma do homem, manteve-se Le Senne sempre fiel. Mas a
qualificação fundamental que ele sempre atribuiu a Deus é o Absoluto, o Ser, o
Acto, é a do Valor (Ib., p. 112); por isso, a obra mais importante é aquela em
que abordou mais directa e atentamente este tema: Obstáculo e Valor.
O método que Le Senne considera apropriado para atingir o ponto nodal entre o
homem e o Valor, é o da intimização (intimisation), que se manifesta
primeiramente na experiência estética que retoma ao passado e dele faz uma
fonte de gozo. Para além da experiência estética, no pólo oposto da ciência,
está "o encontro misterioso da exigência do incógnito e do retomo ao mais
íntimo de si próprio". Neste ponto de intimização, as relações entre os
elementos da experiência que de início são puramente ideais acabam por se
tornar emocionais, atravessando uma frase intermédia que Le Senne chama "ideo-
existencial". "A fim de que a relação seja existencial -afirma ele-, é
necessário que a continuidade entre as suas determinações ou as suas
relações e a totalidade da consciência não seja reduzida à pura contiguidade;
mas ela é ideo-existencial, se, inversamente, esta continuidade não é em toda
a parte tão intima que as determinações se encontrem nela perfeitamente
resolvidas" (1b., p. 51). Nesta fase, portanto, as determinações apresentam-se
à consciência como uma situação que a limita e para lá da qual ela procura
avançar. É a fase em que se produz o desvio

191

entre o ser e o dever ser e em que aparece, portanto, o obstáculo que é,


segundo Le Senne, a condição indispensável para a realização do eu.

Na verdade, o obstáculo interrompe bruscamente a espontaneidade primitiva da


experiência, determina e

delimita a experiência numa situação fáctica. E do sentimento desta limitação


nasce o mim, isto é, o eu empírico, que se contrapõe ao objecto, fornecendo
com esta contraposição "a essência dramática" do conhecimento teórico. Mas,
por outro lado, o reconhecimento do limite significa pressentir o que está
para além do limite, o que não é determinado ou gerado na situação fáctica a
que pertence o mim. No próprio acto do reconhecimento do obstáculo, o mim
progride para além de si, para algo de que procede todo o obstáculo ou
determinação, mas que não se exaure em nenhum obstáculo e em nenhuma
determinação. Este algo é o valor que, enquanto ilimitado e primeiro, é o
próprio Deus. Deus é o eu do valor (Ib., p. 151).

O eu é, portanto, bifronte. "Ele -diz U Senne (Ib-, p. 152) - é mim e é Deus;


mas, uma vez que, como unidade da experiência, é eminentemente indivisível no
seu princípio, implica e opõe um ao outro os seus dois aspectos ao torná-los
solidários. O eu, enquanto mim, experimenta a sua clausura; enquanto Deus, a
sua abertura, que a inadequação definitiva entre o mim e a infinitude de Deus
deve incessantemente propor-lhe. Nenhuma ruptura radical pode, portanto,
intervir entre Deus e mim; e se a moralidade é bipolar, isto é, criação ou
cobardia, ascensão ou queda, isso deve-se ao facto de o eu poder
192

ou opor-se a Deus como a um objecto em que não vê mais do que uma natureza, ou
unir-se a ele como a um amigo".

Deste ponto de vista, o valor é o "nada, da determinação" (Obstacle et valeur,


p. 175); quer dizer, é a negação do carácter determinante e necessário da
situação fáctica em que o homem é lançado e em que efectua a experiência do
obstáculo. O valor anular-se-ia se se reduzisse à determinação; esta sua
irredutibilidade a toda a determinação possível constitui o seu carácter
absoluto. A existência humana, que vive na determinação e busca do valor,
situa-se entre um e outro. A existência apresenta-se no intervalo entre o
valor infinito e o nada, tendo com eles em comum a essência de negar a
determinação" (Ib., p. 181). Ela é, portanto, "um corte momentâneo e parcial
do valor", e dado que o valor é Deus mesmo, é "a encarnação de Deus em nós"
(1b., p. 220). A relação entre o homem e Deus é um duplo cogito. Une e opõe,
ao mesmo tempo, Deus, de quem o m::M experimenta alternativamente a vontade no
obstáculo e a graça no valor, e o mim que restringe a

experiência do valor aos limites da sua natureza.

Estes dois aspectos só existem e podem ser pensados na sua relação. Deus é,
portanto, um Deus-connosco. Deus-sem-nós é apenas uma função-limite que só tem
significado enquanto faz do valor um meio de reconciliação ou urna razão para
desesperar. No caso

limite em que Deus fosse verdadeiramente perante mim um Deus-para-si, a


própria existência de mim seria impossível. Mas a ideia de Deus-sem-nós pode
também ser estímulo e um contributo para uma mais

193

profunda comunicação com Deus. De qualquer modo, "Deus-sem-nós é o mito


transcendental que está relativamente à existência na mesma relação em que o
mito transcendental do mundo da natureza está com a determinação".

Como se vê, a filosofia, do espírito de Le Senne e Lavelle tem uma inspiração


e finalidade religiosa, centrando-se em torno do tema da consciência como
relação entre o eu e Deus. Ao contrário do espiritualismo bergsoniano, não se
fia na intuição mas pretende ser uma análise da consciência mesmo nos seus
aspectos objectivos e objectivantes. Além disso, procura ter em conta, nesta
análise, os elementos problemáticos ou negativos em que se apoia o
existencialismo: a temporalidade, a finitude do homem, as situações
limitadoras, o mal e o erro. Mas o seu ponto de partida, a presença na
consciência humana de Deus (como Ser ou como Valor) torna inoperante o
reconhecimento destes elementos e reconduz ao êxito providencialista do
espiritualismo tradicional.

§ 685. O PERSONALISMO

Depois da segunda guerra mundial foi-se acentuando, nas manifestações do


espiritualismo, o aspecto social; e o seu tema preferido tornou-se a

pessoa, no seu valor transcendente, isto é, na sua

relação com Deus. Em França, a um espiritualismo semelhante foi dado o nome de


personalismo, termo que o uso anglo-saxónico reservava ao espiritualismo em
geral, e teve o seu profeta eloquente em Emmanuel Mounier (1905-50) que fundou
em 1932 a revista

194

"Esprit" e publicou em 1936 um Manifesto ao serviço do espiritualismo. A


oportunidade do movimento foi proporcionada pelo crack de Wall Street em 1929;
e os seus intentos de renovação social e a sua oposição à solução comunista e
marxista favoreceram a sua difusão depois da segunda guerra mundial. As outras
obras principais de Mounier são as seguintes: Revolução personalista e
comunitária (1936);
O que é personalismo (1946); Tratado do carácter (1946); O personalismo
(1949).

A filosofia de Mounier é uma filosofia da pessoa, ou seja, do "espírito" na


forma pessoal que lhe é conatural e necessária. Contudo, a pessoa não está
encerrada em si mesma, mas ligada através da consciência, a um mundo de
pessoas. "0 proceder essencial num mundo de pessoas-diz Mounier não é a
percepção isolada de si (cogito) nem a preocupação egocêntrica consigo mas a
comunicação das consciências, ou melhor, a comunicação das existências,
existência com outros" (Qu'est-ce que le personnalisme? trad. ital., p. 62).
Aquilo que para todas as formas do espiritualismo é o instrumento fundamental
do conhecimento filosófico, isto é, a consciê ncia, não é para Mounier
encerramento na intimidade do eu mas abertura às outras consciências e
comunicação com elas. Esta tese é, contudo, apresentada sob a forma de uma
exigência, mas não justificada por análises precisas. Como a consciência pode
atingir, no seu âmbito, outras consciências, isto é, consciências que, por
definição, não são ela mesma e não podem ser atingidas por ela com a
imediatez com que ela se apreende a si própria, é um
195

problema que não se encontra resolvido nas obras de Mounier. O seu interesse
pela caracteriologia, testemunhado pelo vasto tratado que dedicou a esta
disciplina e que é uma espécie de suma das suas várias orientações, poderia
fazer supor que a comunicação entre as consciências se verificaria, para ele,
no âmbito daquelas formas ou tipos comuns que são precisamente os caracteres.
Mas, na realidade não é assim, e no primeiro capítulo do tratado insiste no

"mistério da pessoa". "A pessoa - diz ele - é um foco de liberdade e por isso
permanece obscura como

o centro da chama. Só recusando-se-me como sistema de noções claras se revela


e se afirma como fonte de imprevisibilidade e de criação. Só subtraindo-se ao
conhecimento objectivo, me obriga-para comunicar com ela-a comportar-me como
um turista e a ir, com ela, ao encontro de um destino aventuroso, cujos dados
são obscuros, cujos caminhos são incertos e em que os encontros são
desconcertantes" (Traité du caractère, 1, trad. tal., p. 64). Portanto, a
caracteriologia é com respeito ao conhecimento do homem o que a teologia é em
relação ao conhecimento de Deus, isto é, uma ciência intermediária entre a
experiência do mistério e a elucidação racional; e há uma caracteriologia
negativa, ou seja, do não saber, como há uma teologia negativa. Todavia,
Mounier insiste nos aspectos da pessoa que permitem a afirmação do seu valor
absoluto. Em primeiro lugar, a

pessoa é liberdade, entendendo-se por liberdade a

espontaneidade no sentido de Bergson (Le personizalisme, 1950, p. 79). Em


segundo lugar, é transcendência; transcendência seja para a "Existência modelo

196

das existências", seja como superação da pessoa mesma para as formas que devem
ser, por sua vez, pessoais. O terceiro aspecto da pessoa é o comprometimento
no mundo, mediante o qual não é espiritualidade pura ou isolada: um
compromisso que o materialismo marxista reclamou de modo brutal mas não menos
eficaz. Deste ponto de vista, os ideais ou os valores não são fins últimos
para o homem mas apenas meios para realizar uma vida pessoal mais ampla; isto
é, uma forma colectivista ou comunitária que poderia chamar-se "pessoa
colectiva" ou "pessoa pessoal" (Révolution personnaliste et communautaire,
trad. ital., p, 244). Esta forma superior de vida, para a qual a pessoa deve
livremente dirigir o seu

empenho de superação, é concebida por Mounier no

espírito do cristianismo, como uma espécie de comunidade de santos, na qual os


homens serão chamados a participar da mesma vida divina. A encarnação do
Verbo, que é a verdade fundamental do cristianismo, significa para Mounier o
resgate do elemento corpóreo e mundano e um convite para efectuar precisamente
neste elemento, e não em oposição a ele, a aspiração divina do homem (La
petite peur du XX siècle, p. 114). Por outros termos, a revolução comunitária
e personalista tem a missão de realizar na história humana o reino de Deus; e
poder-se-ia dizer, adaptando uma frase de Bergson (ao qual Mounier deve muitas
das suas inspirações) que a história é, deste ponto de vista, "uma máquina
para fazer deuses".

197

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 670. A história da filosofia dos últimos cem anos é dividida, a maior parte
das vezes, por nações e sem ter em conta, a não ser ocasional e parcialmente,
a unidade ou a concordância das orientações seguidas pelos pensadores das
diversas nações. Dado que as nações não são, nem nunca foram, compartimentos
estanques, pelo menos no que respeita à circulação do pensamento filosófico, e
dado que os pensadores que seguem uma orientação determinada manifestam
maiores afinidades com os de outras nações que seguem a mesma orientação do
que com os da mesma nação que seguem orientações diferentes, não se vê onde
esteja a utilidade destes métodos de estudo; o qual, por um lado parece
autorizar uma espécie de nacionalismo filosófico e, por outro, parece sugerido
pela preguiça de pesquisar num material historiográfico ainda caótico ou pouco
ordenado os filões que permitem ordená-lo e expô-lo nas suas conexões
conceptuais. Desde a primeira edição desta obra se, pôs de parte este método e
se reagruparam os pensadores segundo as afinidades existentes nas suas
doutrinas ou nas derivações históricas das suas doutrinas. Este segundo método
permite, além disso, reconhecer e legitimar aqueles reagrupamentos nacionais
ou locais (por exemplo, o espiritualismo francês, o idealismo italiano, o
Círculo de Viena, ete.) que constituem escolas filosóficas e se fundam,
portanto, na unidade ou na continuidade das suas orientações doutrinárias.

Sobre a filosofia dos últimos cem anos: F. UEBERWEG, Grundriss der Gesch. der
Phil., vol. IV: Die deutsche Phil. des XIX Jarhunderts und des Gegenwart,
12 ed., refundida por T. K. OESTERREICH; Berlim, 1923; ID., vol. V: Die Phil.
de& Auslandes vom Beginn des XIX Jahrunderts bis auf die Gegenwart, 12 ed.,
Berlim,
1928; H. H~DING, História da filosofia moderna, vol. II, trad., M.ARTINETTI,
2.a ed., Turim, 1913;

198

W. WINDELBAND, História da filosofia moderna, trad. ital., Florença, 1925; G.


D. RUGGIERO, La fil. contemporanea, Bari, 1912, 2 vol., 1920; ID.., Filosofi
del Novecento, Bari, 1934, 1942; F. H. HEINEMAN, Neue Wege der Philosophie,
Leipzig, 1929.

O carácter nacional da filosofia contemporánea é explicitamente justificado


por De RUGGIERO, La fil. cont. (intr.) na esteira de SPAVENTA, e no Gundriss
de UEBERWEG (§ 1) e implicitamente assumido nas divisões por nações das outras
histórias de filosofia.

Sobre a fil. inglesa: W. R. SORLEY, -4 HiStory Of English Philosophy,


Cambridge, 1920; A. K. Rogers, English and American Philosophy since 1800,
Nova lorque, 1922; R. METZ, Die phiZosophische Strõmungen der Gegenwart in
Grossbritannien, 2 vol., Leipzig, 1935; I. H. MUIRHEAD, Filosofi inglesi
contemporanei, trad. ital, Milão, 1939; L. PAUL, The English Philosophers,
Londres, 1954; J. PASSMORE; A Hun dred Years of Philosophy, Londres, 1957.

Sobre a fil. francesa: F. RAVAISSON, La phil. en France au XIX siècle, Paris,


1868; D. PARODI, La phil. contemporaine en France, Paris, 1919; J. BENRUBI,
Les sources et les courants de Ia phil. contemporaine en

France, 2 vol., Paris, 1933; Llacti vité phil. contemporaine en France et aux
États-Unis, ao cuidado de M. Farber, Paris, 1950, vol. 111; F. VALENTINi, La
filosofia francesa contemporanea, Milão, 1958.

Sobre a fil. italiana: E. GARIN, La filosofia, Vol. U: Dal Rinascimento


al Risorgimento, Milão, 1947; M. F. SIACCA, o século XX, 2 vol, Milão,
1942.

Sobre a fil. italiana: E. GARIN, La filosofia, Vol. Phil. in America


from the Puritans to James, Nova Iorque, 1939; HERBERT W. SCHNEIDER,
A HiStOry Of American Phil., Nova Iorque, 1946; Llactivité philos. contemp. en
France et aux Êtats-Unis. Études publiées sous Ia direction de Marvin Farber,
vol. I, Paris, 1950; M. H. FISCH, Clas8ic American PhiZosopher, Nova

199

lorque, 1951; MORRIS R. COHEN, American Thought, Glencoe, Il.I, 1954.

§ 672- De Lotze, os dois primeiros volumes do Microcosmo foram traduzidos em


italiano, Pavia, 1911-1914.

Sobre Lotze: E. PFLEIDERER, Lotzes philosophische Weltanschauung, Berlim,


1882; H. JONES, A Critical Account of the Philosophy of L., Londres,
1895; L. AMBROsi, L. e Ia sua fiZ., Roma, 1912; M. WENTSCHER, H.L.,
Heidelberg, 1913. - Os seus aspectos particulares: H. SCHOEN, La
métaphysique de H.L., Paris, 1902; G. SANTAYANA Ws Moral Idealism, in. "Mind",
1890; A. MATAGINS, Essai 8ur Ilesthétique de L., Paris, 1900; E. JAEGER,
Kristiche Studien L.s WeZtbegriff, Würzburg,
1937.

§ 673. Sobre Spir: F. JEDL, in "Zeitschrift fur Phil.", 1891; Th. LESSING, A.
S.s Erkenntnislehre, Erlangen, 1899; J. SEGOND, Llidéalisme des valeurs et Ia
doctrine de S., in "Revue Phil.", 1912; MARTINETTI, A.S., pref. ao Saggi di
fil. critica di Spir, Milão, 1913; N. CLAPARÈDE-SPIR, Un précurseur, A.S.,
Lausanne-Paris,
1920 (com bibliogr.); J. LAPCIIINE, A.S., Sa vie, sa doctrine, Praga, 1938.

§ 674. Sobre Hartmann: J. VOLKELT, Das Unbewusste und der Pessimismus, Berlim,
1873; BONATELLI, La fil. dell'inconscio di Ex.H. esposta ed esaminata, Roma,
1876; OLGA PLOMACHER, Der Hampf ums Unbewusste, Berlim, 1881, 2.1 ed. 1891
(com bibl.); A. FAGGI, La filosofia delllinconsciente, Florença, 1891; Id.,
H.e Ilestetica, Florença, 1895; W. RAUNSCHEN BERGER, Ex.H., Heidelberga, 1942.

Sobre Eucken: O. SIEBERT, R.E.s. Welt-und Lebenanschaung, LangensaIza, 1904,


4.1 ed, 1926; H~DING, Moderne Philosophen, cit., p. 176 sgs.; ROYCE GiBsoN,
R.E.s. Philosophy of Life, Londres, 1906; O. BRAUN, R.E.s. Philosophie und
Bildungs-probZem, Leipzig, 1909; W. T. JONES, An Interpretation of R.E.s.
Philosophy, Londres, 1912; M, BooTH, R.E., his philosophy and In-

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fluence, Londres, 1913; W. S. MC-GOWAN, The Religious Philosophy of. R.E.,


Londres, 1914.

§ 675. Sobre Lequier: J. GRENIER, La philosophie de J.L., Paris, 1936 (com


bibl.); J. WAHL, J.L., (Introduction et choix), Paris, 1948; Id., in
"Deucalion", 4 de Outubro de 1952, p. 81-126; E. CALLOT, Propos sur J.L.,
Paris, 1962; X. TILLIETE, in "Révue de métaphysique et de morale" 1963, 1.

§ 676. Sobre Secrétan: E. BOUTROUX, La phil. de S. in "Révue de métaphysique


et de morale", 1895; S. PILLON, La phil. de S., Paris, 1898; J. DUPROIX, O.8.
et Ia philosophie kantienne, Paris, 1900; L. SECRÉTAN, O.S., sa vie et son
oeuvre, Lausanne, 1912; E. GRIN, Les origines et Févolution de Ia pensée de
C.S., Lausanne, 1930; Id., Vinfluence de S. sur Ia théo?ogie moderne,
Lausanne, 1942.

§ 677. De Ravaisson, as memõrias sobre Abitudine, os ensaios Fil.


contemporanea e Fil. de Pascal foram recolhidos e traduzidos por A. TILGHER,
COM O título: Ensaios filosóficos, Roma, 1917. A recolha contém sinais
bibliográficos. O Testament philosophique foi publicado na "Revue de
métaphysique et de niorale", 1901, e reeditado em Testament et fragments, ed,
Devivaise, Paris, 1932.

A. LEVI, LI indeterminismo nella fil. francesa contemporanea, Florença, 1904,


p. 24-31, 219 SgS.; BERCSON, La vie et Iloeuvre de R., in La pensée et le
mouvant, Paris, 1934; J. Dopp, P.R., Lovaina, 1933 (com bibl.).

§ 678. De Lachelier, Fundamento da indução, Psicologia e metafísica, e um


ensaio menor, A observação de Platner, foram traduzidos por G. DE RuGGIERO sob
o título Psicologia e metafísica, Bari, 1915.

G. SEAILLEs, La phil, de L., Paris, 1920; E. BouTROUX, J.L,, in "Revue de mét.


et de morale", 1921; V. AGOSTI, La filosofia de J.L., Turim, 1952.

§ 679. Sobre Boutroux: P. JANET, La philosophie française contemporaine,


Paris, 1879; LEVI, op. cit.,;

201
P. GONNELLE, E.B., Paris, 1908; P. ARCHAMBAULT, E.B., choix de textes avec une
étude sur lIoeuvre, Paris, 1908; P. SERINi, E.B., na rev. "Logos", Nápoles,
1922; L. S. CRAWFORD, The Philosophy of E.B., Nova lorque, 1924; M. ScHyNs, La
philosophie de E.B., Paris, 1924.

§ 680. De Hamelin: Le système de Descarte&, Paris, 1910; Le système dAristote,


Paris, 1920; Le système de Renouvier, Paris, 1927.

A. DARBON, La méthode synthétique dafis Lles3ai dIO.H., in "Revue de mét. et


de morale", 1929; A. ETCHÉVERRY, Llidéalisme contemporain en France, Paris,
1934, p. 45 sgs.; L. J. BECK, La méthode synthétique de H., Paris, 1935.

§ 681. Uma antologia dos textos filos. de, Balfour: A.J.B. as Philosopher and
Thinker, ao cuidado de W. SHORT, Londres, 1912. Sobre Balfour. W. WALLACE,
Lectures and Essays on Natural Theology and Ethics, Oxford, 1898; J. S.
MACKENZIE, in "Mind", N.S., 1916; G. GALLOWAY, in "Hibbert Journal", 1925.

Sobre Pringle-Pattinson: JONES, in "Philosophical Review", 1911; RASHDALL, in


"Mind", N.S., 1918.

Sobre Ward: A. E. TAYLOR, in "Mind", N.S., 1900; DAWES HICKS, in "Mind", N.S.,
1921 e 1925; ID., in "HibbeÉt Journal", 1926; ID., in "Journal of
Philosophical Studies", 1926; e ensaios de autores diversos em "The Monist",
1926; M. MURRAY, The Philosophy of J.W., Cambridge, 1937.

§ 682. Sobre Martinetti: GENTILE, Saggi critici, 1, Nápoles; A. LEVI,


Llidealismo critico in Italia, in "Logos", Nápoles, 1924; V. CAVALLó, La
libertà umana nella fil. contemporanea, Nápoles, 1934, p. 157 sgs.; P.
CARABELLESE, Llidealismo italiano, Nápoles, 1938, p. 211 sgs.; SCIACCA,
(perfil), Brescia, 1943 (com bibl.); F. P. ALESSIO, LI idealismo di P.M.,
Brescia, 1950.

§ 683. Bibl. completa dos escritos de Varísco, in G. ALLINEY, VaXiSCOC, MilãO,


1943.

202

P. CARABmLESE, Llesser_- e il problema reZigioso, Bari, 1914; ID., 11 pensiero


di B.V., in <@Giorn. critico della fil. ital.", 1926; ID., Il problema
teologico come filosofia, Roma, 1931; ID., Llidealismo italiano, Nápoles,
1938; E. CASTELLI, Il problema teologico in B.V., in Scritti filos. per le
onoranze nazionali a B.V., Florença,
1925;A. PASTORE, Veritá e valore nel pensiero fil. di B.V., ibid.; E. DE
NEGRI, La metafisica di B.V., Florença, 1929; LIBRIZZI, La fil. di B.V.,
Pádua,
1941; ALLINEY, V. Milão, 1943; P. C. DRAGO, La fil. di B.V. Florença, 1944; G.
CALOCERO, La filosofia di B.V., Messina, Florença, 1950.

Sobre Carabellese: CROCE, in "Critica", 1922; N. VERRUA, Il pensiero di P.C.,


Bobbio, 1937; G. FANO, in "Giorn. critico della fil. ital.", 1937; E. PACI,
Pensiero, esistenza, valore, Milão, 1940, p. 173 sgs.; P. C. DRAGO, La
metafisica di P. C., in "Filosofi conternporaneí" (Inst. de Estudos
filosóficos di Turim), Milão, 1943; G. VICARELLI, Im pensiero di P.C., Roma,
1952.

§ 684. Sobre Gabriel Marcel: J. WAHL, Ver& le concret, Paris, 1932; M. DE


CORTE, La philosophie de G.M., Paris; G. OLIVIERI, La fil. di G.M., in Studi
fil"ofici, Milão, 1940; L. PAREYSON, La fil. dell'esistenza e Carlo Jaspers,
Nápoles, 1940, passim; P. RiCOEUR, G.M. et K. Jaspers, Paris, 1948; P. PRINI,
C.M. e Ia metodologia delllinverificabile, Roma, 1950; R. TRoiS-FONTAINEs, De
l'existence à Vêtre. La philosophie de G.M., 2 vol., Lovaina, 1954 (com
bibl.).

Sobre Berdiaev: L. LAVELLE, Le moi et son destin, Paris, 1946 (p. 2.1, cap.
III); F. TANGINI, Il personalismo di N. Derdiaev, in Filosofi contemporanei
(Instituto de estudos filosóficos de Turim), Milão, 1943, p. 57-158; O. F.
CLARCKE, Introduction to B., Londres,
1950; E. PORRET, N. B., Heidelberga, 1950.

Sobre Lavelle: M. DE PETRI, in "Aannalli della Scuola Normale Superiore di


Pisa", 1938; A. DE WAELIIENS, in "Revue néoscolastique de phil.", 1939-40;
O. M. NOBILE, La fil. di L.L., Florença, 1943; E. CEN-

203

TINEO, IZ problema della persona nella filosofia di L., Palermo, 1954; R. LE


SENNE, N. J. BALTRASAR; G. BERGER, ete. in "Giornale di metafisica", 1952, n.
4

Sobre Le Senne: J. PAUMEN, Le spiritualisme existentiel de R.L.S., Paris,


1949; A. Gumo e outros, R.L.S., Turim, 1951; E. CENTINEO, R.L.S., Palermo,
1953 (com bibL); F. P. ALESSIO, Studi sul neospiritualismo, Milão,
1953, p. 89-129; e os fascículos dos "ntudes philosophiques", 1955, n. 3 e do
"Giornale di metafisica", 1955, n. 3, inteiramente dedicados a Le Senne.

§ 685. Da obra de Mounier, estão traduzidos em italiano: Revolução


personalista e comunitária, Milão,
1949; O que é o personalismo, Turim, 1948; Tratado do carácter, Alba, 1949; O
personalismo, 1952. Em português: Manifesto ao serviço do personalismo, Liv.
Morais Ed.. Depois da morte de Mounier, foi publicada uma vasta documentação:
M. et sa _qénération. Lettres, carnets, inédits, Paris, 1956.

Escritos de vários autores em "Esprit", 1950, p. 721 SgS.; PAOLO ROSSI, in "I1
pensiero critico", 1951, p. 175-83; A. RIGOBELLO, Il contributo filosofico di
E.M., Roma, 1955.

204

III

A FILOSOFIA DA ACÇÃO

§ 686. CARACTERISTICAS DA FILOSOFIA DA ACÇÃO

A filosofia da acção é uma das formas do espiritualismo moderno. Com efeito,


tem de comum com o espiritualismo a seguinte característica fundamental: o
modo de praticar e entender a filosofia como auscultação interior ou
concentração na interioridade espiritual. O tema da filosofia da acção é, por
conseguinte, como o do espiritualismo, a consciência. Mas para os filósofos da
acção a consciência é sobretudo, ou acima de tudo, vontade, actividade, acção:
isto é, mais actividade prática ou criadora do mundo moral, religioso e
social, do que faculdade contemplativa ou teorética. Tal como o
espiritualismo, a filosofia da acção tem interesse e carácter religioso, e só
com Sorel adquire carácter político.

205

O primeiro precedente histórico da filosofia da acção tem de ir buscar-se à fé


moral exposta na

Crítica da razão prática de Kant. A fé moral aparece a Kant como a condição e,


ao mesmo tempo, o resultado da actividade prática, e foi amiúde interpretada
como um "primado da razão prática" no sentido de uma capacidade da vontade
moral do homem para fundar as verdades religiosas que a razão teórica não pode
alcançar por si própria. Neste sentido, a cor-

rente de que ora nos ocupamos afirma o primado da acção. Por outro lado, a
acção de que ela nos

fala não consiste em actos e operações exteriores, mas é a acção da


consciência e que à consciência mesma revela a sua natureza e as suas
condições.

§ 687. NEWMAN

O iniciador da filosofia da acção, neste sentido que se lhe dá, foi, sem
dúvida, o inglês John Henry Newman (1801-90) que, sendo anglicano, se
converteu em 1845 ao catolicismo romano e em 1879 se tornou cardeal da Santa
Igreja. O Cardeal Newrnan foi um escritor fecundo; é autor de muitos volumes
de sermões religiosos, de tratados teológicos, de ensaios históricos, críticos
e polémicos, assim como

de obras literárias e de vida devota. Os escritos que interessam à história da


filosofia são o Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã (1845) e o

Ensaio de uma gramática do assentimento (1870). Os dois escritos são ambos de


conteúdo apologético e partem do mesmo pressuposto: uma doutrina,

206

quando é verdadeiramente viva e vital, não é uma simples posição intelectual


porquanto implica também a participação dia vontade e, em geral, da actividade
prática do homem. Este pressuposto torna-se objecto de justificação filosófica
na segunda das duas obras acima citadas e é explicitamente assumido como ponto
de partida na primeira. "Quando uma ideia -

afirma Newman (Development, ed. 1909, p. 36) -

seja real ou não, é de tal natureza que fixa e possui o espírito, pode
considerar-se viva, isto é, pode-se dizer que é viva no espírito que é o seu
receptáculo. Assim, as ideias matemáticas, por muito reais que sejam, não
podem propriamente ser consideradas vivas, pelo menos no sentido habitual. Mas
quando um enundado geral, seja verdadeiro ou falso. acerca da natureza humana
ou do bem, do governo, do dever ou da religião, se difunde numa multidão de
homens e lhes reclama a atenção, não é apenas recebido passivamente, desta ou
daquela maneira, em muitos espíritos, senão que se torna neles um princípio
activo que os leva a uma contemplação sempre renovada de tal enunciado, a
aplicá-lo em

várias direcções e a difundi-lo por toda a parte". É, portanto, a vitalidade


prática das ideias religiosas que determina o seu desenvolvimento na História,
dado que este desenvolvimento não se assemelha ao

matemático, que deduz uma proposição da outra, nem ao do físico da natureza


vegetal ou animal, senão que concerne à totalidade dos aspectos da vida humana
e pode ser político, intelectual, histórico ou moral. O cristianismo, como uma
grande ideia que inspirou a vida da humanidade, teve um

207

desenvolvimento deste género: os seus aspectos mais profundos têm sido


gradualmente esclarecidos no

curso da sua história, embora a sua verdade originária permaneça inalterada.


Deve admitir-se, segundo Newman, que tais desenvolvimentos participam no

plano providencial do universo, recorrendo a um

argumento análogo àquele pelo qual se deduz da ordem do mundo físico uma
inteligência infinita (1b., p. 63): mas se é assim, a providência teve também
de estabelecer uma autoridade imutável para regular de uma maneira infalível o
curso desses desenvolvimentos e evitar os desvios e as corrupções, e, de
facto, esta autoridade é exercida pela Igreja. Newman enumera algumas
características do desenvolvimento autêntico de uma doutrina frente aos seus
desvios e corrupções; estas características são a conservação do tipo
primitivo, a continuidade, a força de assimilação, a consequência lógica, a
antecipação do futuro, a conservação do passado e a duração que lhe garante o
vigor. Baseando-se em tais características, vê no catolicismo moderno o "
resultado legítimo e o complemento, ou seja, o desenvolvimento natural e
necessário da doutrina da igreja primitiva" (lb., p. 169).

Uma doutrina que se desenvolve é, portanto, uma ideia viva, isto é,


praticamente operante, e

em que a vontade põe o seu empenho. A Gramática do assentimento é o exame e a


justificação das condições que conferem vitalidade a uma ideia. Newman começa
por distinguir três actos mentais: a dúvida, a inferência e o assentimento.
Uma pergunta exprime uma dúvida; uma conclusão exprime um

208

acto de inferência; uma asserção exprime um acto

de assentimento. Estes três actos têm por objecto proposições: mas o


assentimento que se dá a proposições que exprimem coisas é muito mais forte do
que o que se dá a proposições que exprimem noções: o assentimento real é, por
consequência, bastante mais forte do que o assentimento nocional. O
assentimento nocional é aquele a que se chama profissão, opinião, especulação;
o assentimento real é a crença. Um assentimento real, por si só, não conduz à
acção, mas as imagens em que vive, representando o

concreto, têm a força de excitar as afeições, os sentimentos e as paixões, e


através destes tornam-se operantes (Grammar, ed. 1909, p. 89). O assentimento
nocional a uma proposição dogmática é um

acto teológico; o assentimento real à mesma proposição é um acto religioso. O


primeiro pode dar-se
sem o segundo, mas o segundo não pode dar-se

sem o primeiro. Não existe, portanto, antagonismo entre o credo dogmático e a


religião vital; pelo contrário, a religião infunde ao credo dogmático os
sentimentos e as imagens que condicionam a sua vitalidade operante (1b., p.
120).

O assentimento é, em todas as suas formas, incondicionado; e nisto se


distingue da inferência (ou raciocínio), que aceita uma proposição só quando
ela se subordina a outras proposições, e é, por isso, condicionada. A certeza
é um assentimento complexo, isto é, dado deliberada e conscientemente, e é,
como tal, a superação definitiva de todas as dúvidas ou temores acerca da
verdade da proposição a que se

209

refere. A indefectibilidáde da certeza -não é, contudo, infalibilidade; e


pode-se ter uma certeza, ainda que se esteja enganado (1b., p. 224).

Apesar de considerar superior o assentimento real, Newrnan não vê nele mais do


que um acto intelectual que coloca a par dos outros, ao lado da dúvida e da
inferência. Deste modo, o que constitui o seu carácter próprio, isto é, a
incondicionalidade e a certeza indefectível, é simplesmente pressuposto e não
é objecto de esclarecimento e de justificação. Este esclarecimento e
justificação encontrá-lo-emos na obra de Ollé-Laprune, o qual atribui
explicitamente o assentimento à vontade.

§ 688. OLLÉ - LAPRUNE

Léon OIlé-Laprune (1830-99) vincula a doutrina do assentimento de Newman à


tradição cartesiana. E é também autor de uma ampla monografia intitulada
Filosofia de Malebranche (2 vol., 1870). A sua

obra principal intitula-se A certeza moral (1880), à qual se seguiram: A


filosofia e o tempo presente ,(1890); As fontes da paz intelectual (1892); O
valor da vida (1894); O que se vai procurar em Roma (1895); A virilidade
intelectual (1896); e dois escritos publicados postumamente: A vitalidade
cristã (1901) e

A razão e o racionalismo (1906).

Ollé-Laprune retoma a distinção de Newman entre assentimento nocional e


assentimento real, exprimindo-a como distinção entre certeza abstracta, que se
refere a noções, e certeza real, que se refere a coisas

210

(De Ia cert. mor., ed. 1908, p. 23). A certeza abstracta ou especulativa só


pode existir verdadeiramente num

união, caso: o das matemáticas. Em todos os outros casos, a certeza reflexa e


explícita é sempre mais real e prática do que lógica e especulativa. Isto
depende da própria natureza do espírito em que a vontade tem uma função
predominante. No mais abstracto pensamento, a vontade está presente como
preferência e escolha porque só ela determina a atenção e assim estimula e
sustenta o pensamento. "É a vontade que coloca ou fixa o espírito no terreno
em

que deve operar; é a vontade que efectua a preparação indispensável a esta


operação; é ela que primeiro conduz com ardor apaixonado ou com fria resolução
todas as forças intelectuais para o objecto que se procura conhecer; é ela que
mantém estas forças aplicadas e atentas. A vontade, a boa vontade, tem em toda
a parte, mesmo na pura ordem científica, uma influência que nada pode
substituir Qb., p. 48). Ollé-Laprune vale-se da análise cartesiana do juízo
para concluir que o juízo, como consentimento, é sempre um acto livre de
vontade. Se o assentimento (como queria Descartes) é involuntário, porque
segue a apreensão de uma proposição evidente, o consenso, como aceitação da
verdade, deve-se à vontade que não é afectada pela evidência que determina o
juízo do espírito (1b., p. 65). Isto estabelece a diferença entre o saber e o
crer. Sabe-se que é evidente; crê-se no que permanece de algum modo oculto e a
que se dá assentimento por uma razão que é, de certo modo, extrínseca ao que
se afirma (1b., p. 81). A fé

211

é superior à crença: uma crença vital, séria e poderosa, designa a própria


mola e o fundamento do acto de crer, e é, por consequência, essencialmente,
confiança, certeza, esperança.

Tudo isto demonstra que só o uso prático da razão é o seu uso completo. A
especulação fornece apenas meias verdades que só se tornam verdades completas
no domínio prático, isto é, moral. Há, indubitavelmente, uma única razão, e
entre o conhecimento e a crença, entre a ciência e a fé, não existe desacordo;
mas há uma ordem superior de verdades em que a crença se une ao conhecimento,
e a fé é uma das condições da certeza. " Esta ordem superior não se eleva
sobre as ruínas de todo o resto: domina tudo, mas supõe aquilo mesmo que ela
ultrapassa.
O homem, para chegar aí, necessita de unir todas as

forças da sua alma, e a razão, para poder pronunciar-se, tem necessidade de


uma preparação apropriada" (lb., p. 413). Esta ordem de verdades superiores é
constituída, -segundo OIlé-Laprune. por quatro verdades: a lei moral, a
liberdade, a existência de Deus, a vida futura. Trata-se de verdades que a
razão pode, de algum modo, demonstrar, mas que permanecem misteriosas e só
adquirem um sentido concreto em virtude da fé . Estas verdades demonstram,
pois, efectivamente, o carácter prático da razão, que é a tese fundamental de
Ollé-Laprune. A filosofia mesma torna-se então essencialmente prática, não no

,sentido de que nela se verifique uma subordinação extrínseca da especulação à


acção, mas no sentido de que a especulação é, ela também, prática. "À prá-

212

tica - diz OIlé-Laprune (La phil. et le temps présent, p. 261) -compete situar
no centro, por assim dizer, o objectivo vivo que se trata de considerar, o
facto vivo que cumprirá experimentar e interpretar, a verdade viva cuja luz
deverá iluminar e guiar os passos do filósofo". Devido a esta função imanente
que o aspecto prático tem na filosofia, esta nunca pode dispensar a fé. Isto
não significa que a filosofia se tome num puro estado de alma subjectivo. A fé
é, de certo, um acto pessoal, mas, do mesmo modo que o acto moral, embora
sendo pessoal, consiste em

aceitar uma lei que é independente da pessoa ou


superior à pessoa; assim, o acto de fé se dirige a um objecto que não é criado
pela fé. A filosofia está sujeita às regras que sustentam e dominam a vida, e
extrai a sua virtude e o seu valor do que dá valor à vida, isto é, do objecto
vivo e vivificante que a vida tem o destino e a honra de estimar, amar e

realizar até onde é possível como deve (Ib., p. 347).

Ollé-Laprune utiliza estas teses para fazer a apologia do cristianismo


católico, que contrapõe como

doutrina de esperança ao carácter triste e terrífico do cristianismo


protestante (Le prix de la vie, p. 355). A vontade humana é insuficiente mas
não impotente e a graça divina sustenta-a e reforça-a, levando-a à salvação.
Ollé-Laprune manifesta deste modo pela primeira vez o traço mais saliente da
filosofia da acção: o reconhecimento da função essencial e dominante que a
vontade exerce no seio mesmo da mais abstracta especulação racional. Esta tese
é o ponto de partida da obra de Blondel.

213

§ 689. BLONDEL

Maurício Blondel (1861-1949) publicou em 1893) o escrito que continua a ser a


sua melhor obra: A acção, ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência da
prática; a esta obra seguiram-se uma Carta sobre as exigências do pensamento
contemporâneo em matéria de apologética (1896) e História e dogma (1904).
Durante estes anos, Blondel colaborou, com o pseudónimo de Bernard. de Sailly,
nos "Anais de filosofia cristã", de Laberthonnière, que foi o órgão do
movimento modernista. Quando este movimento foi condenado pela Igreja na
encíclica Pascendi, de
8 de Setembro de 1907, Blondel encerrou-se num discreto silêncio e nos anos
seguintes publicou apenas artigos e ensaios de esclarecimento sobre a sua
filosofia. Só em 1934 publicou outra vasta obra em dois volumes intitulada O
pensamento, à qual se seguiram, em 1935, O ser e os seres e, em 1936-37, uma

reedição em dois volumes de A acção. A sua última obra intitula-se A filosofia


e o espírito cristão (em três volumes, tendo os dois primeiros aparecido em

1944 e em 1946). As obras de Blondel são todas extremamente prolixas e


dominadas por um explícito intuito apologético que torna em muitos pontos
incerta e oscilante a filosofia do autor. Cada uma delas tem a pretensão de
estabelecer uma reconstrução total, necessária e exaustiva de toda a realidade
finita e humana, até àquele limite em que a realidade finita e humana encontra
o seu complemento na realidade sobrenatural e transcendente.

214

A Acção é uma tentativa de reconstruir a realidade total em todos os seus


graus tomando como base um único motivo dialéctico; mas, ao contrário de
Hegel, Blondel considera que a dialéctica real é a da vontade, não a da razão.
A mola real do desenvolvimento não é a contradição, mas o contraste entre a
vontade que quer e o seu resultado efectivo. entre o acto do querer e a sua
realização. Este contraste constitui a insatisfação perene da vontade e a mola
incessante da acção. "Os termos do problema -diz Blondel (L'action, 1893, p.
X) - são nitidamente opostos. De um lado, tudo o que domina e oprime a
vontade; do outro, a vontade de dominar tudo ou de poder ratificar tudo; visto
que não há ser onde existe apenas constrição". A filosofia da acção parte
deste conflito, mostra as soluções parciais que alcança pouco a pouco, o seu
incessante ressurgir e o seu

definitivo apaziguamento no sobrenatural. Mas assim entendida, a filosofia da


acção não pode ter por objecto a ideia da acção: deve, plo contrário, colocar-
se no próprio coração da acção efectiva. A verdadeira ciência é, de facto, a
que não recebe nada do exterior, mas em que se capta o que nos faz ser; só com
esta condição, de facto, a ciência adquire a

infalível segurança das premissas e a necessidade rigorosa das conclusões


(1b., p. 101).

Conformemente a estes pontos basilares, a acção é concebida por Blondel como


um "iniciativa a priori", que cria, por si mesma as condiÇões e os limites
pelos quais aparece determinada a posteriori. "A acção voluntária provoca, de
algum mOdo, a resposta e os ensinamentos do exterior, e estes ensina-

215

mentos, que se impõem à vontade, estão, no entanto, implícitos na própria


vontade" (L'action, p. 217). Deste ponto de vista, o mundo exterior e o
próprio corpo do homem são manifestações ou realizações da sua vontade: de uma
vontade que recebe, sob a

forma de constrições e de Emites, os próprios produtos do seu acto. A


consciência do esforço orgânico, a fadiga do trabalho, as dificuldades ou os
reveses

dolorosos da acção, devidos à matéria ou à natureza, derivam todos da


"necessidade de expansão de uma

vontade dividida e contrastada em si mesma" (1b., p. 163). A acção forja o


corpo e a alma do indivíduo; mas, além disso, abre o indivíduo aos outros
indivíduos, criando a sociabilidade e, ao mesmo tempo, subordinando-se a ela e
procurando realizar através dela uma unidade efectiva, uma comunidade de
pensamentos, de vida e de operações entre os diferentes indivíduos. Este
movimento de expansão social da vontade detém-se em três termos progressivos
que são a família, a pátria e a humanidade; mas depois prossegue na vida
moral, na qual se produz, ainda e sempre, o contraste entre a vontade e a sua
realização, entre o dever e o facto. Perante a necessidade de adequar a acção
à vontade humana surgem as

superstições, isto é, as religiões inferiores; a necessidade é autêntica mas a


sua satisfação por esta forma é ilusória.

A acção chega assim ao seu último contraste. Não pode ficar satisfeita com o
que realizou, o homem não pode querer o que já quis, se o que quis se
identifica com as suas realizações no mundo finito. É necessário, por isso,
que de algum modo o homem

216

BLONDEL

possa querer querer ((Ib., p. 338), isto é, alcançar um termo em que a vontade
e a sua realização se
adequem perfeitamente. Para que aquele "esboço de ser" que existe no fundo da
vontade humana se complete e tome forma, é mister que o homem renuncie a si
mesmo e se transcenda. "Querer tudo o que nós queremos na sinceridade plena do
cora-

ção é colocar em nós o ser e a acção de Deus" (1b., p. 491). A acção deve
assim passar da ordem natural à ordem sobrenatural e afirmar resolutamente
esta última. A palavra que diz sim perante o sobrenatural é, ela mesma, uma
acção. Este método apologético, que consiste em atribuir à natureza finita do
homem a exigência necessária do infinito e de Deus, foi denominado por Blondel
método da imanência e

defendido na Carta sobre as exigências do pensamento contemporâneo em matéria


de apologética (1896). O liame necessário entre o homem e Deus não implica,
contudo, uma continuidade real entre
* natural e o sobrenatural, mas significa apenas que
* progresso da vontade e da acção, obrigando a reconhecer a insuficiência da
ordem natural, confere ao homem a capacidade, não de o produzir ou definir,
mas de o reconhecer e o receber. Se a nossa natureza não se encontra à vontade
no sobrenatural, o

sobrenatural está à vontade na nossa natureza (Lettre, etc., p. 39). A


insuficiência da ordem natural é também a insuficiência da história: a conexão
dos factos não explica o carácter sobrenatural do cristianismo, mas exige-o
como seu complemento e justificação (História e dogma, 1904).

217

O pressuposto desta primeira fase da filosofia de Blondel é que só a acção


pode fornecer a chave do que o homem é e deve ser e, ao mesmo tempo, o pode
levar a compreender a sua natureza finita e a sua exigência de infinito.
"Trata-se do homem integral -

dizia então Blondel (L'action, p. XXIII) - não é, portanto, apenas no


pensamento que se deve procurá-lo. É necessário transferir para a acção o
centro da filosofia, porque é nela que se encontra também o centro da vida". A
acção é, na obra de 1893, a única realidade concreta do homem e, por isso,
inclui em si tanto o seu ser como o seu pensamento. Ao invés, nas obras que
Blondel publicou a partir de 1934, esse pressuposto é abandonado e o ser, o
pensamento e a acção são considerados como três aspectos, que, embora conexos,
são diversos e independentes da realidade cósmica, humana e divina. Para cada
um destes três aspectos, Blondel refaz o esquema de que se valera em A acção,
isto é, passa a descrever o desenvolvimento da realidade natural como o efeito
de um contraste ou de uma deficiência que ela necessariamente implica, para
demonstrar a necessidade de um complemento desse desenvolvimento mediante o
recurso à realidade sobrenatural. Deste modo, o esquema especulativo da
primeira obra permanece idêntico, sendo simplesmente multiplicado; e a perda
de vigor e de força que daí resulta, supre-a Blondel com a verbosidade da sua
exposição.

Na sua obra La Pensée (1934), a mola real do desenvolvimento reside no


contraste entre o pensamento noético,,que é o aspecto cósmico do pensamento e
constitui a sua unidade, e o pensamento

218
pneumático, que "introduz por toda a parte a diversidade, a singularidade, os
vínculos parciais, os centros de reacção, as perspectivas diferenciadas e
concorrentes" (Pensée, 1, p. 275). O pensamento noético, é o que constitui o
mundo físico e o mundo orgânico, ao passo que a dualidade de pensamento
noético e

pensamento pneumático é a característica do pensamento reflexo e constitui o


seu poder de liberdade e de escolha. O pensamento reflexo não chega, em

nenhuma das suas fases, a conciliar o aspecto noético com o aspecto


pneumático, ou seja, a unidade e a multiplicidade, a imutabilidade e o devir.
A sua incompletude revela-se, enfim, como uma impossibilidade de ser
completado; e tal impossibilidade natural exige necessariamente um
completamento sobrenatural. Analogamente O ser e os seres (1935) parte do
reconhecimento de uma "antinomia ontológica" que é a mola real do
desenvolvimento dos seres finitos: por um lado, a antinomia entre "a
certeza espontânea e confusa de uma presença, de um fundo sólido, de uma
subsistência que funda todo o conhecimento, toda a consciência, sem se esgotar
nela"-, por outro lado, "um sentimento, se não de ausência, pelo menos de um
mistério que, embora não nos faça duvidar da realidade profunda, faz dela um

objecto, não de conhecimento definido, mas de investigação interminável"


(L'Être, p. 67). Esta antinomia encontra-se em todos os graus do ser,
incluindo a

pessoa humana, que, apesar da sua unidade, é mais um dever-ser do que um ser.
E esta antinomia mantém-se na comunhão dos seres espirituais que tendem à
unidade perfeita, sem a poder alcançar. De modo

219

que a única satisfação possível daquele desejo a que Blondel chama desiderium
naturale et inefficax ad infinitum é a de nos reconhecermos na unidade
transcendental de Deus. Finalmente, na nova edição de L'action (1936-37),
Blondel repassa a trama da sua primeira obra, atenuando ou negando o carácter
preeminente ou exclusivo que nela atribuía à acção. A última obra A filosofia
e o espírito cristão (1944-46), tende a justificar o plano providencial do
mundo pela liberdade que deixa aos homens e pelos riscos e recursos que lhes
proporciona. Mas o interesse filosófico desta obra é quase nulo.

§ 690. O MODERNISMO

O abade Luciano Laberthonnière (1860-1932), um dos Padres do Oratório é o


maior representante do chamado modernismo, uma tentativa de reforma católica
que foi condenada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi, de 8 de Setembro de
1907. Laberthonnière foi o director dos "Anais de filosofia cristã" (que foram
editados de 1905 a 1913), e quase todos os seus escritos foram publicados
neste periódico. Os mais notáveis foram recolhidos nos Ensaios de filosofia
religiosa (1903); merece ser citado também O realismo cristão e o idealismo
grego (1904), em que Laberthonnière contrapõe à filosofia grega que vê em Deus
uma ideia suprema e o arquétipo da natureza, o cristianismo que vê em Deus a
acção suprema, e uma acção imanente no espírito do homem. Em seguida,
Laberthonnière publicou o ensaio Sobre a

220

via do catolicismo (1912) e em 1923 reeditava A teoria da educação Oá incluída


nos Ensaios). Postumamente, foram publicados outros escritos que constituem
esclarecimentos ou desenvolvimentos das suas ideias fundamentais (Estudos
sobre Descartes, 1935, Estudos de filosofia cartesiana e primeiros escritos
filosóficos, 1937; Ensaios de uma filosofia personalisia, 1942; Crítica do
laicismo, 1948).

O pressuposto de que parte Laberthonnière é o de que uma verdade qualquer só


se toma nossa na medida em que nos esforçamos por criá-la em nós próprios.
Este pressuposto é a base da doutrina que do ponto de vista filosófico, ele
chama dogmatismo moral e, do ponto de vista religioso, método da imanência.
Deste ponto de vista, a filosofia não é uma ciência, mas sim o esforço
consciente e reflexo que o espírito humano desenvolve para conhecer as razões
últimas e o verdadeiro sentido das coisas (Essais, p. 5). A filosofia é mais
acção do que conhecimento; e, na realidade, a própria distinção entre conhecer
e agir é viciosa. Uma vez adquirido um conhecimento, pode-se decerto
considerá-lo independente da acção, como uma coisa acabada e perfeita; mas,
considerando-a assim, faz-se dela uma abstracção (1b., p.
138). Estas teses são propostas por Laberthonnière unicamente com vista à vida
religiosa. A verdade sobrenatural, a verdade da revelação, não possui valor
algum para o homem, se ele não a recriar por sua conta. O sobrenatural é a
"união íntima de Deus com o homem, o prolongamento da vida divina na vida
humana" (1b., p. XXVI) O homem só existe nesta união, enquanto vê em Deus o
seu

221

princípio e o seu fim. Este reconhecimento constitui a busca e o encontro de


Deus. Deus continua a ser, decerto, o princípio do homem, mesmo que ele o não
reconheça como seu fim; mas neste caso, suporta-o apenas. Reconhecendo-o como
fim, aceita-o e quere-o; e deste modo aceita e quer também os outros seres
espirituais que dependem de Deus. De modo que este acto é "uma ratificação do
acto criador, uma

resposta de amor ao amor de Deus". A ordem sobrenatural revela-se e afirma-se,


por conseguinte, na própria intimidade da consciência humana de tal modo que
"se o homem deseja possuir Deus e ser Deus, Deus deu-se-lhe já. Eis como na
natureza mesma se

podem encontrar e se encontram as exigências do sobrenatural" (1b., p. 171).


Indubitavelmente, estas exigências pertencem não à natureza como tal, mas à
natureza penetrada e invadida pela graça; e, todavia, a graça é inseparável da
acção humana e, portanto, toda a acção humana "postula o sobrenatural". Pode-
se perguntar que função tem a Igreja deste ponto de vista que torna intrínseca
à vida e à acção do homem a vida e a acção do sobrenatural. A esta pergunta
responde o ensaio Teoria da educação, em que educação e catolicismo se
identificam, sendo o catolicismo considerado como "uma organização social que,
encarando a humanidade tal como ela é na sua miséria original, tem por objecto
libertá-la e

salvá-la" (Ib., p. 262). Esta organização social é

também, indubitavelmente, o resultado de -uma especial intervenção de Deus,


mas não é arbitrária nem

é "algo de supérfluo imposto à humanidade por um capricho superior".

222
No campo da exegese bíblica, o modernismo encontrou o seu melhor representante
em Alfredo Loisy (1857-1940), que foi durante muitos anos professor de
História da Religião no Colégio de França. As obras mais conhecidas de Loisy
são: O Evangelho

e a Igreja (1902) e Em torno de um pequeno livro (1903), às quais pertencem


muitas das proposições condenadas pelo papa Pio X na encíclica Pascendi
dominici gregis de 8 de Setembro de 1907. Loisy respondeu à condenação com um
escrito intitulado Simples reflexões sobre o decreto do Santo Ofício
"Lamentabili sane exitu" e sobre a encíclica "Pascendi dominici gregis"
(1908). São também notáveis as obras de crítica bíblica: A religião de Israel
(1901);
O quarto Evangelho (1903); Os evangelhos sinópticos (1907-08); Ensaio
histórico sobre o sacrifício (1920). Noutros livros, Loisy desenvolveu e
consolidou a sua concepção filosófica: A religião (1917); A disciplina
intelectual (1919); A moral humana (1923). Loisy concebeu e praticou a exegese
bíblica como uma exegese puramente crítica e histórica, segundo a qual a
Bíblia cifra no documento humano de um período da história humana; e
distingue, por conseguinte, esta forma de exegese da "teológica e pastoral".
que pretende tirar da bíblia uma lição apropriada às necessidades actuais dos
crentes. Admitiu, assim, que alguns escritos do Velho Testamento (por ex. o
Pentateuco) foram pouco a pouco enriquecidos e transformados por várias
gerações sucessivas, e que os próprios evangelhos sinópticos sofreram esta
transformação gradual que, enriquecendo-os com um valor religioso mais
intenso, os afastou cada vez mais da

223

verdade histórica. Todavia, contra a crítica protestante, e especialmente a de


A. Harnack (A essência do cristianismo, 1900), afirmou que a essência do
cristianismo não pode encontrar-se só no Evangelho e

não consiste na relação directa e privada que ele pode estabelecer entre a
alma individual e Deus, senão que se realiza na tradição que toma corpo e

substância na Igreja. Este é, certamente, o ponto de vista católico.

Mas, além disso, Loisy pretende, de acordo com o

método da imanência de Blondel e Laberthonnière, que o essencial da tradição


não reside nas fórmulas dogmáticas mas na imediata experiência religiosa que
encontra naquelas fórmulas a sua expressão imperfeita e relativa. Deste ponto
de vista, o dogma toma-se num símbolo e perde o seu valor absoluto. "Os
símbolos e as definições dogmáticas estão em relação com o estado geral dos
conhecimentos humanos do tempo e do ambiente em que se constituíram. Donde se
segue que uma mutação considerável no

estado da ciência pode tomar necessária uma nova

interpretação das fórmulas antigas que, concebidas noutra atmosfera


intelectual, não bastam para dizer tudo o que seria necessário ou não o dizem
como conviria" (L'évangile et l'église, p. 208). Loisy é, por isso, levado a
ver o essencial da vida religiosa na

experiência moral; e os seus últimos escritos defendem a estrita conexão entre


moralidade e religião. A religião é concebida como o espírito que anima a
moral, e a moral como a prática da religião. "É a

religião que comunica às regras da moralidade o carácter sagrado da obrigação


e que incita a observá-las

224

na qualidade de deveres; e é através da observância do dever que a religião é


cumprida" (La réligion, p. 69). Estas últimas especulações de Loisy são
significativas no que concerne ao significado do modernismo: procurando
deslocar o eixo da vida religiosa do intelecto para a vontade e para a acção,
tende a

reduzi-Ia à experiência moral e a diminuir ou a desprezar o seu carácter


específico.

Ao modernismo e à filosofia da acção está vinculada a obra do mais importante


continuador de Bergson, Eduardo Le Roy (1870-1954), sucessor de Bergson no
Colégio de França. As obras de Le Roy prestam grande atenção aos problemas
gnoseológicos e metafísicos; mas o interesse que as domina é religioso, e
religioso no sentido em que o é o catolicismo modernista. Eis as suas
principais obras: Ciência e

filosofia 1899-1900); A ciência positiva e as filosofias da liberdade (1900);


Um novo positivismo (1901) dedicado à filosofia de Bergson: Dogma e crítica
(1907); A exigência idealista e o fenómeno da evolução (1927)-, As origens
humanas e a evolução da inteligência (1928); O pensamento intuitivo (2 vol.,
1929-30); O problema de Deus (1929). Le Roy é um

dos críticos mais radicais da ciência contemporânea; faz seus e leva às suas
extremas consequências os temas fundamentais da crítica da ciência, tal como
esta se apresenta em Mach, Duhem, Poincaré e noutros. Mas a crítica da ciência
não é para ele um fim em si mesma, isto é, não tem como finalidade restringir
o saber científico àqueles limites que lhe garantem eficácia e validez, mas
sim o de desvalorizar

225

esse saber em benefício do pensamento intuitivo e

da fé religiosa que ele pretende fundar sobre este.

A crítica da ciência é para ele, portanto, uma desvalorização total do


pensamento discursivo. Le Roy crê que o mérito de Bergson foi o de ter
afirmado a subordinação da ideia à realidade, e da realidade à acção e, por
conseguinte, o ter visto na acção o princípio e o fim das coisas e na
inteligência apenas uma luz que nos guia, e não já uma força que se baste a si
mesma. A visão comum do mundo tem os sinais da nossa intervenção elaboradora,
mediante a qual introduzimos na realidade percebida arranjos e simplificações;
de modo que nas coisas se reflecte principalmente a nossa própria actividade.
O pensamento discursivo substitui o dado primitivo, absolutamente heterogéneo,
fluído, contínuo e móvel, por uma construção ordenada em que as coisas se
recortam com nítidos contornos no tempo e no espaço. Trata-se de uma
construção que o

espírito humano produziu com vista às necessidades da acção, mas que é fruto
de abstracções e simplificações arbitrárias. E ainda mais arbitrárias são as
abstracções e as simplificações da ciência, que constrói, por si mesma, o
chamado "facto científico". As pretensas confirmações da experiência são, na
realidade, círculos viciosos. Um método, um aparelho, só são considerados bons
quando nos dão aqueles resultados que nós próprios arbitrariamente decretámos.
O rigor e a necessidade dos resultados científicos só existem na linguagem que
a ciência emprega e são por isso fruto de uma pura convenção. Todos os corpos
pesados cairão sempre segundo as leis de

226

Galileu, porque estas leis constituem a definição da queda livre. A definição


da unidade de tempo supõe a noção de movimento uniforme, e não se pode
constituir esta noção se não se possui já uma unidade de tempo. Assente nestes
círculos viciosos, a ciência

não tem valor teorético, mas procura e encontra apenas constantes úteis; e
encontra-as porque a acção humana não comporta uma precisão absoluta, mas

exige só que a realidade seja aproximadamente representada, nas suas relações


connosco, por um sistema de constantes simbólicas chamadas leis. Assim
entendida, a ciência é um produto da liberdade do espírito, tal como um
produto da liberdade do espirito é o mundo rígido, morto e necessário para o
qual a ciência se dirige; mas a essência mesma desta liberdade escapa à
ciência. Encontrá-la, vivê-Ia até ao

fundo e fazê-la progredir, tal é a finalidade da filosofia, que, como tal, é


sempre espiritualista.

A filosofia deve tentar explicar a evolução que fez emergir da matéria a vida,
da vida o homem, e

que designa a marcha para além do homem, para uma realidade superior. Le Roy
descreve, seguindo as pisadas de Bergson, as etapas principais desta evolução
nas suas obras principais: A exigência idealista e o fenómeno da evolução, As
origens humanas. e a

evolução da inteligência; o O pensamento intuitivo. A evolução como movimento


incessante, continuidade, progresso, explica-se apenas admitindo que o

pensamento é o ser mesmo, o princípio de toda a

posição, o estofo de toda a realidade. Para entendei a vida, é necessário


admitir que os indivíduos vivos

227

são manifestações de uma Biosfera que circunda a

Terra e que tem com os indivíduos a mesma relação que o pensamento tem com as
ideias que sustenta e vivifica. Com o aparecimento do homem sobre a Terra,
começa o reino da Noosfera, o reino do progresso espiritual que o homem
realiza em todos os campos e que o cristianismo orienta para o advento de um
novo grau, que será a fase suprema da génese vital. Este novo grau deverá
realizar-se através da acção do pensamento intuitivo, a que Le Roy atribui o
poder da invenção criadora.

Também é necessário, para alcançar a verdade religiosa, empregar o pensamento


intuitivo ou, como Le Roy diz, o pensamento-acção, isto é, a imediata
experiência espiritual. As demonstrações habituais da existência de Deus são
inoperantes. O mundo físico não tem realidade; e as suas leis têm, decerto, um
criador, mas este criador é o próprio homem, que as estabelece
convencionalmente mediante os processos do seu pensamento discursivo. Deus,
como qualquer outra realidade, não se pode demonstrar ou deduzir, mas apenas
intuir; e a intuição de Deus é a própria experiência moral. "A afirmação de
Deus - diz Le Roy (Problème de Dieu, p. 105), é a afirmação da realidade
moral, como realidade autónoma, independente, irredutível, e também, talvez,
como realidade primeira". A afirmação de Deus consiste na afirmação do primado
da realidade moral como espírito do nosso espírito, e neste sentido viver
significa crer em Deus; e conhecer Deus, tomar consciência do que está
implícito na acto de viver. Deste ponto de vista, Le Roy declara igualmente
falsas as concepções

228

da imanência e da transcendência de Deus. Decerto, nós só conhecemos Deus em


nós mesmos no mundo, e nunca em si mesmo; e neste sentido, Deus é imanente.
Mas Deus revela-se no mundo e em nós "mediante um apelo de transcendência,
mediante um

impulso para uma expansão ilimitada, mediante uma

exigência de realização indefinidamente progressiva que ultrapassa toda a


realidade finita"; e neste sentido é transcendente. A transcendência de Deus
é, na realidade, para nós "uma vocação de transcendência"; e o verdadeiro
problema não é o da sua transcendência, mas antes o da queda pela qual o homem
passa a estar de algum modo separado dele (1b., p. 284). Deste ponto de vista,
a personalidade de Deus tem um valor puramente pragmático-, significa que nós
nos comportámos em relação a Deus como perante uma pessoa, que buscamos nele a
nossa personalidade e que, reencontrando deste modo esta personalidade,
alcançamos a certeza de que nos encontramos na via da verdade (Ib., p. 280). O
dogma tem também um valor pragmático. Segundo Le Roy, é a fórmula de uma regra
de conduta prática; nisso consiste o seu significado positivo. Este
significado não exclui, porém, a sua relação com o pensamento: em primeiro
lugar, porque existem deveres que se

referem também à acção do pensamento e, em segundo lugar, porque o próprio


dogma afirma implicitamente que a realidade contém, sob esta ou aquela forma,
tudo o que justifica como razoável e salutar a conduta prescrita ffiogme et
critique, p. 25). Assim, o dogma da Ressurreição de Jesus visa a prescrever

229

em relação a Jesus a atitude e a conduta que seriam requeridas frente a um


contemporâneo (1b., p. 255).

A filosofia de Le Roy é, certamente, a mais notável manifestação do modernismo


católico, mas também ela acaba de reduzir a experiência religiosa à moral e
por ver nos objectivos da religião o símbolo das exigências morais. O seu
valor especulativo continua dependente do princípio bergsoniano do pensamento
intuitivo, isto é, de um pensamento que tem a imediatez, e por conseguinte, a
certeza absoluta, da vida vivida. Escapa a estes filósofos que a vida vivida
(a qual é tão pouco imediata que se entrelaça e se vincula em todos os seus
momentos ao pensamento discursivo e de tal modo que não pode, passar sem este,
sobretudo para se manter a si mesma, não tem nenhuma certeza e segurança, e
que é ao invés (e devido àquela mesma mobilidade tão exaltada pelos
bergsonianos) extremamente incerta, instável e pouco segura. O pensamento
imediato é outra forma do mito da estabilidade e da segurança do destino a que
o homem-filósofo permanece ainda tenazmente ligado em grande parte da
filosofia contemporânea.

§ 691. MODERNISMO: SOREL

A filosofia da acção tem, em geral, carácter religioso; adquire, no entanto,


carácter político na obra de Georges Sorel (1847-1922), que declara inspirar-
se em Bergson. "0 ensino de Bergson - segundo afirma
- mostrou-nos que não é só a religião que ocupa as regiões da consciência
profunda; também os mitos

230

revolucionários têm as suas raízes" (Refl. sobre a violência).

Engenheiro e matemático, Sorel criticou o conceito positivista da ciência


insistindo no valor "metafísico das hipóteses científicas e na inexistência do
determinismo" (As preocupações metafísicas dos físicos modernos, 1905). Mas o
seu escrito mais famoso são as Reflexões sobre a violência, no qual, aceitando
o princípio da luta de classes, de Marx, e a negação total da sociedade
capitalista, procura fundar este princípio numa antropologia e numa filosofia
da história que são as da filosofia da acção.

Segundo Sorel, a realidade humana e histórica é devir incessante, movimento,


acção: como tal, é liberdade. Mas a liberdade só se realiza no acto de um
contraste radical, violento e total com a realidade histórica. "Quando nos
dispomos a agir-diz Sorel (Refl. sobre a violência, p. 33)-criámos já um

mundo fantástico, contraposto ao mundo histórico, e dependente da nossa


actividade: a nossa liberdade torna-se deste modo perfeitamente inteligível".
A acção livre supõe, portanto, "um mundo fantástico" que se contrapõe ao mundo
histórico com a sua negação total. E quando um mundo fantástico deste género
se torna num património de massas que se apaixonam por ele e dele extraem as
normas da sua acção, converte-se num mito social. O mito social não é um
produto do intelecto mas uma experiência da vontade. A utopia, ao invés, é um
produto intelectual e delineia um modelo com o qual se comparam as sociedades
existentes para valorizar o mal e o bem que contêm. Por isso, os mitos levam
os homens

231

a preparar-se para a destruição do que existe, ao

passo que a utopia tem como efeito dirigir os espíritos para reformas
realizáveis, que fazem em pedaços o sistema. Um mito é irrefutável porque é
idêntico às convicções de um grupo, expressas em termos de devir, e não se
pode decompor em partes no plano de unia descrição histórica. A utopia, pelo
contrário, pode-se discutir como qualquer instituição social, e

pode-se refutar. Sorel pretende deslocar o socialismo do plano da utopia para


o plano do mito, libertando o marxismo dos seus elementos utópicos e
reconduzindo-o ao princípio puro e simples da luta de classes, aberta, total e
violenta.
Tal é o sindicalismo, que Sorel opõe às diversas formas do socialismo
contemporâneo, que ele condena em bloco como acomodações, compromissos e

degenerações destituídas de valor espiritual. O único mito susceptível de


manter desperta a luta de classes e de a conduzir ao plano da guerra aberta e
heróica é o da greve geral. Este mito faz conceber a passagem do capitalismo
ao socialismo como uma catástrofe, cujo desenvolvimento escapa a qualquer
descrição (Refl. sobre a violência, p. 237). Isto tira todo o significado à
política de reformas sociais que aparecem sempre incluí das no âmbito da
sociedade burguesa e apresenta a realização do socialismo como uma obra
"grave, temível, sublime, mas, precisamente por isso, dotada de uma grande
força educativa e espiritualizadora. Pode acontecer que o mito nunca se
realize (como aconteceu, por exemplo, com

a catástrofe esperada pelos primeiros cristãos) mas isto nada diz sobre o
valor do mito, que não consiste

232

na sua concordância com o curso da realidade, mas sim na sua capacidade de


suscitar a acção negadora da realidade mesma (1b., p. 208). O mito desempenha,
por outros termos a mesma função que na ciência desempenha uma hipótese de
trabalho, a qual é sem-

pre útil e fecunda, mesmo quando os resultados a

que conduz levem a abandoná-la. "Aceitando a ideia da greve geral, embora


sabendo que é um mito, nós agimos como o físico moderno, que tem plena
confiança na sua ciência, embora sabendo que o futuro a considerará
ultrapassada" (Ib., p. 239).

Tudo isto implica a justificação da violência; não da pequena violência,


esporádica e destituída de grandeza, mas da violência que é guerra da classe
operária contra a classe burguesa. A violência, no seu verdadeiro conceito,
exclui a força que é própria da sociedade e do estado burguês. O socialismo
não tende a assenhorear-se desta força, mas a destruí-Ia com a violência e a
criar uma sociedade de homens livres. Daí o carácter moral da violência, a
qual não destrói a moral mas a transforma e a conduz ao plano do entusiasmo e
do heroísmo. "0 socialismo deve à violência os altos valores morais com os
quais traz a salvação ao mundo moderno" (lb., p. 365).

As ideias de Sorel exerceram uma notável influência nos movimentos políticos


do nosso século. O fascismo italiano e o comunismo russo extraíram dele as
suas teses características. As suas bases filosóficas são frágeis: reduzem-se
a um voluntarismo absoluto, segundo o qual a vontade humana só pode alimentar-
se e sustentar-se em virtude de mitos impossíveis.

233

A Sorel escapou-lhe o ensinamento fundamental do marxismo: a limitação e o


condicionamento que a

vontade encontra nas relações sociais que a constituem.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 687. De Newman: Collected Works, 37 vol., Londres, 1870-79.


Sobre Newman: P. THuREAu-DANGIN, La Renaissance catholique: IV. et le
mouvement "Oxford, Paris,
1899; L. FÉLixFAuRE, N., sa vie et ses oeuvres, Paris,
1901; W. BARRY, N., Londres, 1903; W. WARD, The Life of J.H. Cardinal N., 2
vol., Londres 1912; C. F. HARROLD, J.H.N., Nova Iorque, 1945; R. SENCOURT, N.,
Londres, 1948; J. A. LuTz, Kardin41 J.H.N., Zurique, 1948.

§ 688. Sobre OIlé-Laprune. BOUTROUX, Vie et oeuvres de L.O.-L., in "1@évue de


phil.", 1903; G. FoNSEGRIvE, L.O.-L., Ilhomme et le p~eur, Paris, 1912; M.
BLONDEL, L.O.-L., L'achèvement et Ilavenir de son oeuvre, Paris, 1962; R.
CRIPPA, O.-L., Brescia, 1947.

§ 689. Sobre Blondel: M. CREmER, Le problème religieux dans Ia philosophie de


ZIaction, Paris, 1912; J. DE TONQUEEDEC, Immanence, Essai sur la, doctKne de
M. B., Paris, 1913; E. CARPiTA, Educacione e religione in M.B., Florença,
1920; O. ARCUNo, La filosofia de111azione e il pragmatismo, Florença, 1942; P.
ARCHANiBAULT, Lloeuvre phil. de M.B., Paris, 1928; LEFÈVRE,
1,'itinéraire phil. de M.B., Paris, 1928; FEDERICI AIROLDI, Intrepretaziane
del problema dellIessere in M. B., Florença, 1936; E. OGGIONI, La filosofia
deZIlessere di M.B., Nápoles, 1939; H. DUMMÉRY, B. et Ia religion, Paris
1954; R. CRiPPA, Il realismo integrale di M.B., Milão:
1954; ID., Profilo della critica blondeliana, Milão, 1962.

§ 690. Sobre o modernismo: G. PREZZOLINI, Che coslè il modernismo, Milão,


1908; ID., II cattolicesimo

234

rosso Nápoles, 1908; R. MUImI, La política clericale e Ia democracia, Roma,


1908; ID., I problerni dellIltalia contemporanea, Roma, 1908; ID., Della
religione, della Chiesa e dello Stato, Milão, 3.910; ID., 11 Cristianesimo e
Ia religione di domani, Roma, 1913; E. BU0NAlUTI, Il programa dei modernisti,
Turim, 1908; ID., Lettere de un prete modernista, Roma, 1908; R. MURRI, La
filosofia nuova e Venciclica contro il modernismo, Roma,
1908; G. GENTILE, II modernismo e i rapporti fra religione e filosofia, Bari,
1909; G. SOREL, La religioni dIoggi, Lanciano, 1911; E. ROSA, Il giuramento
contra gli errori del modernismo, Roma, 1911; J. SCHNITZER, Der Katholiscke
Moderni&mus, in "Zeitschrift fur PoIitik"@ 1912, p. 1-129; A. HOUTIN, Histoire
du modernisme catholique, Paris, 1913; R. BERTHELOT, Un romantisme utilitaire,
Le pragmatisme religieux chez W. James et chez les catholiques modernistes,
Paris, 1922; E. BUONAIUTI, Histoire du modernisme catholique, Paris,
1927; J. RIVIÈRE, Le modernisme dans Iléglise, Paris,
1923.

§ 691. De Sorel, as Reflexões sobre a violência, trad. ital., A. Sarno, com


prefácio de B. CROCE, Bari,
1926; Escritos políticos (Reflexões sobre a violência, As ilusões do
progresso, A decomposiçdo do marxismo) ao cuidado de R. Vivarelli, Turim, 1963
(citado no texto). A religi" de hoje, trad. Lanzillo, Lanciano,
1909, é urna colectânea de ensaios criticos sobre algumas formas
contemporâneas de filosofia, da religião. Sorel é tainbém autor de uni estudo
intitulado Le sistème historique de Renan, Paris, 1906.

Sobre Sorel: G. SANTONASTASO, G.S., Bari, 1932; P. ANGEL, Essais sur G.S.,
Paris, 1936; J. H. MEISEL, The Genesis of G.S., Ann Arbor, 1951; R. HuMPRHEY,
G.S., Prophet Without Honor, Harwari:@ 1951; G. GoRiELY, Le plural~ dramatique
de G.S., Paris, 1962.

235

íNDICE

XIII - O POSITIVISMO EVOLUCIONISTA ... 7

§ 647. O pressuposto romântico ... ... 7 § 648. Hamilton e


Mansel ... ... ... 8 § 649. A teoria da
evolução ... ... ... 13 § 650. Spencer: o
Incognoscível ... ... 20 § 651. Spencer: a Teoria da Evolução
26 § 652. Spencer: Biologia e Psicologia ... 29 § 653. Spencer:
Sociologia e ]Êtica ... 32 § 654. Desenvolvimento ;do
positivismo 38 § 655. Cláudio Bernard ... ... ... ... 41 §
656. Taine e Renan. ... ... ... ... 44 § 657. A Sociologia
... ... .. . ... ... 50 § 658. Ardigó ... ... ... ... ... ...
52 § 659. O evolucionismo materialismo
(Monismo) ... ... ... ... ... 59 § 660. O evolucionismo
espiritualistá ... 67

Nota bibliográfica ... ... ... ... 83

XIII - NIETZSCHE ... ... ... ... ... ... ... 89

§ 661. A figura de Nieitzsche ... ... ... 89 § 662. Vida e Obra


... ... ... ... ... 90 § 663. Dioniso ou a aceitação da vida
95

237

§ 664. A tranãmutação dos valores ... 98 § 665. A


Arte ... ... ... ... ... ... 102 § 666. O eterno retomo ...
... ... ... 106 § 667. "Amor-Fati> ... ... ... ... ... 108
§ 668. O super-homem ... ... ... ... 111 § 669. A
personalidade impossível ... 113

Nota bibliográfica ... ... ... ... 117

SÉTIMA PARTE

A FILOSOFIA NO SÉCULO XIX E XX

O ESPIRITUALISMO ... ... ... ... 123

§670. Natureza e caracterlgticas do es-

piritualismo ... ... ... ... ... 123 §671. O espiritualismo


alemão: M.

Fichte ... ... ... ... ... ... 1.27 §672.


Lotze ... ... ... ... ... ... ... 129 §673.
Spir ... ... ... ... ... ... ... 133 §674. E. Harimaim. Eucken
... ... ... 138 § 675. O espiritualismo [em França.

Lequier ... ... . ... ... 142


238

§ 676- Amiel. Secrétan ... ... ... ... 146 § 677. Ravaisson
... ... ... ... ... 149 § 678. Lachelier. Jaurè5 ... ... ... ...
1.52 § 679. Boutroux ... ... ... ... ... ... 155 § 680. Hamelin
... ... ... ... ... ... 160 § 681, O espiritualismo oem
Inglaterra 165 § 682. O espiritualismo em Itália. Mar-

tinetti ... ... ... ... ... ... 172 § 683. Varisco. Carabellese
... ... ... 177 § 684. Espiritualismo existencialista ... 184 §
685, O personalismo ... ... ... ... 194

Nota bibliográfica ... ... ... ... 198

II-A FILOSOFIA DA ACÇÃO ... ... ... 205

§ 686. Caracteristicm da filosofia da

acção ... ... ... ... ... ... ... 205 § 687.
Newman ... ... ... ... ... ... 206 § 688. OIlé-
Laprune ... ... ... ... ... 210 § 689.
Blondel ... ... ... ... ... ... 214 § 690. O
modernismo ... ... ... ... 220 § 691. Sorel ... ... ... ...
... ... ... 230

Nota bibliográfica ... ... ... ... 234

239

Composto e impresso

para a

EDITORIAL PRESENÇA

na

Tipografia Nunes

Porto

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