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Colonialismo, Modernidade

I
e Política I Partha Chatterjee
f
Partha Chatterjee (...) faz parte da geração que tem a mesma idade que a União Indiana
independente. (...) nasceu a 5 de Novembro de 1947, no seio de uma família burguesa è
brâmane de Calcutá, e foi criado na província de Bengala Ocidental, sempre em redor da
mesma cidade de Calcutá. Recebeu uma sólida educação em letras (sobretudo em literatura
bengali) e em ciências ainda antes de concluir a licenciatura em Ciências Políticas no
prestigiado Presidency College da Universidade de Calcutá em 1967.

A figura de Chatterjee ganhou força e importância na historiografia indiana nos inícios dos
anos de 1980 por duas razões. Em primeiro lugar, com os dois artigos fundamentais que
publicou nos dois primeiros volumes dos Subaltern Studies (...), destacou-se como o mais
teórico do grupo (...). Ao mesmo tempo, a recensão crítica que publicou de uma biografia de
Nehru (...) transformou-se em cause célèbre da época, dadas as tentativas oficiais para
censurar a sua publicação. (...). Ao mesmo tempo, os seus escritos acabaram por atinçjir um
público bem mais vasto graças à publicação em 1986 de sua obra Nationalist Thought and
the Colonial World, livro que desempenhou um papel central nos debates sobre o j
nacionalismo naquela época, tal como a obra Imagined Communities, de Benedict Anderson
A partir deste momento, Chatterjee pertence no olhar de alguns muito mais ao campo dos
debates internacionais do que à historiografia indiana propriamente dita. (...) Chatterjee
chegou a ser um dos nomes mais citados na historiografia sobre o nacionalismo em geral e
os seus escritos coinoçnmm a aparecer em centenas de cursos universitários nos Estâti' >h
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A realidade 6 que existem vários Partha Chatterjees. Quem conhece só a obra sobre o
nacionalismo ignora por vezes totalmente o número impressionante de ensaios que ele
dedicou à política atual, tanto na sua província natal de Bengala, como sobre a India em
geral. (...) A partir dessas obras, tenta desenvolver duas ideias centrais que aparecem nos
seus escritos recentes e também nos ensaios publicados nesta coletânea. A primeira é a
noção de que a 'sociedade civil' não existe para a maior parte dos indianos, e que seria
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atual situação brasileira pode ajudar ac d o c 'i ' 1 ,* 1 pensamento do autor. Seria
possível afirmar, na verdade, que a dem ocracy u . uiíiiuíiu iú i iciuna tanto para a criança da
favela como para o grande senhor da fazenda? Qual é o vocabulário apropriado para abordai
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um novo tipo de romantismo, que fatia du i„ ici,, u íii iii luso da favela um herói, para não faiai
em geral da ’grande ilusão do carnaval1, glosada por Vinícius de Moraes?

Do Prefácio de Sanjay Subrabmanyam


Coleção Leituras
© Partha Chatterjee, 2004

Universidade Federai da Bahia


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C495Chatteriee, Partha. 1947-


Colonialismo, modernidade e política / Partha Chatterjee;
tradução do inglês. Fàbio Baqueiro Figueiredo; revisão da tradução e cientifica:
Valdemir Zamparoni. -Salvador: EDUFBA, CEAO. 2004.
173p. - (Leituras)

ISBN 85-232-0314-1

i Nacionaiismc 2 Movimentos -'-ativistas íncfca. 3 Ciência


política. I. Série. II. Título.

CDU-342.71
CDD-320.54
Sumário

Prefácio 7
Quinhentos anos de medo e amor 15
Nossa modernidade 43
A nação em tempo heterogênio 67
Populações e Socidades políticas 97
A política dos governados 129
V
Prefacio

A felicidade do pobre parece


a grande ilusão do Carnaval.
Vinícius de Moraes

Partha Chatterjee é um dos “Filhos da Meia-Noite”. Não no sen­


tido preciso de ter nascido na meia-noite de 14 para 15 de Agosto de
1947, o momento em que nasceu a nação indiana, mas antes no
sentido de fazer parte da geração que tem a mesma idade que a
União Indiana independente. Será isso uma coincidência para alguém
que passou uma grande parte da sua vida acadêmica trabalhando
sobre o nacionalismo indiano? Parece-nos pouco provável. Mas, para
perceber o significado e a herança desses momentos-chave, é ne­
cessário traçar - mesmo que rapidamente - a biografia colectiva do
seu grupo, dessa “ínclita geração” de 1947. Chatterjee nasceu a 5 de
Novembro de 1947, no seio de uma família burguesa e brâmane de
Calcutá, e foi criado na província de Bengala Ocidental, sempre em
redor da mesma cidade de Calcutá. Recebeu uma sólida educação
em letras (sobretudo em literatura bengali) e em ciências ainda antes
de concluir a licenciatura em Ciências Políticas no prestigiado Presidency
College da Universidade dGC3ÍCUÍá GiTi 1967 . Os meados da década
de 1960 parecem constituir um período-chave na história intelectual
da índia moderna. A geração que ensinava nas universidades naquela
época havia sido formada durante o movimento nacionalista e anti-
britânico dos anos de 1930 e 1940. Contava duas tendências princi­
pais: a do nacionalismo liberal, mais ou menos ligada ao Partido do
Congresso que detinha o poder desde 1947; e a de um marxismo
relativamente próximo da União Soviética. Foi o marxismo indiano que
entrou em crise nos anos de 1960, por razões óbvias. Em primeiro
lugar, o Partido Comunista Indiano (CPI), estreitamente ligado aos
Soviéticos, dividiu-se em dois blocos com a emergência da nova ten­
dência do CPI(M), mais independente em relação à linha russa. Estes
dois partidos ainda existem e o CPI(M) continua hoje a ser um partido
importante, sobretudo na região de Bengala.
Todavia, o processo de maior importância para a nossa história é
a emergência de um terceiro grupo de tendência maoísta - o dito CPI
(M-L), ou Partido Comunista Indiano Marxista-Leninista - nos anos de
1960. A história deste grupo, que se afastou desde o início da sua
existência do jogo parlamentar, está ligada a uma série de outros acon­
tecimentos da época. É de toda a importância ter em atenção que o
processo de crescimento'económico na índia sofreu um golpe signifi­
cativo nos anos de 1960, sobretudo devido a uma crise agrária e a
uma série de anos de fome. O planeamento ao estilo soviético {Five-
Year Plans ou Planos Quinquenais), lançado pelo Primeiro Ministro Nehru
nos anos de 1950 como resposta global ao problema de subdesenvol­
vimento, foi então questionado. O campesinato indiano, que esperava
da independência alguma redistribuição de terras, ficou cada vez mais
impaciente. Era esse o momento certo, local e globalmente (lembramo-
nos de Paris em 1968), para lançar um movimento destinado a criar
uma nova aliança entre alunos universitários e camponeses, em nome
de uma revolução supostamente maoísta. Assim nasceu o movimen­
to conhecido na índia sob o nome de ‘naxalita’, dada a sua origem
geográfica na pequena vila de Naxalbari, no norte de Bengala.
O movimente naxalita ganhou considerável influência em cidades
como Nova Deli e Calcutá, onde alguns dos melhores alunos universi­
tários abandonaram os seus estudos para se dedicarem à “organiza-
ção dos camponeses”. Alguns rebeldes dessa geração voltaram mais
tarde para enveredarem por carreiras académicas interessantes. Ou­
tros, como Arvind Narayan Das ou Dilip Simeon, seguiram outros ca­
minhos. Outros ainda morreram em circunstâncias um tanto obscu­
ras, em “encontros” com a polícia. O Presidency College de Calcutá
nos anos de 1966 e 1967, quando Chatterjee estava a terminar a sua
licenciatura, foi sem dúvida um dos maiores centros do movimento.
Havia acaloradas discussões nos cafés, como o celebrado café de
College Street, no norte da cidade. É de supor que também o autor
tenha absorvido estas influências na época, mas, por diversas razões,
decidiu-se pelo estreito caminho da academia. Em vez de ir para a
Inglaterra, o grande centro de todos os indianos da “esquerda tradici­
onal” da época, Chatterjee tomou a curiosa decisão de rumar aos
Estados Unidos, onde começou a sua tese de doutoramento em
Rochester, no Estado de Nova Iorque. Aluno brilhante, acabou a tese
em 1972, quando tinha apenas 25 anos, e regressou logo à índia,
para ensinar no Presidency College, na Universidade de Amritsar, e, a
partir de 1973, no Centro de Estudos de Ciências Sociais (CSSSC) de
Calcutá. Quanto à tese de doutoramento, uma obra de ciências polí­
ticas bem norte-americana, foi publicada em 1975 sob o título Arms,
Alliances and Stability, Entre as suas obras, é sem dúvida a menos
citada actualmente.
O CSSSC nos anos de 1970 era um novo centro, apoiado em
parte pelo governo indiano, mas de tendência nitidamente marxista.
Apesar disso, existia uma divisão clara no seu seio, entre os “velhos”
marxistas e a nova tendência - mais marcada pelo movimento naxalita
acima referido. Foi dentro do segundo grupo que se criou a pouco e
pouco um núcleo sob a influência de uma figura carismática que pare­
cia o pai de todos os outros (e ironicamente apelidado de ‘o Papa’):
Ranajit Guha. Guha já tinha tido uma carreira complicada, com rela­
ções difíceis com todos os “grandes” do marxismo indiano nos anos
de 1950 e 1960. Muito mais que os outros, tinha viajado pela Europa,
e bebido a influência do estruturalismo francês, sobretudo quanto ao
estudo da Revolução Francesa, do Grande Medo e temas afins. No
CSSSC dos anos de 1970, emergiu um grupo sob a influência de
Guha: Dipesh Chakrabarty, que optou por trabalhar sobre a classe
operária indiana; Gyan Pandey, que tinha já uma importante tese so­
bre os camponeses da índia do Norte; Shahid Amin, outro historiador
do campesinato; Gautam Bhadra, que se interessava pela história da
transição do Império Mogol para o Império Britânico; e Partha
Chatterjee, entre eles considerado o teórico, devido à sua formação
mais avançada em teoria e filosofia política.
Todavia, é de todo o interesse sublinhar que, já nesta época,
Chatterjee procurava assumir-se mais como historiador do que como
politólogo. Segundo uma breve nota autobiográfica que redigiu há
poucos anos, após o seu regresso dos Estados Unidos teria tido oca­
sião de viajar intensamente pela zona rural de Bengala com o intuito
de fazer pesquisas acerca da situação do campesinato. Assim, ao
mesmo tempo que escrevia uma série de artigos teóricos sobre os
camponeses (no âmbito de um debate marxista), encetava um outro
projecto que haveria de resultar no livro Bengal, 1920-194 7: The Land
Question (1984). Trata-se de outra obra um tanto esquecida hoje em
dia, mas que teve uma certa influência no momento da sua publica­
ção graças à sua crítica áspera de certas tendências do velho marxis­
mo indiano.
A figura de Chatterjee ganhou força e importância na historiografia
indiana nos inícios dos anos de 1980 por duas razões. Em primeiro
lugar, com os dois artigos fundamentais que publicou nos dois primei­
ros volumes dos Subaltern Studies (sobre relações agrárias no Benga­
la colonial e formas de poder), destacou-se como o mais teórico do
grupo em redor de Ranajit Guha, mestre da obra inicial dos Subaltern
Studies. Ao mesmo tempo, a recensão crítica que publicou de uma
biografia de Nehru, escrita pelo historiador nacionalista oficial Sarvepalli
Gopal, transformou-se em cause cé/èbre da época, dadas as tentati­
vas oficiais para censurar a sua publicação, ü deoate entre o grupo
de historiadores ‘subalternistas’ e os outros (tanto os “velhos marxis­
tas” como os nacionalistas tradicionais) tornou-se cada vez mais vio­
lento, como se infere das páginas de Social Scientist, revista quase-
oficial do CPM na época. Ao mesmo tempo, os seus escritos acaba­
ram por atingir um público bem mais vasto graças à publicação em
1986 de sua obra Nationalist Thoughtand the Colonial World, livro que
desempenhou um papel central nos debates sobre o nacionalismo
naquela época, tal como a obra Imagined Communities, de Benedict
Anderson. A partir deste momento, Chatterjee pertence - no olhar de
alguns - muito mais ao campo dos debates internacionais do que à
historiografia indiana propriamente dita. A colectânea de ensaios The
Nation and Its Fragments (1993), desenvolveu alguns aspectos do
livro anterior e foi imediatamente traduzida em várias línguas estran­
geiras - espanhol, francês, japonês e turco. Chatterjee chegou a ser
um dos nomes mais citados na historiografia sobre o nacionalismo em
geral e os seus escritos começaram a aparecer em centenas de cur­
sos universitários nos Estados Unidos e em Inglaterra.
Foi nessa altura, nos finais dos anos de 1980, que os Subaltern
Studies começaram a ser conhecidos fora da índia e da historiografia
indiana. Havia debates sobre a obra do grupo em revistas americanas
como Comparative Studies in Society and History, e o trabalho do
grupo foi apresentado ao público norte-americano através de uma
empresária académica, a muito conhecida tradutora de Jacques
Derrida, Gayatri Chakrabarty Spivak, também ela antiga aluna do
Presidency College de Calcutá. Não há qualquer dúvida de que a
Professora Spivak “cozinhou” os Subaltern Studies à sua própria ma­
neira e há quem tenha comparado esse processo ao do filme Buena
Vista Social Club (com a Professora Spivak no papel de Ry Cooder,
evidentemente). Vários historiadores mais tradicionais dentro do gru­
po, como Sumit Sarkar, começaram a afastar-se das tendências cada
vez mais desconstrucionistas que apareciam sob a sua influência.
Outros optaram por cantar as canções da moda, trocando o vocabu­
lário de E.P. Thompson e Eric HoDsbawm peias novas citações de
Deleuze e Derrida. Quanto a Partha Chatterjee, nunca se afastou dos
Subaltern Studies enquanto empresa colectiva, mas seguiu sempre o
seu próprio caminho e soube preservar a sua própria identidade. É de
notar, por exemplo, que escreveu, e continua a escrever, num estilo
conhecido pela limpidez e clareza, que tem pouco ou nada a ver com
a maneira de escrever de Spivak ou de Homi Bhabha.
Mas tal não implica, no entanto, que o autor tenha ficado prisio­
neiro de um momento particular da historiografia. A realidade é que
existem vários Partha Chatterjees. Quem conhece só a obra sobre o
nacionalismo ignora por vezes totalmente o número impressionante
de ensaios que ele dedicou à política atual, tanto na sua província
natal de Bengala, como sobre a índia em geral. Em duas coletâneas
de ensaios, The Present History of West Bengal (1997) e A Possible
India (1997, também), apresenta a sua visão não só do passado indi­
ano, mas igualmente do presente e do futuro. Na primeira coletânea,
ele assume-se enquanto crítico tanto da política dos partidos de cen-
tro-direita como do longo reinado em Bengala do Partido Comunista
(CPM). A partir dessas obras, tenta desenvolver duas ideias centrais
que aparecem nos seus escritos recentes - e também nos ensaios
publicados nesta coletânea. A primeira é a noção de que a ‘socieda­
de civil’ não existe para a maior parte dos indianos, e que seria neces­
sário buscar um conceito mais apropriado - como o de 'sociedade
^política’ - para compreender o verdadeiro funcionamento da índia de
hoje. A segunda, talvez mais controversa, consiste na defesa do con­
ceito de ‘comunidade’ como base para o funcionamento da demo-
; cracia indiana. Alguns pensam que, ao enveredar por este caminho,
Chatterjee transformou-se numa espécie de ‘comunitarista’ que de­
fenderia a ideia de uma 'comunidade primordial’. São problemas e
debates ainda em aberto e penso que a análise da actual situação
brasileira pode ajudar ao desenvolvimento do pensamento do autor.
Seria possível afirmar, na verdade, que a democracia brasileira funcio­
na tanto para a criança da favela como para o grande senhor da
fazenda? Qual é o vocabulário apropriado para abordar estes proble­
mas, no Brasil como na índia? E como evitar, na análise da ‘socieda-
de política’, um novo tipo de romantismo, que faria do chefe criminoso
da favela um herói, para não falar em geral da ‘grande ilusão do car­
naval’, glosada por Vinícius de Moraes?
De qualquer modo, a evolução da obra de Chatterjee nunca dei­
xa de surpreender. Assim, depois de publicar todos os livros acima
citados, acabou recentemente de escrever um novo livro de história
narrativa, sobre o caso de uma versão indiana de Martin Guerre no
Bengala dos anos de 1920 e 1930. Este livro, A Princely Impostor?,
baseado num trabalho minucioso nos arquivos, é, ao mesmo tempo,
uma reflexão sobre os conceitos de identidade que existiam na índia e
na Inglaterra da época. Mas será tão surpreendente uma obra assim?
Quem conhece bem Partha Chatterjee sabe igualmente que ele é
autor de seis peças de teatro em bengali, que tem uma vida paralela
de compositor de música (ganhou dois prémios da Academia de Tea­
tro de Bengala Ocidental pela sua música para teatro) e que alimenta
uma série de vidas fora do mundo académico. Nas palavras do histo­
riador mexicano MauricioTenorio-Trillo, Chatterjee “no sólo es teórico
de lo que en la academia llaman ‘the subaltern group’, sino un
humanista que puede meterse en entreveros de teoria de juego, o a
discutir la poesia de Tagore y Neruda, o a componer música, y escribir
para teatro o a cantar “cucurrucucú paloma” mejor que Lola Beltrán
(doy fe dei hecho)”. Infelizmente, Tenorio nada diz acerca da sua ver­
dadeira paixão: o futebol!
A presença contínua de Partha Chatterjee no Centro (CSSSC) de
Calcutá desde 1973, quando tantos outros pássaros voaram para
outras partes, faz parte da vida paradoxal deste homem. Seria por
nacionalismo, ele que desenvolveu uma crítica tão sofisticada do naci­
onalismo? Ou por patriotismo, e por amor à cidade onde nasceu? Ou
por não querer abandonar o prazer da conversa lenta, da fofoca, da
vida dos cafés, tão característica de Calcutá? Nos últimos anos, a
partir de 1997, Partha Chatterjee tem igualmente ensinado em Nova
Iorque, no Departamento de Antropologia da Columbia University, mas
só durante três meses do ano. Tem assim uma vida dupla, ou talvez o
melhor de todos os mundos. Começa a abrir novos caminhos de pes­
quisa e a trabalhar sobre a história da índia oriental nos finais dos
século XVIII. Fazer a história como antropólogo, fazer a ciência política
como historiador, tudo isso faz parte do jogo de Partha Chatterjee.
Tudo isso faz dele, sem margem para dúvidas, o maior intelectual
dentre os filhos da meia-noite.

Sanjay Subrahmanyam
Oxford, Natal de 2003.
Quinhentos Anos de Medo
e Amor*

* Publicado originalmente como “Five Hundred Years of Fear and Love”. Economic
and Political Weekly, 33, 22 de 30/05/1998, pp. 1330-36.
..
A chegada de Vasco da Gama em Calicute em 1498 e todos os proces­
sos de vastas conseqüências nos séculos subseqüentes que este evento
teria supostamente inaugurado constituem um verdadeiro campo minado
ideológico. É claro, há algumas rotas seguras através desse campo que
foram plotadas e percorridas pelo menos desde o período da
descolonização em meados do século XX. Aqueles que desejam fazê-lo
de forma segura falam da humanidade e da fraternidade universal, da
falsidade das distinções entre oriente e ocidente, da história como pro­
gresso indubitável do atraso em direção à modernidade, do acesso univer­
sal aos benefícios da ciência e da tecnologia modernas e, em anos mais
recentes, da entrada desembaraçada na terra dos sonhos do consumo
universal no milênio da globalização. Não querendo ameaçar essa rota
segura, o autor dessa comunicação volta-se para alguns dos aspectos
morais e políticos colocados pela história das relações entre Europa e Ásia
meridional nos últimos quinhentos anos.

Quando Vasco da Gama chegou na costa Malabar em 1498


com quatro embarcações relativamente pequenas, ele estava, como
se costuma dizer, "procurando cristãos e especiarias”. O último moti­
vo nos parece óbvio agora, por tudo o que sabemos sobre a impor­
tância do comércio para a busca européia por rotas marítimas e no­
vos continentes na chamada era dos descobrimentos. De fato, nos
primeiros anos do século XVI, logo após a abertura da rota do Cabo
para a Ásia, a composição da carga de torna-viagem para Lisboa
mostra a preponderância esmagadora de itens como pimenta, gengi­
bre, canela e cravo, embora essa composição fosse mudar muito
rapidamente.' Em relação ao outro objetivo da visita, entretanto, po­
demos bem nos perguntar por que alguém enfrentaria os perigos de
navegar através de mares não mapeados e perigosos para procurar
cristãos na índia. Aqui, temos de nos recordar do mundo ideológico
habitado por homens como Gama. Nossas idéias atuais que associ­
am a expansão européia a uma atividade econômica racional e a um
governo moderno passam por cima do fato de que essa conexão só
surgiu gradualmente ao longo dos quinhentos anos de que estamos
falando, e que não se aplica à primeira parte deste período da mesma
forma que poderia se aplicar à última. Efetivamente, um motivo imporr
tante para as expedições portuguesas à índia foi conformado pelas
lendas e rumores acerca de um certo Preste João, um governante
cristão supostamente vivendo em algum lugar do oriente, que diziam
estar ávido para unir suas forças às dos reis da Europa em sua cruza­
da contra o Islã. Em uma atmosfera carregada com as memórias da
recente “reconquista" da península ibérica das mãos dos chamados
mouros e uma situação estratégica em que governantes e mercado­
res muçulmanos ao longo das costas da África, Arábia e Pérsia eram
vistos como os principais obstáculos para a expansão européia na
região do Oceano Índico, seria compreensível o motivo de que a bus­
ca por um aliado cristão no oriente parecesse tão premente aos gru­
pos dominantes em Lisboa. De fato, historiadores recentes nos
alertaram para o fato de que os motivos do comércio e da religião não
operaram da mesma maneira nem com a mesma força em todos os
setores influentes da corte portuguesa e que há um relato político
muito mais complexo de como Vasco da Gama foi finalmente escolhi­
do para liderar a expedição para a índia.2 De toda forma, os dois
motivos de fato explicam muitos aspectos curiosos dos acontecimen­
tos no decurso da jornada do argonauta.
Os navios de Vasco da Gama ancoraram ao largo da costa de
Calicute no domingo, vinte de maio de 1498. O primeiro português a
desembarcar no dia seguinte relatou o seguinte:
Fsta cidade de Oaleoute é de cristãos, os quais são homens baços. E
andam [parte] deles com barbas grandes e os cabelos da cabeça compri­
dos, e outros trazem as cabeças rapadas e outros tosquiadas; e trazem
em a moleira uns topetes, por sinal que são cristãos; e nas barbas bigo­
des. E trazem as orelhas furadas, e nos buracos delas muito ouro. E
andam nus da cinta para cima, e para baixo trazem uns panos de algodão
muito delgados; e estes que andam vestidos são os mais honrados, que
os outros trajam-se como podem.3

Nos dias seguintes, os portugueses obviamente tornaram-se uma


grande curiosidade na cidade, uma vez que eram seguidos por gran­
des multidões que incluíam mulheres e crianças. Eles viram um gran­
de edifício que pensaram ser uma igreja. Ele tinha um grande tanque
a seu lado, e um pilar na entrada com a figura de um pássaro. Peque­
nos sinos estavam pendurados no pórtico que levava a uma câmara
interna dentro da qual, os visitantes relataram, “havia uma pequena
imagem que eles [os locais] disseram ser Nossa Senhora”. Não foi
permitida a entrada dos portugueses nessa câmara e eles tiveram de
dizer suas preces de fora, após o quê alguns homens usando colares
de contas aspergiram sobre eles água benta e uma cinza branca, a
qual, os visitantes notaram, “os cristãos desta terra têm o hábito de
colocar em suas frontes, e corpos, e ao redor do pescoço e nos seus
antebraços”. O relatório menciona que Vasco da Gama tomou a cin­
za oferecida a ele mas conseguiu evitar que fosse colocada em seu
corpo.4
Conto essa história para levantar uma questão que está
inextrincavelmente conectada às relações entre a Europa e a (ndia
nos últimos cinco séculos - a questão da incompreensão cultural.
Nesse caso, o erro é óbvio, até ridiculamente óbvio. A explicação,
também, não precisa ser buscada muito longe. Como nos diz Sanjay
Subrahmanyam, o mais recente biógrafo de Gama, os portugueses
esperavam encontrar no oriente cristãos cujas práticas fossem dife­
rentes das suas próprias. “Como estavam convencidos de que esta­
vam em terras de algum tipo de cristãos desviantes, qualquer coisa
que não fosse explicitamente islâmica parecia, por eliminação, ser
cristã”.'’ À medida que os contatos foram se tornando mais regulares
e íntimos ao longo dos séculos subseqüentes, houve, é claro, um
grande acúmulo de conhecimento europeu sobre a índia. De fato, da
época do lluminismo em diante, os estudiosos e administradores eu­
ropeus passariam a reclamar uma posição distintamente privilegiada
como os intérpretes cientificamente autorizados das informações so­
bre os recursos naturais e a vida social na índia. Desnecessário dizer,
os novos peritos não cometeriam os mesmos erros que os primeiros
visitantes portugueses.
E contudo, a questão ainda está em aberto: de que forma as
suposições culturais preconcebidas e não examinadas dos europeus
sobre a índia modelaram e talvez distorceram até mesmo o entendi­
mento supostamente científico da índia nas disciplinas modernas do
conhecimento social? Para prosseguir com o exemplo provido pelo
relato do primeiro português a visitar Calicute, embora nenhuma pes­
soa bem informada vá cometer hoje o engano de identificar como
cristãos sacerdotes usando cinzas brancas em suas frontes e colares
sagrados ao redor de seus torsos, qual a validade de supor que o que
aqueles homens representavam era uma religião? Poderia ser um mero
preconceito da Europa esclarecida a suposição de que a religião é um
universal cultural? Por que assumimos que todas as sociedades hu­
manas, ou em qualquer medida sociedades com um certo grau de
complexidade civilizacional, devem ter algo que responda ao conceito
de “religião”?6 O caso é mais sério do que um mero erro de identifica­
ção. É possível rirmo-nos do engano cometido pelos homens de Vasco
da Gama. E o que diríamos se acontecesse que, após serem educa­
dos por umas poucas gerações nas disciplinas científicas modernas,
os descendentes dos homens com colares sagrados fossem agora
cuidar de suas vidas com a sincera convicção de que o que eles têm,
ou melhor, do que eles devem ter, é uma religião? O problema é
central para a complexidade das relações entre Europa e índia, e
teremos ocasião de voltar a ele mais tarde.
Como os indianos reagiram ao encontro com os primeiros visitan­
tes europeus através dos mares? Não sou um historiador desse perí­
odo e é possível que existam fontes que respondam a essa questão.
A literatura secundária que tenho visto, entretanto, parece ser inteira­
mente baseada nas avaliações portuguesas. O que pode ser inferido
por elas é que os visitantes foram saudados inicialmente com uma
curiosidade emocionada, seguida por uma precaução crescente à
medida que os portugueses, alarmados pelo medo de cair em alguma
abominável armadilha oriental, começaram a agir com grande suspei­
ta e obstinação, culminando em uma sensação de ultraje quando os
portugueses começaram a apresar cativos e a bombardear a costa e
as outras embarcações. Deve ter demorado algum tempo para que a
verdade emergisse e para que se compreendesse que este era o
alvorecer de uma nova era sobre os mares indianos - à qual um
historiador recente denominou até delicadamente de era do “comér­
cio hostil".7 K. N. Chauduri resume as mudanças da seguinte forma:
“A chegada dos portugueses no Oceano Índico pôs abruptamente
um fim no sistema de navegação transoceânica pacífica que tanto
havia caracterizado a região... A importação pelos portugueses do
estilo mediterrâneo de comércio e de guerra, por terra e por mar, era
uma violação das convenções estabelecidas e certamente uma nova
experiência”.8
Na primeira década após a primeira visita de Vasco da Gama, os
portugueses procuraram exercer pela força algum tipo de monopólio
sobre o comércio no Oceano Índico e obrigar os outros a navegar
apenas com sua permissão.9 Por volta da década de 1580, Zain al-
Din Ma’bari escrevia longamente sobre as “proezas infames” dos por­
tugueses, que haviam trazido a ruína sobre a sociedade malabar-o
incêndio de cidades e mesquitas, a interrupção do “hajj” e o assassi­
nato de nobres e homens instruídos. Sua resposta era inspirar os
muçulmanos do Malabar a lançarem uma “jihad” contra esses “vis e
odiosos infiéis”.10No extremo oriental do litoral indiano, ao longo da
baía de Bengala, onde a presença portuguesa era mais proeminente
na forma de comerciantes privados e aventureiros, duas palavras en­
traram parao vocabulário benqati como sinônimos populares para pi­
rata do mar - “harmad” (de “armada”) e “bombete” (de “bombardei­
ro”). Resumindo as reações naquela parte da índia à chegada portu
guesa, um historiador nacionalista de Bengala escreveu: “com uma
consistência estranha e perversa, os portugueses continuaram a ferir
as suscetibilidades de uma sociedade civilizada e de uma corte culta,
com seu fracasso em se conformar aos mais altos padrões de condu­
ta internacional prevalentes na índia”.11
Pode ser feita a pergunta: como os europeus justificavam, já bem
adentrado o século XVII, a continuada disrupção violenta de uma re­
gião de comércio marítimo relativamente pacífico quando na própria
Europa os esforços já eram no sentido de assegurar algum tipo de “lei
dos mares” pactuada? A resposta é fornecida por João de Barros,
um estudioso português. Escrevendo em 1552, ele afirma bem clara­
mente:
Porque ainda que por direito comum os mares são comuns, e patentes
aos navegantes... esta lei há lugar somente em toda a Europa, acerca do
povo cristão; que como por fé, e baptismo está metido no grémio da igreja
romana, assim no governo da sua política se rege pelo Direito romano....
Porém, acerca dos mouros e gentios, que estão fora da lei de Cristo
Jesus, que é a verdadeira que todo o homem é obrigado ter, e guardar,
sob pena de ser condenado, a parte que ela anima não pode ser privilegi­
ada nos benèficios das nossas leis, pois não são membros da congrega­
ção evangélica, posto que sejam próximos por racionais, e estão, en­
quanto vivem, em potência, e caminho para poderem entrar nela” .'7

Hoje, poderia parecer que essas palavras foram escritas por al­
gum fanático monge guerreiro medieval, mas o historiador Charles
Boxer nos assegura que Barros era um humanista e um destacado
membro da algo abortada Renascença portuguesa do século XVI.13
Não acho isso estranho ou contraditório. Antes, vejo nessa justifica­
ção da agressiva expansão ultramarina um exemplo precoce da es­
trutura argumentativa produzida pelo que chamei em outro lugar de
“regra da diferença colonial”.14 Ela ocorre quando se defende que
uma proposição normativa de suposta validade universal (e muitas
dessas proposições seriam enunciadas nos séculos que nos separam
das primeiras expedições portuguesas) não se aplica à colônia em
razão de alguma deficiência moral inerente a esta. Assim, apesar de
os direitos do homem terem sido declarados em Paris em 1789, a
revolta em São Domingos (hoje Haiti) seria reprimida porque aqueles
direitos não poderiam se aplicar a escravos negros. John Stuart Mill
exporia com grande eloqüência e precisão seus argumentos que es­
tabeleciam o governo representativo como o melhor governo possível,
mas imediatamente acrescentaria que isso não se aplicava à índia. A
exceção não invalidaria a universalidade da proposição; ao contrário,
ao especificar as normas pelas quais a humanidade universal deveria
ser reconhecida, ela fortaleceria seu poder moral. No caso das expe­
dições portuguesas a norma era dada pela religião. Mais tarde, seria
fornecida pelas teorias biológicas do caráter racial ou pelas teorias
históricas da realização civilizacional ou peias teorias sócio-econômicas
de desenvolvimento institucional, cada caso, a colônia seria tor­
nada a fronteira do universo moral da humanidade normal; além dela,
as normas universais poderiam ser mantidas em suspensão.
Eu me referi mais cedo ao mundo ideológico dos homens das
primeiras expedições portuguesas. Há um entendimento geral que
trata esse mundo como mais marcado por uma tradição medieval
européia de fanatismo religioso que por sua ética moderna de inova­
ção racional e lucratividade. Em concordância com isso, é feita uma
distinção entre a primeira fase da expansão ultramarina européia, ca­
racterizada pelo banditismo, intolerância e crueldade dos portugueses
que, por causa de seu atraso, não estavam aptos a estabelecer um
império extenso e durável no Oriente, e uma fase posterior de
colonialismo holandês, inglês e francês, cujos efeitos duradouros, dis­
tribuídos por mais de duzentos anos, foram supostamente a dissemi­
nação do capitalismo, do progresso tecnológico e da governança mo­
derna. Sanjay Subrahmanyam argumentou recentemente contra essa
proposição.16 Se o atraso cultural foi responsável pelo fracasso dos
portugueses em estabelecer colônias extensas na Ásia, como poderi­
am os mesmos portugueses no mesmo período se capazes de fazê-
lo nas Américas? Se eles se viram frente a uma resistência superior
oferecida pelos poderes locais na índia, entáo, certamente, o que lhes
faltou não foi alguma ética misteriosa de organização racional e inova-
ção técnica, mas antes a capacidade de mobilizar uma força militar
suficiente. Esse ponto necessita ser mais estendido porque constitui
mais um elemento de continuidade na história da presença européia
no sul da Ásia nos últimos cinco séculos. Seja na fase inicial ou na
posterior, a força militar sempre foi um elemento constitutivo dessa
presença. Não foi o único elemento, mas foi uma parte fundamental e
necessária do colonialismo europeu na índia. Houve muitos estados
indianos anteriores fundados na conquista, mas nenhum foi mantido
como colônia. Quando aqueles impérios entraram em colapso, não
houve uma "descolonização” como ocorreu em meados do século
XX. Há dessa forma algum significado histórico no fato de que quando
a última colônia européia em solo indiano foi derrubada, em Goa em
1961, foi necessária a mobilização de uma força militar,-ainda que
fosse uma força relativamente pequena pelos padrões de nosso sé­
culo crivado de guerras. Não vejo o terror e a violência das primeiras
expedições portuguesas como uma ressaca medieval que logo seria
obliterada pelo comércio civilizado e pela educação moderna. Vejo-as
como a enunciação em termos algo grosseiros e brutais de uma con­
dição da hegemonia da Europa no mundo moderno.

II
Apesar das tentativas de tempos em tempos de pressionar para
obter maiores territórios, baseadas no modelo da Espanha na Améri­
ca, a presença portuguesa na índia permaneceu confinada principal­
mente a seu poder sobre as rotas marítimas, exercido desde uns
poucos centros fortificados nas costas do mar da Arábia e da baía de
Bengala. Já na década de 1540, nos contam os historiadores, houve
uma “crise” no empreendimento português na índia. A segunda me­
tade do século XVI viu a ascensão e a consolidação de um grande
império territorial - o dos Mughal - que, embora baseado primaria­
mente na economia agrária, de forma alguma se desinteressava pelo
comércio marítimo. Após a incorporação do Gujarat e ae Bengaia ao
império, os Mughal tornaram-se uma barreira intransponível para as
ambições portuguesas, que estavam agora reduzidos à esperança
imaginosa de que os jesuítas convidados à corte de Agra pudessem
conseguir converter o imperador Akbar ao cristianismo. Logo, mesmo
a hegemonia portuguesa sobre os mares foi ameaçada pela entradas
das companhias de comércio holandesas e inglesas. Na década de
1660, os holandeses conseguiram desalojar os portugueses de suas
bases no Sri Lanka, em Cochim e em Cananor, e se estabelecer
como o poder hegemônico nos mares indianos. Daí em diante, o rela­
to da Europa na índia é um relato da rivalidade marítima entre as
potências européias, seu envolvimento na política local e a fundação,
em meados do século XVIII, do império britânico na índia.
Todos nós conhecemos essa história, porque ela foi contada vá­
rias vezes, muito embora alguns historiadores recentes tenham levan­
tado algumas novas questões sobre ela. Na versão imperialista da
história, os ingleses, inicialmente interessados em nada mais que numa
boa chance de lucros comerciais, quase acidentalmente foram enre­
dados nas intrigas dos governantes indianos e suas cortes decaden­
tes, e terminaram tendo de chamar a si a responsabilidade de estabe­
lecer a justiça e o domínio da lei. O que eles construíram foi uma nova
ordem, caracterizada pela economia modernas e pelas instituições da
governança moderna. Na versão nacionalista de mesma história, os
ingleses se apropriaram do poder dos governantes indianos através
da força e do ardil, destruíram as velhas instituições da produção
econômica e da ordem social e, ao aprofundar os processos de ex­
ploração colonial, perpetuaram a pobreza e fecharam as possibilida­
des de desenvolvimento industrial. Historiadores recentes, como Burton
Stein, Muzaffar Alam, Sanjay Subrahmanyam, e Chris Bayly, entre
outros, questionaram, antes de mais nada, a suposição de um declínio
geral da economia e da política indianas no século XVIII. Eles argu­
mentam que, pelo contrário, esse foi um período de considerável di­
namismo econômico com novas regras, novas fontes de capital, no­
vos métodus de extraçãu de tr ibutos, aumento no uso de cHnhtlfO«
intensificação do controle sobre o trabalho. Em segundo lugar, erntr-
giram nessa época diversos regimes regionais que eram militaristas,
seguindo políticas mercantilistas que dependiam grandemente do co­
mércio exterior e de métodos bancários avançados. Em terceiro lu­
gar, por volta do século XVII, as companhias de comércio européias
eram jogadores importantes na política que circundava essas econo­
mias regionais por causa de seu controle sobre o fluxo de metais
preciosos que chegava do exterior. Em quarto lugar, a Companhia
das índias Orientais conseguiu sobrepujar esses reinos regionais no
século XVIII por causa de sua hegemonia sobre as rotas marítimas e
sua capacidade superior de financiar o esforço de guerra. Em quinto
lugar, em decorrência da tomada do poder, a companhia inglesa tam­
bém herdou as instituições e práticas nas quais se baseavam os regi­
mes anteriores, tornando-se, na verdade, mais um regime indígena:
nas palavras de Chris Bayly, "a companhia tornou-se um mercador
asiático, um governante asiático e um coletor de tributos asiático”..16
Para resumir, como esses historiadores argumentam, o rompimento
radical que se supunha caracterizar o advento do domínio britânico foi
superestimado; houve mais continuidade que descontinuidade na tran­
sição do século XVIII.17
Não desejo entrar nos detalhes empíricos desse debate aqui. Mas
eu realmente quero argumentar que há motivos para discordar dessa
sugestão revisionista em um sentido muito importante. Entretanto,
antes que eu possa construir esse argumento, preciso trazer para o
meu relato mais um exemplo da Europa do século XVI: uma pessoa
que tinha a mesma idade que Vasco da Gama, mas que, tanto quan­
to eu saiba, não teve absolutamente nada a ver com a índia.18

III
Nicolau Maquiavel, assim como Vasco da Gama, nasceu em 1469.
Em 1513, enquanto Afonso de Albuquerque estava consolidando o
império português na índia e Gama estava passando o tempo em
seus chamados “anos ermos”, em algum lugar próximo à fronteira
hispano-portuguesa, o florentino estava escrevendo um manual de
governo para seu príncipe. Ali, entre muitos outros tópicos que lhe
renderiam ovações e notoriedade por muitos séculos, Maquiavel con­
siderou a questão: é melhor para o príncipe ser m§is am§do ,qiJ.eJemi-
do ou mais temido que amado? Sua resposta foi:
...deve-se ser tanto amado quando temido, mas como é difícil que as
duas coisas andem juntas, é muito mais seguro ser temido que ser ama­
do, se uma das duas coisas tem de ser preferida. Pois pode ser dito dos
homens em geral que... enquanto você os beneficia, eles são inteiramen­
te seus... [Mas] os homens têm menos escrúpulos em ofender a quem se
faz amado que a quem se faz temido; pois o amor é mantido por uma
cadeia de obrigações que, sendo os homens egoístas, é quebrada toda
vez que isso interessa a seus propósitos; mas o medo é mantido pelo
receio da punição que nunca falha.

Mais ainda, um príncipe deveria se fazer temido de uma forma tal que, se
não ganha amor, de toda forma evita o ódio; pois o medo e a ausência de
ódio podem bem andar juntos... Eu concluo, portanto, quanto ao fato de
ser amado ou temido, que os homens amam segundo sua própria livre
vontade, mas temem segundo a vontade do príncipe, e que um príncipe
sábio deve se sustentar sobre aquilo que está em seu próprio poder e não
naquilo que está no poder de outros...19

O conselho acima é, é claro, parte de uma análise de Maquiavel


da estratégia e das técnicas de poder cuja relevância para o desen­
volvimento do Estado na Europa pós-Renascimento foi objeto de muita
controvérsia. Uma das leituras mais perspicazes desses manuais de
governo que surgiram na Europa entre os séculos XVI e XVIII, alguns
maquiavelianos e outros declaradamente anti-maquiavelianos, foi pro­
posta pelo filósofo francês Michel Foucault.20 Ele afirma que, ao mes­
mo tempo em que o propósito ostensivo desses textos era o de
aconselhar o soberano sobre a forma de reter a possessão sobre seu
território, havia uma preocupação completamente diferente que tam­
bém animava essa discussão - que era desenvolver a arte de gover­
nar. Esta preocupação não é sobre a soberania sobre o território, mas
mais propriamente sobre a disposição apropriada de pessoas e coisas
para produzir uma gama de efeitos desejados. Foucault mostra como
a noção de “economia", originada na ideia do gerenciamento apropri­
ado da unidade doméstica, começa a permear as discussões sobre o
governo, e como ela permanece entrançada ao modelo limitado da
família até que ocorre, na economia política do começo do século XIX,
a ascensão do conceito de população. População emerge como uma
categoria descritiva e empírica, distinta da idéia moral de cidadãos
portadores de direitos que compartilham a soberania popular que é
supostamente a base para a nova noção de Estado legítimo. O co­
nhecimento crescente sobre as populações revelava seus aspectos
característicos e suas regularidades - os padrões agregados de nas­
cimentos e óbitos, os ciclos de crescimento e de escassez, os movi­
mentos de trabalho e de saúde, e, acima de tudo, as maneiras pelas
quais, intervindo em um ou mais desses pontos, um conjunto de “po­
líticas públicas” ou a arte do governo poderia produzir uma constela­
ção específica de efeitos econômicos.21 A população gradualmente
se tornou “o fim último do governo” - seu bem-estar, a melhoria de
suas condições - o que deveria ser produzido através da atuação
sobre a população, induzindo-a através de políticas públicas adequa­
das a se comportar de acordo com suas próprias necessidades e
inclinações, mas assim mesmo produzindo, no conjunto, os efeitos
desejados.
Foucault traçou a genealogia da moderna arte de governar até
as práticas do pastor cristão na Europa, buscando o bem-estar espi­
ritual e material de seu rebanho e atentando aos mínimos detalhes de
suas vidas cotidianas e mesmo íntimas. Esse “poder pastoral”, se o
julgarmos de acordo com os termos de Maquiavel, tem mais a ver
com amor do que com medo. É possível, estou certo, encontrar idéi­
as similares sobre um governante ser amado por seus súditos em
muitas outras tradições do reinado paternalista, sejam hindus, budis­
tas ou islâmicas, que circularam pelo sul da Ásia durante séculos. Mas
esses antecedentes genealógicos devem ser distintos das formas que
seriam elaboradas na Europa desde o início do século XIX até os mo­
dernos regimes governamentais que Foucault descreve. E é nesse
contexto que gostaria de avançar na hipótese de que, na eiaDoração
da moderna arte de governar - o gerenciamento de populações atra-
vés de políticas públicas em lugar da representação da soberania dos
cidadãos - os teatros coloniais da África e da Ásia foram ao menos
tão importantes quanto os próprios territórios metropolitanos como
locais de experimentação e teorização. A idéia reconstituída do poder
pastoral foi, acredito fortemente, um tema persistente do moderno
projeto colonial europeu, e mais exemplarmente no caso do domínio
britânico na índia. E é por isso que argumentarei que o que há de
novo nos governantes ingleses da índia, que os distingue dos regimes
indígenas anteriores, é sua necessidade, patente desde o final do sé­
culo XVIII, de serem amados por seus súditos estrangeiros indianos.
Essa então é a segunda parte de meu relato sobre a Europa e o
sul da Ásia nos últimos quinhentos anos. A primeira parte foi sobre a
dominação do medo através do exercício de uma força superior. Insis­
ti no fato de que este é um elemento que não desaparece do relacio­
namento entre a Europa e o sul da Ásia ao longo de todo o período,
mesmo após as formas de poder supostamente mais racionais e
modernas terem sido introduzidas pelos britânicos. O novo elemento
- jm o r - chega junto com o domínio britânico. Ele não nasce na
índia, e é por isso que não vai ser encontrado se for procurado nos
arquivos da história indiana do século XVIII. Sua genealogia repousa
em certas maneiras radicalmente novas de pensar a sociedade e o
poder na Europa do fim do século XVIII. Isto afeta a índia porque o
novo projeto imperial deve daí por diante ser pensado em termos eu­
ropeus, e muito freqüentemente na própria Europa. É claro, o que é
projetado nem sempre chega a acontecer, o que faz com que pareça
ao historiador do domínio colonial que os grandes desígnios dos esta­
distas e filósofos europeus foram em última análise irrelevantes uma
vez que o que de fato aconteceu na índia carrega a estampa incon­
fundível do artifício nativo - os produtos finais foram transitórios,
periclitantes e imperfeitos. Digo isto para afirmar que, ao mesmo tem­
po em que o desejo de ser amado pelos colonizados permaneceu
sempre como o objetivo moral ansiado pelo projeto colonial, outras
normas menos exaltadas foram aceitas nesse Ínterim - “se [o prínci­
pe]”, para lembrar Maquiavel, “não ganha amor, de toda forma evita o
ódio”. Usando uma linguagem gramsciana, podemos dizer com Rajanit
Guhà que o que foi construído pelo poder colonial foi uma “hegemonia
I espúria”.22 Tanto a vontade de hegemonia quanto seu substituto es-
j púrio são importantes para compreender a história colonial. Sem eles,
\ não saberíamos porque o domínio britânico na índia, diferente de qual­
quer um de seus precursores indígenas, foi uma “dominação sem
hegemonia”: nenhum regime anterior havia sentido a necessidade de
pensar sobre o fundamento moral de seu domínio como hegemônico
nesse sentido. Sem eles, mais uma vez, não descobriríamos outro
segredo - o motivo pelo qual nós, os já-colonizados, continuamos até
hoje a sentir uma necessidade aparentemente insaciável de amar a
Europa.

IV
A história do amor pode ser contada desde o fim do século XVIII
- desde William Jones e a Sociedade Asiática e a descoberta euro­
péia da grandeza da civilização indiana. Para amar a índia e ser ama­
do pelo Indianos, deve-se primeiro conhecer a índia. Mas eu diria que
a história realmente começa em um nível muito mais mundano com
os levantamentos de rendas da terra e de produtos econômicos, e
das características da população. “Estatística”, sabemos, significa li­
teralmente “a ciência do Estado”, e, já na virada do século, o termo
estava sendo usado na índia coíoniaí para descrever a coleta sistemá­
tica de dados em temas diversos que poderiam ser de interesse para
o Estado. Estranho como possa soar, poderíamos dizer que a estatís­
tica era uma nova linguagem de amor entre governantes e governa­
dos, e conheço poucos livros de amor mais notáveis que a gigantesca
série de levantamentos estatístico-etnográficos dos distritos da índia
oriental conduzidos no início do século XIX por Francis Buchanan-
Hamilton, filho do lluminismo escocês, médico, botânico e intrépido
viajante. Ele foi o primeiro de uma serie de estudiosos-administradores
britânicos que construíram o massivo edifício do conhecimento oficial
sobre a índia, que permanece ainda como um dos mais valiosos ar­
quivos para os estudos históricos.
" Se amar era conhecer, para ser amado era preciso fazer o bem
para alguém: “enquanto você os beneficia”, dizia Maquiavel, “eles são
inteiramente seus”. Mesmo William Jones, que se apaixonou pelo ima­
ginoso mundo do oriente, achava que seu trabalho profissional nas
: cortes indianas como tinha feito “um bem muito grande e extenso
; para muitos milhões de nativos indianos, que me vêem não apenas
!„como seu juiz, mas como seu legislador”.23O termo mais comumente
usado na índia britânica para descrever esse trabalho de beneficiar a
população era “melhoramento”. Ele aparece, como Rajanit Guha des­
creveu em seu primeiro livro, já nos primeiros debates sobre o “esta­
belecimento permanente” em Bengala;24 de fato, segundo a conta
de Guha, a palavra “melhorar” aparece dezenove vezes nas duas
breves minutas escritas por Cornwallis sobre esse tema em 1789 e
1790.25 Novamente, William Jones não tinha dúvidas quanto ao signi­
ficado de seu trabalho de compilação das leis da índia; ele declarou:
“os nativos estão encantados com esse trabalho, e a idéia de tornar
sua escravidão mais leve, dando a eles suas próprias leis, é mais
lisonjeiro para mim que os agradecimentos do rei [da Inglaterra] que
me foram transmitidos’’.26 Desde a época de Jones e de Cornwallis e
durante os cento e cinqüenta anos seguintes, através de muitas mu­
danças políticas, do zamindari para o ryotari, deste para o
utílitarianísmo, depois para a reforma liberal e daí para a política do
bem-estar, tornaria-se um lugar comum da retórica colonial afirmar
que os britânicos estavam na índia para melhorá-la, para civilizá-la,
para torná-la adequada ao mundo moderno, para dar a ela o Estado
de direito e as estradas de ferro, Shakespeare e a ciência moderna,
hospitais e parlamentos, até que no fim, em uma virada quase ridícula
da ironia histórica, fosse declarado que os britânicos tinham estado na
índia para tornar os indianos aptos para o auto-governo, o que signifi­
ca que eles tinham primeiro de ter sua autonomia roubada de forma a
se qualificarem a recebê-la de volta dos ladrões.
E quanto aos indianos? Eles retribuíram o amor que seus novos
mestres tão generosamente despejavam sobre eles? Por amor à sim­
plicidade, dividirei os indianos em dois setores, muito embora, como
também indicarei, as coisas fossem mais complicadas que isso. Um
setor consistia naqueles que colaboravam. É óbvio, mesmo que al­
guns historiadores ainda achem necessário estender-se nesse fato
com uma regularidade monótona, que um punhado de oficiais e sol­
dados britânicos não poderiam ter dominado a índia por quase duzen­
tos anos se os indianos, de fato muitos indianos, não houvessem co­
laborado. Quem eram eles? No início do período da ascensão da Com­
panhia das índias Orientais ao poder, sabemos de príncipes, nobres e
mercadores indianos que se aliaram aos ingleses contra outros prínci­
pes, nobres e mercadores. Devemos entender essas alianças situan­
do-as num contexto diplomático-militar - eram relações estratégicas
cuja lógica Maquiavel teria reconhecido instantaneamente, pois não
estavam imbuídas de outro sentimento que o cálculo do interesse
próprio. Por volta da década de 1830, quando o poder britânico era
praticamente supremo no subcontinente, a essas classes foi deixada
pouca escolha exceto colaborar ou perecer. Isso foi demonstrado com
uma crueldade selvagem na repressão à revolta de 1857. Os senho­
res de terra e mercadores que colaboravam com o império colonial
tardio, apesar de seu apego freqüentemente exagerado pelos artefatos
europeus de status, eram abjetos em sua subserviência política, e se
fariam ainda mais ridículos à medida que se tornavam cada vez mais
irrelevantes para as novas formas de poder político que emergiam no
âmbito do movimento an ti-colonial. Para esse grupo de colaborado­
res, certamente, seria absurdo dizer que amavam os britânicos “por
sua livre e espontânea vontade”.
Havia um outro grupo, entretanto, daqueles que colaboravam.
Esse é um grupo sobre o qual muito foi escrito, não poucas vezes por
seus próprios membros. Estou me referindo, é claro, às novas classes
médias indianas, a nova classe letrada ou “intelligentsia”, ou qualquer
outra coisa de que se queira chamá-la. Uma longa linha de estudos
históricos identificou a introdução da educação inglesa na índia como
o processo crucial que criou essa classe, infundiu nela os valores da
modernidade européia, assegurou a tradução desses valores nas lín­
guas vernaculares e dessa forma produziu os movimentos do nacio­
nalismo moderno que ao final reclamariam autogoverno para os india­
nos. Nem é preciso dizer que esse argumento se encaixa perfeita­
mente no ponto de vista colonial segundo o qual foi o próprio domínio
■britânico que preparou o solo para a independência indiana. Mas,
Estranhamente, ou, se pensarmos cuidadosamente, talvez não tão
lestranhamente assim, esse é também o tema corrente de uma longa
ítradição da historiografia nacionalista liberal na índia. Foi apenas nas
últimas décadas que se fez uma tentativa séria, na historiografia aca­
dêmica do sul da Ásia, de questionar a suposta conexão entre a edu­
cação inglesa, a ascensão das classes médias e os movimentos
anticoloniais. Mas esse é um debate que ainda está sendo travado, e
no qual eu mesmo tive uma participação. Para evitar repetições, por­
tanto, abordarei esse tema das classes médias indianas e de seu
papel colaboracionista, examinando um corpo relativamente menos
notado de textos - os escritos dos visitantes indianos na Europa. Isso
pode também estabelecer um contraste útil com o relato dos primei­
ros visitantes portugueses à índia, com o qual comecei esse texto.
Desde a celebrada visita de Ramohan Roy à Inglaterra em 1831,
muitos membros da nova intelligentsia indiana, alguns ilustres e outros
relativamente desconhecidos, visitaram a Europa no século XIX. Mui­
tos deles escreveram diários de viagem, para informar e educar seus
compatriotas sobre a Europa como eles a tinham visto. Farei algumas
poucas observações sobre Bengala, com cujos escritos tenho mais
familiaridade.2'' Mas antes disso, deixem-me me referir a um par de
diários de viagem escritos por visitantes indianos à Europa no século
XVIII - membros de uma classe letrada mais antiga, inteiramente não
instruídos nas formas do mundo intelectual europeu.
Mirza Shaikh Ihtisamuddin foi à Inglaterra com um grupo de emis­
sários enviados pelo imperador mughal Xá Alam ao rei da Inglaterra
em 1765, época em que a Companhia das índias Orientais havia es­
tabelecido firmemente seu controle político sobre Bengala. Ihtisamuddin
ficou na Inglaterra por três anos e, muitos anos após seu retorno a
Bengala, escreveu um relato de suas viagens.28 Na virada do século,
Mirza Abu Talib, de Lucknow, visitou a Europa entre 1799 e 1803 e
também escreveu sobre sua visita.29 Nenhum dos dois conhecia o
inglês nem qualquer outra língua européia quando partiram para a
Inglaterra; nenhum dos dois tinha um mapa mental prévio impresso
em suas mentes que os dissesse como a Inglaterra deveria ser vista.
Digo isso porque os viajantes do século XIX teriam uma orientação
completamente diferente tanto para suas visitas quanto para a forma
de descrevê-las.
O que é atordoante nas descrições de Ihtisamuddin e Abu Talib
das “maravilhas e curiosidades" que eles encontraram durante suas
viagens é sua paixão em descobrir como as coisas eram feitas e de
que forma funcionavam. Ihtisamuddin começa com uma série de des­
crições detalhadas de como a direção e a velocidade de um navio são
reguladas, como a.bússola é feita e suas funções, como um diário de
bordo é mantido, como as velas são içadas e baixadas,, como se
lidam com os diferentes tipos de vento, todo o tempo tecendo com­
parações com a forma como as coisas são feitas em barcos indianos.
“As pessoas da Inglaterra são extremamente hábeis na arte de nave­
gar e trabalham muito duro para melhorar suas habilidades ainda
mais”.30 Em Londres ele ficou muito interessado em como os tetos de
madeira das casas eram construídos, em como a água encanada era
fornecida, em que tipo de plantas ele via nos jardins botânicos, nos
animais e peixes empalhados exibidos nos museus e na coleção de
livros árabes, persas e turcos em uma faculdade de Oxford onde,
incidentalmente, ele encontrou um certo senhor Jones que estava
interessado em ir para a índia como juiz e que pediu sua ajuda para ler
alguns difíceis manuscritos persas. (De fato, Ihtisamuddin chega a
sugerir que suas traduções foram mais tarde usadas pelo estudioso
de Oxford, que era, desnecessário dizer, nosso conhecido William
Jones, em um livro com o qual ele ganhou muito dinheiro.) Tanto
Ihtisamuddin quanto Abu Talib apreciaram as muitas coisas maravilho­
sas que os ingleses eram capazes de fazer ou construir, mas em
nenhum lugar eles dão a impressão de que essas coisas maravilhosas
pudessem ser exemplos de uma cultura ou civilização que houvesse
alcançado um nível superior de perfeição. De fato, nenhum de nossos
viajantes foi muito persuadido por explicações teóricas. Quando o na­
vio de Abu Talib estava se aproximando das ilhas de Car Nicobar, na
baía de Bengala, ele ficou aturdido com o fato de poder ver a vegeta­
ção no horizonte, mas nenhuma terra. O capitão do navio tentou
explicar-lhe a esfericidade da superfície do mar e as propriedades de
refração da luz através da água, e chegou a demonstrá-las deixando
cair um anel em uma tina d’água, o que Abu Talib registrou fielmente.
Mas ficou convencido de que o telescópio do navio estava com defei­
to ou que os tripulantes lhe haviam pregado uma peça.31
Comparem isso com um típico diário de viagem da segunda me­
tade do século XIX. O cavalheiro de Bengala que pisa no convés tem
agora um conceito de Europa firmemente plantado em sua mente.
De fato, o navio é para ele o primeiro lugar em que se encontra com
a verdadeira Europa e o exercício de compará-la à sua Europa
conceituai começa de fato. A viagem adquire para ele o significado
moral de um rito de passagem:
Em 12 de março de 1886, o vapor “Nepaul” deixou Bombaim em direção
à Inglaterra. Nunca um navio de correio havia sentido a pulsação de
tantos corações hindus... Mais orgulhosa estava ela agora com o resulta­
do da influência moral da Inglaterra sobre seu vasto império na índia, que
permitiu a tantos de seus filhos quebrar os grilhões de casta, elevar-se
acima dos velhos preconcietos e superstições e buscar a educação e o
esclarecimento na fonte principal da moderna civilização.32

Ao pôr os pés em solo inglês, nosso cavalheiro declararia: “estou


agora na grande Inglaterra, sobre a qual tenho lido desde a minha
infância, e entre o povo inglês, a quem a providência tão fortemente
nos uniu”.33 Nem tudo o que ele visse na Inglaterra mereceria neces­
sariamente sua aprovação; de fato, com freqüência ele ficaria desa­
pontado porque a Inglaterra real algumas vezes não conseguiria al­
cançar a medida de sua imagem conceituai. Mas, no conjunto, ele
não teria dúvidas de que o que ele estava experimentando, e o que
ele precisaria levar de volta para seus compatriotas era uma essência
moral e civilizacional, expressas nas virtudes do moderno povo inglês
tais como o espírito de independência, auto-respeito e disciplina, seu
amor pela arte, literatura e esportes, e, acima de tudo, seu cultivo do
conhecimento. Observando o sucesso da Exposição colonial de 1886,
nosso viajante de Bengala notaria que “As miríades de visitantes que
diariamente acorrem à exposição nos revelaram a grande causa mis­
teriosa do progresso europeu. É a constante procura por conheci­
mento e uma prontidão em aceitar um estado de coisas melhor, quan­
do quer que seja descoberto e compreendido”.34
É isso que repousa no coração da civilização européia moderna e
o que a coloca à parte e acima de países colonizados tais como a
índia. De fato, é o conhecimento que os europeus adquiriram sobre
os recursos naturais e sociais da índia que deram a eles o poder de
governar sobre os “nativos”:
A desigualdade real entre os europeus e os nativos reside não no fato de
que esses últimos ocupem poucos postos importantes no país... O euro­
peu sabe mais sobre nossas montanhas e rios do que nós mesmos; ele
sabe mais sobre as plantas que crescem ao nosso redor, seus nomes,
suas propriedades, até o tamanho e a forma de suas folhas; ele sabe mais
sobre o que está enterrado no fundo de nossa terra; ele sabe mais sobre
as capacidades de nossos solos; sobre todas as coisas ele sabe mais do
que sabemos sobre o nosso próprio país. Então ele sabe melhor a forma
de usar esse conhecimento para o benefício dos homens. Nós não sabe­
mos dessas coisas, por isso somos “nativos”.35

Apresento-lhes esse texto como uma das mais sinceras declara­


ções de amor feita por um indiano moderno à Europa moderna. Seu
autor - o cavalheiro bengali que temos seguido desde o momento em
que embarcou em sua viagem para a Inglaterra - foi Trailokyanath
Mukherjee, curador de um museu em Calcutá, um reconhecido peri­
to em produtos agrícolas e manufaturados de diferentes partes da
índia e um destacado humorista no mundo da ficção bengali. Se ele
não escreveu, como Ihtisamuddin um século antes, sobre a bússola,
as velas e as máquinas maravilhosas que os europeus tinham inven­
tado, não era porque ele não sabia como eram construídas ou como
funcionavam. Antes, ele sabia demais. Ele já tinha sido admitido no
mundo do conhecimento europeu, convertido, disciplinado e cheio de
admiração. Para homens e mulheres como Trailokyanath, podería­
mos dizer sem medo de nos contradizermos que amavam a Europa
“por sua livre e espontânea vontade”, pois de fato suas vontades ha­
viam sido adequadamente produzidas para fazer essa escolha. Esta­
ríamos certos se acrescentássemos, é claro, que muito embora
Trailokyanath tivesse sido admitido nesse mundo, ele de toda forma
pisava apenas em suas margens, agudamente consciente do fato de
que ele e seus compatriotas teriam agora de aprender esse novo
conhecimento dos europeus, de fato aprender até mesmo sobre seu
próprio país.
Para evitar qualquer confusão, deixem-me acrescentar que, politi­
camente, Trailokyanath era um “lealista”. Ele não questionava o fato de
que os britânicos haviam adquirido o direito de governar a índia porque
sabiam usar seu conhecimento em benefício dos indianos. Nem todos
os oriundos das classes médias, entretanto, permaneceriam "lealistas”,
pelo menos não desde a virada para o século XX. O que mudaria? Envio
vocês de volta à discussão de Foucault sobre os tratados anti-
maquiavelianos e sua distinção entre o poder soberano do governante
sobre o seu território e a arte de governar populações. Diferentemente
, de Trailokyanath, muitos indianos educados questionariam então, com
; a força da própria teoria política ocidental, a legitimidade de um poder
: estrangeiro que não era representativo do povo e que não estava dis­
posto a reconhecê-lo como um conjunto de cidadãos com direitos.
: Não apenas isso, alguns argumentariam também que na realidade o
povo não estava sendo tão beneficiado quanto deveria, o que se dava
pelo fato do governo não ser representativo: se a soberania fosse pas­
sada para o povo indiano, a arte da governança moderna poderia ser
utilizada para conceder a ele benefícios muito maiores.36
Quando isso aconteceu, a oposição política ao domínio britânico
cresceu em força entre as classes médias indianas na primeira meta­
de do século XX. Nesse período, as classes médias construíram liga­
ções com demandas anticoloniais de outros setores do povo, especi­
almente camponeses e operários, e encabeçaram o processo que
finalmente levou à transferência do poder, e também à divisão do país,
I em 1947. Sua oposição ao domínio britânico de forma alguma dimi-
| nuiu seu amor pelo conceito de Europa que havia sido plantado em
| suas mentes - a Europa de Shakespeare e da máquina a vapor, da
| Revolução Francesa e da mecânica quântica. Eles rejeitavam a sobe-
I rania que os britânicos reclamavam sobre a índia, mas não questiona-
^ vam a superioridade da Europa no cultivo das artes da modernidade.
A sutileza desta atitude estava além da compreensão de muitos dos
últimos oficiais coloniais, que tomaram o clima de oposição política
dos últimos dias do domínio britânico como um sinal de perigo pairan­
do sobre suas cabeças. Assim, o Marechal de Campo Auchinleck
ainda insistia em junho de 1947 que o exército britânico deveria per­
manecer na índia até o ano seguinte para proteger vidas britânicas,37
não compreendendo que, uma vez resolvida a questão da soberania,
não haveria mais nenhuma razão para que os indianos odiassem os
europeus.
Ainda não falei do outro setor dos indianos - aqueles que não
colaboraram. Sobre eles, serei breve. Acredito que a massa do povo
indiano, aqueles que foram sujeitos ao jugo britânico, seja na índia
britânica ou nos Estados principescos, nunca colaborou. Isso não quer
dizer que eles não respeitassem a autoridade dos britânicos, ou não
obedecessem a eles, ou procurassem por eles em busca de justiça e
proteção. Apesar de muitas revoltas tribais e camponesas, grandes e
pequenas, na índia britânica, é correto dizer que, na maior parte das
vezes, a rebelião foi mais a exceção que a regra. Mas a massa do
povo não deu aos britânicos o amor que eles tanto queriam - o amor
que fluiria de suas próprias livres vontades - porque, dentro da estru­
tura do domínio colonial, os britânicos nunca puderam reconhecer
esses súditos rebaixados como possuidores de vontades com aquele
tipo de predicado de livre racionalidade, de forma a poder investir sua
aparente docilidade com a aura do amor. Eles eram, em resumo,
' incapazes de amar o conceito de Europa.
Dos muitos indianos que colaboraram com o domínio britânico ou
reconheceram sua dominância, portanto, apenas alguns se tornaram
familiares com a gama completa de conhecimentos e práticas que
constituíam sua substância e aceitaram sua racionalidade. Mas eles
, também rejeitaram por fim a reivindicação colonial da dominância po-
i lítica enquanto conformavam, eles mesmos, o projeto de construir um
Estado e uma sociedade modernos. Mohandas Karamchand Gandhi,
com sua sagacidade característica, viu através da estratégia, o mo­
mento de seu nascimento. Já em 1909, em “Hindj Swaraj” , ele des­
creveu esse projeto como querer ter “a lei inglesa sem os ingleses” .38
Aqueles que seguem Gandhi acreditam que isso foi exatamente o que
os governantes da índia independente vêm tentando fazer nos últimos
cinqüenta anos.
Chego agora à minha consideração final, que é sobre a Europa e
o sul da Ásia hoje. Uma transformação de importância que teve lugar
na metade do século XX, em paralelo ao colapso dos impérios coloni­
ais europeus, foi o deslocamento decisivo da dominância mundial da
Europa para os Estados Unidos. Para a maior parte das pessoas na
maior parte do sul da Ásia, o conceito de Europa hoje parece circuns­
crito pelo conceito de ocidente, do qual os Estados Unidos são o foco
dominante. Há pouca discussão acerca de que a força permahece
como um fundamento desse domínio, e muito embora um Maquiavel
moderno possa dizer que a ameaça do uso de uma força devastado­
ra é uma garantia mais eficiente de domínio do que seu uso efetivo,
podemos apenas nos lembrar do espetáculo televisivo da Guerra do
Golfo para perceber o terror concentrado que pode ser desencadea­
do por aqueles que se consideram os policiais dc mundo.
Enquanto isso, os governantes dos países recém-independentes
do sul da Ásia continuaram com seus projetos de construir Estados-
Nação modernos. Ganhar a soberania dos poderes coloniais liberou as
molas do amor pelo conceito de ocidente entre as classes médias em
expansão. Não me refiro aqui à alegada paixão dos jovens indianos por
roupas de marca e música pop, que muitos sentem estar ameaçando
nossa tradição nacional. Minha compreensão da história do encontro
colonial nos últimos dois séculos me leva a crer que, se houver a impor­
tação de uma cultura coca-cola para este país, ela rapidamente irá
adquirir um caráter distintivamente indiano e se mesclar imperceptivel-
mente à entidade em constante mutação chamada tradição indiana.
Estou mais preocupado com a invocação da modernidade ocidental
que nos diz que, ao praticar as mais recentes artes do gerenciar popu­
lações, estamos perdendo a corrida porque estamos atolados na políti­
ca. Há uma crescente impaciência entre as classes médias, que sen­
tem que não estamos alcançando o ocidente rápido o suficiente porque
temos democracia demais. Ao mesmo tempo, há uma tentativa reno­
vada de impor um ramo particular da cultura de casta alta bramânica
modernizada como a verdadeira cultura nacional, baseando-se no fato
de que todas as grandes nações do ocidente foram construídas através
de um processo de homogeneização cultural. A mesma lógica leva os
meios políticos de cada país do sul da Ásia a considerar seus vizinhos
como rivais e potenciais inimigos. E, desnecessário dizer, é a mesma
lógica que está levando esses meios políticos a uma corrida nuclear,
fundada na crença de que essa é a única maneira de se obter o respei­
to das grandes potências do ocidente. Com a adequada deferência aos
representantes de nossos meios políticos, possa eu afirmar que isso
não reflete a sabedoria do príncipe de Maquiavel. Antes, reflete a men­
talidade do pequeno batedor de carteiras que acha que o mundo é
governado por grandes bandidos, e vive na fantasia de que, imitando a
sua bazófia e impetuosidade, um dia será convidado a entrar para o seu
clube. É uma paródia - uma paródia patética - do chauvinismo das
grandes potências, destinado a fazer com que nossas elites se sintam
bem consigo mesmas, mas cujo preço, como sempre, recairá sobre os
pobres e sobre aqueles que não têm poder em nossa sociedade.
Eu disse antes que nosso amor pelo ocidente deriva de um con­
ceito de ocidente. Esse conceito se solidificou em nossas mentes
durante os últimos quinhentos anos. Ele sobreviveu às brutalidades da
armada portuguesa, às intrigas de fíobert Clive, aos vícios da contra-
insurgência em 1857-1858 e à desumanidade que causou grande
fome de 1943 em Bengala. O fato de que as guerras mais devastado­
ras da história da humanidade e que as atrocidades do nazismo, do
fascismo e do apartheid tiveram lugar no século XX e foram integran­
tes da dinâmica histórica da Europa moderna não fez com que, para
nós, esse conceito entrasse em crise. Largos setores de nossas elites
ainda têm fé suficiente nesse conceito para insistir que deveríamos
nos esforçar mais do que temos feito até agora para copiar aqueles
velhos modelos da modernidade para nosso próprio país.
Acredito que o conceito de ocidente que temos tão amorosa­
mente nutrido está em profunda crise no próprio ocidente. As idéias
de democracia participativa e soberania popular ativa, que foram os
fundamentos morais da política moderna desde o tempo da Revolu­
ção Francesa, foram largamente erodidos pela doutrina instrumen­
talista de que a escolha política diz respeito apenas a quanto bene­
fício pode ser alcançado para quantas pessoas a que custo. O con­
senso social ao redor do qual a idéia de identidade nacional foi
construída nos países da Europa e da América do Norte foi colocada
sob uma tensão severa com a entrada de novos imigrantes oriundos
de outras culturas que não eram parte do consenso anterior. E ago­
ra que a tempestade neoliberal dos anos de 1980 passou, deixou
atrás de si uma ordem social capitalista com poucos recursos ideo­
lógicos para lidar com o embaraço moral da desigualdade de opor­
tunidades, desemprego, doença e desamparo. Não creio que o co­
lapso dos regimes socialistas na Europa oriental e na União Soviética
tenham significado o triunfo da ordem capitalista liberal que conhe­
cemos tanto. Ao contrário, vejo esse colapso nomo mais um sinal da
crise no velho projeto da modernidade inaugurado na Europa no
século XVIII.
Cabe a nós, aqueles que ainda são marginais no mundo da
modernidade, usar as oportunidades que ainda temos para inventar
formas novas para as modernas ordens sociais, econômicas e políti­
cas. Fizemos muitas experiências nos últimos cem anos mais ou me­
nos. Muitas das formas a que chegamos foram consideradas, por
outros assim como por nós, como adaptações imperfeitas do original
- não terminadas, distorcidas, talvez até mesmo falsificadas. Vale a
pena considerar se muitas dessas formas supostamente distorcidas -
de instituições econômicas, leis, práticas culturais - não poderiam de
fato conter a possibilidade de formas inteiramente novas de organiza­
ção econômica ou governança democrática, nunca imaginadas pelas
velhas formas da modernidade ocidental. Para isso, no entanto, te­
mos de ter a coragem de virar as costas para a história dos últimos
quinhentos anos e nos defrontar com o futuro com uma nova maturi­
dade e autoconfiança, nascidas da convicção de que Vasco da Gama
não deve nunca aparecer em nossas costas novamente.
Nossa Modernidade*

* Conferência Srijnan Haider Memorial, proferida em bengali em Calcutá em 03 de


setembro ae 1994. Traauziaa para o ingíês peio autor e puDÍicada originalmente
como “Our Modernity”, in ParthaChatterjee. The Present History of West Bengal:
Essays in Political Criticism. Delhi, Oxford University Press, 1997.
45

Colonialismo, Modernidade e Política


Há algumas características pouco usuais que notei sobre a con­
ferência de hoje. Em primeiro lugar, fiquei aturdido pela descoberta do
fato, antes desconhecido para mim, de que de alguma forma eu ad­
quiri os padrões de sagacidade, antigüidade e grandiloqüência que
normalmente se esperam de pessoas convidadas a dar conferências
formais como esta. Em segundo lugar, não pode haver nada menos
usual do que o fato de estar dando uma conferência em memória de
Srijnan Halder, que foi meu aluno e que mal tinha idade suficiente para
ser meu irmão mais novo. De fato, estivesse Srijnan dando uma con­
ferência em minha memória, isso estaria de longe em maior conformi­
dade com as leis da natureza assim como com as convenções soci­
ais. Em terceiro lugar, em uma curta mas dramática vida marcada por
sua longa batalha contra uma doença incurável, e em sua ainda mais
dramática morte, Srijnan deixou para nós a evidência inesquecível de
sua profunda curiosidade intelectual, de um inabalável compromisso
com suas próprias crenças e princípios e de seu irrepreensível amor
pela vida. Não possuo nem uma linguagem nem um pensamento
capazes de fazer jus a essa evidência. Pode não haver nada pouco
usual nisso, mas, frente à memória de Srijnan, devo, antes de come­
çar a conferência, admitir um sentimento de absoluta inadequação.

Conceituando Nossa Modernidade

Meu tema é a “modernidade", mas, mais especificamente, “nos­


sa” modernidade. Ao fazer a distinção estou tentando apontar que


pode haver outras modernidades que não a nossa, ou, para colocar
de outra forma, que há certas peculiaridades sobre a nossa
modernidade. Pode ser o caso de que aquilo que outros pensam ser
moderno seja inaceitável para nós, assim como aquilo que estimamos
como elementos valiosos da nossa modernidade não sejam em abso­
luto considerados modernos por outros. Se devemos ficar orgulhosos
ou embaraçados por causa dessas diferenças é uma questão que
abordarei mais tarde. No momento, consideremos como nós conce­
bemos nossa modernidade.
Em 1873, Rajnarayan Basu tentou fazer uma avaliação compa­
rativa de “Se kãl ar e kãl” (Aqueles dias e hoje em dia).39 Por “aqueles
dias", ele queria dizer o período antes da completa introdução da edu­
cação em inglês na índia. A palavra “adhunik”, no sentido em que nós
usamos hoje em bengali para dizer “moderno”, não era usada no
século XIX. A palavra usada então era “nabya” (novo): o “novo” erá
aquilo que estivesse inextrincavelmente relacionado à educação e ao
pensamento europeus. Outra palavra muito usada era “unnati” , um
equivalente ao conceito europeu do século XIX de “melhoramento” ou
“progresso”, uma idéia que hoje designamos pela palavra “pragati”.
Rajnarayan Basu, nem é preciso dizer, havia sido educado na
forma “nabya” ou nova; ele era um reformador social e extremamente
a favor das idéias modernas. Comparando “aqueles dias” e “hoje em
dia”, ele falou de sete áreas onde houve ou melhoramento ou declínio.
Essas sete áreas eram saúde, educação, renda, vida social, virtude,
civilidade e religião. Sua discussão desses assuntos está marcada
pela recorrência a alguns temas familiares. Assim, por exemplo, a
noção de que enquanto as pessoas “naqueles dias” eram simples,
caridosas, compassivas e genuinamente religiosas, a religião agora
havia se tornado mera festividade e pompa, e aquelas pessoas havi-
am-se tornado astutas, desonestas, egoístas e ingratas.
Ao conversar com as pessoas atualmente, é difícil perceber quais são
seus verdadeiros sentimentos... Antes, se houvesse um hóspede na casa,
as pessoas ficariam ansiosas para fazê-lo ficar por mais alguns dias.
Antes, as pessoas chegavam até a penhorar seus pertences para serem
hospitaleiras com seus convidados. Atualmente, os hóspedes aproveitam
a primeira oportunidade para partir. (Basu, p. 82)

Rajnarayan fornece vários exemplos como este, de mudanças


na qualidade da sociabilidade.
Mas o assunto no qual Rajnarayan gasta a maior parte do tempo
na comparação entre “aqueles dias” e “hoje em dia" é o “sarir”, o
corpo. Gostaria de apresentar esse tema de forma um pouco mais
elaborada, pois nele repousa um aspecto verdadeiramente curioso de
nossa modernidade.
Pergunte a qualquer um e ele dirá, “Meu pai e meu avô eram homens
muito fortes”. Comparados com os homens daqueles dias, os homens
não têm virtualmente força alguma... Se as pessoas que estavam vivas
cem anos atrás retornassem hoje, certamente se surpreenderiam em ver
como nos tornamos pequenos em estatura. Costumávamos ouvir em
nossa infância sobre mulheres que afugentavam bandidos. Hoje em dia,
deixar mulheres sozinhas, nem ao menos ouvimos falar de homens com
tal coragem. Os homens hoje em dia não conseguem afugentar nem
mesmo um chacal. (Basu, pp. 37-38)

No conjunto, as pessoas - e Rajnarayan adiciona aqui, “especial­


mente ‘bhadralok’”, as pessoas respeitáveis - tornaram-se débeis e
adoentadas, e vivem vidas mais curtas.
Façamos uma pausa por um minuto para considerar o que isso
significa. Se por “hoje em dia” entendemos a era moderna, a era da
nova civilização inaugurada sob o domínio britânico, então é conseqü­
ência dessa modernidade um declínio na saúde do povo? Em se tra­
tando de ética, religião, sociabilidade e outros assuntos espirituais do
gênero, poderia haver concebivelmente algum escopo para esse ar­
gumento. Mas como pôde ocorrer a alguém a idéia de que naquele
que é o mais mundano dos assuntos terrenos - nossa existência bio­
lógica - as pessoas do presente tenham-se tornado mais fracas e
vivam menos tempo que as pessoas de uma época anterior?
Se meus amigos historiadores estiverem acordados neste mo­
mento, eles com certeza apontarão prontamente que estamos falan­
do aqui de 1873, quando a medicina moderna e os serviços de saúde
na índia britânica ainda estavam confinados aos limites estreitos da
comunidade européia expatriada e ao exército, e nem ao menos ha­
viam começado a alcançar a população mais vasta. Como podería­
mos esperar que Rajnarayan fizesse em 1873 um julgamento dos
avanços miraculosos da medicina moderna no século XX?
Se for esta a objeção, vejamos alguns exemplos mais. Dirigindo-
se à “All-lndia Sanitary Conference” (Conferência Sanitária de Toda a
índia), em 1912, Motilal Ghosh, fundador do famoso diário nacionalista
“Amrita Bazar Patríka”, afirmou que sessenta anos antes, ou seja,
mais ou menos no tempo a que Rajnarayan se referiu como “hoje em
dia”, o interior de Bengala de sua infância estava quase inteiramente
livre de doenças. As únicas enfermidades eram febres comuns que
podiam ser curadas em alguns dias com uma dieta apropriada. O tifo
era raro e não se ouvia falar de cólera. A malária ocorria de tempos
em tempos, mas os vacinadores indígenas, usando suas técnicas
tradicionais, conseguiam curar seus pacientes sem muita dificuldade.
Não havia escassez de água potável limpa. A comida era abundante
e as aldeias “se enchiam de pessoas saudáveis, robustas e felizes,
que gastavam seus dias principalmente na prática de esportes”.40
Posso produzir exemplos mais recentes. Expressando em 1982 as
reminiscências de sua infância em Barisal, Manikuntala Sen, o líder
comunista, escreveu: “O pensamento me traz lágrimas aos olhos.
Oh, Alá, por que nos deste essa civilização tecnológica? Não estáva­
mos contentes com nosso arroz e nosso “dal” , nosso peixe e nosso
leite? Agora escuto que não há mais peixe ‘hilsa’ em toda Barisal!”41
Mesmo mais recentemente, Kalyani Datta em seu “Thod badi khãdã”,
publicado em 1993, conta tantas histórias de sua infância sobre a
comida e os hábitos alimentares, que as pessoas das quais fala
Rajanrayan Basu como tendo vivido no século XVIII parecem ter cir­
culado bastante pelos aposentos das casas de Calcutá nos anos de
1930. Depois de fazer uma refeição completa, ela diz, as pessoas
comiam com freqüência trinta ou quarenta mangas como sobreme­
sa.42
Os exemplos podem ser multiplicados facilmente. Na verdade, se
eu tivesse adaptado convenientemente as palavras de Rajnarayan e
as passado adiante como comentários de um de nossos escritores
contemporâneos, nenhum de vocês teria suspeitado de nada, porque
nós mesmos falamos todo o tempo que as pessoas de uma geração
anterior eram muito mais fortes e saudáveis que nós.
A questão é: por que nos apegamos a essa idéia sem base real
pelos últimos cem anos? Ou seria o caso de termos estado todos
tentando dizer algo sobre a experiência histórica de nossa modernidade
que não aparece nos fatos estatísticos da demografia? Bem, voltemo-
nos para os motivos que Rajnarayan dá para o declínio da saúde
desde “aqueles dias”.
O primeiro motivo, diz Rajnarayan, é a mudança ambiental.
Antes, as pessoas viajavam de Calcutá para Tribeni, Santipur e outras
aldeias para mudar de ares. Agora esses lugares tornaram-se insalubres
por causado miasma conhecido como malária... Por muitas razões pare­
ce haver uma maciça mudança ambiental tendo lugar hoje na índia. Que
essa mudança se reflita na força física das pessoas dificilmente seria
surpreendente. (Basu, pp. 38-39)

O segundo motivo é a comida: a falta de alimentos nutritivos, o


consumo de alimentos adulterados e perigosos e o excesso de bebi­
da. “Nós vimos e ouvimos em nossa infância numerosos exemplos do
quanto as pessoas podiam comer naqueles dias. Agora elas já não
podem.”
O terceiro motivo é o trabalho, o trabalho sem rotina e a falta de
exercício físico:
Não há dúvida de que com o advento da civilização inglesa no nosso país,
a necessidade de trabalho aumentou tremendamente. Nós não conse­
guimos trabalhar da mesma maneira que os ingleses; contudo os ingleses
querem que o façamos. O trabalho inglês não é apropriado a este país...
A rotina imposta agora pelos nossos governantes, de trabalhar das dez às
quatro não é de forma alguma adequada às condições deste país. (Basu,
p. 39)

O quarto motivo é a mudança no modo de vida. No passado, as


pessoas tinham poucos desejos, o que as possibilitava viver felizes.
Hoje não há um fim para nossas preocupações e ansiedades. "Agora
a civilização européia penetrou em nosso país, junto com os desejos
europeus, as necessidades européias e os faustos europeus. No en­
tanto a forma européia de satisfazer esses desejos e necessidades,
nomeadamente, a indústria e o comércio, não está sendo adotada”.
Rajnarayan faz aqui uma comparação entre dois anciãos, um “ancião
vernacular” e um “ancião anglicizado”.
O ancião anglicizado envelheceu cedo. O ancião vernacular acorda quando
ainda está escuro. Quando acorda, ele permanece na cama e canta
canções religiosas: como isso deleita o seu coração! Ao levantar-se da
cama, toma um banho: que hábito saudável! Terminado o seu banho, vai
ao jardim colher flores: como é benéfica para o corpo a fragrância das
flores! Tendo colhido flores, ele senta-se para rezar: isso deleita a mente e
fortalece o corpo e o espírito... O ancião anglicizado, por outro lado, janta
e toma brandy à noite, e dorme tarde; ele nunca viu um nascer do sol e
nunca respirou o ar fresco da manhã. Ao se levantar tarde pela manhã, ele
tem dificuldade até para realizar a simples tarefa de abrir suas pálpebras.
Seu corpo dói miseravelmente, ele está de ressaca, as coisas até pare­
cem estar piorando! Dessa forma, sujeito às comidas e bebidas inglesas e
a outros costumes ingleses, o corpo de ancião anglicizado torna-se o lar
de muitas doenças. (Basu, pp. 49-50)

O próprio Rajnarayan admite que essa comparação é-exagera­


da. Mas há uma queixa persistente em todos os motivos que ele cita
para o declínio da saúde no presente em comparação com épocas
passadas: nem todos os meios particulares que adotamos para nos
tornarmos modernos são adequados a nós. Contudo, ao imitar
acriticamente as formas da modernidade inglesa, estamos lançando
sobre nós mesmos degradação ambiental, escassez alimentar, enfer­
midades causadas por excesso de trabalho e por um modo de vida
descoordenado e indisciplinado. Rajnarayan dá vários exemplos de
imitação acrítica dos modos ingleses como, por exemplo, o seguinte
relato sobre a falta de alimentos nutritivos:
Dois cavalheiros bengalis estavam uma vez jantando no Hotel Wilson. Um
deles era especialmente aficcionado por carne bovina. Ele perguntou ao
garçom: “Vocês têm vitela?” O garçom respondeu: “Temo que não, se­
nhor.” O cavalheiro perguntou novamente: "Vocês têm bife?” O garçom
respondeu: “Também não, senhor.” O cavalheiro perguntou novamente:
“Vocês têm língua de boi?’’ O garçom respondeu: “Também não, senhor.”
O cavalheiro perguntou novamente: “Vocês têm geléia de mocotó?” O
garçom respondeu: “Também não, senhor.” O cavalheiro perguntou nova­
mente: "Vocês não têm nada da vaca?’’ Ao ouvir isso, o segundo cava­
lheiro, que não gostava tanto de bife, disse com alguma irritação: “Bem,
se vocês não têm mais nada da vaca, porque não dão a ele um pouco de
estrume?" (Basu, p. 44).

O ponto que esse relato deve ilustrar é o de que “a carne bovina


produz calor demais e é insalubre para o povo deste país” . Por outro
lado, o alimento que é muito mais adequado e saudável, nomeada­
mente o leite, tornou-se escasso: os oficiais ingleses, os muçulmanos
e alguns poucos comedores de carne bengali “comeram as vacas, e
é por isso que o leite é tão escasso”.
Muitos dos exemplos e explicações de Rajnarayan parecerão risí­
veis para nós. Mas não há nada de risível de seu projeto principal, que é
provar que não pode haver apenas uma modernidade independente de
geografia, tempo, meio ambiente ou condições sociais. As formas da
modernidade terão de variar entre diferentes países, dependendo de
circunstâncias específicas e de práticas sociais. Poderíamos na verda­
de estender um pouco os comentários de Rajnarayan para afirmar que
a verdadeira modernidade consiste em determinar as formas particula­
res de modernidade que são adequadas a circunstâncias particulares;
isto é, aplicar os métodos da razão para identificar ou inventar as
tecnologias específicas da modernidade que são apropriadas a nossos
propósitos. Ou, para colocar de outra maneira, se há uma definição
universalmente aceitável da modernidade, é esta: a de que, ao nos
ensinar a empregar os métodos da razão, a modernidade universal nos
permite identificar as formas de nossa própria modernidade particular.

A Modernidade Ocidental Representando A Si


Mesma
Como se podem empregar os poderes da razão e o julgamento
para se decidir o que fazer? Ouçamos a resposta dada a essa ques-
tão pela própria modernidade ocidental. Em 1784, Immanuel Kant
escreveu um curto ensaio sobre “Aufklärung”, o que nós conhece­
mos em inglês como “Enlightenment” , em bengali “alokprapti” .43 De
acordo com Kant, ser esclarecido é tornar-se maduro, alcançar o
status de adulto, deixar de ser dependente da autoridade de outros,
tornar-se livre e assumir a responsabilidade por suas próprias ações.
Quando o homem não é esclarecido, ele não emprega seus próprios
poderes da razão, mas antes aceita a tutela de outros, conforme lhe
é ensinado. Ele não sente a necessidade de adquirir conhecimento
sobre o mundo, pois tudo está escrito nos livros sagrados. Ele não
tenta fazer seus próprios julgamentos sobre o certo e o errado; ele
segue a recomendação de seu pastor. Ele até mesmo deixa seu médico
decidir o que ele deve ou não deve comer. A maioria dos homens em
todas as épocas históricas foram, nesse sentido, imaturos. E aqueles
que atuavam como guardiões da sociedade queriam que fosse assim;
era de seu interesse que a maior parte das pessoas preferissem per­
manecer dependentes deles em vez de se tornarem autônomos. É
na época presente que pela primeira vez a necessidade de autonomia
foi reconhecida de forma geral. É também no presente que pela pri­
meira vez se admite que a condição primária para pôr um fim à nossa
dependência auto-imposta é a liberdade, especialmente as liberdades
civis. Isso não significa que todas as pessoas na época presente são
esclarecidas ou que estejamos agora vivendo uma época esclarecida.
Deveríamos dizer antes que essa época é a época do esclarecimen­
to, do iluminismo.
O filósofo francês Michel Foucault faz uma discussão interessan­
te sobre esse ensaio de Kant.44 Qual é a novidade na forma pela qual
Kant descreve o Iluminismo? A novidade, diz Foucault, reside no fato
de que pela primeira vez temos um filósofo tentando relacionar sua
pesquisa filosófica com seu próprio tempo e concluindo que é por
serem os tempos propícios que suas pesquisas tornam-se possíveis.
Em outras palavras, é a primeira vez que um filósofo faz da caracterís­
tica de seu próprio tempo um tema da investigação filosófica, a pri­
meira vez que alguém tenta, de dentro do seu próprio tempo, identifi­
car as condições sociais favoráveis à busca pelo conhecimento.
Quais os aspectos que Kant aponta como características do tempo
presente? Foucault afirma que é aí que esse novo pensamento é tão
distinto. Ao distinguir o presente, Kant não se refere a algum evento
revolucionário que põe fim à época anterior e inaugura a época do
iluminismo. Nem lê nas características do tempo presente os sinais de
algum evento revolucionário futuro a se gestar. Nem tampouco enxer­
ga o presente como uma transição entre o passado e alguma época
futura que ainda não chegou. Todas essas estratégias de descrever o
presente em termos históricos estiveram em uso no pensamento eu­
ropeu desde muito antes de Kant, pelo menos desde a época dos
gregos, e seu usou não findou até a época de Kant. O que é notável
nos critérios de Kant sobre o presente é que eles são todos negativos.
O iluminismo significa uma saída, uma escapatória: escapar da tutela,
sair do estado de dependência. Aqui, Kant não está falando das ori­
gens do Iluminismo, ou de suas fontes, ou de sua evolução histórica.
Nem tampouco está falando do objetivo histórico do Iluminismo. Ele
está preocupado apenas com o presente em si mesmo, com aquelas
propriedades exclusivas que definem o presente como diferente do
passado. Kant está procurando a definição do Iluminismo, ou, de for­
ma mais abrangente, da modernidade, na diferença colocada pelo
presente.
Sublinhemos essa assertiva e deixemo-la de lado por um mo­
mento; retornarei a ela mais tarde. Voltemo-nos para outro aspecto
interessante do ensaio de Foucault. Vamos supor que concordamos
com o fato de que a autonomia e a auto-suficiência em termos morais
tenham se tornado normas genericamente aceitas. Concedamos tam­
bém que a liberdade de pensamento e de expressão tenha sido reco­
nhecida como a condição necessária para a autonomia. Mas liberda­
de de pensamento não significa que as pessoas são livres para fazer
apenas o que lhes apetecer a cada momento e para cada ato da vida
cotidiana. Admiti-lo seria negar a necessidade de regulação social e
clamar por anarquia total. Obviamente, os filósofos do Iluminismo não
poderiam ter querido dizer tal coisa. Ao mesmo tempo em que de­
mandavam autonomia individual e liberdade de pensamento, eles tam­
bém tinham de especificar aquelas áreas da vida pessoal e social em
que a liberdade de pensamento poderia operar e aquelas áreas em
que, independente das opiniões individuais, as diretrizes ou regulações
da autoridade reconhecida teriam de prevalecer. Em seu ensaio “O
que é o Iluminismo?” Kant realmente especificou tais áreas.
A forma como ele procede para fazer isto é separar duas esferas
do exercício da razão. Uma delas Kant chama de “pública”, em que
os temas de interesse geral são discutidos e em que a razão não é
mobilizada para a satisfação de interesses individuais ou para o apoio
a um grupo particular. A outra é a esfera do uso “privado” da razão,
que é relativo à busca pela satisfação de interesses individuais ou
particulares. Na primeira esfera, a liberdade de pensamento e expres­
são é essencial; na segunda, é absolutamente indesejável. Ilustrando
esse argumento, Kant diz que quando há um debate “público” sobre
a política fazendária do governo, deve ser dada àqueles que são co­
nhecedores da matéria a liberdade de expressar suas opiniões. Mas,
como um indivíduo “privado” , não posso defender que, caso discorde
da política fiscal do governo, eu deva ter a liberdade de não pagar
impostos. Se houver uma discussão “pública” sobre a organização
militar e a estratégia de guerra, mesmo um soldado poderá participar,
mas no campo de batalha seu dever não é expressar suas livres opi­
niões mas cumprir ordens. Em um debate “público” sobre a religião,
posso, mesmo como membro de uma seita religiosa, criticar as práti­
cas e crenças de minha ordem, mas, em minha função “privada”
como pastor meu dever é pregar as doutrinas autorizadas de minha
seita e observar suas práticas autorizadas. Não pode haver nenhuma
liberdade de expressão no domínio “privado”.
Esse uso particular feito por Kant das noções de “público” e “pri­
vado” não alcançou uma grande circulação nas discussões posterio­
res. Ao contrário, o consenso usual na filosofia social liberal é o de que
é na esfera “privada” ou pessoal que deveria haver liberdade irrestrita
de consciência, opinião e comportamento, enquanto a esfera da
interação “pública” ou social deveria estar sujeita a normas reconheci­
das e regulações que deveriam ser respeitadas por todos. Mas, inde­
pendente do quanto o uso kantiano da distinção público/privado seja
pouco usual, não é difícil para nós entender seu argumento. Quando
minhas atividades dizem respeito a um domínio no qual enquanto indi­
víduo sou apenas uma parte de uma organização ou sistema social
mais amplo, um mero dente na engrenagem social, então meu dever
é conformar-me às regulações e seguir as diretrizes da autoridade
reconhecida. Mas há um outro domínio do exercício da razão que não
é restringido por esses interesses particulares ou individuais, um domí­
nio que é livre e universal. Este é o local adequado para o livre pensa­
mento, para o cultivo da ciência e da arte - o local adequado, em
uma palavra, para o “esclarecimento”.
É válido apontar que neste domínio universal da busca pelo co­
nhecimento - o domínio que Kant denomina “público” - é o indivíduo
que está em causa. A condição para o verdadeiro Iluminismo é a
liberdade de pensamento. Quando o indivíduo em busca de conheci­
mento procura elevar-se acima de seu lugar social particular e partici­
par do domínio universal do discurso, seu direito à liberdade de pensa­
mento e opinião deve ser desobstruído. Ele também deve ter autori­
dade total para formar suas próprias crenças e opiniões, da mesma
forma que deve suportar a total responsabilidade por expressá-las.
Não há dúvida de que Kant está aqui requisitando o direito de livre
expressão apenas para aqueles que cumprem os requisitos de quali­
ficação para se engajar no exercício da razão e na busca pelo conhe­
cimento e para aqueles que podem usar essa liberdade de uma forma
responsável. Ao discutir o ensaio de Kant, Foucault não levanta esse
ponto, muito embora ele bem pudesse tê-lo feito, dada a relevância
desse tema para o seu próprio trabalho. É o tema da ascensão dos
peritos e da autoridade ubíqua dos especialistas, um fenômeno que
aparece em paralelo à aceitação social geral do princípio de acesso
irrestrito ao sistema educacional e de ensino. Dizemos, por outro lado,
que é errado excluir qualquer indivíduo ou grupo do acesso à educa­
ção ou da prática do conhecimento com base na religião e/ou outros
preconceitos sociais. Por outro lado, insistimos também que a opinião
desta ou daquela pessoa é mais aceitável porque se trata de um
perito nesse campo. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que
entendemos por iluminismo um campo irrestrito e universal para o
exercício da razão, construímos uma intrincada estrutura diferenciada
de autoridades que especifica quem tem o direito de dizer o quê sobre
quais assuntos. Como marcas dessa autoridade, distribuímos exa­
mes, graus, títulos, insígnias de todo tipo. Pensem apenas em quantas
espécies diferentes de peritos temos de permitir que nos guiem ao
longo de nossas vidas cotidianas, desde o nascimento, na verdade
desde antes do nascimento, até a morte e mesmo depois. Em muitas
áreas, de fato, é ilegal agir sem o aconselhamento de peritos. Se éu
não tiver eu mesmo um título ou licença em medicina, não posso
entrar em uma farmácia e dizer: “espero que você saiba que há um
acesso irrestrito ao conhecimento, porque eu li todos os livros de
medicina e creio que preciso dessas drogas”. Em países com
escolarização universal, é obrigatório que as crianças freqüentem es­
colas reconhecidas; eu não poderia insistir em educar meus filhos em
casa. Há também identificações claramente precisas sobre quem é
perito em qual assunto. Hoje, por exemplo, neste encontro particular,
estou falando de história, filosofia social e temas relacionados, e vocês
vieram aqui para me ouvir, seja por interesse ou por simples cortesia.
Se eu tivesse anunciado que falaria de radiação na ionosfera ou da
molécula de DNA, eu teria definitivamente de falar para um auditório
vazio e alguns de meus amigos mais próximos provavelmente teriam
corrido para consultar peritos em desordens mentais.
Desnecessário dizer, os escritos de Michel Foucault nos ensina­
ram nos últimos anos a olhar para a relação entre as práticas de
conhecimento e as tecnologias de poder de um ângulo extremamen­
te novo. A resposta de Kant, dois séculos atrás, para a pergunta “O
que é Iluminismo?” poderia parecer à primeira vista uma afirmação
precoce do maior lugar comum da auto-representação da moderna
filosofia social. E contudo, agora podemos ver incrustadas naquela
afirmação as não muito bem reconhecidas idéias de acesso diferenci­
al ao discurso, de autoridade especializada de peritos e dos instru­
mentos do conhecimento para o exercício do poder. O entusiasmo
irresistível que se nota nos escritos dos filósofos ocidentais do Iluminismo
sobre uma modernidade que acarretaria a era da razão universal e da
emancipação não parece a nós, testemunhas de muitas barbarida­
des da história mundial nos últimos duzentos anos - e digo isto com
as devidas desculpas ao grande Immanuel Kant - tão maduro, no
mínimo. Hoje, nossas dúvidas acerca das reivindicações da
modernidade estão completamente abertas.

Uma Modernidade Que É Nacional

Mas não dei a vocês uma resposta adequada à questão com a


qual comecei essa discussão. Por que, por mais de cem anos, os
mais destacados proponentes de nossa modernidade falaram tanto
dos sinais de declínio social em vez de falar dos sinais de progresso?
Certamente, quando Rajnarayan Basu falou sobre o declínio na saú­
de, educação, sociabilidade ou virtude, ele não o fez por conta de
algum senso de ironia pós-moderno. Deve haver algo no próprio pro­
cesso de nos tornarmos modernos que continua a nos levar, mesmo
em nossa aceitação da modernidade, a um ceticismo sobre seus
valores e conseqüências.
Meu argumento é que, por causa da forma pela qual a história de
nossa modernidade foi entrelaçada à história do colonialismo, nós nunca
pudemos acreditar que houvesse um domínio universal da livre ex­
pressão, desvinculado de distinções de raça ou nacionalidade. De
alguma forma, desde o mais remoto princípio, tivemos uma intuição
perspicaz que, dada a cumplicidade próxima de conhecimentos mo-
I dernos e regimes de poder modernos, permaneceríamos sempre con­
sumidores da modernidade universal; nunca seríamos levados a sério
como seus produtores. É por esse motivo que viemos tentando, por
mais de cem anos, voltar nossos olhos para longe dessa quimera da
modernidade universal e liberar um espaço em que pudéssemos nos
tornar os criadores de nossa própria modernidade.
Tomemos um exemplo da história. Uma das primeiras socieda­
des instruídas na índia devotada à busca por conhecimentos moder­
nos foi a Sociedade para a Aquisição de Conhecimentos Gerais, fun­
dada em Calcutá em 1838 por alguns antigos alunos do “Hindu College”
(Faculdade Hindu), muitos dos quais haviam sido membros da “Ben­
gala Jovem”, aquele celebrado círculo de radicais que se formou nos
anos de 1820 ao redor do racionalista livre-pensador Henry Derozio.
Em 1843, em um encontro da sociedade realizado na Faculdade Hindu,
estava sendo lida uma comunicação sobre “O estado atual da polícia
e da justiça criminal da Companhia das índias Orientais”. D. L.
Richardson, um conhecido professor de literatura inglesa da faculda­
de, levantou-se enfurecido e, de acordo com as atas, acusou que:
levantar-se em um salão erguido pelo governo, e no coração de uma
cidade que era o foco do iluminismo, e ali denunciar, como opressores e
ladrões, os homens que governavam o pais, equivalia, em sua opinião, a
traição... A faculdade nunca teria vindo a existir, senão pela solicitude do
governo no progresso mental dos nativos da índia. Ele não poderia permi­
tir, portanto, que o lugar fosse convertido em um covil de traição, e deveria
fechar as portas contra todos os encontros desse tipo.

Nisso, Tarachand Chakrabarti, ele próprio um antigo aluno da


Faculdade Hindu, que estava presidindo o encontro, repreendeu
Richardson:
Considero sua conduta como um insulto à sociedade... se você não se
retratar do que disse e pedir desculpas apropriadas, teremos de apresen­
tar a matéria ao Comitê do Hindu College, e se necessário ao próprio
governo. Nós obtivemos o uso deste salão público, através de permissão
pedida ao Comitê e por este concedida, e não através de seu favor
pessoal. Você e apenas um visitante nesta ocasião especifica, e nao
possui o direito de interromper um membro dessa sociedade na expressão
de suas opiniões.45
Esse episódio é comumente narrado nos relatos padrão como
um exemplo de sentimentos nacionalistas precoces entre a nova
“intelligentsia” bengali. Não que não haja verdade nessa observação,
mas ela não reside no drama óbvio de um indiano educado confron­
tando seu professor britânico. Antes, o que é significativo é a separa­
ção entre o domínio do governo e aquele “desta sociedade”, e a insis­
tência em que, uma vez que os procedimentos requisitados tivessem
sido cumpridos, os direitos dos membros da sociedade de expressar
suas opiniões, independente do quanto elas fossem críticas ao gover­
no, não poderiam ser violados. Poderíamos dizer que neste momentd
fundante da modernidade nós queríamos genuinamente acreditar quel
no novo domínio público da livre expressão não havia barreiras de cot
ou de status político de dada nacionalidade, que se uma pessoa pu­
desse provar sua competência no tema em discussão, ela teria o
direito irrestrito de expressar sua opinião.
Não demorou muito para que a desilusão se instalasse. Pela se­
gunda metade do século XIX, vemos a emergência das sociedades
“nacionais” para a busca de conhecimentos modernos. As socieda­
des instruídas da época anterior tinham membros tanto europeus quan­
to indianos. As noV&s instituições eram exclusivamente para membros
indianos e eram devotadas ao cultivo e à disseminação das ciências
modernas e das artes entre indianos, se possível em línguas indianas.
Eram, em outras palavras, instituições pela “nacionalização” dos co­
nhecimentos modernos, localizadas em um espaço de alguma forma
situado à parte do campo do discurso universal, um espaço onde o
discurso seria moderno, e contudo “nacional”.
Este é um projeto que ainda está sendo perseguido hoje. Seus
sucessos variam de campo para campo. Mas, a não ser que possa­
mos estabelecer por que o projeto foi considerado afinal viável, e quais
condições governaram sua viabilidade, não seremos capazes de res­
ponder à questão que coloquei no começo desta fala sobre as pecu­
liaridades de nossa modernidade. Poderíamos tomar como exemplo
nossa experiência com a prática de qualquer um dos ramos dos co­
nhecimentos modernos. Já que eu iniciei essa fala com uma discus­
são sobre o corpo e sua saúde, deixem-me contar a vocês a história
de como nos familiarizamos com a ciência moderna da medicina.
Em 1851, foi aberta na Faculdade de Medicina de Calcutá uma
seção em bengali, de modo a treinar estudantes indianos em medici­
na ocidental sem antes ter de submetê-los a um curso de educação
secundária em inglês. Os cursos de Medicina e de Farmácia em bengali
foram um grande sucesso. Começando com meros vinte e dois alu-
nos em seu primeiro ano, a seção ultrapassou a seção em inglês em
1864, e em 1873 tinha 772 alunos em comparação aos 445 da seção
em inglês. Em grande parte por conta da demanda dos alunos, quase
setecentos livros de medicina foram publicados em bengali entre 1867
e 19Q0.46
Mas enquanto os cursos permaneceram populares, começaram
a serem ouvidas queixas desde cerca de 1870 sobre a qualidade do
treinamento dado aos estudantes nas seções vernaculares. Alegava-
se que sua dificuldade em inglês tornava-os inadequados para posi­
ções de assistentes d.e médicos europeus em hospitais públicos. Esse
era o tempo em que um sistema hospitalar estava começando a ser
montado em Bengala e os controles profissionais estavam começan­
do a ser reforçados na forma da supervisão do Conselho Médico Ge­
ral de Londres. Desde a virada do século, com a institucionalização
das práticas profissionais de medicina na forma de hospitais, conse­
lhos médicos e drogas patenteadas, a seção em bengali da faculdade
teve uma morte rápida. Desde 1916 toda a educação médica em
nosso país é exclusivamente em inglês.
Mas a história não termina aí. Curiosamente, esse também foi o
tempo no qual foram feitos esforços, impulsionados por preocupações
nacionalistas, de dar aos sistemas de medicina ayurvédico e yunana
uma nova forma disciplinar. O “Ali India Ayurvedic Mahasammelan”,
que é ainda o corpo supremo dos praticantes ayurvédicos, foi institu­
ído em 1907. O movimento representado por esta entidade buscava
sistematizar o conhecimento dos métodos clínicos ayurvédicos, prin­
cipalmente através da produção de edições padronizadas de textos
clássicos e recentes, da institucionalização dos métodos de treina­
mento pela formalização, em lugar do tradicional aprendizado familiar,
de um sistema acadêmico baseado em conferências, livros didáticos,
cursos de estudos, exames e títulos, e da padronização dos remédios
e mesmo da promoção da produção comercial de drogas padroniza­
das por fabricantes farmacêuticos. Houve debates dentro do movi­
mento sobre a extensão e a forma da adoção da medicina ocidental
dentro do currículo do treinamento ayurvédico, mas mesmo os puris­
tas admitiam agora que o curso deveria contar com “o benefício dos
equipamentos ou dos métodos usados por outros sistemas de medi­
cina ... uma vez que, consistente com seus princípios fundamentais,
nenhum sistema médico pode jamais ser moralmente imputado por
copiar qualquer outro ramo da ciência,... sem que se negue a nature­
za universal das crenças científicas”.47
A própria idéia da universalidade da ciência está sendo usada
aqui para estabelecer um espaço separado para a medicina ayurvédica,
definida de acordo com os princípios de uma tradição “pura”, e contu­
do reorganizada como uma disciplina moderna científica e profissional.
A reivindicação aqui não è a de que o campo do conhecimento seja
dividido em domínios separados pelo fato da diferença cultural; não
está sendo sugerido que ayurveda seja o sistema médico apropriado
para as ‘‘doenças indianas”. É antes uma reivindicação de uma ciên­
cia alternativa dirigida aos mesmos objetivos de conhecimento.
Certamente vimos muitas tentativas desse tipo nos campos da
literatura e das artes, de construir uma modernidade que seja diferen­
te. De fato, poderíamos dizer que esse é precisamente o projeto cul­
tural do nacionalismo: produzir uma modernidade distintivamente na­
cional. Obviamente, não há uma regra geral que determine quais se­
riam os elementos que da modernidade e quais os emblemas da dife­
rença. Houve muitos experimentos fim mi litos campos; eles continu­
am ainda hoje. Meu argumento era o de que esses esforços não se
restringiram apenas aos domínios supostamente culturais da religião,
literatura e artes. A tentativa de encontrar uma modernidade diferente
ocorreu mesmo no campo presumivelmente universal da ciência. Po­
deríamos recordar que um cientista da estatura de Prafulla Chandra
Ray, um associado da “Royal Society”, achou que valia a pena escre­
ver “Uma história da química hindu”, ao passo que Jagadis Chandra
Bose, também um associado da Royal Society, acreditava que as
pesquisas que conduzira na última parte de sua carreira eram deriva­
das de “insights” que provinham da filosofia indiana. Em particular, ele
acreditava que havia encontrado um campo da pesquisa científica
que era adequado unicamente a um cientista indiano. Essas pesqui­
sas de Jagadis Bose não obtiveram muito reconhecimento na comu­
nidade científica. Mas me parece que se nós agarrarmos o que o
levou a pensar em um projeto como este, teremos uma idéia da prin­
cipal força motora de nossa modernidade.

História Atual Na Era Da Globalização

Sempre que penso no lluminismo, me vêm à mente as inesque­


cíveis primeiras linhas do romance de Kamalkumar Majumdar, Antarjãti
Yãtrã:
A luz surge gradualmente. O céu está gelidamente violeta, como a cor do
romã. Em poucos momentos, o vermelho chegará a prevalecer e nós, os
plebeus desta terra, seremos mais uma vez abençoados pelo calor das
flores. Gradualmente, a luz surge.48

A modernidade é a primeira filosofia social que conjura nas men­


tes da maior parte das pessoas comuns sonhos de independência e
auto-governo. O regime de poder nas sociedades moderoas-pcefere
funcionar não através dos comandos defuma soberania suprema,
.mas através de práticas disciplinares aue cada indivíduo impõe a seu
próprio comportamento na base dos ditames da razão. Eyeentudo,
não importa o quão habilmente a fábrica da razão possa disfarçar a
realidade do poder, o deseio de autonomia continua a se levantar
contra o poder; o poder enfrenta resistências. Lembremo-nos que
houve um tempo em que a modernidade era colocada como o mais
forte argumento em favor da continuada sujeição colonial da índia: o
governo estrangeiro era necessário, nos diziam, porque os indianos
deviam antes se tornar esclarecidos. E então foi a mesma lógica da
modernidade que um dia nos levou à descoberta de que o imperialis­
mo era ilegítimo; a independência era o nosso objetivo desejado. O 1
fardo da razão, os sonhos de liberdade; a vontade de poder, a resis­
tência a ele: são todos elementos da modernidade. A terra prometida'
da modernidade não existe fora da rede do poder. Assim não se podei
ser contra ou a favor da modernidade; pode-se apenas vislumbrar
estratégias para enfrentá-la. Essas estratégias são por vezes benéfi­
cas, quase sempre destrutivas; algumas vezes são tolerantes, talvez
também muito freqüentemente sejam aterradoras e violentas. Como
eu disse antes, tivemos de abandonar há muito tempo a simples fé de
que algo, por ser moderno e racional, teria necessariamente de ser
para o bem.
No fim do romance de Kamalkumar, uma inundação terrível como
a mão inexorável do destino varre do mapa a decadente sociedade
hindu. Com isso, também leva embora aquela que era viva, bonita,
afetuosa e gentil. O plebeu intocável não pode salvá-la, porque ele
não está autorizado a tocar no que é sagrado e puro.
Um único olho, como o olho espelhado na cicuta, continuou olhando para
ela, a noiva buscando o primeiro gosto do amor. O olho é lenhoso, porque
está pintado no bordo do barco; mas está pintado de carmesim, e tem
gotas de água das ondas que agora quebram gentilmente contra o barco.
O olho lenhoso é capaz de derramar lágrimas. Em algum lugar, portanto,
permanece um senso de ligação.

Esse senso de ligação é a força motora de nossa modernidade.''


Seríamos injustos com nós mesmos se o encarássemos como uma
visão saudosista, como um sinal de resistência à mudança. Ao con­
trário, é a nossa ligação com o passado que faz nascer o sentimento
de que c presente precisa ser mudado, que é nossa tarefa mudá-lo.
Devemos nos lembrar que na arena mundial da modernidade, nós
somos proscritos, intocáveis. A modernidade para nós é como um
supermercado de bens importados, dispostos nas prateleiras: pague
e leve o que você quiser. Ninguém aqui acredita que possamos ser
produtores da modernidade. A verdade amarga sobre nosso presente
é a nossa sujeição, nossa inabilidade de sermos sujeitos de nosso
próprio direito. E, contudo, é porque queremos ser modernos que
nosso desejo de sermos independentes e criativos é transposto para
o passado. É supérfluo chamar a isto de passado imaginado, porque
os passados são sempre imaginados. No extremo oposto de um “hoje
em dia” marcado pela incompletude e pela falta de realização, cons­
truímos uma imagem “daqueles dias” em que tudo era beleza, pros­
peridade e sociabilidade saudável, e que era, acima de tudo, uma
criação nossa. “Aqueles dias” para nós não são um passado histórico;
nós os construímos apenas para marcar a diferença colocada pelo
I presente. Tudo o que precisa sernotado é que enguanto-Kant, falan-
1 do no momento fundante da modernidade ocidental, olha para o pre-
| sente como o lugar para onde se escapa do passado, para nós é
I precisaments-do presente que sentimosTeT<3ü'êSüâpã?Jsso torna a
* própria modalidade de nossa lida com a modernidade radicalmente
diferente dos modos desenvolvidos historicamente pela modernidade
ocidental.
A nossa é a modernidade doajá colonizados. O mesmo processo
histórico que nos ensinou o valor da modernidade também nos tornou
vítimas dela. Nossa atitude para com a modernidade, portanto, não
pode ser senão profundamente ambígua. Isso se reflete na forma como
viemos descrevendo nossas experiências com a modernidade no últi­
mo século e meio, de Rajnarayan Basu até nossos contemporâneos
hoje. Mas essa ambiguidade não brota de nenhuma incerteza sobre
ser a favor ou contra a modernidade. Antes, a incerteza é devida a
sabermos que, para modelar as formas d^nossãlTTüdSrfíiSade, p re cf
samos ter a coragem de por vezes rejeitar as modernidades
estabelecidas por outros.. Na era do nacionalismo, houve muitos es­
forços desse gênero que refletiam tanto coragem quanto inventividade.
Nem todos foram, é claro, igualmente bem sucedidos. Hoje, na era
da globalização, talvez seja mais uma vez chegado o tempo de mobi­
lizar esta coragem. Talvez precisemos pensar sobre “aqueles dias” e o
“hoje em dia” da nossa modernidade.
[

L.
A Nação Em Tempo Heterogêneo*

*N R Os capítulos que se seguem fazem parte de um ciclo de três conferências “A


política dos governados: considerações sobre a sociedade política na maior parte
do mundo”, proferidas no Leonard Hastings Schoff Memorial, Columbia University,
New York, novembro de 2001..
'fa i. Í T ' C,K V

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X
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xl
Colonialismo, Modernidade e Política
I
.Meu tema é a política popular na maior parte do mundo. Quando
digo “popular”, não presumo necessariamente uma forma institucional
ou um processo político particular. Eu sugiro, entretanto, quexQüjtoda
pplítica que descrevo é condicionada pelas funções e atividades dos
Sistemas governamentais modernos, que têm-se tornado parte do
que se espera serem as funções dos governos por todo o mundo.
FssaRexpentativas_fiatividades produziram, argumentarei, certas re-
ja çõ esentre governos e populações. A política popuiãTque deScrSvê1
rei cresce"sobre'olerreno dessas relações, e é conformada por elas.
O que quero dizer com “maior parte do mundo" vai-se tornar mais
claro, espero, ao longo desse texto. Refiro-me, em um sentido geral,
àquelas partes do mundo que não participaram diretamente da histó­
ria da evolução institucional da democracia capitalista moderna, as
quais poderiam ser tomadas, de forma imprecisa, como o Ocidente
moderno. Mas, como indicarei, há uma presença significativa deste
Ocidente moderno em muitas sociedades não ocidentais, assim como
há, de fato, largos setores da sociedade ocidental contemporânea
que não são necessariamente partes da entidade histórica conhecida
como Ocidente moderno. De toda forma, se eu fizesse uma estimati­
va grosseira do número de pessoas no mundo que estariam
conceitualmente incluídas em minha descrição da política popular, eu
diria que estou falando da vida política de bem mais que três quartos
da humanidade contemporânea.
Os conceitos familiares da teoria social que precisarei revisitar
nestas conferências são os de sociedade civil e de Estadp, os de
cidadania e direitos, os de afiliações universais e identidades particula-
<11. - - --- — --- ------ ---—--— .... ^ . ------- ---- ‘
res.Umavez que estarei observando a,política popular, devo também
considerar a questão da democracia. Muitos desses conceitos não
parecerão mais tão familiares depois que neles eu puser minhas len­
tes e persuadir vocês a olhar através delas. A sociedade civil, por
exemplo, vai aparecer como uma associação fechada de grupos de
elite modernos, separada da mais ampla vida popular das comunida­
des, encastelada em enclaves de liberdade cívica e lei racional. A
cidadania vai tomar duas formas diferenciadas - a cidadania formal e
a cidadania efetiva. E, diferentemente da forma antiga, conhecida
entre nós desde os gregos até Maquiavel e Marx, convidarei vocês a
não falar de dominantes e dominados, mas daqueles que governam e
daqueles que são governados. “Governância11, o novo chavão nos
estudos das políticas públicas, é, sugiro,^ocorpode conhecimento e o
conjuntode técnicas usados pgraguelesque gox^m araouj
rejs£££teÍQS.49 A democracia hoje, insistirei, nao é crgovemo do povo,
pelo povo e para o povo. Antes, deveria ser vista como a i
governados.
f Esclarecerei meus argumentos conceituais e elaborarei questões
/ sobre eles na segunda conferência dessa série. Para introduzir minha
f discussão da política popular, deixem-me começar propondo um con­
flito situado no cerne da política moderna na maior parte do mundoÍE-T
a oposição entre a idéia de nacionalisrno~Cítfíco, baseado nas liberda­
des individuais e direitos iguais independentes de distinções de reli- r
gião, raça, língua ou cultura, e as demandas particulares da identida­
de cultural que reclama tratamento diferenciado de grupos particula­
res, baseando-se em vulnerabilidade, atraso ou injustiça histórica, ou!
mesmo muitas outras razõesp \ oposição, a rg u m ljn ta i^
ca da"transíçaülídêocõrriu na política moderna, no decurso do sé­
culo XX, de uma concepção de política democrática, baseada na idéia
de soberania popular, em direção a uma concepção segundo a qual a
política democrática é conformada pelo governamental.50 O ideal uni-
versal de nacionalismo cívico é captado de forma correta poi^BenedicT
Andersõn^juando argumenta, no seu livro já clássico, Comunidades
Imaginadas, que a Nação vive num tempo homogêneo vazio.51 Nisso
ele estava seguindo, de fato, uma corrente dominante do pensamen­
to histórico moderno, que imagina o espaço social da modernidade
como se estivesse distribuído em um tempo homogêneo vazio. Um
marxista poderia denominar a esse tempo, capital. Anderson adota
explicitamente a formulação d^Waiter^enjaifíirr^ a usa com o resul­
tado brilhante de demonstrar as possibilidades materiais de sociabili­
dades anônimas enormes, sendo formadas pela experiência simultâ­
nea da leitura de jornais diários ou pela experiência de acompanhar as
vidas privadas de personagens ficcionais populares. É essa mesma
simultaneidade experimentada no tempo homogêneo vazio que nos
permite falar da realidade de categorias da política econômica, tais
j^o m o ^ r e ç o s^^salários, mercados e assim por diante^O tempo j.
homogêneo vazio é o tem po"do'CapitarDêntro^e^eu domínio, o J
capital não leva em consideração nenhuma resistência à sua livre
movimentação. Quando encontra um impedimento, acredita que en­
controu um outro tempo - algo como o pré-capital, algo que pertencei
ao pré-moderno. Tais resistências ao capital (ou à modernidade) sãp
portanto compreendidas como oriundas do passado da humanidade,
algo que as pessoas deveriam ter deixado para trás mas que de alqju-
ma forma não deixaram. Mas, ao imaginar o capital (ou a modernidade)
como um atributo do próprio tempo, essa perspectiva consegue rfeo ,
apenas rotular as resistências de arcaicas e atrasadas, como tajn- i
bém assegurar ao capital e à modernidade o seu triunfo último, inde- l
pendente das crenças e esperanças que algumas pessoas possam
ter, porque afinal de contas, como todo mundo sabe, o tempo-oão-'
para..
Em seu livro recente, The Spectre o f Comparisons. ^ fíaersom
deu prosseguimento à análise feita em Comunidades Imaginadas, dis­
tinguindo o nacionalismo e a política da etnicidade. Ele o faz identifi­
cando dois tipos de série produzidas pelo imaginário moderno da co­
munidade. Uma é a série irrestrita dos universais cotidianos do pensa-
mento social moderno: nações, cidadãos, revolucionários, burocra­
tas, trabalhadores, intelectuais, e assim por diante. A outra é a sérja,
restrita do governamental: os totais finitos de classes populacionais
efrumérávèis produzidos pelos censos e pelos sistemas eleitorais mo-
dernos.Jgéries irregjgtas são tipicamente imaginadas e narradas por
meio de instrumentos clássicos do “capitalismo impresso”, nomeada­
mente os jornais e o romance. Eles permitem aos indivíduos a oportu­
nidade de imaginar a si mesmos como membros de solidariedades
mais extensas que aquela exercida face a face, a oportunidade de
decidir atuar no interesse dessas solidariedades, a oportunidade de
transcender por um ato de imaginação política os limites impostos por
práticas tradicionais. Séries irrestritas são potencialmente iiberadoras.
Séries restritas, em contraposição, só podem operar com inteiros.
Isso implica em que, para cada categoria de classificação, cada indi­
víduo só pode contar como um ou como zero, nunca como uma
fração, o que por sua vez significa que todas as afiliações parciais ou
mistas são excluídas. Uma pessoa pode ser negra ou não negra,
muçulmana ou não muçulmana, tribal ou não tribal, nunca apenas
parcialmente ou contextualmente uma dessas categorias. Séries res­
critas. suaerefffndersõnjsão limitadoras e talvez inerentemente
conflituosas. ElasareflüzSm as ferramentas dapolítica étnica.
Anderson usa essa distinção entre séries restritas ou irrestritas
para construir seu argumento sobre o bem residual do nacionalismo e
a sordidez irremediável da política étnica. Ele é claramente sagaz em
preservar o que é genuinamente ético e nobre no pensamento crítico
universalista do lluminismo. Confrontado com os fatos indubitáveis da
mudança e do conflito histórico, a aspiração aqui é afirmar um univer­
sal ético que não nega a variedade de desejos e valores humanos,
nem os põe de lado como irrelevantes ou efêmeros, mas antes os
circunscreve e integra como o terreno histórico real no qual aquele
universal ético deve ser estabelecido. Anderson, na tradição de boa
parte do pensamento historicista progressista do século XX, vê a polí­
tica do universalismo como algo que^perfênc^ao próprio caráter do
tempo em que vivemos. Ele fala da “disseminação planetária notável,
não apenas do nacionalismo, mas de uma concepção de política pro­
fundamente padronizada, refletida em parte nas práticas cotidianas,
enraizadas na civilização material industrial, que deslocou o cosmos
para dar passagem ao mundo”.52 Tal concepção de política requer
um entendimento do mundo como “um", de forma que uma atividade
comum chamada política possa ser vista como indo a todos os luga­
res. Deve-se notar que tempo, nessa concepção, facilmente se tra­
duz por espaço, dS~forrna que deveríamos aqui falar na verdadeudo.,
espaço-tempo da modernidade. Assim, a política, neste sentido, ha­
bita o espaço-tempo homogeneo vazio da modernidade.
Eu discordo. Acredito que essa visão da modernidade, ou mes-
n- -\
mo do capfedTé equivocada porque é unilateral. Observa-se apenas
uma dimensão do espaço-tempo da vida moderna. As pessoas po­
dem apenas imaginar-se no tempo homogêneo vazio; elas não vivem
nele. O tempo homogêneo vazio é o tempo utópico do capital. Ele
conecta linearmente passado, presente e futuro, criando a possibili­
dade de todas aquelas imagens historicistas de identidade, nacionali­
dade, progresso, e assim por diante, que Anderson, entre muitos ou­
tros, tornou familiares a nós. Mas o tempo homogêneo vazio não está
localizado em nenhum lugar do espaço real - ele é utópico. O espaço
real da vida moderna consiste da heterotopia (meu débito para com
Michel_FQUGagl?|deveria ser óbvio, mesmo não estando sempre de
acordo com o uso que faz desse termo).53 O tempo aqui é heterogêneo!
irregular e denso. Aqui, mesmo os operários industriais não internalizaml
todos a disciplina de trabalho do capitalismo, e, mais curiosamente,!
mesmo quando o fazem, eles não o fazem da mesma maneira. AÍ
política aqui não significa a mesma coisa para todas as pessoas. Igno-,
rar isto, eu creio, é descartar o real em favor do utópico.
ijHorni Bhjabh.a( ao descrever o local da Nação na temporalidade,
apontou alguns anos atrás para a forma com que a narrativa da Na­
ção tendeu a ser dividida por um tempo duplo, e por conseguinte
lançada em uma inevitável ambivalência: em um dos tempos, o povo
era objeto de uma pedagogia nacional porque estava sempre em cons­
trução, em um processo de progresso histórico, ainda não desenvol­
vido ao nível da reaiizaçaó do^estlno haciõnaf; mas no outro, a unida-
de do povo, sua identificação permanente com a Nação, tinha de ser
continuamente significada, repetida e colocada em cena.54 Tentarei
nesta conferência ilustrar alguns dos exemplos dessa ambivalência e
argumentar que eles são um aspecto inevitável da própria política
moderna. Desconsiderá-los implica ou em uma piedade condescen­
dente ou em um endosso da estrutura de dominação existente no
âmbito da Nação.
É possível citar muitos exemplos, tirados do mundo pós-colonial,
que sugerem a presença de um tempo denso e heterogêneo. Nesses
lugares, pode-se mostrar capitalistas industriais postergando o fecha­
mento de um negócio porque não consultaram ainda seus respecti­
vos astrólogos, ou operários que não tocam em uma nova máquina
até que ela seja consagrada com ritos religiosos apropriados, ou elei­
tores que ateiam fogo a si mesmos para lamentar a derrota de seu
líder favorito, ou ministros que abertamente se vangloriam de ter asse­
gurado mais empregos para pessoas de seu clã e ter mantido os
outros de fora.^ Chamar a isso co-presença de muitos tempos - o
I tempo do moderno e os tempos do pré-moderno - é apenas endos-
I sar a utopia da modernidade ocidental. Muitos trabalhos etnográficos
| recentes estabeleceram que esses “outros" tempos não são meras
I sobrevivências de um passado pré-moderno: eles são novos produtos
1 do encontro com a própria modernidade. E para levar meu argumen-
I to polêmico um pouco mais adiante, eu acrescentarei que o mundo j
I pós-colonial fora da Europa e da América do Norte constitui |
I efetivamente a maior parte do mundo povoado modernaj ------
Deixem-me discutir, com algum detáíhé. um exemplo da tensão
contínua entre a dimensão utópica do tempo homogêneo do capital e
o espaço real constituído pelo tempo heterogêneo do g ove rn a m e n ta l,
assim como os efeitos produzidos por essa tensão nos esforços para
narrar a Nação.
II 75
É espggjaljTienteapropriado falar na Universidade de Columbia
snhrfí Rhimran RarniTAmbedkãr^l 891 -1956) porque ele foi um de

Colonialismo, Modernidade e Política


seus mais notáveis estudantes. Nascido na comunidade de intocáveis
Mahar em Maharashtra, na índia, ele lutou contra obstáculos estu­
pendos para alcançar a educação superior e se qualificar para uma
carreira profissional. Obteve um doutorado em Ciência Política pela
Universidade de Columbia em 1917 e sempre recordou a influência
que exerceram sobre ele os professores John Dewey e Edwin
Seligman.55 Ele é famoso na índia por ser o mais destacado líder po­
lítico no século XX dos Dalit - as antigas castas intocáveis. Nesse
papel, tem sido tanto celebrado quanto vilipendiado por sua ativa luta
em prol de uma representação política separada para os Dalits, de
cotas preferenciais e ações afirmativas a seu favor na educação e no
funcionalismo público, e da construção de sua identidade cultural dis­
tinta, atrelada à conversão a uma outra religião - o budismo. Ao mes­
mo tempo, Ambedkar é também famoso por ter sido o principal
arquiteto da constituição indiana, um ardoroso defensor do Estado
modernizador intervencionista e da proteção legal às virtudes moder-
nas da cidadania igualitária e do secularismofRaras vezêsatensão
entre a homogeneidade ütüplcãea heterogeneidade real desempe­
nhou um papel mais dramático do aue na ecnreifaJntelectual e política
\ de B. R. Ambedkar.
Não me proponho aqui a fornecer uma biografia intelectual com­
pleta de Ambedkar, o que seria uma tarefa para a qual não teria com­
petência, mas cujo trabalho definitivo, creio, ainda está para ser feito.
O que farei em vez disso será focalizar certos momentos de sua bio­
grafia para sublinhar as contradições nostas a uma política moderna
pelas demandas rivais de cidadania universal, por um lado, e proteção_,
dos direitos particulares, por outro. Minha tarefa será demonstrar que, j
não existe uma narrativa histórica disponível sobre Nação que possa ]
resolver essas contradições.
Ambedkar era um modernista puro. Ele acreditava na ciência, na
história, na racionalidade, no secularismo e acima de tudo no Estado
I moderno como os lugares para a realização do sentido da vida huma-
I na. Mas, como um intelectual dos Dalits, ele não podia fugir à ques-
[ tão: qual a razão para a forma particular de desigualdade social prati­
c a d a no âmbito do chamado sistema de castas da índia? Em seus
dois mais importantes trabalhos, Who were the Shudras (1946) e The
" Untouchables (1948), Ambedkar buscou a origem histórica específica
da intocabilidade.86 Concluiu que a intocabilidade não recuava a tem­
pos imemoriais; ela tinha uma história definida que podia ser cientiflca-
mente estabelecida como não sendo anterior a cerca de 1.500 anos.
Não é necessário para nós julgar a plausibilidade da teoria de
Ambedkar. O mais significativo para nossos propósitos é a estrutura
narrativa que ela sugere. Havia, ele argumentava, no começo, um
estado de igualdade entre os brâmanes, os sudras e os intocáveis.67
Essa igualdade, além disso, não existiu apenas em algum estado mi­
tológico de natureza, mas em um momento histórico definido no qual
todas as tribos indo-.arianas eram constituídas de pastores nômades.
Veio então o estágio da agricultura sedentária e da reação, na forma
do budismo, contra a religião sacrificial das tribos védicas. A isso se
seguiu o conflito entre os brâmanes e os budistas, o que levou à
derrota política do budismo, à degradação dos sudras, e a que os
“homens partidos” comedores de carne fossem relegados à
intocabilidade. A questão moderna da abolição das castas era então
' a busca por um retorno àquela igualdade primeva, a qual era a condi­
ção histórica original da Nação. A busca utópica pela homogeneidade
é dessa maneira tornada histórica. Essa é, como sabemos, uma nar­
rativa historicista familiar ao nacionalismo moderno.
, Para mostrar como essa narrativa é perturbada pelo tempo
heterogêneo do governamental colonial, deixem que eu me volte para
a ficção do nacionalismo
III 77
Um dos grandes romances sobre o nacionalismo indiano é Dhorai-
charít-manas (1949-1951), do escritor bengali Satinath Bhaduri (1906-

Colonialismo, Modernidade e Política


1965).58 O romance é deliberadamente construído para se adequar à
forma dos “Rarncharitmanas", a versão em hindi, escrita no século
XVI pelo poeta santo Tulsidas (1532-1623), da história épica de Rama,
o rei mitológico que, através de sua vida e de sua conduta exempla­
res, teria criado o mais perfeito reino da terra. O Ramayana de Tulsidas
é talvez o mais largamente conhecido trabalho literário em vastas re­
giões da índia em que se fala o hindi, provendo o discurso moral de
um vocabulário cotidiano que atravessa distinções de casta, classe e
seita. Diz-se também que a obra foi o mais poderoso veículo para a
generalização dos valores culturais bramânicos no norte da índia. A
cliferença da versão modernista de Satinath Bhaduri em relação ao
épico é que seu heróis, Dhorai, é oriundo de uma das castas degra­
dadas.
Dhorai é um Tatma de Bihar, no norte (o distrito é Purnea, mas
Satinath usa o nome fictício Jirania). Não é um grupo especializado na
agricultura, mas na construção de telhados de palha e na perfuração
de poços. Quando Dhorai era uma criança, seu pai morreu, e quando
sua mãe quis casar-se novamente, deixou Dhorai aos cuidados de
Bauka Bawa, o homem sagrado da aldeia. Dhorai cresceu indo de
porta em porta, acompanhando o sadhu com seu caneco de esmolar,
cantando canções, a maioria sobre o legendário rei Rama e seu reino
perfeito. O mundo mental de Dhorai está ancorado no tempo mítico.
Ele nunca freqüentou a escola mas sabe que aqueles que podem ler
o Ramayana são homens de grande mérito e autoridade social. Seus
mais-velhos - aqueles que o arrodeiam - conhecem os assuntos do
governo, é claro, e conhecem os assuntos dos tribunais e da polícia,
e alguns nas vizinhanças que trabalham nos jardins e cozinhas dos
oficiais podem contar quando o magistrado do distrito estava insatis­
feito com o presidente do conselho distrital, ou quando a nova criada
doméstica delongava-se um pouco mais durante as tardes no bangalô
do oficial de polícia. Mas sua estratégia geral de sobrevivência, aper­
feiçoada pela experiência de gerações, é ficarem afastados de confu­
sões com o governo e seus procedimentos. Uma vez, depois de uma
altercação, os moradores Dhanghars, da circunscrição vizinha, põem
fogo na cabana de Bauka Bawa. A polícia vem investigar e Dhorai, a
única testemunha ocular, é instado a dizer o que havia visto. Quando
ele está prestes a falar, percebe os olhos de Bauka Bawa. “Não fale” ,
j o bawa parece dizer. “Esta é polícia, eles partirão em uma hora. Os
[ Dhangars são nossos vizinhos, teremos de viver com eles”. Dhorai
compreende e diz à polícia que não havia visto nada, e que não sabia
quem pusera fogo em sua casa. Um dia, Dhorai, junto com outros em
sua aldeia, ouve falar de Ganhi Bawa, que, dizem, era um homem
santo maior que o seu próprio Bauka Bawa, ou mesmo que qualquer
bawa de que se tinha tido notícia, porque ele era quase tão grande
quanto o próprio senhor Rama. Ganhi Bawa, eles ouviam, não comia
carne ou peixe, nunca havia casado e perambulava completamente
nu. Mesmo o mestre-escola bengali, o homem mais instruído na área,
havia se tornado um .seguidor de Ganhi Bawa. Logo há uma sensa­
ção na aldeia, quando se descobre que uma imagem de Ganhi Bawa
aparecera em uma abóbora. Com grandes festividades, a abóbora
milagrosa é instalada no templo da aldeia e são feitas oferendas ao
maior homem santo do país. Ganhi Bawa, concordam os Tatmas, era
mesmo uma grande alma porque mesmo os muçulmanos promete­
ram parar de comer carne e cebola, e o xamã da aldeia, a quem
ninguém nunca havia visto sóbrio, jurou solenemente beber daquele
dia em diante apenas o mais leve licor e abster-se completamente do
ópio. Algum tempo depois, aíguns aídeões fizeram todo o percurso
até a sede do distrito para ver Ganhi Bawa em pessoa, e voltaram
com o entusiasmo algo esmaecido. As enormes multidões haviam-
nos impedido de ver o grande homem de perto, mas o que eles havi­
am visto era descabido. Ganhi Bawa, eles contaram, como os extra­
vagantes advogados e professores na cidade, usava óculos! Quem já
havia visto um homem santo usando óculos? Um ou dois até se per­
guntaram em surdina se o homem não poderia, afinal de contas, ser
uma farsa.
O relato intrincadamente hábil de Satinath Bhaduri sobre a for­
mação de Dhorai entre os Tatmas nas primeiras décadas do século
XX poderia facilmente ser lido como uma etnografia fiel da governância
colonial e do movimento nacionalista no norte da índia. Nós sabemos,
por exemplo, através dos estudos de Shahid Amin, como a autorida­
de de Mahatma Gandhi foi construída entre o campesinato indiano
através de relatos de seus poderes miraculosos e de rumores sobre o
destino de seus seguidores e detratores, ou como o programa do
Congresso59 e os objetivos do movimento foram eles mesmos trans­
mitidos no interior pela linguagem do mito e da religião popular.6^jSel
i Gandhi e os movimentos que ele liderou nos anos de 1920 e 1930 ^
eram um conjunto de eventos comuns que interligavam as vidas de
milhões de pessoas tanto nas cidades como nas aldeias da índia, não
constituíam uma experiência comum. Ao contrário, mesmo quando
essas pessoas participavam dos mesmos grandes eventos, como são
descritos pelos historiadores, as diversas percepções eram narradas .
em linguagens muito diferentes e habitavam universos da experiência S
também muito distintos. A Nação, mesmo se estava sendoconstjtu- ]
ida através de tais eventos, existia apenas no tempo heterogêneo. í '
Obviamente, poder-se-ia objetar que a Nação é de fato uma
abstração, ou, para usar a expressão que penedich^nd^^r^íornou
famosa, apenas “uma comunidade imaginada”, e que, portanto, a
essa construção ideal e vazia, flutuando como estava no tempo
heterogêneo, podiam ser atribuídos conteúdos variados por diversos
grupos de pessoas, todas as quais, permanecendo distintas em suas
localizações concretas, podiam de toda forma tornar-se elementos na
série irrestrita de cidadãos nacionais. Sem dúvida, esse é o sonho de
todos os nacionalistas. Satinath Bhaduri, que era ele próprio um funci­
onário de destaque na organização do Partido do Congresso no distri­
to de Purnea, compartilhava desse sonno. Ele estava agudamente
consciente da estreiteza e do particularismo das vidas cotidianas de
seus personagens. Eles ainda não haviam se tornado cidadãos naci­
onais. Mas ele estava esperançoso quanto à mudança. Ele via que
mesmo os rebaixados Tatmas e Dhangars estavam-se agitando. Seu
herói Dhorai conduz os Tatmas a desafiar os brâmanes locais e a usar
eles mesmos o fio sagrado - em um processo, que ocorria em toda a
índia nesse período, que o sociólogo M. N. Srinivas descreve como
sanscritização, mas que o historiador David Hardiman mostrou ser mar­
cado por uma contestação amarga e um confronto, em geral violento,
acerca da dominação da elite e da resistência subalterna.61 A grade
intrincada das classificações governamentais de casta e comunidade
nunca está ausente da narrativa de Satinath. Mas, numa alusão delibe­
rada à história de vida do legendário príncipe Rama, Satinath atira seu
herói Dhorai em uma cruel conspiração urdida contra ele por seus pa­
rentes. Ele suspeita de que sua mulher teria mantido uma relação com
um homem cristão da circunscrição Dhangar. Ele deixa sua aldeia, vai
para o exílio e retoma sua vida em outra aldeia, entre outras comunida­
des. Dhorai é desenraizado da estreiteza de seu lar e lançado no mun­
do. A nova ponte de metal, ao longo da qual automóveis e caminhões
passam zunindo por antigos e pesados carros de boi, abre a sua imagi­
nação. “Onde começa essa estrada? Onde ela acaba? [Dhorai] não
sabe. Talvez ninguém saiba. Algumas das carroças estão carregadas
com milho, outras trazem litigantes ao tribunal do distrito, outras ainda
levam pacientes ao hospital. Em sua mente, Dhorai vê sombras que
sugerem a ele algo da vastidão do país”.62 A Nação está tomando
forma. Satinath envia seu herói em uma jornada épica em direção à
meta prometida, não de realeza, pois já não estamos na época mítica
de Rama, mas de cidadania

IV
O sonho de Ambedkar de uma cidadania igualitária ainda tinha
que lidar com o fato das classificações governamentais. Já em 1920.
ele colocou o problema da representação enfrentado pelos intocáveis
na índia: “O direito de representação e o direito de ocupar um cargo
I
público são dois dos mais importantes direitos que compõem a cida­
dania. Mas a intocabilidade coloca esses direitos muito além do alcan­
ce dos intocáveis... eles [os intocáveis] só poderão ser efetivamente
representados por intocáveis.” A representação geral de todos os ci­
dadãos não atenderia às necessidades especiais dos intocáveis, por­
que, dados os preconceitos e práticas entranhadas entre as castas
dominantes, não havia razão para esperar que estas usassem a lei
para emancipá-los. “um legislativo composto de homens de casta
alta não aprovará uma lei que remova a intocabilidade, sancione os
casamentos entre castas, suspenda o banimento do uso de ruas pú­
blicas, templos públicos, escolas públicas. Não porque eles não pos­
sam, mas principalmente porque eles não o querem”.63
f' Mas havia diversas maneiras pelas quais as necessidades espe­
ciais de representação dos intocáveis poderia ser assegurada, e mui­
tas delas haviam sido experimentadas na índia colonial. Uma forma
era a proteção, por parte de autoridades coloniais, dos interesses das
castas baixas contra as castas altas politicamente dominantes, ou a
nomeação pelo governo colonial de homens eminentes oriundos dos
grupos intocáveis para servir como seus representantes. Outra forma
era reservar um certo número de assentos no legislativo para candi­
datos das castas baixas. Outra ainda era separar o eleitorado para
que os eleitores de casta baixa pudessem eleger seus próprios repre­
sentantes. No mundo imensamente complicado da política constituci­
onal colonial tardia na índia, todos esses métodos, com incontáveis
variações, foram debatidos e experimentados. Ademais, casta não
era o único contencioso da representatividade étnica; a questão ain­
da mais litigiosa das religiões m inoritárias veio a atar-se
inextrincavelmente à política da cidadania na índia colonial tardia.
Ambedkar renegava claramente um desses métodos de repre­
sentação especial - a proteção pelo regime colonial. Em 1930, quan­
do o Congresso declarou como seu objetivo político obter a indepen­
dência ou Swaraj, Ambedkar declarou na conferência das classes
rebaixadas:
(...) a forma de governo burocrática na índia deveria ser substituída por um
governo que seja um governo do povo, pelo povo e para o povo (...).
Sentimos que ninguém pode remover os nossos grilhões melhor do que
nós mesmos, e não podemos removê-los a não ser que tomemos o poder
político em nossas próprias mãos. Nenhuma fração desse poder político
pode evidentemente chegar a nós enquanto o governo britânico perma­
necer da forma que é hoje. Apenas em uma constituição Swaraj teremos
alguma chance de tomar o poder político em nossas próprias mãos, sem
o qual não poderemos trazer a salvação a nosso povo. (...) Sabemos que
o poder político está sendo passado dos britânicos às mãos daqueles que
aplicam sobre nossa existência um tremendo poder econômico, social e
religioso. Nós estamos torcendo para que isso aconteça, apesar de que a
idéia da Swaraj nos traz à mente muitas das tiranias, opressões e injusti­
ças praticadas contra nós no passado (...).6“

J O dilema está claramente aqui colocado. O governo colonial, com


todos os seus discursos sobre a necessidade de elevar aqueles que
estavam oprimidos sob a tirania religiosa do hinduísmo tradicional, po­
dia apenas tratar os intocáveis como seus sujeitos. Não podia dar a .
eles a cidadania. Apenas sob uma constituição nacional independen­
te a cidadania era concebível para os intocáveis. Contudo, se a inde­
pendência significava o domínio das castas altas, como poderiam os
intocáveis ter esperanças de obter uma cidadania igualitária e o fim da
tirania que sofriam há séculos? A posição de Ambedkar era clara: os
intocáveis deviam apoiar a independência nacional, com plena cons­
ciência de que isso levaria ao predomínio político das castas altas,
mas eles deviam prosseguir na luta pela igualdade no quadro da nova
. constituição.
Em 1932, o método pelo qual se deveria alcançar a cidadania
igualitária dos intocáyeistornou-se o tema de um dramático desen­
tendimento entre) Am bedkar^G andhí^No decurso das negociações
entre o governo britânico e os líderes políticos indianos sobre as refor­
mas constitucionais, Ambedkar, representando as chamadas classes
rebaixadas, defendeu que estas deveriam constituir um.eleitorado se-
parado e eleger seus próprios representantes aos legislativos central e
provincial. O Congresso, que havia por esta ocasião concedido uma
solicitação semelhante de um eleitorado separado para os muçulma­
nos, recusou-se a aceitar que os intocáveis fossem uma comunidade
separada dos hindus, declarando-se preparado, ao contrário, para
reservar assentos para os intocáveis que fossem eleitos pelo eleitora­
do geral. Ambedkar esclareceu que estaria pronto a aceitar essa fór­
mula se houvesse alguma esperança de que os britânicos concedes­
sem o sufrágio universal a todos os indianos adultos. Mas, desde que
o sufrágio fosse severamente limitado por qualificações de educação
e propriedade, as castas rebaixadas, dispersas como uma pequena
minoria no meio da população geral e, distintamente da minoria mu­
çulmana, sem concentrações territoriais significativas, dificilmente te­
riam alguma influência sobre as eleições como um todo. A única ma­
neira de garantir que o legislativo tivesse ao menos alguns que fossem
os representantes efetivos dos intocáveis era permitir a eles ser eleitos
por um eleitorado separado, composto pelas classes rebaixadas.
Gandhi reagiu duramente à insinuação de Ambedkar de que os
líderes de casta alta do Congresso nunca poderiam representar apro­
priadamente os intocáveis, chamando-a de "o mais rude de todos os
golpes". Incorrendo em uma jactância estranha às grandes almas,65
ele declarou: “Eu afirmo que represento, na minha pessoa, a vasta
massa dos intocáveis. Aqui não falo em nome do Congresso, mas em
meu próprio nome, e afirmo que, se houvesse um referendo dos
intocáveis, eu obteria seus votos, e encabeçaria a lista de eleitos”. Ele
insistiu que, diferentemente da questão das minorias religiosas, a ques­
tão da intocabilidade era um problema interno ao hinduísmo e tinha
que ser resolvido dentro dele.
& Não me importo que os intocáveis, se assim desejem, sejam con­
vertidos ao islã ou ao cristianismo. Isto eu toleraria, mas provavelmente
não posso tolerar o que está sendo apregoado para o hinduísmo; de
que há uma divisão, bem à vista, nas aldeias. Aqueles que falam de
direitos políticos para os intocáveis não conhecem a sua índia, não
conhecem 3 fnrma comn a sodedade indiana está construída hoje, e
portanto quero dizer com toda ênfase que posso garantir que, se eu
fosse a única pessoa a me opor a isso, eu me oporia com a minha vida.
Fiel a sua palavra, Gandhi ameaçou começar um jejum ao invés
de atender à reivindicação de eleitorados separados para as classes
rebaixadas. Colocado sob enorme pressão, Ambedkar cedeu e, após
negociações, assinou com Gandhi o que é conhecido como o pacto
de Poona, pelo qual aos Dalits era dado um número substancial de
assentos reservados, mas dentro do eleitorado hindu.66 Uma vez
estabelecida, essa permaneceu a forma básica para a representação
das antigas castas intocáveis na constituição da índia independente,
mas, é claro, nessa época o país havia sido dividido em dois Estados-
Nação soberanos.67
O problema da homogeneidade nacional e da cidadania das mi­
norias foi colocado e temporariamente resolvido na índia nos primeiros
anos da década de 1930. Mas a forma de sua resolução é instrutiva.
Ela ilustra de forma gráfica a ambivalência da Nação como uma estra­
tégia narrativa tanto quanto um aparato de poder, o qual, comdjjoncLL
Bhabha apontou, "produz um contínuo deslizamento em direção a
' categorias analógicas, e mesmo metonímicas, como o povo, minori­
as, ou ‘diferençacultural’, que continuamente se sobrepõem ao ato
de escrever a Nação".6^jXmbedkar|| como vimos, não via problema
na idéia de Nação homogênea enquanto uma categoria pedagógica
~a~ hJa^o^om o progresso, a Nação jT&^pr-eeesso de vir a ser -
exceto pelo fato de que ele teria insistido junto a Gandhi e outros
líderes do Congresso em que não eram apenas as massas ignorantes
que precisavam treinar uma cidadania apropriada, mas também a
elite de casta alta, que ainda não havia admitido que a igualdade
democrática era incompatível com a desigualdade de casta. Mas
Ambedkar se recusou a juntar-se a Gandhi na efetivação dessa
homogeneidade nas negociações constitucionais sobre a cidadania.
Os intocáveis, ele insistia, eram uma minoria dentro da Nação e pre­
cisavam de uma representação especial no corpo político. Por outro
lado. Gandhi e o Congresso, ao passo em que afirmavam que a Na­
ção era una e indivisível, já haviam admitido que os muçulmanos eram
uma minoria dentro da Nação. Os intocáveis? Eles representavam
um problema interno ao hinduísmo. Imoerceotivelmente. a 85
homogeneidade da índia desliza para a homogeneidade dosWBüsTA
’aSõiíçãcTdÊUntc^abilidã^e^^rrniínece coiriõufTiaTãreTipêdãgtóca,
a ser acompanhada pela refoçma social, se necessário pela lei, mas a

Colonialismo, Modernidade e Política


desigualdade de casta entre os hindus não deve ser discutida na fren­
te dos administradores britânicos ou da minoria muçulmana. A
homogeneidade se desintegra em um plano, apenas para ser
rearranjada em outro. A heterogeneidade, impossível de deter em um
ponto, é forçosamente suprimida em outro.
Nesse meio tempo, nosso herói ficcional Dorhai continua, nos
anos de 1930, a receber sua educação em nacionalismo. Libertado
de seu cais, ele dirige-se a outra aldeia e começa uma nova vida
entre os Koeri, uma casta baixa de trabalhadores rurais e operários.
Dhorai começa a aprender as realidades da vida campesina - de
senhores de terra Rajput e os adhiars - meeiros - Koeri e trabalhado­
res Santal, de cultivar arroz e juta, tabaco e milho, de agiotas e mer­
cadores. Em janeiro de 1934, Bihar é dilacerada peio mais violento
terremoto registrado em sua história. Os funcionários do governo vêm
levantar os prejuízos, assim como os voluntários nacionalistas do Con­
gresso. Por mais de um ano, os Koeris ouvem vagamente que lhes
seria fornecida “assistência”. E então eles são informados que o le­
vantamento concluiu que as cabanas Koeris, sendo feitas de barro e
cobertas de palha, haviam sido facilmente reparadas pelos próprios
Koeris, mas as casas de tijolo dos senhores de terra Rajput sofreram
sérios danos. O relatório recomendava, portanto, que o grosso da
assistência fosse prestada aos Rajputs.
Assim começa um novo capítulo na educação de Dhorai - sua
descoberta que os advogados bengali e os senhores de terra Rajputs
estavam rapidamente se tornando os principais seguidores dó
Mahatma. Mas mesmo quando os velhos exploradores se tornavam
os novos mensageiros da liberdade nacional, a mística do Mahatma
permanecia impoluta. Um dia, um voluntário chega à aldeia com car­
tas do Mahatma. Ele diz aos Koeris que eles devem por sua vez man-
dar uma carta cada um para o Mahatma. Não, não, eles não preci­
sam pagar por um selo postal. Tudo o que eles têm de fazer é ira até
o funcionário que lhes dará uma carta, a qual deve ser depositada na
caixa postal do Mahatmaji - a branca, lembrem-se, não as coloridas.
Isso era chamado o “voto”. O voluntário instrui Dhorai: “Seu nome é
Dhorai Koeri, seu pai é Kirtu Koeri. Lembre-se de dizer isso ao funcio­
nário. Seu pai é Kirtu Koeri”. Dhorai faz como lhe é ordenado.
Dentro da cabine eleitoral, Dhorai pôs-se de pé com as mãos
cruzadas em frente à caixa branca e depositou a carta. Glória a
Mahatmaji, glória ao voluntário do Congresso, eles haviam dado a
Dhorai o pequeno papel do esquilo na grande tarefa de construir o
reino de Rama. Mas seu coração se encheu de pesar - se apenas ele
soubesse escrever, poderia ter escrito ele mesmo a carta para o
Mahatma. Imagine só, todas essas pessoas escrevendo cartas para
o Mahatma, de uma ponta a outra do país, todas juntas, ao mesmo'
tempo. Tatmatuli, Jirani, (...) Dhorai, (...) o voluntário, (...) todos eles
queriam a mesma coisa. Todos eles mandaram a mesma carta para
o Mahatma. O governo, os funcionários, a polícia, os senhores de
terra, (...) todos estavam contra eles. Eles pertenciam a muitas cas­
tas diferentes, e contudo tinham chegado tão perto. (...) Eles estavam
ligados como que pela teia de uma aranha; o fio era tão fino que se
você tentasse pegá-lo, ele quebrava. De fato, você nunca poderia
dizer se ele estava lá ou não. Quando ele balançasse gentilmente na
brisa, ou quando os pingos do orvalho da manhã pendessem dele, óu
quando um raio súbito de sol o atravessasse, você o veria, e mesmo
assim apenas por um momento. Esta era a terra de Ramji por sobre a
qual seu avatar Mahatmaji estava tecendo sua fina teia... “Ei, o que
você está fazendo dentro da cabine?” A voz do funcionário quebrou
seu devaneio. Dhorai saiu rapidamente.69
Q voto é o grande desempenho anônimo da cídadania^é por
isso que provavelmente nãòlmpÒrrava imuíUt tjnéaintroducão de
Dhorai a esse ritual fosse feita através de um ato de despersonificação.
Mas issoãpenas dissímuTã a questão ^ ‘qüSrnTéprisénta a quem no
âmbito da Nação. Muito embora os Koeris tivessem votado lealmente
no Mahatma, eles se desanimaram ao descobrir que o senhor de
terra Rajput contra quem haviam lutado por anos havia sido eleito
presidente do conselho distrital com o apoio do Congresso. Os ho­
mens de Mahatmaji, eles ouviam, eram agora ministros de governo,
mas quando uma nova estrada fosse construída, com toda a certeza,
ela passaria bem perto das casas dos Rajputs.
Mas Dhorai comprou uma cópia do Ramayana. Um dia, prome­
teu, aprenderia a lê-lo. A passagem para o reino de Rama, entretan­
to, foi subitamente interrompida quando chegaram notícias de que o
Mahatma havia sido preso pelos britânicos. Essa era a luta final, o
Mahatma tinha anunciado. Cada seguidor verdadeiro de Mahatmaji
devia agora se juntar a seu exército. Sim, o exército; eles deviam agir
contra os tiranos, não esperar ser presos. Dhorai é mobilizado pelo
movimento "Quit India”, em 1942. Essa era uma guerra diferente das
outras; era, diziam os voluntários, uma revolução. Juntos, eles ataca­
ram a delegacia de polícia e atearam fogo a ela. Pela manhã, o ma­
gistrado do distrito, o superintendente de polícia, e todos os funcioná­
rios graduados haviam fugido. Vitória de Mahatmaji, vitória da revolu­
ção! O distrito tinha obtido a independência, eles eram livres.
Não durou muito. Semanas mais tarde, as tropas invadiram o dis­
trito, com caminhões e armas. Junto com os voluntários, Dhorai fugiu
para as florestas. Ele agora era um homem procurado, um rebelde.
Mas eram todos procurados - eram os soldados de Mahatmaji. Havia
uma estranha igualdade entre eles na floresta. Eles haviam abandona­
do seus nomes originais e chamavam uns aos outros de Gandhi,
Jawahar, Patel, Azad - eles eram todos réplicas anônimas dos repre­
sentantes da Nação. Exceto pelo fato de que tinham sido afastados de
suas vidas cotidianas. Algum tempo depois, veio a notícia de que os
britânicos haviam vencido a guerra contra os alemães e japoneses, os
líderes do Congresso seriam liberados e todos os revolucionários deve­
riam se render. Render-se? E ser julgados e encarcerados? Quem sabe,
talvez mesmo enforcados? A unidade de Dhorai resolve não se render.
Na cena nacional, a Liga Muçulmana resolveu em março de 1940
que qualquer plano constitucional de devolução do poder na índia
devia incluir um arranjo pelo qual as áreas geograficamente contíguas
de maioria muçulmana pudessem ser agrupadas em Estados inde­
pendentes, autônomos e soberanos. Isso ficou conhecido como a
resolução do Paquistão. Poucos meses depois,^m bedkãrjescreveu
um longo livro intitulado Pakistan orPartition oflndia, no qual discutia
em detalhes os prós e os contras da proposta.70 É um livro que, sur­
preendentemente, é raramente mencionado, mesmo hoje quando há
um reflorescimento tão grande de Ambedkar.71 Além do fato de de­
monstrar suas soberbas habilidades como analista político e urrra pres­
ciência verdadeiramente extraordinária, creio que esse é um texto em
que Ambedkar se agarra de forma mais produtiva à demanda dupla
de sua política - de um lado, avançar na luta por cidadania igualitária’
e universal no âmbito da Nação, e, de outro, assegurar uma repre­
sentação específica para as castas rebaixadas no corpo político.
O livro é quase socrático em sua estrutura dialógica, apresentando
primeiro, nos termos mais fortes possíveis, o argumento muçulmano a
favor do Paquistão, e depois o argumento hindu contra o Paquistão,
considerando em seguida as alternativas disponíveis para muçulmanos
e hindus se não houvesse partilha. O que é impressionante é a forma
como Ambedkar, como o representante não estatuído dos intocáveis,
adota uma posição de perfeita neutralidade no debate, sem tomar par­
te de maneira nenhuma na forma pela qual o problema pudesse ser
resolvido - ele não pertence a nem ao lado muçulmano nem ao lado
hindu. Tudo o que lhe concerne é julgar os argumentos rivais e reco­
mendar o que lhe parece ser a solução mais realista. Mas, é claro, essa
é apenas uma estratégia narrativa. Sabemos que Ambedkar tomou
parte efetivamente na questão; o ponto mais importante para ele era se
a partilha seria ou não melhor para os intocáveis da India.Osignificado
de Pakistan orPartition oflndia é que Ambedkar esta avaliando aqui as
reivindicações utópicas da nacionalidade nos termos da política realista.
Depois de dissecar os argumentos de ambos os lados, Ambedkar
chega à conclusão que, tudo posto, a partilha seria melhor tanto para
os muçulmanos quanto para os hindus. Os argumentos fundamentais
surgem quando ele considera a alternativa à partilha: de que forma
uma índia independente e unida, livre do jugo britânico, seria possivel­
mente governada? Dada a hostilidade dos muçulmanos a um gover­
no central único, dominado inevitavelmente pela maioria hindu, era
certo que, se não houvesse a partilha, a índia teria que viver com um
governo central fraco, com muitos dos poderes devolvidos às provín­
cias. Seria um “Estado anêmico e doentio”. As animosidades e
suspeições mútuas permaneceriam: “enterrar o Paquistão não é o
mesmo que enterrar o fantasma do Paquistão”.72 Indo mais longe,
havia a questão das Forças Armadas da índia independente. Em um
longo capítulo, Ambedkar discute a composição comunal do exército
britânico na índia, um assunto ao redor do qual havia virtualmente
uma conspiração de silêncio. Ele aponta para o fato de que quase
sessenta por cento do exército indiano consistia de homens oriundos
do Punjab, da Fronteira Noroeste e da Cachemira; destes, mais da
metade eram muçulmanos. Será que um governo central fraco, con­
siderado suspeito pela população muçulmana, poderia garantir a leal­
dade dessas tropas? Por outro lado, será que, se o novo governo
tentasse modificar a composição comunal do exército, isso seria acei­
to sem protestos pelos muçulmanos do noroeste?73
Considerado de forma positiva, o novo Estado do Paquistão seria
um Estado homogêneo. As fronteiras do Punjab e de Bengala poderi­
am ser redesenhadas para formar regiões muçulmanas e hindus rela­
tivamente homogêneas, a serem integradas ao Paquistão e à índia,
respectivamente. Muito antes que qualquer pessoa tivesse demanda­
do a divisão das duas províncias, Ambedkar previu que os hindus e os
sikhs não concordariam em viver num país especificamente criado
para os muçulmanos e desejariam unir-se à índia. Na proWncia da
Fronteira Noroeste e no Sind, onde a população hindu estava
esparsamente distribuída, a única solução realista era uma transfe-
rência de população supervisionada oficialmente, como havia aconte­
cido na Turquia, Grécia e Bulgária. A índia ou Hindustão a ser criada
seria uma composição, não um Estado homogêneo. Mas a questão
das minorias poderia ser dessa forma manipulada de forma mais razo­
ável. “Para mim, parece que, se o Paquistão não resolve o problema
comunal no âmbito do Hindustão, ele reduz substancialmente sua
proporção, diminuindo sua amplitude e tornando muito mais fácil uma
I solução pacífica”.74
E então, em uma cadeia de movimentos brilhantes de lógica po­
lítica realista, Ambedkar demonstra que apenas em uma índia unida,
na qual mais de um terço da população seria muçulmana, o predomí­
nio hindu seria uma ameaça séria. Em um Estado como esse, os
muçulmanos, temendo a tirania da maioria, se organizariam em um
partido muçulmano como a Liga Muçulmana, provocando em
contrapartida a ascensão de partidos hindus em busca de um rajanato
hindu/6 Se houvesse a partilha, por outro lado, os muçulmanos no
Hindustão seriam uma pequena e amplamente esparsa minoria. Eles
iriam inevitavelmente aderir a este ou aquele partido político, seguindo
diferentes programas sociais e econômicos. Similarmente, haveria
pouco espaço para um partido como o Hindu Mahasabha, que defi­
nharia. E quanto às ordens mais baixas da sociedade hindu, elas fari­
am causa comum com a minoria muçulmana para lutar contra as
castas altas hindus por seus direitos de cidadania e dignidade social.76
Mais uma vez, não gastaremos nosso tempo aqui tentando ava­
liar os méritos intrínsecos dos argumentos de Ambedkar a favor e
contra a partilha da índia, embora no contexto discursivo do início da
década de 1940 eles fossem notavelmente perspicazes. O que tentei
enfatizar é o solo no qual ele planta seus argumentos. Ele está plena­
mente consciente do valor da cidadania igualitária e universal e en­
dossa totalmente o significado ético das séries irrestritas. Por outro
lado, ele percebe que o slogan da universalidade é quase sempre
uma máscara para cobrir a perpetuação das desigualdades. A política
da nacionalidade democrática oferece um meio de obter-se uma igual-
dade mais substantiva, mas apenas através da representação ade­
quada dos grupos desprivilegiados no âmbito do corpo político. Uma
política estratégica de grupos, classes, comunidades, etnicidades -
séries restritas de todos os tipos - é assim inevitável. A homogeneidade
não é em vista disso abandonada; ao contrário, em contextos especí­
ficos, pode oferecer a pista para uma solução estratégica, como a
partilha, para um problema de heterogeneidade irreconciliável. Por outro
lado, distinto das reivindicações utópicas do nacionalismo universalista,
a política da heterogeneidade nunca pode reclamar os louros de uma
fórmula geral que sirva a todos os povos em todos os tempos: suas
soluções são sempre estratégicas, contextuais, historicamente espe-/
cíficas e, inevitavelmente, provisórias.
Deixem-me finalmente retornar ao problema da distinção de
1Anderson entre o nacionalismo e a política da etnicidade. Ele concor-
í as “séries restritas” do governamental podem criar um senso
de comunidade, que é precisamente aquilo do que se alimenta a po­
lítica da identidade étnica. Mas esse senso de comunidade, acredita
Anderson, é ilusório. Nesses censos reais e imaginados, “graças ao
capitalismo, às maquinarias do Estado e à matemática, corpos inte­
grais tornam-se iguais, e portanto integráveis serialmente como co­
munidades fantasmas”.77 Por contraste, as “séries irrestritas” do naci­
onalismo, presume-se, não necessitam transformar os membros indi­
viduais livres da comunidade nacional em números inteiros. Elas po­
dem imaginar a Nação como tendo existido deforma idêntica, desde
a aurora dos tempos históricos até hoje, sem requerer uma verifica­
ção censitária e sua identidade. Pode também experíencíar a simulta­
neidade da vida coletiva imaginada da Nação sem impor um critério
rígido e arbitrário de pertencimento. Podem, tais “séries irrestritas” ,
existir a não ser no espaço utópicc
Endossar essas “séries irrestritas” ao mesmo tempo em que se
rejeita as "restritas” é. de fato. imaginar o nacionalismo sem o gover­
namental moderno. Que política moderna podemos ter e que não
tenha a ver com o capitalismo, com a maquinaria do Estado e com a
matemática? O momento histórico que Anderson, e muitos outros,
parece querer melancolicamente preservar é o momento mítico no
qual
1 o nacionalismo clássico se mescla com a modernidade.'— Creio
*-3:--------
não ser maisprodutivorestabeleceiiapolftícautópica do nacionalismo
cTassico. (Ju melhor, não creio que é uma opção disponíveljpara um_
teórico do mundo pós-colonjaL Esse teórico deve estabelecenjm ^
rota r ^ ] ía R ^ ln h a f i1 i^ noRÍnão entre o nn^õnoiitismo n eo
Chauvinismo étnico. Isso significa necessariamente sujar as mãos nó
negocio complicado da polítjciTüõlgõvêíw
^õnzidas^TégitimadãspéiõsuniversãiismosdÕmcimalisrm rfiódèmcr—
não deixam aqui lugar para uma escolha eticament^pureTPDrqOBT?'-
Jeórico pós-colonial, assim como pargo gãweg g l gpgs-eolonial, nas­
ce quando o espaço-tempo mítico da modernidade épica está perdi­
do para sempr§x£feixem-me terminar descrevendo o destino de nos-'
so heroTfiCcíonal Dhorai.
Vivendo nas florestas com seu bando de rebeldes fugitivos, Dhorai
é levado a encarar os limites de seus sonhos de igualdade e liberdade.
Não são as séries regtritas de casta e comunidade que se mostram
ilusórias, mas a promessa de cidadania igualitária. A asperezada vida
de fugitivos remove a carapaça de camaradagem e as velhas hierar­
quias desaparecem. Suspeitas, intriga, vingança e recriminação se
tornam os sentimentos dominantes. A cópia do Ramayana permane­
ce presa à trouxa de roupa de Dhorai, fechada, não lida. No meio de
tudo isso, um garoto se une ao bando. Ele diz ser um Danghar cris­
tão, da circunscrição próxima a Tatmatuli. Dhorai sente um estranho
vínculo com o garoto. Poderia ser, ele imagina, o filho que nunca havia
visto? Dhorai procura o garoto e lhe faz muitas perguntas. Quanto
mais conversa com ele, mais se convence de que é realmente o seu
filho. O garoto adoece, e Dhorai decide levá-lo para sua mãe. En­
quanto se aproxima de Tatmatuli, mal consegue controlar sua excita­
ção. Seria este o desvelar épico do Rama moderno intocável? Se
reuniria ele à sua esposa e ao seu filho banidos? A mãe aparece, leva
seu filho para dentro, vem novamente para fora e convida o gentil
estranho a sentar-se. Ela fala sobre seu filho, sobre seu marido morto.
Dhorai a ouve. Ela é uma outra pessoa, não sua esposa. O garoto é
uma outra pessoa, não seu filho. Dhorai mantém uma conversação
educada durante alguns minutos e depois se vai, não sabemos para
onde. Mas ele deixa para trás sua trouxa de roupa, junto com a cópia
do Ramayana da qual ele já não necessita. Dhorai perdeu para sem­
pre seu lugar prometido no tempo profético.
Ou não? Após a independência, B. R. Ambedkar tornou-se o
presidente do comitê de preparação da constituição indiana, e a se­
guir o ministro da Justiça. Ocupando esses cargos, ele foi um instru­
mento da conformação de uma das mais progressistas constituições
democráticas do mundo, garantindo os direitos fundamentais de liber­
dade e igualdade sem distinções de religião ou casta, ao mesmo tem­
po em que provia uma forma de representação especial no legislativo
para as castas anteriormente intocáveis.78 Mas mudar a lei era uma
coisa; mudar práticas sociais era uma outra questão. Frustrado com
a ineficácia do Estado em pôr um fim à discriminação de casta na
sociedade hindu, Ambedkar decidiu em 1956 converter-se ao budis­
mo. Foi um ato de separatismo, de fato, mas, ao mesmo tempo,
como Ambedkar apontou, foi um ato de afiliação a uma religião que
era muito mais universalista que o hinduísmo em sua defesa da igual­
dade social.79 Ambedkar morreu apenas algumas semanas após sua
conversão, apenas para renascer vinte anos mais tarde como o pro­
feta da libertação dos Dalits. É isso o que ele significa hoje - uma fonte
tanto de sabedoria realista quanto de sonhos emancipatórios para as
castas oprimidas da índia.
Para finalizar meu relato sobre o conflito irresolvido entre afiliações
universais e identidades particulares no momento da fundação da
nacionalidade democrática na índia, deixem-me indicar a vocês o que
está hoje aqui em jogo. Em um encontro no ano passado em um
instituto de pesquisa indiano, depois que uma distinguida mesa de
acadêmicos e criadores de políticas públicas lamentou o declínio dos
ideais universais e dos valores morais na vida nacional, um ativista
Dalit que estava na audiência perguntou qual era o motivo para que
intelectuais, tanto liberais quanto esquerdistas, estivessem tão pessi­
mistas com a direção em que a história estava se movendo na virada
do milênio. Tanto quanto ele podia perceber, a última metade do sé­
culo XX havia sido o período mais brilhante de toda a história dos
Dalits, uma vez que eles haviam se livrado das piores formas de
1intocabilidade, se mobilizado politicamente como uma comunidade, e
estavam agora fazendo alianças estratégicas com outros grupos opri­
midos de forma a obter uma fatia do poder do governo. Tudo isso teria
sido possível porque as condições da democracia de massa haviam
deixado os bastiões do privilégio de casta abertos aos ataques dos
representantes dos grupos oprimidos, organizados em maiorias eleito­
rais. Os expositores foram silenciados por essa intervenção comovida.
Saí de lá persuadido mais uma vez de que é moralmente ilegítimo
sustentar os ideais universalistas do nacionalismo sem, simultanea­
mente, sustentar que a política gerada pelo governamental seja reco­
nhecida como uma parte igualmente legítima do espaço-tempo real
' da vida política moderna da Nação. Sem isso, as tecnologias gover­
namentais continuaram a se proliferar e a servir, como serviram em
grande parte na era colonial, como instrumentos manipuláveis de do­
mínio de classe em uma ordem capitalista global. Ao buscar encontrar
espaços éticos reais para sua operação no espaço heterogêneo, as
resistências incipientes a esta ordem podem s e r^ m sucedidas em
inventar novos termos de justiça política.
Em minha próxima conferência, discorrerei sobre as implicações
conceituais do que eu acredito ser uma significativa mudança nas
tecnologias e processos de governo, que ocorreram com a ascensão
das democracias de massa em muitas partes do mundo durante o
século XX. A velha idéia, canonizada pela Revolução Francesa, da
soberania popular e de uma ordem político-legal baseada na igualda­
de e na liberdade, não é mais adequada, argumentarei, para a orga­
nização das demandas democráticas. Vêm emergindo novas formas
de organização democrática, muitas vezes contraditórias com os ve­
lhos princípios da associação cívicfa liberal, ainda que em formas frag­
mentadas, incipientes e instáveis. Isso clama por uma nova concep­
ção da sociedade política que seja mais apropriada para descrever a
política popular na maior parte do mundo. Esse será o tema de minha
próxima conferência.
Populações e Sociedade Política
Colonialismo, Modernidade e Política
I
O momento em que as promessas de uma modernidade
esclarecida foram associadas mais caracteristicamente às aspirações
políticas universais de cidadania no contexto da Nação foi, sem dúvi­
da, a Revolução Francesa. Este momento tem sido celebrado e ca­
nonizado de numerosas maneiras nos últimos duzentos anos, mas
talvez sua forma mais sucinta seja a fórmula, agora quase universal­
mente aceita, da identidade entre o pQu&-»-a44acãcL e, por sua vez,
entre a Nação e o Estado. Não há dúvidas de que a legitimidade do
Estado moderno esta hoje firme e claramente ancorada em um con­
ceito de^oberania populaij, Esta é, obviamente, a base da política__
democrática moderna, mas a idéia^da^ÕDêrâríiã^õpular tem uma
irrfiuêncíã^m^áí^unlvérsarqug^a^lJádefiwTacfaTWssmoT^êgi -
mes mòBêmos"^mãsãntideifiõcráticõs têírTBerêcíamar legitimidade
não sobre o direito divino, a sucessão dinástica ou o direito de con­
quista, mas sobre o desejo do povo, qualquer que seja a forma pela
qual esse desejo se expresse. Autocracias, ditaduras militares, regi­
mes de partido único - todos governam, ou afirmam governar, em
nome do povo.
A força da idéia da soberania popular e sua influência sobre mo­
vimentos democráticos e nacionalistas na Europa e nas Américas
durante o século XIX são bem conhecidas.80 Porém, essa influência
se espalhou por uma área muito mais vasta do que aquilo que é hoje
conhecido como Ocidente moderno. As conseqüências da expedição
de Napoleão ao Egito, em 1798, têm sido amplamente discutidas.
Muito mais a leste, o sultão Tipu, príncipe de Misore, lançou-se nessa
ocasião a uma encarniçada luta contra os ingleses no sul da índia, e
abriu negociações com o governo revolucionário da França, em 1797,
oferecendo um tratado de aliança e amizade “fundado sobre os prin­
cípios republicanos de sinceridade e boa fé, com o fim de que vós e
vossa Nação e meu povo e eu possamos nos tornar uma família.” Diz-
se que o príncipe estremeceu quando recebeu uma resposta
endereçada ao “cidadão sultão Tipu”.81 É, obviamente, mais que
presumível que as simpatias republicanas de Tipu não fossem mais
fundo que a invocação, na carta dirigida ao “cavalheiro do Diretório”,
do princípio tático “que vossos inimigos sejam os meus e os de meu
, | povo; e que meus inimigos sejam considerados como vossos.” Mas
I nenhuma dessas reservas se aplica aos sentimentos nutridos pela
é nova geração de reformadores modernistas na índia do século XIX.
Na escola, em Calcutá, aprendíamos sobre a viagem à Inglaterra feita
em 1830 poifRammohun Roy^cultuado como o pai da modernidade
indiana. Quando seu navio parou em Marselha, diziam-nos, Rammohun
ficou tão ansioso para saudar a “tricolour”, restaurada em seu lugar
de direito pela monarquia de julho, que, ao descer correndo o passa­
diço, caiu e quebrou a perna. Soube, mais tarde, através de biografias
mais confiáveis, que seu acidente ocorrera antes, na Cidade do Cabo,
mas a enfermidade não conseguiu diminuir seu entusiasmo por liber­
dade, igualdade e fraternidade. Um outro passageiro, descobri, es­
creveu o seguinte: “duas fragatas francesas, sob a bandeira revoluci­
onária, a gloriosa tricolor, estavam ancoradas em Table Bay [Baía da
Mesa, na cidade do Cabo, N.R.]; e, manco como estava, insistia em
visitá-las. A visão dessas cores parecia acender nele a chama do
entusiasmo, e torná-lo insensível à dor.” Rammohun foi levado às
embarcações e contou a seus anfitriões “o quanto ele se sentia
deliciado em estar sob a bandeira que ondulava sobre seus conveses
- uma evidência do glorioso triunfo do direito sobre a força; e enquan­
to saía das embarcações repetia enfaticamente ‘Glória, glória, glória à
França!’”.82
Contudo, do outro lado do globo, no Caribe, outro povo coloniza­
do tinha descoberto nesse meio tempo que havia limites à promessa
de cidadania universal, vindo a sofrer mais do que apenas a dor de
uma perna quebrada. Os líderes dajpvolução haitiana levaram a sério
a mensagem de liberdade e igualdade que ouviram de Paris e levanta­
ram-se para declarar o fim da escravidão. Para seu espanto, foram
informados pelo governo revolucionário da França que os direitos do
homem e do cidadão não se estendiam aos negros, mesmo no caso
destes se haverem declarado livres, uma vez que eles não eram - ou
ainda não eram - cidadãos.83 O grande Mirabeau pediu à Assembléia
Nacional que lembrasse aos colonos que “ao calcular o número de
deputados proporcionalmente à população da França, não levamos
em consideração nem o número de nossos cavalos, nem o de nossas
mulas”.84 Por fim, após os revolucionários haitianos haverem declara­
do sua independência do jugo colonial, os franceses enviaram em
1802 uma força expedicionária a São Domingos com o fim de resta­
belecer tanto o controle colonial quanto a escravatura. O historiador
_ -------- ------
,[_M3çReP^p^rouillopafirmou que a revolução haitiana ocorreu antes
do tempo. Em nenhum lugar do espectro do discurso ocidental da era
do lluminismo havia lugar para escravos negros pegando em armas
para reivindicar o autogoverno: a idéia era simplesmente inconcebí­
vel.85 Assim, enquanto nacionalismos crioulos lograram proclamar re­
públicas independentes na América espanhola no início do século XIX,
o mesmo foi negado aos jacobinos negros de São Domingos. O mun­
do teria de esperar um século e meio para que se permitisse que os
direitos do homem e do cidadão fossem estendidos a tanto. Desde
então, todavia, com o sucesso das lutas democráticas e nacionais
pelo mundo afora, as restrições de classe, posição, gênero, raça,
casta, etc. seriam gradualmente removidas da idéia de soberania po­
pular, e a cidadania universal seria reconhecida, tal como é hoje, no
direito geral de autodeterminação das nações.86 Ao lado do Estado
moderno, o conceito de povo e um discurso dos direitos tornaram-se
generalizados no âmbito da idéia de Nação. Mas, ao mesmo tempo,
um abismo se abriu entre as nações democráticas avançadas do
Ocidente e o resto do mundo.
A forma moderna da Nação é tanto universal como particular A
dimensão universal é representada, em primeiro lugar, pela idéia do
povo como locus original da soberania do Estado moderno e, em
segundo lugar, pela idéia de que todos os seres humanos são porta-
'dores de direitos. Se isto fosse universalmente válido, como poderia
ser realizado? Sacralizando os direitos específicos do cidadão em um
Estado constituído por um povo particular, nomeadamente uma Na­
ção. Dessa forma, o Estado-Nação tornou-se a forma particular - e
normal - do Estado moderno. A estrutura básica dos direitos no Esta­
do moderno foi definida pelas idéias gêmeas de liberdade e igualdade.
Mas liberdade e igualdade freqüentemente impeliam a direções opos­
tas. Tiveram, portanto, de ser mediadas, como^tjemeBãnBã^con-
venientemente apontou, por dois outros conceitos: os de propriedade.
e comunidade.87 O conceito de propriedade parecia resolver as con­
tradições entre liberdade e igualdade no nível da relação do indivíduo
com outros indivíduos. O conceito de comunidade era o espaço onde
as contradições pareciam ser resolvidas no nível da fraternidade como
um todo. Ao longo do eixo propriedade, as soluções particulares podi­
am ser mais ou menos liberais; ao longo do eixo comunidade, podiam
ser mais ou menos comunitárias. Mas era dentro da forma específica
do Estado-Nação, soberano e homogêneo, que se esperava a reali­
zação dos ideais universais da cidadania moderna.
Para usar uma espécie de taquigrafia teórica, poderíamos dizer
que propriedade e comunidade definiram os parâmetros conceituais
dentro dos quais o discurso político do capital, que proclamava liber­
dade e igualdade, pôde florescer. As idéias de liberdade e igualdade
que deram forma aos direitos universais do cidadão foram cruciais não
apenas para a luta contra regimes políticos absolutistas, mas também
para o solapamento de práticas pré-oapitalistas que restringiam a
mobilidade individual e a liberdade de escolha a limites tradicionais
definidos por nascimento e status. Mas foram também cruciais, como
notou o joverr/karl Marx,(para a separação entre o domínio abstrato
do Direito e o domínio real da vida na sociedade civil.88 Para a teoria
político-legal, os direitos do cidadão não eram restringidos por raça,
religião, etnicidade ou classe (por volta do começo do século XX, os
mesmos direitos seriam também estendidos às mulheres), mas isso
não significou a abolição das distinções efetivas no meio dos homens
[ (e mulheres) na sociedade civil. Ao contrário, o universalismo da teoria
I dos direitos tanto pressupunha quanto possibilitava um novo
I ordenamento das relações de poder na sociedade, baseado precisa-
/ mente naquelas distinções de classe, raça, religião, gênero, etc. Ao
mesmo tempo, a promessa emancipatória sustentada pela idéia da
igualdade universal de direitos também atuou como uma constante
fonte de crítica teórica à sociedade civil real. Nos dois últimos séculos,
\ essa promessa impulsionou numerosas disputas pelo mundo afora no
\ sentido de modificar diferenças sociais injustas, baseadas em raça,
1 religião, casta, classe ou gênero,
i Os marxistas, em geral, têm acreditado que a influência do capi-
| tal sobre a comunidade tradicional é o sinal inevitável do progresso
histórico. Na verdade, há uma profunda ambigüidade neste julgamen­
to. Se a comunidade era a forma social da unidade entre o trabalho e
os meios de produção, então a destruição desta unidade pela assim
chamada acumulação primitiva de capital produziu um novo trabalha­
dor, livre não apenas para vender seu trabalho como uma mercado­
ria, mas também desembaraçado de toda propriedade, exceto a de
sua força de trabalho. Marx escreveu com uma amarga ironia acerca
desta “dupla liberdade” do trabalhador assalariado libertado dos laços
da comunidade pré-capitalista.89Mas, em 1853, ele escreveu sobre o
jugo britânico na índia como causa necessária de uma revolução so­
cial: “quaisquer que tenham sido os seus crimes”, ele escreveu, a
Inglaterra “foi o instrumento inconsciente da história ao realizar essa
revolução” na índia.90Mais tarde, nós sabemos, ele tornou-se bastan­
te mais cético quanto aos efeitos revolucionários do domínio colonial
em sociedades agrárias como a índia, chegando mesmo a especular
104 sobre a possibilidade da comunidade camponesa russa mover-se
diretamente para a forma socialista de vida coletiva sem atravessar a
fase destrutiva de uma transição capitalista.91 Apesar do ceticismo e
Partha Chatterjee

da ironia hesitantes, entretanto, os marxistas do século XX em geral


comemoraram o solapamento da propriedade pré-capitalista e a cria­
ção de grandes unidades políticas homogêneas tais como os Esta-
dos-Nação. Onde o capital foi enxergado como o promotor da tarefa
histórica da transição em direção a formas de produção social mais
modernas e desenvolvidas, ele recebeu, ainda que de forma relutante
e ambivalente, a aprovação da teoria histórica marxista.
Quando falamos de igualdade, liberdade, propriedade e comunT*
dade em relação ao Estado moderno, estamos na verdade falando da
história política do capital. O debate recente entre liberais e comunitá-
rios gaseio da filosofia política_anglo-americana mepareçe a confir­
mação do papel cruciaJjguejieseijpèi^ história poiítica^os
conceitos mediadores de propriedade e comunidade-oa detéfíriina-
"ÇaoltefSK^e-Bóssí&to do campo constitu-
ído pelos conceitos de Iiberdade éíg ualdade. Os comunitários não
podiam rejeitar o va^õTdãlíberdãae individual, uma'vez que, se
enfatizassem demasiadamente as reivindicações da identidade
comunal, ficariam à mercê de acusações como a de terem negado o
direito fundamental do indivíduo de escolher, possuir, usar e trocar
mercadorias segundo a sua vontade. Por outro lado, os liberais tam­
bém não negaram que a identificação com a comunidade pudesse
ser uma fonte importante de significado moral para as vidas individu­
ais. Seu argumento era o de que, ao minar o sistema liberal dos direi­
tos e a política liberal da neutralidade em questões do bem comum,
os comunitários abririam caminho para a intolerância majoritária, para
a perpetuação de práticas conservadoras e para uma insistência po­
tencialmente tirânica no conformismo. Poucos negaram o fato empírico
de que a maior parte dos indivíduos mesmo nas democracias liberais
industrialmente avançadas, vivem suas vidas no âmbito de uma rede
herdada de vínculos sociais, a qual poderia ser descrita como comu- f
j nidade. Mas havia um forte sentimento de que nem todas as comuni­
dades eram merecedoras de aprovação na vida política moderna. Em
particular, vínculos que pareciam enfatizar o herdado, o primordial, o
paroquial e o tradicional foram considerados pela maioria dos teóricos
como indícios de práticas intolerantes e conservadores, e, portanto,
contrários aos valores da cidadania moderna. A comunidade política'
que pareceu encontrar a maior medida de aprovação foi a Nação
moderna que concede igualdade e liberdade a todos os cidadãos,
independente de diferenças biológicas ou culturais.92
Esta zona do discurso político legitimado, definida pelos parâmetros
de propriedade e comunidade, é ainda mais enfatizada pela nova dou­
trina filosófica que se autodenomina republicanismo e que afirma su­
perar o debate líberal-comunitário. Seguindòas pesquisas históricas
de jjohn Pocockj ssa doutrina foi mais eloqüentemente desenvolvida
por/Quentin Skinner e Philip^Pettit^3 Em vez de definir a liberdade
como indepènaênaanegativa, ou seja, como a recusa individual da
interferência externa, o objetivo do republicanismo é invocar o mo­
mento do anti-absolutismo e proclamar que liberdade é liberdade fren­
te à dominação. Essa definição faria com que o amante da liberdade
lutasse, diferentemente do que advogariam os liberais, contra todas
as formas de dominação, mesmo quando são benignas e não envol­
vem, normalmente, interferência. Também permitiria ao amante da
liberdade suportar formas de interferência que não se configuram en­
quanto dominação. Nesse sentido, argumentam os teóricos do
republicanismo, tanto o desinteresse por um regime liberal de não-
interferência estreitamente limitado quanto os perigos do populismo
comunitário descontrolado poderiam ser evitados. As estruturas de
propriedade não seriam ameaçadas, enquanto a comunidade, em
suas formas higienizadas e palatáveis, poderia florescer.
Não gostaria de entrar aqui na questão de saber se a proclama
repi iblicanista efetivamente leva a conclusões substantivamente dife­
rentes daquelas pregadas pela teoria liberal do governo. Ao contrário,
eu gostaria de voltar nossa atenção para os pressupostos institucionais
que a doutrina do republicanismo compartilha com a do liberalismo.
Sejam individualistas, comunitários ou republicanos, todos concordam
que as instituições políticas a que almejam não podem ser de fato
postas em funcionarnento apenas legislando-se sobre sua criação.
Elas devem, como Philip PettiTj coloca de maneira bastante aguda,
“conquistar um lugar nos hábitos dos corações do povo".94 Elas de­
vem, em outras palavras, ser aninhadas numa rede de normas da
sociedade civil que prevalecem independentemente do Estado e que
/ são consistentes com as leis do Estado. Apenas tal sociedade civil
poderia prover, para usar uma velha fraseologia, a base social para a
|democracia capitalista. Este foi o grande tema de virtualmente toda
jtèoria sociológica na Europa do século XIX. No século XX, quando se
colocou o problema da possibilidade da transição capitalista no mun­
do não ocidental, os mesmos pressupostos forneceram os fundamen­
tos da teoria da modernização, seja em sua versão marxista ou
weberiana. O argumento, para colocar de forma simplificada, era o de
que sem uma transformação das instituições e práticas da sociedade
civil, produzida quer de cima para baixo como de baixo para cima,
seria impossível criar ou sustentar a liberdade e a igualdade no.domí­
nio político. Para se ter comunidades políticas modernas e livres, em
primeiro lugar se deveria ter povos compostos de cidadãos, e não de
sujeitos. Embora ninguém usasse mais as duras metáforas dos libe­
rais do século XVIII, o entendimento geral era o de que cavalos e
mulas não seriam capazes de representar a si mesmos no governo.
Para muitos, esse entendimento forneceu o fundamento ético de um
projeto de modernização do mundo não ocidental: transformar anti­
gos sujeitos, não familiarizados com as possibilidades da igualdade e
da liberdade, em cidadãos modernos. Em minha conferência anterior,
descrevi os sonhos e frustrações de um desses modernizadores, B.
R. Ambedkar.
II 107
Entretanto, enquanto as discussões filosóficas sobre os direitos
do cidadão no Estado moderno gravitavam em torno dos conceitos

Colonialismo, Modernidade e Política


de liberdade e comunidade, a emergência de democraçjaade massa
nos países industriais avançados do ocidente produziu uma distinção
inteiramente nova. É a distinção entre cidadãos e populações. Cida-
dãos habitam o domínio da teoria, populações, o domínio das políticas
públicas. Diferentemente do conceito de cidadão, o conceito de po­
pulação é totalmentiTaeírcr^ não traz nenhuma carga
normativa. Populaçõeslsão identificáveis, classificáveis e descritíveis
por critérios empíricos ou comportamentais, e são abertas a técnicas
estatísticas tais como censos e pesquisas amostrais. Diferentemente
do conceito de cidadão, que carrega uma conotação ética de partici­
pação na soberania do Estado, o conceito de população torna aces­
sível aos funcionários governamentais um conjunto de instrumentos
racionalmente manipuláveis para alcançar largos setores dos habitan­
tes de um país enquanto alvos de suas “políticas” - políticas
econômicas, políticas administrativas, justiça e mesmo mobilização
política. De fato, comc^chêTFÕucãui^apontou, uma importante ca-
racterística do regime de podar contemporâneo é- uma certa
“governamentalizacãQ-do Estado”.9S Esse reaimaassegura sua legiti­
midade não através da participação dos cidadãos em questões de
Estado mas por se proclamar provedor do bem-estar da população.
Sua racionalidade não é uma honestidade deliberativa mas uma no-
ção instrumental de custos e benefícios. Seu aparato não é a assem-
bléia republicana mas uma elaborada rede dej^gilâDQa^ Jongo_d£i

lação visada. Não é surpreendente que, no decurso dõ século XX, as


idéias de cidadania participativa que foram uma parte tão importante
da noção de política do lluminismo tenham-se retraído frente ao avan­
ço triunfante das tecnologias governamentais que prometiam forne­
cer mais bem-estar a mais pessoas a um custo mais oaixo. De fato,
se poderia dizer que a real história política do capital contornou em
muito os limites normativos da teoria política liberal para sair e conquis-
tar o mundo através de suas tecnologias governamentais. Muito da
carga emocional das críticas comunitárias ou republicanas à vida po­
lítica ocidental contemporânea parece originar-se de uma consciência
de que o negócio do governo foi esvaziado de qualquer engajamento
mais sério com o político. Isso é mostrado de forma mais óbvia pela
persistente queda na participação eleitoral em todas as democracias
ocidentais, e mesmo pelo recente pânico nos círculos da esquerda
liberal na Europa frente ao inesperado sucesso eleitoral de populistas
de direita.
I Como a enumeração e classificação dos grupos populacionais,
f para o propósito da administração do bem-estar, teve esse efeito so-
j bre o processo da política democrática nos países capitalistas avan-
j çados? Muitos escritores em campos amplamente diversificados têm
lançado luz sobre essas questões nos últimos anos, do filósof<5yiãn
|à historiadora da literatura' Mary PoovevT Mais relevante
para nós é a explicação dada por sociólogos britânicos comc
"Rose^Peter Millej^L^TlTÕmãs^Õsbom&j^cerca do real funcionamento
do “governamental’’ na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.97 Eles
estudaram a emergência do que foi denominado “governo do ponto
,de vista social”, particularmente nas áreas do trabalho, educação e
saúde, nos séculos XIX e XX. Houve, por exemplo, a ascensão de
sistemas de seguro social para minimizar o impacto inconstante da
economia nos vários grupos e indivíduos. Houve a constituição da
própria família, o sujeito de numerosos discursos pedagógicos, médi­
cos, econômicos e éticos, como um espaço do governamental. Hou­
ve uma proliferação de censos e pesquisas demográficas, tornando o
trabalho governamental equacionável em termos de números, e le­
vando como conseqüência à idéia da representação por proporções
numéricas. A administração da migração, crime, guerra e doença
tornou a própria identidade pessoal uma questão de segurança, sujei­
ta, portanto, a registro e constante verificação. (O tema reapareceu
subitamente nos Estados Unidos e Grã-Bretanha na onda do recente
pânico em relação ao terrorismo, e de fato ambos os países tinham
há décadas uma pletora de agências, tanto estatais quanto não esta­
tais, registrando, verificando e validando detalhes biológicos, sociais e
culturais da identidade pessoal.)Tudo isso tornou a governância uma
questão menos do político e mais das políticas administrativas, um
trabalho de peritos mais que de representantes políticos. Mais ainda:
enquanto a fraternidade política dos cidadãos tinha de ser constante­
mente afirmada como una e indivisível, não havia uma única entidade
de governados. Havia uma multiplicidade de grupos populacionais que
eram objetos do governamental - alvos múltiplos com características
múltiplas, demandando múltiplas técnicas de administração.
f Poderíamos então dizer, resumindo, que enquanto a idéia clássi-
\ ca de soberania popular, expressa nos fatos político-legais da cidada-
J nia igualitária, produziu a construção homogênea da Nação, as
'atividades do governamental requereram classificações múltiplas,
entrecruzadas e variáveis da população enquanto alvos de políticas
públicas múltiplas, produzindo necessariamente uma construção
[.heterogênea do social. Aqui, então, temos a antinomia entre o impo­
nente imaginário político da soberania popular e a realidade adminis­
trativa mundana do governamental: é a antinomia entre o nacional
homogêneo e^SQSjalJieterogêneo. Eu poderia notar, de passagem,
que quandaT. H.jylarshalí)fez em 1949 sua clássica interpretação da
expansão dacidadania do cívico para o político e daí para os direitos
sociais, ele foi responsável pelo que agora podernoãTDereeber como
um acõnfüíííõent^^
Bem-Estar na Grã-Bretanha, Marshall acreditou estar vendo a mar­
cha progressiva da soberania popular e da cidadania igualitária. Na
verdade, tratava-se de uma proliferação sem precedentes do gover­
namental, levando à emergência de uma intrincada e heterogênea
realidade social.98
Mas nos marcos cronológicos de seu relato, Marshall não esta­
va equivocado. O relato da cidadania no ocidente moderno vai da
instituição de direitos civis na sociedade civil até a instituição de direi-
tos políticos no Estado-Nação totalmente desenvolvido. Só então en­
tra-se na fase relativamente recente em que o “governo do ponto de
vista social” parece decolar. Nos países da Ásia e da África, entretan­
to, a seqüência cronológica é bastante diferente. Ali a carreira do
Estado-Nação foi encurtada. Tecnologias do governamental quase
sempre precedem o Estado-Nação, especialmente onde houve uma
experiência de domínio colonial europeu relativamente longo. No sul
da Ásia, por exemplo, a classificação, descrição e enumeração de
grupos populacionais como objetos de políticas públicas relacionadas
a demarcação de terras, impostos, recrutamento para o exército,
1prevenção ao crime, saúde pública, administração das penúrias e
secas, regulamentação dos locais religiosos, moralidade pública, edu­
cação e uma multidão de outras funções governamentais têm uma
história pelo menos um século e meio anterior ao nascimento dos
Estados-Nação independentes da índia, Paquistão e Sri Lanka. O •
Estado colonial foi o que/Nicholas DirkFfchamou de um “Estado^.
etnográfico’^.99 Ali as populações tinham o status de^syjeitos, não de
cidadãos. Obviamente, a dominação colonial não reconhecia a saber...
rania popular.
Este era um conceito que acendia a imaginação de revolucioná­
rios nacionalistas. Idéias de cidadania republicana sempre acompa­
nharam as estratégias de libertação nacional. Mas sem exceção - e
isto é crucial para o nosso relato sobre a política na maior parte do
mundo - essas idéias foram ultrapassadas pelo Estado
.desenvolvimentista que prometeu acabar com a pobreza e o atraso
através da adoção de políticas públicas adequadas, de crescimento
econômico e reforma social. Com variados graus de sucesso, e em
alguns casos com fracassos desastrosos, os Estados pós-coloniais
implantaram as mais recentes tecnologias governamentais para pro­
mover o bem-estar de suas populações, sempre incitados e auxilia­
dos por organizações internacionais e não-governamentais. Ao adotar
essas estratégias técnicas de modernização e desenvolvimento, ve­
lhos conceitos etnográficos muitas vezes penetraram o campo de
conhecimento acerca das populações - como categorias descritivas
convenientes para classificar grupos de pessoas em alvos apropriados
para as políticas administrativas, legais, econômicas ou eleitorais. Em
muitos casos, critérios classificatórios usados pelos regimes governa­
mentais coloniais permaneceram em uso na época pós-colonial, defi-
lindo as formas tanto das demandas políticas quanto da política
I jesenvolvimentista. Assim, casta e religião na índia, grupos étnicos no
I pudeste asiático e tribos na África permaneceram os critérios domi-
Jinantes para a identificação de comunidades entre as populações como
/objetos de políticas públicas. Tanto que uma gigantesca pesquisa
etnográfica, recentemente levada a cabo por uma agência governa­
mental na índia e publicada em 43 volumes, anunciou ter identificado
e descrito um total de exatamente 4.635 comunidades que deveriam
comportar a população da índia.100
Descrevemos então dois conjuntos de conexões conceituais. Um ^
é a linha conectando a sociedade civil ao Estado-Nação, fundado j
sobre a soberania popular e concedendo direitos iguais aos cidadãos. J ,
O outro é a linha conectando populações às agências governamen-^ j
tais, aplicando múltiplas políticas de segurança e bem-estar. A primei-) 1
ra linha aponta para o domínio do político descrito em grande detalhe
pela teoria política democrática nos últimos dois séculos. Apontaria a
outra linha para um domínio do político distinto? Acredito que sim.
Para o distinguir das formas associativas clássicas da sociedade civil, \
estou chamando-o de “sociedade política”.
Em uma série de artigos recentes, tentei esboçar esse campo
conceituai no contexto da política democrática na índia.101 Preferi re­
ter a velha idéia de_sociedade civil como sociedade burguesa, no sen­
tido usado porlttegel e Mãrx( e usá-la no contexto indiano como uma
arena realmente existente de instituições e práticas habitada por um
setor relativamente pequeno do povo cujos locais sociais podem ser
identificados com um alto grau de clareza. Em termos da estrutura
“formal” do Estado como dada pela constituição e pelas leis, toda a
sociedade é sociedade civil; todos são cidadãos com iguais direitos e
portanto considerados como membros da sociedade civil. O processo
^ político é aquele em que os órgãos do Estado interagem com mem-
} bros da sociedade civil em suas capacidades individuais ou como
membros de associações. ÍMaxealidade, não é assim que as coisas
acontecem. A maior parte dos habitantes da índia são apenas vaga-

tadores de direitos no sentLdojmaainado pela constituicão. Não são


propriamente, portanto, rpembrosjda-SQdedade civil e não são reco­
nhecidos enquanto tal pelas instituições do Estado. Mas não é como
se estivessem fora do alcance do Estado ou mesmo excluído do do-
mínio do político. Enquanto populações dentro da jurisdição territorial
do Estado, são tanto visados como controlados por várias agências
governamentais. Essas atividades trazem essas populações para um
certo relacionamento político com o Estado. Mas esse relacionamen­
to nem sempre é conforme àquele propugnado pela representação
constitucional da relação entre o Estado e membros da sociedade
civil. Contudo, essas são sem dúvida relações políticas que adquiri­
ram, em contextos específicos historicamente definidos, um caráter
sistemático largamente reconhecido, ou mesmo talvez certas normas
éticas convencionalmente reconhecidas, mesmo se sujeitas a varia­
dos graus de contestação. Como podemos começar a entender es­
ses processos?
I Defrontados com problemas similares, alguns analistas optaram
/ por expandir a idéia de sociedade civil para incluir virtualmente qual-
I quer instituição social situada fora do domínio estrito do Estado.102
I Essa prática se tornou extensiva na retórica das instituições internaci-
! onais de financiamento, agências de ajuda e organizações não-gover-
! namentais entre as quais a disseminação de uma ideologia neoliberal
autorizou a consagração de toda e qualquer organização não estatal
como a fina flor do empenho associativo dos membros livres da soci­
edade civil. Preferi resistir a esses gestos teóricos inescrupulosamente
I caridosos, principalmente porque sinto ser importante não perder de
' vista o projeto vital e permanentemente ativo que ainda informa mui­
tas das instituições estatais em países como a índia, e que pretende
transformar autoridades e práticas sociais tradicionais nas formas
I modulares da sociedade civil burguesa. A sociedad& civil^enquanto ,
/ um ideal continua impulsiopaqdo um projetopolíticq interveacioaista^
/ mas, enquanto uma forma realmente existente, eJaAdscPQgraficarnente
; ríimitidarÃmbosos~fatos de^rrTseffr^ido^àmente ao se considerar
a relação entre modernidade e democracia em países como a índia.
Alguns de vocês podem relembrar uma estrutura conceituai usa­
da em uma fase anterior do projeto dos Estudos Subalternos no qual
falávamos sobre uma divisão entre um domínio organizadora elite e
um domínio subalterno desorganizado.103 A idéia dessa divisão, é cla­
ro, era marcar o meio de campo da arena da política nacionalista nas
três décadas antes da independência durante as quais as massas
indianas, especialmente o campesinato, foram trazidos para dentr$
de movimentos políticos organizados e ainda assim permaneceram
distanciados das formas evoluídas do Estado pós-colonial. Dizer que
havia uma divisão no domínio da política significava rejeitar a noção,
co a liberal quanto à marxista, de _.que_Q-
campesinato vivia em algum estágio "pré-político” de ação coletiva.
Significava dizer que os camponeses em suas ações coletivas tam­
bém estavam sendo políticos, embora fossem políticos de uma ma­
neira diferente daquela da elite. Desde aquelas primeiras experiências
da imbricação da política da elite e a dos subalternos no contexto dos
movimentos anticoloniais, o processo democrático na índia vem avan­
çando no sentido de colocar sob a sua influência as vidas das classes
subalternas. É para entender essas formas recentes de entrelaça­
mento entre a política da elite e a subalterna que estou propondo a
noção de uma sociedade política^ ~ “ —— —
Para ilustrar o que quero dizer com sociedade política e como ela
funciona, descreverei, na última conferência desta série, muitos ca­
sos estudados em trabalho de campo recente nos quais podemos ver
uma política emergindo das políticas desenvolvimentistas voltadas para
grupos populacionais específicos. Muitos desses grupos, organizados
em associações, transgridem as linhas estritas da legalidade na luta
por vida e trabalho. Podem viver em ocupações ilegais, fazer uso ilegal
do fornecimento de água e eletricidade, viajar sem passagem no trans­
porte público. Ao lidar com eles, as autoridades não podem tratá-los
em pé de igualdade com outras associações cívicas que perseguem
propósitos sociais mais legitimados. No entanto as agências governa­
mentais e as organizações não-governamentais também não podem
ignorá-los, já que eles são uma dentre milhares de associações simi­
lares que representam grupos populacionais cuja própria sobrevivên­
c ia e moradia envolvem a violação da lei. Essas agências, por conse­
guinte, lidam com essas associações não como corpos de cidadãos,
mas como instrumentos convenientes para a administração de bem-
estar a grupos populacionais marginalizados e desprivílegiados.
Esses grupos, por sua vez, concordam que suas atividades são
geralmente ilegais e contrárias ao bom comportamento cívico, mas
reclamam moradia e sobrevivência como uma questão de direito. Eles
professam uma disponibilidade para sair dessas ocupações ilegais se
lhes for oferecida a relocação para locais apropriados alternativos, por
exemplo. As agências estatais reconhecem que esses grupos
populacionais realmente fazem reivindicações aos programas de bem-
estar do governo, mas essas reivindicações não podem ser conside­
radas direitos justificáveis enquanto o Estado não puder prover a tota­
lidade da população do país daqueles benefícios. Tratar estas reivindi­
cações como direitos só faria incentivar mais violações da propriedade
pública e das leis civis.
O que acontece então é uma negociação destas reivindicações
em um terreno político onde, por um lado, agências governamentais
têm a obrigação pública de cuidar dos pobres e desprivilegiados e, por
outro, grupos populacionais particulares recebem atenção destas agên­
cias de acordo com cálculos de expedientes políticos. Os grupos na
sociedade política têm de encontrar seu caminho através desse terre­
no irregular construindo um iargo conjunto de iigações fora do grupo -
com outros grupos em situações similares, com grupos mais privilegi­
ados e influentes, com funcionários governamentais, talvez com parti­ 115
dos políticos e líderes. Esses grupos em geral fazem uso instrumental
do fato de poder votar nas eleições, donde ser possível dizer que o
campo da cidadania, em certa medida, justapõe-se ao do governa­

Colonialismo, Modernidade e Política


mental. Mas o uso instrumental do voto é possível apenas dentro de
um campo de política estratégica. Esse é o estofo da política demo­
crática como tem lugar no solo indiano. Ela envolve o que pareçgj
um compromisso constanten3entewiá\d^eSc^TOT«rt5r^normativos
damodernídade ea asserção moraldas demandas poc
r -— ^ — r ■— -----------------------------------------------------------------
fj A sociedade civil, dessa forma, restrita a um pequeno setor de
// cidadãos culturalmente equipados, representa em países com a índia
| o cume da modernidade. O mesmo é verdade para o modelo consti-
\ tucional do Estado. Mas na prática real, as agências governamentais
têm de descer desse cume para o terreno da sociedade política de
forma a renovar sua legitimidade enquanto provedoras de bem-estar,
e confrontar-se ali com qual seja a configuração das demandas políti­
cas mobilizadas. Nesse processo, é possível escutar-se os protago­
nistas da sociedade civil e do Estado constitucional queixarem-se que
a modernidade está encarando um rival inesperado na forma da de­
mocracia.
Como eu disse, usarei minha última conferência nessa série para
ilustrar o funcionamento do que chamei de sociedade política. Por
enquanto, deixem-me apontar os significados políticos muito diferen­
tes, e muitas vezes contraditórios, da sociedade civil e da sociedade
política. Já que venho contando histórias nessas conferências, dei­
xem-me fazê-lo contando a vocês mais uma história do domínio da
política popular na cidade indiana.104

III
Em 05 de maio de 1993, nas primeiras horas da madrugada, um
homem morreu em um hospital de Calcutá. Ele tinha sido internado
alguns dias antes e estava sendo tratado de diabetes molutus. fãíh^
renal e acidente vascular cerebral. Sua condição tinha se deteriorado
rapidamente nas vinte e quatro horas anteriores e, apesar dos médi­
cos que o atendiam terem lutado por toda a noite, seus esforços
foram em vão. Um médico veterano do hospital assinou o atestado de
óbito.
O nome do homem que morreu era Birendra Chakrabarti, mas
ele era mais conhecido como Balak Brahmachari, líder da Santal Dal,
uma seita religiosa com um largo contingente de seguidores nos distri­
tos do sul e do centro de Bengala Ocidental. A seita propriamente não
tinha mais de cinqüenta anos, embora provavelmente tivesse seus
antecedentes em movimentos sectários anteriores entre as castas
baixas, especialmente Namasudra, camponeses de Bengala central.
Suas doutrinas religiosas são altamente ecléticas, consistindo inteira­
mente nas visões do próprio Balak Brahmachari conforme expressas
em seus ditos, mas estes são caracterizados em particular por um
curioso envolvimento em questões políticas. O órgão de divulgação
da seita, Kara Chabuk (O Chicote Vigoroso) publicava regularmente
os comentários de seu líder em assuntos atuais da política, nos quais
aparecia o recorrente tema da “revolução”, uma convulsão cataclísmica
que iria limpar cirurgicamente uma ordem social corrupta e pútrida. A
seita, de fato, veio pela primeira vez a público no período entre 1967 e
1971, quando participou de manifestações políticas de apoio a parti­
dos de esquerda e contra a lei do Congresso. Os ativistas da Santal
Dal, com muitas mulheres em suas fileiras, alguns em roupas açafrão,
alçando seus tridentes e gritando seu slogan “Ram Narayan Ram”,
eram um elemento incongruente nas manifestações esquerdistas na
Calcutá de então, e não conseguiram atrair a atenção.105 Mas nin­
guém acusou a seita de ambições políticas oportunistas, uma vez que
ela não requisitou representação eleitoral ou seu reconhecimento en­
quanto partido político. Desde então, muitos seguidores da seita têm
sido reconhecidamente simpatizantes e mesmo ativistas da esquer­
da. especialmente do Partido Comunista da índia (Marxista), principal
parceiro na frente de esquerda que governa continuamente Bengala
Ocidental desde 1977.
Nessa manhã particular de maio de 1993, os seguidores de Balak
Brahmachari se recusaram a aceitar que seu líder espiritual estivesse
morto. Eles recordaram que muitos anos antes, em 1960, ele tinha
ficado em samadhi por vinte e dois dias, durante os quais, a crer em
todos os sinais exteriores, ele estava morto, mas depois disso ele
havia acordado de seu transe e voltado à vida normal. Agora mais
uma vez, diziam, seu Baba havia entrado em nirvikalpa samadhi, um
estado de suspensão das funções corporais que só poderia ser alcan­
çado por aqueles com os mais altos poderes espirituais. Os membros
da Santal Dal levaram o corpo de Balak Brahmachari do hospital para
seu ashrarrwe em Sukhchar, um subúrbio no norte de Calcutá, e co­
meçaram a manter o que para eles seria uma longa vigília.
Logo o problema se tornou uma cause célèbre em Calcutá.107 A
impressa se interessou pelo caso, publicando relatos de como o cor­
po estava sendo mantido sobre barras de gelo e sob forte condiciona­
mento de ar. Um diário bengali, Ajkal, acompanhou a história com
vigor particular, transformando-o em uma luta em prol de valores raci­
onais na vida pública e contra crenças e práticas obscurantistas. O
jornal acusava as autoridades locais e o departamento de saúde de
Bengala Ocidental de falhar em implementar suas próprias regras
concernentes à disposição dos cadáveres, e de conivência com uma
séria ameaça à saúde pública. Logo as autoridades foram forçadas a
responder. No décimo terceiro dia da vigília, a municipalidade de Panihati
esclareceu que havia entregue aos líderes da Santal Dal uma notifica­
ção solicitando a cremação imediata do corpo, mas que sob a lei
municipal não tinha poderes suficientes para levar a cabo uma crema­
ção à força.108 Do lado da Santal Dal, Chitta Shikdar, o secretário,
manteve uma campanha regular de defesa na imprensa, sustentando
que o fenômeno espiritual nirvikalpa samadhi estava além da compre­
ensão da ciência médica e que Balak Brahmachari logo retomaria
sua vida corporal normal.
O confronto continuou. O Ajkal aumentou o “tempo” de sua cam­
panha, abrindo suas colunas para intelectuais proeminentes e figuras
públicas que deploravam a persistência de tais crenças supersticiosas
e não científicas entre o povo. Grupos de ativistas das organizações
culturais progressivas, o movimento científico popular e a sociedade
racionalista começaram a encampar manifestações em frente ao quar­
tel general da Santal Dal em Sukhchar. OAjkal não poupou esforços
para provocar o porta-voz da Dal e para ridicularizar suas proposi­
ções, recusando-se a se referir ao líder morto por seu nome sectário
Balak Brahamchari e chamando-o em vez disso de “Balak Babu” -
uma expressão nonsense traduzível por “Senhor Balak”. Houve al­
guns embates acalorados no portão do ashram da Santal Dal, com os
ativistas da Dal, segundo consta, armazenando armas e se preparan­
do para um confronto. Uma noite, alguns traques e bombas caseiras
explodiram do lado de fora do ashram e um grupo de ativistas da Dal
gritou por seus alto-falantes: “A revolução começou”.109
Cerca de um mês depois da morte oficial de Balak Brahmachari,
seu corpo ainda estava deitado sobre blocos de gelo em um quarto
com ar condicionado e seus seguidores esperando o romper de seu
samadhí, o Ajkal afirmou que havia um mau-cheiro insuportável em
toda a vizinhança de Sukhchar e que para os moradores da área isso
já era o bastante. Começou então a ser alegado abertamente que o
governo relutava em intervir por razões eleitorais. As eleições para os
corpos governamentais locais na zona rural de Bengala Ocidental, os
panchayats cruciais que haviam-se tornado a espinha dorsal do apoio
à frente de esquerda, estavam marcadas para a última semana de
maio. Qualquer ação contra a Dal poderia irritar muitos apoiadores da
frente de esquerda em pelo menos quatro distritos de Bengala Oci­
dental. Também foi sugerido que alguns importantes líderes do CPI(M)
eram simpáticos à Santal Dal e que um ministro em particular, Subhas
Chakrabarti, ministro encarregado do turismo e dos esportes, era con­
siderado por membros da Dal como um apoio fraternal.
Em 25 de junho de 1993, cinqüenta e um dias após a morte
oficial de Balak Brahmachari, o ministro da saúde de Bengala Ociden­
tal anunciou que uma equipe médica constituída por especialistas de
ponta em medicina, neurologia e medicina forense examinaria o corpo 119
de Balak Brahmachari e submeteria um relatório ao governo. A Asso­
ciação Médica Indiana, o mais alto corpo profissional de praticantes

Colonialismo, Modernidade e Política


da medicina, protestou imediatamente, afirmando que realizar um novo
exame mostraria uma falta de confiança no atestado de óbito endos­
sado pelo hospital. Apontava o fato de que nenhum fundamento cien­
tífico havia sido fornecido para questionar o julgamento original dos
médicos do hospital. Os médicos do governo prosseguiram assim
mesmo e retornaram de Sukhchar para dizer que não tinham obtido
permissão para tocar no corpo. Eles afirmaram que o corpo havia-se
putrefeito e apresentava sinais de mumificação, e que não havia se
decomposto completamente por conta da temperatura extremamen­
te baixa na qual estava sendo mantido.110
Por essa ocasião, Subhas Chakrabarti foi encarregado pela direção
do CPI(M) de encontrar uma solução para o impasse. Acompanhado
pelos líderes locais do CPI(M), ele visitou o ashram de Sukhchar e
mais tarde contou aos jornalistas que estava tentando persuadir os
seguidores do Baba a cremar seu corpo. Ele concordou que não
havia razão científica para os médicos terem reexaminado um corpo
cuja morte havia sido atestada, mas insistiu em que essa era uma
parte necessária do processo de persuasão. O ministro apontou para
o fato de que o "Babado” ainda prevalecia no país e que milhares de
pessoas eram seguidoras desses líderes religiosos, advertindo sobre o
perigo de não levar a sério o fanatismo religioso. O ponto de vista do
governo, dizia, era que o uso da força poderia incitar ao fanatismo.
Quando perguntado se estava ciente da ameaça à saúde que havia-
se criado em Sukhchar, respondeu que não havia sentido nenhum
cheiro, mas que isso provavelmente era devido ao fato de ser um
usuário habitual de rapé.111
Em 30 de junho, em uma operação que durou quatro horas e
começou às duas da manhã, uma força constituída de 5.000 policiais
invadiu o quartel general do Santal Dal, tomou posse do corpo e re­
moveu-o para um crematório nas redondezas. O The Telegraph rela­
tou que os últimos ritos foram oficiados pelo irmão do guru, “enquanto
um cordão de isolamento afastava mulheres aos prantos que ainda
acreditavam que seu líder falecido ressuscitaria. O governo do Esta­
do, severamente criticado por ter conduzido o tema com muita bran­
dura, soltou um suspiro de alívio”. A força policial, que foi atacada por
ativistas da Dal com bolsas de ácido, facas, tridentes, garrafas de
vidro e pó de pimenta, usou bombas de gás lacrimogêneo para imobi­
lizar os defensores e máscaras contra gases para alcançar as grades
das janelas e os portões levadiços do quartel general pesadamente
fortificado. Mas não recorreu às balas. Muitos ativistas da Dal, assim
como policiais, ficaram feridos, mas, como o comunicado oficial à
imprensa colocou, “não houve casualidades”.112
O ministro Subhas Chakrabarti congratulou-se com a polícia e
com a administração local por terem levado a cabo uma operação
tão difícil e sensível. Ele se referiu ao popular filme hindi Jugnu e disse
que a tarefa era mais difícil que aquela que o ator Dharmendra havia
encarado no filme. “É claro,” disse aos jornalistas, “vocês acham que
tudo isso é cultura lumpen, mas eu acho que é um exemplo adequa­
do”. No dia segunWTõÃ/kal anunciou em seu editorial: “Nós chega­
mos ao fim daquela era em Bengala Ocidental na qual gultura lumpen
podia ser chamada de cyjtura lurjipen. Bengala Ocidental progressiva
assistiu ao fim da idade da razão. Agora começa a era de Jugnu".113
Apesar da conclusão relativamente suave e bem-sucedida do
problema, a controvérsia não morreu por aí. Chitta Sikdar, o secretá­
rio do Santal Dal, protestou junto ao ministro-chefe contra o que des­
creveu como uma ação autoritária e antidemocrática por parte do
governo. Ele afirmou que o tratamento recebido por Balak Brahmachari
nas mãos dos governantes da sociedade seria lembrado pela História
da mesma forma que os julgamentos de Jesus Cristo, Galileu e
Sócrates. Por outro lado, opiniões como as do Ajkal taxavam de opor­
tunistas as tentativas do governo e do partido no poder de responsa­
bilizar líderes do segundo escalão da seita por manobrar seus segui­
dores inocentes e por se beneficiar de seus sentimentos religiosos
superexcítados, mas sem criticar as seitas e os próprios assim cha­
mados homens de deus por espalhar o irracionalismo e a superstição.
Doze dias após a cremação de Balak Brahmachari, o secretário da
Santal Dal e outras oitenta e duas pessoas foram presas, acusadas
de tumultos, assalto, obstrução da justiça e outras violações.114
Por muitos meses membros da Santal Dal continuaram escre­
vendo cartas a jornais retratando-se como vítimas de uma ação poli­
cial ilegal e antidemocrática. Eles perguntavam quais leis da terra os
seguidores do Baba haviam quebrado ao acreditar que ele voltaria
para o meio deles. Uma crença religiosa em poderes espirituais extra­
ordinários mereceria disparos das armas dos policiais? E não teria sido
o caso de que os seguidores da Dal teriam por fim sido sujeitos à ação
policial porque a maior parte deles eram camponeses de casta baixa,
cujo valor político marginal havia evaporado após o fim das eleições
para o governo local? Se a memória coletiva podia ser curta, uma
carta advertia, a memória das vítimas era impiedosa. Os perpetradores
da injustiça encontrariam um dia seu dia do julgamento.115
O caso ilustra, acredito, muitos dos pontos que tanto levantei
acerca da relação entre sociedade civil e democracia em um país
como a índia. Uma sociedade civil moderna, consistente com as idéi­
as de liberdade e igualdade, é um projeto localizado nos desejos histó­
ricos de certos setores de elite indianos. O relato específico da emer­
gência e florescimento desses desejos e de suas origens em projetos
coloniais já foi muito discutido. Houve um tempo, quando o país esta­
va sob o domínio colonial, em que essas elites acreditavam que os,
^processos cruciais de transformação que modificariam as crenças e
.práticas popuiares tradicionais e criariam uma nova identidade nacio­
nal moderna deveriam ser mantidos fora do alcance do aparato do
Estado colonial. Com o fim do domínio colonial e o advento dessas
classes ao poder, no Estado pós-colonial, aquele projeto de transfor­
mação alocou-se firmemente no potencial dinâmico dos órgãos do
novo Estado nacional. O fato de que esses órgão eram agora parte
de um sistema constitucional de democracia representativa fez do
projeto modernizador uma expressão do desejo do povo e tornou-o
portanto, gloriosamente consistente com as normas de legitimação
da própria modernidade.
Embora muitas das posições e atividades características da are­
na que denominei sociedade política possam ser vistas como tendo
emergido do campo das mobilizações políticas nacionalistas do perío­
do colonial, eu diria que elas assumiram como que uma forma distinta
apenas desde os anos de 1980. Duas condições facilitaram esse pro­
cesso.^Uma foi o predomínio alcançado pela noção de performance
governamental que enfatiza o bem-estar e a proteção das popula­
ções -a s funções "pastorais” d o qoverno, como foram denominadas
porjylichel Foucaulty que se utilizavam de tecnologias governamen­
tais similares por todo o mundo mas eram largamente independentes
de considerações sobre uma participação efetiva dos cidadãos na
soberania do Estado, o que possibilitou um reconhecimento mútuo
por parte das agências estatais e dos grupos populacionais de que os
governos são obrigados a conceder certos benefícios mesmo para
pessoas que não são propriamente membros da sociedade civil ou do
corpo republicano de cidadãos efetivos. Se o Estado-Nação não pu­
der fazê-lo, essas concessões devem ser encampadas por agências
não-governamentais-se necessário, internacionais. Ajegunda con­
dição é o alargamento da arena da mobilização política, instada por
considerações eleitorais e mesmo apenas com finalidades eleitorais,
de estruturas formalmente organizadas tais como partidos políticos
com constituições internas bem ordenadas e programas e doutrinas
coerentes para mobilizações frouxas e comumente transitórias,
construídas sobre estruturas de comunicação que ordinariamente não
seriam reconhecidas como políticas (por exemplo, assembléias religio­
sas e festivais culturais, ou, mais curiosamente, até fã-clubes cinema­
tográficos, como em alguns estados do sul da índia).
A proliferação das atividades nessa arena da sociedade política
causou muito desconforto e apreensão nos círculos progressivos de
elite nos últimos anos. O comentário sobre a “cuftura lumpen” no
editorial do Ajkal que citei anteriormente é típico. É hoje amplamente 123
difundida nos círculos de classe média a queixa de que a política foi
apropriada põROf^B ^O T m jn^^T ^
prossegue a queixa - da missão do Estado modernizador de modificar n

Colonialismo, Modernidade e Política


uma sociedade atrasada. Ao contrário, o que vemos é ajmporlação ^
das práticas irracionais, corruptas e desordenadas da cultura popular £

em função de cálculos de expedientes .eleitorais. A nobre meta da


modernidade parece estar seriamente comprometida por conta das
injunções da democracia parlamentar.
. '__ ___ _ »
Dada uma históriade mais de um século de instituições repre­
sentativas modernas na índia, podemos vislumbrar um padrão evolutivo
desse familiar problema tocquevílliana-116 Os primeiros liberais india­
nos, como Dadabhai Naoroji ou Gopal Krishna Gokhale, ou mesmo
Muhammad Ali Jinnah na primeira fase de sua vida política, estavam
inteiramente convencidos do valor inerente dessas instituições, mas
também demonstravam uma ampla circunspeção quanto às condi­
ções nas quais elas poderiam funcionar. Como bons liberais do século
XIX, eles seriam os primeiros a especificar r©qu4sites4âisjxiaa0eduça-
ção ou uma adesão comprovada à vida cívica que deveriam ser al­
cançados antes que um povo pudesse ser considerado preparado
para, em suas palavras, "recsber instituir,õas-parlameatares". Se ob­
servarmos esse fato de outro ângulo, poderíamos dizer que para ho­
mens como Naoroji ou Gokhale, a democracia era uma boa forma de
governo apenas quando pudesse ser adequadarnénte controlada por
homens de boa posição e sabedoria. Com a ascensão dos chamados
“extremistas” na política nacionalista, especialmente com os movi­
mentos Khilafat e de não-cooperação, ingressaram na vida política
organizada muitas forças e muitas idéias que não se importavam muito
com as delicadezas da política parlamentar. Foi Gandhi, é claro, quem
naquele período interveio decisivamente na arena política criada por
novas instituições representativas da ordem colonial tardia. Mesmo
que tenha conclamado a rejeição das instituições parlamentares junto
com todos os demais adornos da civilização moderna, ele foi mais
instrumental do que ninguém em fazer nascer a mobilização que ter­
minaria por fazer do Congresso Nacional Indiano a organização políti-

11 ido jja i caiciwo uui i il/ ni-/cn icii a u noiauvci ^v^j^uícii c» au 1 11001 >m ic?i i if^w

de como controlá-la.117 Com a formalização do domínio do Congresso


nos primeiros quinze anos após a independência, o controle.se tornou
o tema dominante no estreito entrelaçamento entre a iniciativa estatal
e a aprovação eleitoral na chamado sistema do Congresso no período
Nehru.
A jornada que vai desde o período de Nehru até a crise de meados
dos anos de 1960 e o restabelecimento da supremacia do Congresso
no populismo de Estado do primeiro regime de Indira Gandhi é uma
trajetória que não é estranha à experiência histórica de muitos países
do terceiro mundo. O elemento distintivo na vida da democracia india­
na, creio eu, foi a derrota do regime de emergência de Indira Gandhi
numa eleição parlamentar. Essa derrota trouxe à luz uma clivagem,
decisiva em todas as discussões subseqüentes, entre a essência e a
aparência da democracia, sua forma e conteúdo, sua natureza intrín­
seca e sua aparência exterior. Qualquer que seja o julgamento dos
historiadores sobre as “reais” causas do colapso do regime de emer­
gência, as eleições de 1977 estabeleceram, na arena das mobilizações
populares da índia, a capacidade do voto e dos corpos representativos
do governo de dar voz a demandas populares de todo tipo, às quais
nunca antes havia sido permitido perturbar a ordem e a tranqüilidade
dos proverbiais corredores do poder. Não se pode mais que especular
se essa não foi a experiência crucial para dissociar o entendimento
popular da democracia vigente na índia daquele corrente no vizinho
Paquistão, onde foi possível em tempos recentes que, tanto as elites
quanto os subalternos, dissessem em uníssono que a democracia elei­
toral é uma farsa, e que o caminho para a verdadeira democracia pode
ter que passar por uma fase de ditadura militar.
Mas antes que nós na índia nos congratulemos cedo demais, 125
deixem-me reafirmar aquilo que tanto venho argumentando nesta
conferência. Os temas opostos da legitimidade popular e controle pelas _

Colonialismo, Modernidade e Política


ejites - o problema perene da própri ateoria da democracia conforme
representada pelos conceitos mediadores de comunidade.£.proprie-
dade - estiveram aninhadosna concepção de democracia indiana
desde o início. Eles não foram embora, nem foram resolvidos ou supe­
rados. Apenas adquiriram novas formas como resultado dos constan­
tes embates entre as concepções populares e de elite sobre a demo­
cracia. Esses temas têm sido repostos novamente nos recentes de­
bates sobre a modernização democrática na índia. Por outro lado, as
hesitantes demandas por sanções populares levaram modernizadores
dedicados a levantar suas mãos para lamentar que a idade da razão
tenha encontrado seu fim pela rendição política às forças da desor­
dem e da irracionalidade. JEIes lêem os-^versc^ompromissos cgm
injunções eleitorais como sinais do.abandono da política esclarecida.
' Geral menfe mêríós notados são os efeitos transformadores dessas
manifestações de oposição entre os setores da população suposta­
mente não esclarecidos. Uma vez que esta é uma área que apenas
começa a ser estudada, eu só poderia fazer, em minha conferência,
algumas observações preliminares. Mas isso constitui, acredito, o mais
profundo e significativo conjunto de mudanças sociais que estão sen­
do produzidos pelo processo democrático em países como a índia
atualmente.
L Deixem-me também dizer que já se produziu, entre as classes
governantes na índia, uma resposta a essas mudanças sociais. Perce­
bo-a como uma variação da estratégia colonial de administração indireta.
^Essa resposta envolve a suspensão do projeto modernizador, constru- ,
>indo defesas ao redor das zonas protegidas da sociedade civil burgue-
, | sa, e diluindo as funções governamentais da lei e da ordem e do bem -
estar entre os “líderes naturais” das populações governadas. Essa es­
tratégia, em outras palavras, busca preservaras virtudes cívicas da vida
burguesa dos excessos potenciais da democracia eleitoral.
/ A outra resposta é menos cínica, mesmo sendo mais pragmáti-
! ca. Ela não abandona o projeto de esclarecimento, mas tenta guiá-lo
através da floresta de contestações naquilo que chamei de sociedade
política. Leva a sério as funções de direção e liderança de uma van­
guarda, mas admite que o braço legal do Estado num país como a
índia não consegue alcançar uma larga faixa de práticas sociais que
continuam a ser reguladas por outras crenças e administradas por
outras autoridades. Mas essa proposta também sabe que aquelas
zonas obscuras estão sendo penetradas pelas funções de provimento
de bem-estar das práticas governamentais modernas, produzindo
aqueles efeitos sobre as reivindicações e sobre a representação que
denominei de ânsia pela democratização. Esse é a zona na qual o
projeto da modernidade democrática tem que operar-vagarosamente,
dolorosamente, hesitantemente.
Ao resgatar o exemplo das negociações sobre a disposição de
um cadáver em Calcutá, não estava tentando fornecer uma narrativa
da forma correta de gerenciar as contradições entre as pessoas. Nem
estava descrevendo um caso de exercício bem-sucedido do poder.
Tampouco estou afirmando que a forma específica pela qual uma cri­
se local de modernidade-versus-democraciafoi resolvida naqueia oca­
sião foi resultante de um projeto político consciente de transformação
social no qual os partidos dominantes em Bengala Ocidental estão
engajados. Ao contrário, minha intenção era apontar as possibilidades
que existem naquela zona nebulosa em termos normativos que cha­
mei de sociedade política. Quando uso esse termo, sempre tenho em
£ nente que nos Cadernos do Cárcere,jFsinT5niq^ramscífcomeça as-
I sociando a sociedade política ao Estado, mas logo desliza em direção
! a toda uma faixa de intervenções sociais e culturais que devem ter
, lugar bem longe do domínio do Estado. É claro que, ao levar adiante o
projeto de transformar sujeitos subalternos em cidadãos nacionais, os
modernizadores encontraram resistências que são encorajadas pelas
atividades da sociedade política. Mas tentei enfatizar que, mesmo re­
sistindo ao projeto modemizador imposto a elas, as classes subalter­
nas também embarcam em uma trilha de transformação interna. Na
minha última conferência dessa série, darei a vocês alguns exemplos
desse processo incipiente de mudança. Ao mesmo tempo, ao levar
adiante sua missão pedagógica na sociedade política, os educadores
- pessoas esclarecidas como nós - poderiam também alcançar edu­
car a si mesmas. Esse, admito, seria o resultado mais enriquecedor e
historicamente significativo do encontro entre modernidade e demo­
cracia na maior parte do mundo.
A Política Dos Governados
n
Colonialismo, Modernidade e Política
I
Deixem-me conduzir vocês em um giro rápido pela sociedade
política, ou pelo menos por aquelas partes que me são familiares, "pois
há muitas partes sobre as quais sei muito pouco.
Nossa primeira parada é junto aos trilhos da estrada de ferro que
correm na parte sul da cidade de Calcutá, não muito longe do lugar
onde moro e trabalho. Uma via arterial de grande porte atravessa por
sobre os trilhos. Se você ficar em pé no viaduto e olhar à sua frente,
verá quarteirões de prédios de apartamentos de muitos andares, um
luxuoso shopping center e os escritórios de uma grande companhia
de petróleo. Mas, se olhar para baixo, verá uma estreita linha de bar­
racos, com telhados irregulares de zinco ou cerâmica, cobertos com
lonas sujas, correndo ao lado e perigosamente perto dos trilhos. São
ocupantes que têm vivido ali por mais de cinqüenta anos. No começo
dos anos de 1960, alguns de meus colegas do Centro de Estudos em
Ciências Sociais, em Calcutá, sob a direção de Asok Sen, fizeram um
estudo de uma parte desses barracos.118 Essa parte tem o nome
oficial de Colônia Ferroviária de Gobindapur Portão Número 1, e conta
com uma população de cerca de 1.500 pessoas.
A ocupação aparentemente surgiu no fim da década de 1940,
quando um pequeno grupo de camponeses do sul de Bengala, que
haviam perdido suas terras como conseqüência da grande fome de
1943, veio para a cidade em busca de sustento. Logo havia milhares
de outros chegando à cidade a cada dia. Esses novos migrantes eram
do leste de Bengala, que na altura passou a se chamar Paquistão
Oriental (N.R.: Atual Bangladesh). Eram refugiados produzidos pela
partilha da índia. Ao longo da década seguinte, os subúrbios de Cal­
cutá acomodariam uma leva de refugiados de mais de três vezes a
população original da cidade. A maior parte deles ocupou proprieda­
des públicas, e às vezes privadas, de forma ilegal, mas com a aquies­
cência tácita das autoridades - porque para onde mais eles iriam? As
ocupações de refugiados receberam o nome oficial, e popular, de
“colônias”.
Os relatos de alguns dos primeiros ocupantes de nossa colônia
ferroviária fazem-na parecer uma ocupação de fronteira. Quatro ou
cinco homens tomaram a liderançaríã organização do lugar. Eles
convidavam novos ocupantes, distribuíam lotes, ajudavam na cons­
trução de cabanas e barracas. Também cobravam aluguéis dos no­
vos ocupantes. Adhir Mandai e Haren Manna eram os dois homens-
chave na colônia até meados da década de 1970.119 Eles haviam
estabelecido ligações com o Partido Comunista, a crescente força
política de oposição, com grande apoio entre as populações de refu­
giados na cidade. Eles lidavam com as autoridades da estrada de
ferro, com a polícia e com outras agências governamentais em nome
da colônia. Adhir Mandai possuía cerca de duzentos barracos os quais
ele alugava e era conhecido nessa época como o zamindar da colônia
ferroviária - o senhor de terras - tal era sua dominância. Os líderes do
Partido Comunista agora dizem que Adhir e alguns outros eram os
“interesses locais investidos” embora eles estivessem com o partido.
“Eles agiram como tiranos", disse um líder do partido, “e estavam
envolvidos com fraudes mesquinhas e extorsões. Adhir era muito es­
perto... Haren Manna com freqüência roubava uma parte dos fundos
que levantava para o partido. Nós fizemos vista grossa para essas
coisas porque era difícil encontrar um substituto para ele... Como po­
deríamos ter esperanças de encontrar na colônia ferroviária uma pes­
soa honesta com a liderança e a iniciativa de Haren?”
De tempos em tempos houve tentativas por parte das autorida­
des ferroviárias de expulsar os ocupantes e reclamar a propriedade da
terra. Em 1965, os engenheiros da estrada de ferro tentaram cons-
truir um muro para cercar a ocupação. Os moradores fizeram uma 133
parede humana, com as mulheres na frente, impedindo os caminhões
que carregavam os materiais de construção de chegar perto da colônia.
Durante a emergência em 1975, houve uma séria ameaça de expul­

Colonialismo, Modernidade e Política


são. Algumas ocupações nas vizinhanças foram completamente de­
molidas por tratores. Nossos moradores da colônia ferroviária mobili­
zaram um membro da assembléia estatal do Partido Comunista Pró-
Soviético, então aliado ao situacionista Partido do Congresso de Indira
Gandhi, para interceder junto ao primeiro ministro e dissuadir as auto­
ridades ferroviárias de levar adiante a demolição. A ameaça passou.
O que dissemos até agora não deverá parecer estranho àqueles
que leram ou ouviram sobre a mobilização política no contexto do
sistema eleitoral inaugurado na índia pós-colonial. Há centenas de
relatos similares vindo das cidades e aldeias da índia. Esses eventos
podiam em geral ser explicados sob uma teoria das relações clientelistas,
dos bancos de votos, dos líderes de facções. Uma característica dis­
tinta em nosso caso poderia ser o envolvimento do Partido Comunis­
ta, baseado nos militantes, profundamente ideológico, mas, mesmo
aí, como vimos pela entrevista com o líder partidário, não havia, pelo
menos nesse caso, muito mais que um arranjo mútuo de conveniên­
cia. O partido não fez nenhuma proclamação de que Adhir Mandai ou
Haren Manna fossem revolucionários comunistas mobilizando o povo
para a ação política. Essa não é a sociedade política, nos termos em
que a descrevi.
Uma nova tendência, entretanto, emerge no começo dos anos
de 1980. Adhir Mandai, o chamadozamindar, estava morto. Em 1983,
houve uma nova tentativa da estrada de ferro de colocar uma cerca
ao redor da ocupação. Os moradores se organizaram novamente
para resistir. Eles tinham agora um novo líder, uma personagem um
tanto improvável. Ele era chamado de o Mestre, porque tinha cursado
uma escola primária do outro lado da rua da colônia ferroviária. Sua
própria educação não havia chegado ao segundo grau, mas isso não
impediu que Anadi Bera ensinasse as crianças pobres da área a lere
escrever. Ele era mesmo popular, entretanto, como um entusiasta do
teatro. Ele organizava espetáculos amadores jatra - a forma de teatro
em círculo e ao ar livre tão popular em Bengala - nos quais atuava.
Foi através de suas atividades teatrais que ele entrou em contato com
os moradores da colônia ferroviária. Ele tinha seus próprios problemas
com acomodação, de forma que logo alugou um barraco e se mudou
para a colônia.
Anadi Bera foi o principal organizador da resistência dos ocupan­
tes em 1983. Em 1986, ele criou uma nova associação dos morado­
res da colônia - Jana Kalyan Samiti, a Associação para o Bem-Estar
do Povo - com o objetivo de inaugurar um centro de saúde e uma
biblioteca. Funcionários municipais, líderes de partidos políticos, ofici­
ais da delegacia de polícia local e proeminentes moradores de classe
média dos prédios de apartamentos vizinhos eram regularmente soli­
citados a levantar fundos para a associação ou participar de suas
atividades. O governo havia iniciado um grande programa de saúde e
educação literária para crianças em favelas urbanas chamado de Es­
quema de Desenvolvimento Integrado da Criança (ICDS). Por conta
da iniciativa de Anadi Bera, o ICDS abriu uma unidade de cuidado
infantil na colônia ferroviária, localizada no escritório da associação. O
ICDS imuniza as crianças contra a pólio, tuberculose, tétano e outras
doenças, oferece a elas uma merenda diária, tem uma creche e pes­
soal capacitado para aconselhar os pais sobre controle da natalidade.
^ O ICDS também mantém um registro detalhado do sustento, renda,
consumo e saúde de cada família na colônia,
f OIDCS é um exemplo de como os moradores de nossa colônia
)de ocupantes conseguiu se organizar para serem identificados como
I um grupo populacional distinto que podia receber os benefícios de um
'-programa governamental. Mas este não é o único exemplo. Tendo
constituído a associação, os moradores utilizam agora essa forma
coletiva para lidar com outras agências governamentais como a ferro­
via, as autoridades policiais ou municipais, ONGs que oferecem servi­
ços de bem-estar ou desenvolvimento, e líderes e partidos políticos.
Por exemplo, se alguém pergunta como a colônia obteve a eletricidade,
uma vez que ventiladores e televisões não são incomuns nos barra­
cos, os moradores são geralmente evasivos. Pelo menos, era assim
no tempo do trabalho de campo do professor Asok Sen. Pode-se
suspeitar de que as ligações elétricas fossem feitas ilegalmente. Mas
há muitos relatos de cidades indianas onde companhias elétricas,

Í
confrontadas com o persistente roubo de eletricidade e com a dificul­
dade legal de reconhecer ocupantes ilegais como legítimos consumi­
dores individuais, negociaram soluções de aluguel coletivo com ocu-
pações ilegais inteiras, representadas precisamente por associações

Í
do tipo que descrevemos. Há dessa forma todo um conjunto de solu­
ções extra-legais que podem ser usados para oferecer serviços cívi­
cos ou benefícios do bem-estar a grupos populacionais cuja própria
habitação e sustento residem no terreno oposto da legalidade. Des­
cobri mais tarde que no fim da década de 1980, a colônia efetivamente
obteve uma ligação elétrica legal através de seis medidores comunitá­
rios organizados por sua Associação de Bem-Estar. Não apenas isso:
desde 1996, os moradores têm acesso a ligações elétricas individuais.
A autoridade municipal também fornece água e banheiros públicos.
Tudo isso, é claro, em terreno público ocupado ilegalmente a uma
distância de meros um ou dois metros dos trilhos da ferrovia. Mas vou
adiante com meu relato.
Muito embora o movimento crucial aqui tenha sido o de nossos
ocupantes, de buscar e obter o seu reconhecimento como um grupo
populacional, o que do ponto de vista do governamental é apenas
uma categoria empírica utilizável que define os alvos das políticas pú­
blicas, eles próprios tiveram de achar meios de investir sua identidade
coletiva com um caráter moral. Essa é uma parte igualmente crucial
da política dos governados: daLAJaaa^ m p ír ic a ^ j j rn
populacioa a L Q ^ trib iita s jw comunidadg. No caso de
nossa colônia ferroviária não havia uma forma comunal dada de an­
temão que estivesse prontamente disponível. Alguns dos moradores
vieram do sul de Bengala, outros do Paquistão Oriental e mais tarde
de Bangladesh. A maioria pertencia a diferentes castas médias e bai­
xas, embora houvesse uma presença dispersa de castas altas tam­
bém. Uma pesquisa realizada na metade dos anos de 1990 descobriu
que 56% dos moradores pertenciam às “castas listadas”, a categoria
legalmente reconhecida das antigas castas intocáveis, que têm direi­
to a benefícios afirmativos por parte do governo, e 4% às “tribos
listadas”; o resto eram de outras castas hindus.120A comunidade, tal
como existe hoje, foi construída a partir do zero. Quando os membros
que lideram a associação falam sobre a colônia e suas lutas, não
falam de interesses compartilhados de membros de uma associação.
^Ao contrário, eles descrevem a comunidade nos termos mais
comoventes de um parentesco compartilhado. A metáfora mais co­
mum que eles utilizam é a da família. “Somos todos uma grande famí­
lia”, disse Ashu Das, um membro ativo da associação. "Nós não diSr
tinguimos os refugiados do leste de Bengala daqueles que vieram de
aldeias de Bengala Ocidental. Nós não temos outro lugar para cons­
truir nossas casas. Nós ocupamos coletivamente essa terra por mui­
tos anos. Essa é a-base de nossa reivindicação a nossas próprias
casas.” Badal Das, outro morador, explica porque eles devêm ficam
unidos como uma família, “frjós estamos em face do tiare”. ele disse,
usando um ditado comum no sul de Bengala, onde homens e tigres
durante muito tempo viveram lado a lado como adversários, para se
referir de forma figurada à sempre presente ameaça de expulsão.
I Mas não é nenhuma prévia afinidade biológica ou mesmo cultural que
define essa família. Antes, é a ocupação coletiva de um pedaço de
terra - um território claramente definido no tempo e no espaço, e sob
^meaça. É notável o quão claramente os moradores definem os limi­
tes de sua assim chamada família: eles são definidos pelos limites
territoriais da “colônia”. Ashu Das explica: “Do outro lado da ponte é
uma outra vizinhança. Aquela área deveria ser deixada para os ho­
mens daquela vizinhança. Nós não cruzamos os limites”. Esses limites
são quase sempre cruciais em determinar reivindicações: quem pode
se tornar membro da associação, quem deve contribuir para as festi­
vidades coletivas, ou quem pode procurar empregos como seguran-
ças nos prédios de apartamentos nas vizinhanças.
Agora, no âmbito da assim chamada família há muita variedade
interna. Poucos homens têm habilidades especializadas ou empregos
estáveis: a maioria sai procurando por trabalho temporário como ope­
rários na construção civil. As mulheres em geral trabalham como em­
pregadas domésticas nas casas de classe média das redondezas e
provêm, muitas vezes, a maior parte da renda em suas casas. No
começo da década de 1990, quando esse estudo foi feito, as rendas
mensais per capita dos moradores da colônia variavam de Rs. 1.000
(US$ 30,00) até menos de Rs. 100 (US$ 3,00). Uma outra pesquisa
feita alguns anos depois descobriu que mais da metade das famílias
tinha uma renda total mensal de menos de Rs. 2.000, sendo a renda
média mensal per capita da ocupação menor que Rs. 500. Alguns
eram donos de barracos alugados a outros moradores - tudo fora da
lei, é claro, porque ninguém tinha nenhum título legal - mas parecia
haver pouco conflito entre senhorios e inquilinos. A maior parte das
disputas entre vizinhos e mesmo entre cônjuges era resolvida através
da Associação de Bem-Estar. Nem todo mundo estava contente com
esse tipo de intrusão. Uma mulher que havia se mudado para a colônia
após o casamento disse que achava seus vizinhos muito bisbilhoteiros
e dados à maledicência. Mas a vida comunitária também era susten­
tada por atividades esportivas, pelo costume de assistir programas de
televisão ou vídeos de forma coletiva e por festividades religiosas. A
maior festa organizada pela associação é o culto anual à deusa Sitala.
Ela tem uma história curiosa, sendo originária da zona rural do sul de
Bengala e era uma deusa popular que curava a varíola ou prevenia
sua disseminação. Em anos recentes, agora que a varíola está
erradicada, ela emergiu nas favelas de Calcutá como uma deusa que
cuida de modo geral da saúde das crianças. Ela é agora cultuada em
festas que duram uma semana, financiadas por pequenas doações
de moradores das favelas, em uma imitação desafiadora das festas
de classe média em homenagem à muito mais bem conhecida e
infinitamente mais glamourosa deusa bramânica Durga. Durante o
festival de Sitala, a associação organiza espetáculos musicais e peças
jatra, em que seu “mestre” Anadi Bera naturalmente têm um papel
principal. Um culto menor é o da deusa Kali, em que os homens
jovens da colônia são deixados à rédea solta, com espetáculos em
vídeo, consumo de carne e bebidas.
/ A Associação para o Bem-Estar do Povo, criada pelos morado-
res da Colônia Ferroviária Portão Número Um, não é uma associação

Ída sociedade civil. Ela emerge de uma violação coletiva das leis de
propriedade e das regulamentações cívicas. O Estado não pode
reconhecê-la como tendo a mesma legitimidade que outras associa­
ções cívicas que perseguem objetivos mais legitimados. Os ocupan­
tes, por sua parte, admitem que sua apropriação do terreno público é
tanto ilegal quanto contrária à boa vida cívica. Mas eles reivindicam
moradia e sustento em termos de direitos e utilizam sua associação
como o principal instrumento coletivo para obter suas reivindicações.
Em uma de suas petições às autoridades ferroviárias, a associação
escreveu:
Entre nós há refugiados do Paquistão Oriental e sem-terra de Bengala
meridional. Tendo perdido tudo - meios de vida, terra e mesmo nossos
lares, tivemos de vir para Calcutá continuar nossa vida e procurar por
abrigo... Nós somos na maioria trabalhadores diaristas e empregados
domésticos, vivendo abaixo da linha da pobreza. De alguma forma conse­
guimos construir um abrigo para nós. Se nossos lares forem destruídos e
nós formos expulsos dos nossos barracos, nós não teremos nenhum lugar
para ir.

Refugiados, sem-terra, diaristas, sem-teto, abaixo da linha de

{ pobreza - são todas categorias demográficas do governamental. Esse


é o solo a partir do qual eles definem suas reivindicações. Na mesma
petição, a associação também assegura que, “junto com outros cida­
dãos de Calcutá", ela é a favor do melhoramento e da ampliação dos
serviços ferroviários da cidade. Se, para essa finalidade, for “absoluta­
mente necessário remover-nos de nossas habitações” , a associação
solicita uma “alternativa de moradia adequada". Assim, em paralelo
com a referência à obrigação do governo de cuidar dos grupos
populacionais pobres e desprivilegiados, a associação apelava tam­
bém para a retórica moral de uma comunidade lutando para construir
uma vida social decente sob condições extremamente árduas e, ao
mesmo tempo, reconhecendo os direitos da boa cidadania. As cate­
gorias do governamental vêm sendo investidas com as possibilidades
imaginativas da comunidade, incluindo sua capacidade de inventar
relações de parentesco, para produzir uma nova, ainda que algo he­
sitante, retórica de reivindicação política.
■j Essas reivindicações são irredutivelmente políticas. Elas só pode-
■riam ser feitas em um terreno político, onde as regras podem ser
icurvadas ou esticadas, e não no terreno da lei estabelecida ou do
procedimento administrativo. O sucesso dessas reivindicações depende
inteiramente da habilidade dos grupos populacionais particulares em
mobilizar apoio para influenciar a implementação das políticas públicas
governamentais a seu favor. Mas esse sucesso é necessariamente
temporário e contextuai. O balanço estratégico das forças políticas
pode mudar e as regras podem não ser mais curvadas como antes.
Como apontei em minha conferência anterior.jHjOvernamental sem-
pre opera em um campo sociaiheJ&mgênea_sQbm-tw grupos_
PQDuladonaise_com múítinlasestratégias. Aqui não háexercício igua­
litário p. uniforme dos direitos de-cidadania. Assim, é bem possível que
o equilíbrio da política estratégica varie o suficiente para que esses
ocupantes sejam expulsos amanhã. (De fato, no começo de 2002,
depois que essas conferências haviam sido feitas, um grupo de cida­
dãos moveu com sucesso uma ação de interesse público na Alta
Corte de Calcutá, pedindo a expulsão dos ocupantes da colônia ferro­
viária porque eles estavam poluindo as águas do lago Rabindra Sarobar
no sul de Calcutá. Um setor substancial dos ocupantes, nesse meio
tempo, deixou de aliar-se à Frente de Esquerda e passou a apoiar o
Congresso Trinamul. No começo de março, eles conseguiram repelir
fisicamente uma força policial enviada pelo governo para cumprir a
ordem do tribunal. Eles agora esperam, contra todas as expectativas,
que o líder do seu partido seja logo renomeado Ministro das Ferrovias
no governo da União em Nova Délhi; assim eles poderiam ser
reassentados antes que sejam forçosamente expulsos. Assim é a ló­
gica tênue da política estratégica na sociedade política.)
Para ilustrar como uma variação no balanço estratégico das for­
ças políticas pode afetar de forma dramática a vida de milhares de
pessoas que sobrevivem nas margens da vida urbana, vamos seguir
por cerca de oitocentos metros pela avenida, ao norte dos trilhos da
ferrovia. Estamos em Gariahat, o coração da zona sul de classe mé­
dia de Calcutá. Estão agora construindo um novo viaduto sobre o
movimentado cruzamento que há ali. Por volta de um ano atrás, es­
sas eram avenidas largas, com grandes passeios e vitrines brilhante­
mente iluminadas. Os moradores de classe média estavam felizes em
ver que a beleza e o charme originais de sua cidade estavam sendo
restaurados, como era antes das ruas e passeios serem tomadas por
milhares de vendedores de rua. Por quase trinta anos, desde meados
dos anos de 1960, as principais ruas da cidade estiveram atravancadas
com fileiras de quiosques surrados, ocupando a maior parte dos pas­
seios e com frequência derramando-se pela própria rua. As banquinhas
de rua estavam desempenhando claramente uma importante função
econômica e provendo uma fonte de renda, de baixa escala mas vital,
para milhares de pessoas. Os vendedores haviam agido estrategica­
mente na sociedade política, mobilizando com sucesso apoio entre
cidadãos e partidos políticos para estabelecer e manter o sua tênue, e
claramente ilegal, ocupação das ruas. Em meados dos anos de 1990,
entretanto, a maré virou. Havia uma crescente pressão sobre o go­
verno de Bengala Ocidental, liderado pelos comunistas, para limpar
Calcutá de forma a atrair investimentos estrangeiros em setores de
crescimento como petroquímica e eletrônica. O apoio do governo entre
a classe média urbana estava caindo agudamente. Em 1996, Subhas
Chakrabarti, o ministro que havia organizado com sucesso a disposi­
ção final do corpo de Balak Brahmachari, foi encarregado de limpar
as ruas de Calcutá. Durante um período de duas semanas, em uma
ação coordenada bem planejada cognominada Operação Brilho do
Sol, as autoridades municipais e a polícia demoliram todas as bancas
de rua em Calcutá, limparam os passeios, expandiram as ruas e plan­
taram árvores. Os vendedores ainda estavam organizados. Sentindo
que estavam sendo abandonados pela esquerda, começaram a ade­
rir aos partidos da oposição. Eles não resistiram fisicamente; não hou­
ve confrontos violentos. Mas, como o balanço político tinha se voltado
contra eles, eles tiveram de ceder seu lugar na rua e esperar até que
as promessas de reassentamento se materializassem.
Nem todos os grupos populacionais conseguem atuar com su­

( cesso na sociedade política, e, como acabamos de ver, mesmo quando

o fazem, seus êxitos são sempre temporários. Para dar um exemplo


de um grupo organizado que claramente falhou em obter qualquer
avanço na sociedade política, vamos mais para o norte, até a parte
mais antiga da cidade - para College Street, onde ainda há o velho
campus da universidade e onde se assenta a indústria editorial bengali.
Há todo um bairro de becos e mais becos labirínticos onde a principal
atividade é a impressão, produção e venda de livros. Pode-se encon­
trar aqui uma interessante mistura de organizações de negócio e de
tecnologias, desde grandes editoras corporativas com equipamento
moderno de fotocomposição até pequenas gráficas operadas pelo
dono, onde os textos ainda são compostos à mão, e onde se pode
encontrar uma máquina manual operada a manivela em perfeito fun­
cionamento, trazendo a inscrição “Produzida em Manchester 1882".
Nos anos de 1990, a impressora manual foi virtualmente varrida da
face de Calcutá - o efeito da disseminação globa! da imprensa
eletrônica em qualquer alfabeto concebível. Mas, outra parte da in­
dústria editorial - a encadernação - vem sendo feita há mais de 120
anos em condições e usando tecnologias que não mudaram em ab­
solutamente nada. Poderíamos entrar em qualquer uma dessas
encadernadoras, e, exceto pelas lâmpadas elétricas incandescentes
e talvez por um rádio transistorizado tocando música de cinema, po­
deríamos estar em uma oficina de encadernação do século XIX. Todo
um distrito municipal ali é chamado Daftaripara - o quarteirão dos
encadernadores - onde há 500 encadernadoras empregando 4.000
trabalhadores. Meus colegas do Centro de Estudos em Ciências So­
ciais pesquisaram os encadernadores em 1990.121
Há muitos tipos diferentes de unidades encadernadoras e de tra­
balhadores, coexistindo na maior parte na mera margem de viabilida­
de e freqüentemente competindo entre si. As poucas unidades maio#-
res têm vinte ou mais trabalhadores cada e um espaço de cerca de
300 m2ou mais. Seus funcionários permanentes tinham salários men­
sais que, em 1990, podiam chegar a Rs. 600 (US$ 18,00) e usufruíam
de benefícios como descanso remunerado e pensão. A vasta maioria
das unidades era, entretanto, de tamanho médio ou pequeno, em
que os donos também eram trabalhadores e onde com freqüência
não havia mais de dois ou três empregados. Quase um terço dos
trabalhadores só eram empregados nos meses de pico. A renda mé­
dia mensal de trabalhadores homens qualificados em 1990 estava em
torno de Rs. 500 (US$ 15,00), e a de trabalhadoras mulheres relativa­
mente não qualificadas, por volta de Rs. 400 (US$ 12,00), se traba­
lhassem oito horas por dia. Havia crianças também, empregadas como
“garotos” (independente do gênero, aqui são todos “garotos”) - mãos
ajudantes que podiam ser utilizadas em todos os tipos de serviço,
desde servir chá a carregar e descarregar pilhas de livros. Elas podiam
ganhar cerca de Rs.150 (US$ 4,50) por mês, no caso de receberem
em dinheiro, porque freqüentemente tudo o que elas ganham é comi­
da, roupas e um lugar para dormir. Essas rendas são extremamente
baixas pelos padrões do emprego industrial na índia, mas esta é uma
indústria desorganizada profundamente entranhada no que é chama­
do de setor informal.
Houve tentativas nos anos de 1970 e 1980 para sindicalizar os
trabalhadores das encadernadoras e barganhar com os donos por
melhores pagamentos. Ativistas dc Partido Comunista (Marxista) tive­
ram um papel fundamental nisso, especialmente após o seu partido
ter obtido o governo estadual em 1977. Em 1990, houve uma greve
de três dias nas encadernadoras de Daftaripara. A forma da greve e
seus resultados são instrutivos. Os trabalhadores pediam um aumen­
to de salário de Rs. 100 mensais. Mas 90% das encadernadoras eram
unidades nas quais os donos eram eles próprios trabalhadores. Todos
sabiam que a maior parte dos donos nunca seria capaz de pagar o
aumento. Esta se tornou então uma greve na qual toda a indústria de
Daftaripara - donos e trabalhadores juntos - tentaram pressionar os
editores a pagar mais por serviços de encadernação. As maiores edi­
toras ameaçaram encomendar seus trabalhos a outras unidades na
cidade ou mesmo fora do estado. No final, enquanto as maiores
encadernadoras de Daftaripara concordaram em aumentar os salári­
os em Rs. 75 por mês, os grevistas declararam uma grande vitória e
pararam a agitação. Depois da greve, as atividades do sindicato em
Daftaripara entraram novamente em uma calmaria.
Ao contrário do que vimos na colônia ferroviária, há muito pouco
sentido em uma identidade coletiva de encadernadores em Daftaripara.
Aqui há 4.000 pessoas na mesma atividade, em um pequeno bairro
urbano. A maior parte dos homens dormem em suas oficinas à noite
e voltam para suas casas nas aldeias nos fins de semana e feriados.
As mulheres vêm dos subúrbios, normalmente de colônias de refugia­
dos ou ocupantes como a que vimos mais atrás. Eles viajam de trem
mas não podem pagar pelas passagens, preferindo fugir quando os
condutores aparecem. Os trabalhadores de Daftaripara em geral vo­
tam em partidos de esquerda, mas eles sabem da política a partir de
suas ligações rurais, não porque suas vidas como operários os levou à
política. Ao contrário, eles falam de laços de lealdade entre proprietá­
rio e trabalhador, de atitudes mútuas de bondade, ou de cuidado pa­
ternal. Um trabalhador aposentado, o venerável Habib Mia, fala do
inqilab ou revolução que tomou o país depois da saída dos britânicos,
de modo que agora nem os ricos e pessoas de posses podem tomar
conta dos pobres.122 Mas não há aqui nenhum engajamento com o
apara.to do governamental Os encadernadores dR Daftaripara não
fizeram sua entrada na sociedade política. Seu exemplo nos mostra
mais uma vez as dificuldades da organização de classe no chamado
setor informal do trabalho, em que os capitalistas e a trivialidade do
modo de produção estão entrelaçados em uma trama que os reforça
mutuamente. Apesar dos esforços sinceros de muitos ativistas, as es­
tratégias leninistas de organização operária naufragaram aqui. Os líde­
res políticos da esquerda em lugar disso voltaram suas atenções para
outro lugar e foram muito mais bem sucedidos - na sociedade política.

II
j A verdadeira história da sociedade política deve partir da zona
j rural de Bengala Ocidental. Foi ali que os partidos de esquerda con-
' verteram as funções do governamental em fontes poderosas e incri­
velmente estáveis de apoio local de uma clara maioria de grupos
j populacionais. Muito tem sido escrito de como isso foi feito - de refor­
mas agrárias à instituição de governos locais democráticos nas aldei­
as, da manutenção de uma organização partidária fortemente discipli­
nada a, como alguns críticos alegam, violência seletiva e cuidadosa­
mente calibrada. Mas, para minha discussão aqui, enfocarei o proble­
ma que levantei em minha conferência anterior: como as reivindica­
ções particulares de grupos populacionais marginais, muitas vezes
ancoradas em violações da lei, podem ser compatibilizadas com a
meta de cidadania Igualitária e virtude cívica? Para que se produza
uma política dos governados viável e persuasiva, tem de haver uma
considerável dose de mediação. Quem pode mediar?
Vocês devem recordar a figura chave na bem-sucedida
mobilização de nossa colônia ferroviária na arena da sociedade políti­
ca. É o Mestre - o entusiasta do teatro Anadi Bera. O fato de que ele
era popularmente conhecido por seu papel como professor de uma
escola primária não é insignificante. O professor era provavelmente a
mais ubíqua figura na recente expansão da sociedade política na zona
rural de Bengala Ocidental. Em 1997, Dwaipayan Bhattacharya, um
de meus colegas em Calcutá, estudou o oapel político de professores
em dois distritos de Bengala Ocidental.123
No distrito de Purulia, ete descobriu, a maior parte dos professo­ 145
res primários eram membros da associação de professores comunis­
tas, e muitos mantinham cargos eletivos em diferentes níveis do go­

Colonialismo, Modernidade e Política


verno local. Eles também ocupavam altos postos no partido e na or­
ganização camponesa, e tinham sido eleitos para o legislativo estadu­
al e para o parlamento. Muitos deles tinham sido associados de orga­
nizações gandhianas de trabalho social. Desde o começo dos anos
de 1980, quando os comunistas tocaram seus programas de reforma
agrária e de desenvolvimento agrícola, eles incentivaram os professo­
res nas aldeias a se juntarem a eles. Logo os professores estavam na
linha de frente das atividades políticas no distrito. Com a classe tradi­
cional de senhores de terra removida da cena política, os professores
se tornaram cruciais para a nova política de consenso que a esquerda
estava tentando construir na zona rural de Bengala Ocidental.
Nos anos de 1980, emergiu por todas as partes uma percepção
popular de que os professores tinham o desejo e a habilidade de achar
soluções para disputas locais aceitáveis por ambos os lados. Uma vez
que eram assalariados, não dependiam de rendas agrícolas e portan­
to não tinham interesses fortemente investidos na terra. A maioria
vinha de famílias de pequenos agricultores, de forma que eram vistos
como simpáticos aos pobres. Haviam sido educados em uma socie­
dade vastamente iletrada. A eles era familiar a linguagem dos campo­
neses, assim como a do partido, eram bem versados em procedi­
mentos legais e administrativos e além disso eram parte orgânica da
comunidade da aldeia. Como líderes partidários no governo local, eram
cruciais na implementação das políticas públicas governamentais no
interior. Eles intercediam na burocracia, usando a linguagem da admi-
í
' nistração, mas declarando falar em nome dos pobres. Simultanea­
mente, eles explicavam as políticas públicas do governo e as decisões
administrativas ao povo da aldeia. Seus pontos de vista eram
freqüentemente tomados pelas autoridades governamentais como
representativos do consenso local: eles recomendavam formas espe­
cíficas locais para a implementação de programas do governo, auten­
ticavam listas de beneficiários locais e ofereciam a confiança de que
traziam com eles a opinião local. Nos anos de 1980, os professores
detinham um poder e um prestígio sem rival nos distritos rurais. Era
comum ouvir um aldeão dizendo que o seu professor era a pessoa em
quem ele mais confiava.
Agora, antes que os admiradores de Robert Putman se inclinem
na beira de seus assentos e requisitem apoio nesta evidência para a
teoria do capital social,124 deixem-me enfatizar mais uma vez a distin­
ção que estou desenhando entre comunidade cívica no sentido de
uma sociedade civil liberal e sociedade política nos termos em que a
descrevi. Os pobres da zona rural que se mobilizam para reivindicar
benefícios de diversos programas governamentais não o fazem como
membros da sociedade civil. Para direcionar efetivamente esses be­
nefícios em sua direção, eles devem conseguir aplicar a pressão certa
nos pontos certos da maquinaria governamental. Isso, com freqüência,
significa curvar ou esticar regulamentos, porque os procedimentos
existentes historicamente vêm trabalhando para excluí-los e
marginalizá-los. Eles devem, portanto, conseguir mobilizar grupos
populacionais para produzir um consenso político local que possa tra­
balhar efetivamente contra a distribuição de poder na sociedade como
um todo. Essa possibilidade é aberta pelo funcionamento da socieda­
de política. Quando professores ganham a confiança da comunidade
rural para pleitear a causa dos pobres e asseguram a convicção dos
administradores de que encontrarão um consenso local duradouro,
eles não incorporam a confiança gerada entre membros iguais de
uma comunidade cívica. Ao contrário, eles mediam entre domínios
que são diferenciados por desigualdades de poder profundas e histo­
ricamente entrincheiradas. Eles mediam entre aqueles que governam
e aqueles que são governados.
Eu deveria acrescentar que quando há uma mobilização da soci­
edade política bem-sucedida em assegurar os benefícios dos progra­
mas governam entais para grupos populacionais pobres e
desprivilegiados, poder-se-ia afirmar que há uma efetiva expansão na
| liberdade do povo, promovida pela sociedade política, que não teria 147
I sido ordinariamente possível no âmbito da sociedade civil. De forma
ordinária, a atividade governamental tem lugar no âmbito da estrutura
social estratificada por classe, status e privilégio. Benefícios que deve­

Colonialismo, Modernidade e Política


riam ser disponibilizados de forma geral são de fato monopolizados por
aqueles que têm maior conhecimento e influência sobre o sistema.
Isso não ocorre apenas por causa daquilo que pode ser descrito como
corrupção, ou seja, o mau uso criminoso de poderes legais ou admi­
nistrativos. Antes, acontece perfeitamente dentro do âmbito normal
da legalidade porque alguns setores do povo simplesmente não têm o
conhecimento ou a vontade de reclamar aquilo que lhes é atribuído
como direito. Essa é uma situação comum não apenas em países
como a índia, onde a sociedade civil efetiva é limitada a um pequeno
setor de pessoas que são “propriamente” cidadãos. É uma experiên­
cia bem conhecida na operação, digamos, dos serviços públicos de
saúde e educação nas democracias sociais do Ocidente, em que a
classe média culturalmente equipada é muito mais apta a usar o sis­
tema que os pobres e desprivilegiados. Quando os pobres em países
como a índia, mobilizados na sociedade política, conseguem afetar a
implementação de atividades governamentais a seu favor, devemos
dizer que eles expandiram suas liberdades através de meios que não
estavam disponíveis para eles na sociedade civil.125
Entretanto, meu relato sobre os professores não é uma história
simples com final feliz - nenhuma história sobre a sociedade política o
é. O estudo de Bhattacharya também encontrou fortes evidências de
professores na zona rural de Bengala Ocidental gradualmente per­
dendo a confiança que uma vez neles havia sido depositada. O gover­
no do estado concedeu grandes aumentos de salário para os profes­
sores primários, tudo pela causa da melhoria da educação primária.
Se marido e mulher fossem ambos professores, o que não era
incomum, sua renda combinada podia ser tão alta quanto a do mais
rico mercador da aldeia. Por volta do começo dos anos de 1990,
havia uma queixa amplamente difundida de que os professores gasta-
vam todo o seu tempo em funções políticas e não ensinavam. O
trabalho de professor tornou-se uma profissão lucrativa na sociedade
rural e houve alegações de pagamento de propinas para nomeação
de professores. Antes mediadores acreditados, os professores havi­
am agora desenvolvido seus próprios interesses entrincheirados na
estrutura de poder. Por volta do fim dos anos 1990, o Partido Comu­
nista considerava seus camaradas professores claramente como um
sério problema. A grande questão agora é: como a sociedade política
pode se renovar? Quem vai fazer a mediação agora?

Ill
A correta administração dos serviços governamentais têm sido
um tema de muito discutido recentemente nos campos do bem-estar
e do desenvolvimento. Não considerarei aqui as críticas neo-liberais
ao Estado de Bem-Estar nas democracias ocidentais, que, em mui­
tos casos, têm levado a uma significativa reorganização da esfera do
governamental. Antes, voltarei nossa atenção para algumas novas
tecnologias globais do governamental que reivindicam poder assegu­
rar que os benefícios do desenvolvimento serão ainda mais dissemina­
dos e que os pobres e desprivilegiados não serão suas vítimas. Essa é
uma área em particular em que as agências de desenvolvimento in­
ternacionais reformularam recentemente suas políticas e renovaram
seus instrumentos à luz de sua experiência dos fracassos de vários
projetos e da resistência oferecida a eles. Enfocarei, em particular, a
questão da remoção e do reassentamento de populações deslocadas
por projetos de desenvolvimento.
O Banco Mundial teve nas últimas duas décadas um papel fun­
damental na formulação de uma política de reabilitação e na incorpo­
ração das questões da remoção e do reassentamento. De forma pouco
surpreendente, as análises dos custos de remoção e os requisitos
para o reassentamento têm sido feitas principalmente através de
métodos econômicos da análise de custo-benefício. Ao mesmo tem­
po, um conjunto de djjgitos específicos tem sido definido para pessoas
afetadas por esses projetos ou para unidades domésticas que per­ 149
dem suas habitações ou sustento. Ademais, certos direitos específi­
cos baseados na comunidade também foram definidos para grupos

Colonialismo, Modernidade e Política


que perdem recursos mantidos em comum ou que são adversamen­
te afetados no exercício de suas práticas culturais (tais como perder
seus locais de culto ou bosques sagrados etc.). Esses direitos especí­
ficos deveriam ser aplicados através dos governos ou das agências de
implementação dos projetos.126 Em anos recentes, emergiu uma nova
literatura que busca expandir o foco estreitamente econômico da análise
do reassentamento involuntário.127 Ela inclui elementos como a ques­
tão dos sem-terra, o desemprego, a questão dos sem-teto, a
marginalização, a insegurança alimentar, o aumento da morbidade e
da mortalidade, a perda de acesso à propriedade comum e a desarti­
culação social, como possíveis resultantes e conseqüências do
reassentamento.
Teoricamente, essa reformulação recente, advogada pelo eco­
nomista jAmartya Sen, apresenta em alto grau uma abordagem da
competência de avaliação das políticas públicas, incorporando um
conjunto de liberdades substantivas em vez de utilidades ou forneci­
mento de bens primários.128 Mas vislumbrar medidas objetivas de com­
petência e procedimentos operacionais práticos para definir e alcan­
çar os beneficiários não é fácil. Há também o problema de reconhecer
as reivindicações daqueles que, como nossos ocupantes da colônia
ferroviária ou vendedores de rua, não têm nenhum direito legal ao
espaço que ocuparam. Um movimento conceituai interessante que
tentou reordenar as numerosas soluções ad hoc e extra-legais nessa
área é a distinção entre direitos gerais e específicos. Os direitos per­
tencem àqueles que têm um título de propriedade legal de suas terras
e construções a serem desapropriadas pelas autoridades; eles são,
poderíamos dizer, “propriamente” cidadãos, a quem deve ser paga a
compensação legalmente estipulada. Aqueles que não detêm tais di­
reitos gerais podem não obstante ter direitos específicos; eles mere­
cem não compensação mas assistência para reconstruir um lar ou
encontrar um novo sustento. Permanece, entretanto, o problema de
como esses tipos diferentes de direitos devem ser identificados e vali­
dados, e de como assegurar que a compensação ou a assistência
alcancem as pessoas certas.129
Frente à resistência oposta pelas pessoas afetadas por projetos e
aos fracassos das estratégias de reassentamento administrativamente
dirigidos, um slogan persistente tem sido o de experimentar e assegurar
a “participação” das pessoas afetadas no processo de realocação. Fo­
ram apresentados argumentos de que, se levada a cabo de fato e com
sinceridade, essa estratégia poderia transformar um reassentamento
involuntário em voluntário. Também foi colocado que, apesar dos cus­
tos de reassentamento incluídos nos custos do projeto serem mais al­
tos em relocações voluntárias, esses projetos tendiam a ser mais efici­
entes e bem sucedidos no final, porque eles poderiam ser completados
dentro do prazo e os problemas políticos e sociais de uma realocação'
incompleta podiam ser evitados. O ponto tornou-se de tal forma um
clichê na literatura a respeito que é repetido quase como um mantra -
por agências governamentais, por instituições de fomento, por consul­
tores dos projetos, por peritos e ativistas. A maior parte dos djscursos
sobre esse assunto terminam pela mera repetição do novo dogma libe­
ral: “participação da sociedade civil através das ONGs”. A participação,
entretanto, tem um significado quando encarada do ponto de vista dos
que governam, ou seja, uma categoria da governância, e um significa­
do muito diferente quando encarada da posição dos governados, ou
seja, uma prática da democracia.
Para dar a vocês uma percepção de algumas das condições de
possibilidade da democracia como a política dos governados, deixem-me
trazer à baila três casos de reassentamento que estudei no ano de 2000.130
O primeiro caso é o da cidade mineira de Raniganj, perto da
fronteira ocidental de Bengala com Bihar. O ar esfumaçado paira
pesadamente aqui, e à noite podem-se ver os fogos ardendo nos
distantes campos de extração de carvão vegetal. Grandes áreas ocu­
padas, incluindo áreas urbanas densamente povoadas, são propen-
sas ao desabamento e tanto a superfície quanto o subsolo são infla­
máveis, por conta de décadas de mineração indiscriminada. Após
inúmeros pequenos (e nem tão pequenos) desastres, esforços foram
feitos para estabilizar a superfície e prevenir os incêndios. Entretanto,
os métodos são tecnicamente difíceis, lentos e extremamente caros.
A alternativa é realocar a população para locais mais seguros. Depois
de prolongadas discussões e de alguma agitação legal, o governo da
índia designou em 1996 um alto-comitê que reportou que mais de
34.000 casas em 151 locais estavam em áreas criticamente instá­
veis. O custo de realocação de cerca de 300.000 pessoas, incluindo
construção de casas, terra, infra-estrutura e pagamento de pensões,
e sem nenhuma compensação para aqueles que não tivessem títulos
legais de propriedade, ficaria em torno de Rs. 20 bilhões (US$ 500
milhões). O relatório advertia que, em vista da “urgência” do proble­
ma, o reassentamento deveria começar imediatamente, sem esperar
que a maquinaria institucional fosse posta em ação.
Aparentemente, o trabalho de reassentamento está sendo exe­
cutado, mas ninguém na área pôde me mostrar qualquer sinal visível
dele, e a maioria parecia nem sequer saber do que se tratava. Há
uma vaga noção da possibilidade de um desastre de grandes propor­
ções, mas as pessoas dali têm vivido com esse perigo por décadas e
não parecem estar muito preocupadas. A realocação não está aqui
ligada a um novo projeto de desenvolvimento ou a novas oportunida­
des econômicas. Se há uma percepção por parte do governo e das
agências do setor público de que a realocação precisa ser levada a
cabo como forma de evitar um súbito e maciço desastre, há pouca
urgência quanto a isso entre a população. Não parece haver nenhu­
ma evidência de um movimento “voluntário” pelo reassentamento. A
sociedade política não se mobilizou aqui para beneficiar o povo.
Meu segundo caso é da nova cidade industrial e portuária de
Haldia, do lado oposto do rio. ao sul de Calcutá. O reassentamento de
Haldia teve lugar em duas fases, através de dois projetos muito distin­
tos. O contraste entre as duas experiências é instrutivo.
Primeiro, foram desapropriadas terras para a construção do por­
to de Haldia entre 1963 e 1984.0 processo de desapropriação e de
reassentamento foi longo, lento e marcado por inúmeras dificuldades,
incluindo muitas disputas que foram parar no tribunal. Num primeiro
momento, nem todos os que estavam qualificados se interessaram
em ocupar os lotes para onde foram relocados, já que eles não esta­
vam convenientemente situados em relação a seus locais de trabalho
agrícola. No começo dos anos de 1990, com o rápido aumento dos
preços de terra decorrente da urbanização da área de Haldia, houve
uma chuva de requerimentos por lotes do reassentamento, alguns
feitos por pessoas (ou seus filhos e filhas) que haviam sido removidas
vinte e cinco anos atrás. No ano 2000, mais de 1.400 das 2.600
famílias originais que estavam qualificadas ainda não tinham sido
reassentadas, mais de vinte anos depois de suas terras terem sido
tomadas.
A nova fase da desapropriação de terras veio com a nova indus­
trialização de Haldia, entre 1988 e 1991, levando a uma agitação
consideravelmente organizada em busca do reassentamento. Em
1995, foi decidido que os casos de realocação seriam resolvidos atra­
vés das recomendações de um Comitê de Aconselhamento de
Realocação. O comitê consistiria de dois administradores, dois funci­
onários da desapropriação de terras e quatro quadros políticos, repre­
sentando o governo e os partidos de oposição. Todo o processamento
dos pedidos de realocação, escuta dos casos, partilha dos lotes, re­
solução de queixas, teria de ser feito através desse comitê.
A impressão geral entre administradores, líderes políticos e pes­
soas afetadas parece ser que essa foi um procedimento bem sucedi­
do. A idéia é a de que a tarefa de formular as normas específicas, sob
a prevalência das circunstâncias locais, de qualificação para o
reassentamento e de identificação dos casos genuínos que merecem
realocação deveria ser feita, na base de um acordo plantado na rea­
lidade concreta, entre representantes políticos. Já que o acordo en-
volveria tanto o governo quanto os partidos de oposição, poderia ser
admitido que ele representaria um consenso local efetivo. Uma vez
que um acordo fosse obtido nesse nível, a tarefa da administração era
simplesmente a de implementar as decisões.
A suposição importante aqui é, obviamente, a de que os partidos
políticos efetivamente cobrem todo o espectro de interesses e opini­
ões. Dada a natureza hoje altamente politizada, organizada e polari­
zada da sociedade rural na maior parte de Bengala Ocidental, essa
não pode ser uma suposição não avalizada. Se houvesse uma tercei­
ra força política organizada na área que também representasse um
conjunto distinto de vozes, ela também teria de ser acomodada den­
tro desse comitê para que ele fosse eficaz.
O com itê decidiu, por exemplo, que o lote mínimo no
reassentamento seria de 160 m2, que famílias com maior número de
dependentes obteriam lotes maiores, que ninguém poderia receber
dinheiro em lugar dos lotes, que aqueles que possuíssem casas em
outro lugar não seriam beneficiados, que aqueles que tivessem
construído estruturas em suas moradias à espera da desapropriação
não seriam beneficiados, etc. Todas essas questões foram decididas
com base em investigações locais e a sensação era a de que, se
ambos os partidos políticos estavam representados, não havia a pos­
sibilidade de que os critérios para a escolha dos beneficiários fossem
mal aplicados. O comitê também decidiu que os lotes particulares nas
áreas de recolocação seriam distribuídos por sorteio, com as pessoas
removidas sorteando seus próprios lotes. Conseqüentemente, não
poderia haver queixas que indivíduos específicos tivessem sido favore­
cidos com lotes melhor localizados. Examinando as decisões toma­
das pelo comitê, encontrei até mesmo casos em que ele mudou suas
decisões anteriores à luz de novas informações trazidas a seu conhe­
cimento pelos representantes políticos, e um caso em que uma mu­
lher obteve um lote por razões humanitárias, mesmo sem se adequar
às normas estipuladas.
Meu terceiro caso de reassentamento é em Rajarhat, a nordeste
de Calcutá, onde uma nova cidade está surgindo. Dentro de apenas
alguns anos, ela vem sendo transformada de uma área agrícola rural
em uma virtual extensão da metrópole urbana de Calcutá. Como re­
sultado, os preços de terrenos na área dispararam. Assim que as
notícias sobre a nova cidade se espalharam, construtores e
especuladores imobiliários caíram sobre os pequenos donos de terra,
tentando comprar tudo antes que o processo de desapropriação co­
meçasse. Além dos preços de terra estarem se tornado rapidamente
exorbitantes, um outro problema era o de que todos os valores de
vendas de terra nas áreas urbanas e semi-urbanas são rotineiramen­
te subfaturados para propósito de registro, de forma a evitar impostos.
A decisão oficial havia sido encorajar a realocação voluntária, através
da oferta de preços de mercado. Mas se os preços de mercado fos­
sem determinados pelos registros legais de vendas de terra na área,
ninguém seria induzido a deixar suas terras voluntariamente.
A decisão tomada então foi desapropriar as terras a preços “ne­
gociados”. Um Comitê de Obtenção de Terras foi formado para nego­
ciar um preço aceitável para as pessoas afetadas. De modo pouco
surpreendente, o comitê incluía representantes locais do governo e
dos partidos políticos de oposição. O resultado, afirma-se, foi uma
desapropriação virtualmente livre de problemas, com quase nenhum
caso levado ao tribunal. Os donos receberam o pagamento da com­
pensação em três meses (uma vez que não havia nenhum procedi­
mento legal de fixação de preços) - esse foi um recorde em relação a
quaisquer padrões. O custo de desapropriação foi certamente mais
alto do que teria sido o caso se o procedimento legal normal tivesse
sido seguido. Mas então o projeto teria sido atrasado. E uma vez que
o objetivo do projeto era urbanizar uma nova área e destiná-la à ven­
da, o aumento de custos poderia ser absorvido nos preços a serem
cobrados daqueles a quem seriam entregues os terrenos
urbanizados.131
Essa é a sociedade política em uma relação ativa com os proce­
dimentos do governamentai. A sociedade política encontrou aqui um
lugar na cultura política gerai. Aqui, as pessoas não desconhecem
/ seus possíveis direitos específicos nem estão ignorantes dos meios de 155
se fazerem ouvidas. Ao contrário, elas têm representantes políticos
formalmente reconhecidos que podem ser utilizados a seu favor. En­
tretanto, a fórmula só funcionará se todos tiverem algum benefício

Colonialismo, Modernidade e Política


com o sucesso do projeto particular, ou do contrário, alguns mediado­
res romperão o consenso. Mais ainda: presumivelmente a fórmula só
funcionará se as autoridades governamentais seguirem as recomen­
dações dos representantes políticos, mas estejam elas próprias fora
do âmbito da política eleitoral. Quer dizer, o corpo governamental e o
corpo político devem ser mantidos separados mas postos em uma
relação na qual o último possa influenciar o primeiro. Mas a distinção
entre o governamental e o político deve ser claramente mantida.
As decisões registradas pelas autoridades governamentais es­
condem as reais negociações que tiveram de ter lugar na sociedade
política. Não somos informados sobre quais critérios específicos os
representantes políticos acordaram para construir a lista de
beneficiários. É inteiramente possível que as negociações concretas
não respeitassem a racionalidade burocrática ou mesmo as provisões
da lei. Conhecemos pelo menos um caso em que uma pessoa foi
incluída na lista de beneficiários porque os representantes sentiram
que ela merecia estar ali, mesmo que ela não se adequasse às nor­
mas prescritas. Em Rajarhat, sabemos por outras fontes que o con­
senso locai incluiu uma compreensão de que parte da compensação
a ser paga aos donos de terras deveria ser distribuída a rendeiros ou
trabalhadores que tinham perdido seu sustento. Isso está inteiramen­
te além da alçada do que a autoridade governamental precisa reco­
nhecer, ou mesmo saber, mas ela o pressupõe ao aceitar as reco­
mendações dos representantes políticos.
Devemos lembrar também que um consenso local entre repre­
sentantes políticos rivais presumivelmente reflete os interesses e valo­
res localmente dominantes. Esse consenso seria eficaz em assegurar
as demandas daqueles que estão aptos a encontrar apoio político
organizado, mas poderia ignorar e mesmo suprimir as demandas de

J
interesses localmente marginalizados. Além disso, não esqueçamos
que um consenso político locat é presumivelmente também social­
mente conservador e poderia ser particularmente insensível, por exem­
plo, a questões de gênero e de minorias. Como mencionei algumas
vezes antes, a sociedade política trará para os salões e corredores do
poder algo da baixeza, da feiúra e da violência da vida popular. Mas se
verdadeiramente se valoriza a liberdade e a igualdade que a democra­
cia promete, então não se pode aprisioná-las dentro da fortaleza
higienizada da sociedade civil.
jí Vocês podem ter notado que quando descrevo a sociedade po-
' lítica como um espaço de negociação e contestação aberto pelas
1 atividades de agências governamentais direcionadas a grupos
populacionais, freqüentemente falo de processos administrativos que
são extra-legais e de reivindicações coletivas que apelam para laços
j de solidariedade moral. É importante, penso, enfatizar mais uma vez
como a sociedade política está localizada em relação às formas políti-
co-legais do próprio Estado modemo. Os ideais de soberania popular
e cidadania igualitária consagrados pelo Estado moderno são, menci­
onei em minha conferência anterior, mediados e tornados reais atra­
vés de dois eixos, o da propriedade e o da comunidade. Propriedade
é o nome conceituai da regulação, pela lei, das relações entre indiví­
duos na sociedade civil. Mesmo quando as relações sociais não fo-
iiram, ou ainda não foram, moldadas pelas formas apropriadas da soci-
:edade civil, o Estado deve não obstante manter a ficção que na cons-
! tituição de sua soberania, todos os cidadãos pertencem à sociedade
civil, e são, em virtude desse fato legalmente constituído, sujeitos iguais
^ perante a lei. Contudo, na administração real de serviços govema-
j mentais, como temos repetidamente notado, a qualidade ficcional dessa
1construção legal tem de ser reconhecida e trabalhada. O que resulta
\ em uma dupla estratégia: por um lado, arranjos extra-legais que mo­
dificam, remodelam ou suplementam no terreno contingente da soci­
edade política as estruturas formeis de propriedade que precisam, por
outro lado, continuar a serem afirmadas e protegidas dentro do domí-
nio legalmente constituído da sociedade civil. Propriedade é, sabe­
mos, o eixo crucial ao longo do qual o capital se sobrepõe ao Estado
moderno. É sobre a propriedade então que vemos, no terreno da soci­
edade política, uma dinâmica, dentro do Estado moderno, da transfor­
mação de estruturas pré-capitalistas e de culturas pré-modernas JÉ aí
que podemos observar uma luta sobre a distribuição real, não sobre a
meramente formai, distribuição de direitos entre os cidadãos.,Conse­
qüentemente, é na sociedade política que somos capazes de discernir
o horizonte histórico variável da modernidade política na maior parte do
mundo, onde, tal como o ideal fictício da sociedade civil pode exercer
uma influência poderosa nas forças de mudança política, assim as
transações reais sobre a distribuição cotidiana de direitos gerais e espe­
cíficos pode levar, com o passar do tempo, a redefinições substanciais
da propriedade e da lei no âmbito do Estado moderno que existe real­
mente. O extra-legal, então, apesar de sua situação ambígua e suple­
mentar em relação ao legal, não é alguma condição patológica da
modernidade retardada, mas, antes, parte do próprio processo de cons­
tituição histórica da modernidade na maior parte do mundo,
f À^comunidade, entretanto, é conferida legitimidade dentro do
Idomínio do Estado moderno apenas na forma da Nação. Outras soli-
'dariedades que potencialmente possam entrar em conflito com a co­
munidade política da Nação são submetidas a um alto grau de
^suspeição. Nós vimos, entretanto, que as atividades das funções go­
vernamentais produzem numerosos tipos de populações reais, que se
aliam para atuar politicamente. Para fazer de forma efetiva suas reivin­
dicações na sociedade política, um grupo populacional produzido pelo
-governamental deve ser investido do conteúdo moral de comunidade.
Essa é uma parte importante da política do governamental. Aqui há
muitas possibilidades imaginativas sobre como transformar um grupo
populacional empiricamente conformado na forma moralmente cons­
tituída de comunidade. Já argumentei que é tanto irrealista quanto
irresponsável condenar todas essas transformações políticas como
divisionistas e perigosas.
No entanto, nessas conferências, não contei a vocês, de forma
alguma, muito acerca do lado obscuro da sociedade política. Não é
porque eu não esteja ciente de sua existência, mas porque eu não
posso afirmar que compreendo completamente como a criminalidade
e a violência estão ligadas às formas pelas quais vários grupos
populacionais desprovidos têm de lutar para fazer suas reivindicações
à assistência governamental. Acredito que disse o bastante sobre a
sociedade política para sugerir que, no campo da prática popular de­
mocrática, crime e violência não são categorias fixas e exclusivas;
elas podem estar abertas a um alto grau de negociação política. É
fato, por exemplo, que nos últimos vinte e cinco anos, houve um
aumento sensível na irrupção pública, e política, da violência de casta
na índia, num período que sem dúvida viu a mais rápida expansão da
afirmação democrática por parte das castas até então oprimidas. Te­
mos também exemplos numerosos nos quais movimentos violentos
de grupos regionais de desprovidos, tribais ou de outro tipo foram
seguidos por uma rápida e com freqüência, generosa, inclusão no
âmbito do governamental. Há então aqui um uso estratégico da ilega­
lidade e da violênòia, no terreno da sociedade política, que levou um
escritor aclamado internacionalmente a descrever a democracia indi­
ana, de maneira não muito simpática, como “um milhão de motins,
agora”? Não tenho uma boa resposta. Entretanto, um recente estu­
do, cheio de boas intuições sobre essa questão, foi publicado por
Thomas Blom Hansen sobre o Shiv Sena em Mumbai. Aditya Nigam
também publicou alguns artigos recentes tratando do “submundo” da
sociedade civil. No momento, só posso citar esses dois trabalhos.132
Nessas conferências, usei apenas exemplos de uma pequena
região da índia. É porque é a região que conheço melhor. É também
uma região, creio, em que a sociedade política tomou uma forma
distinta dentro da cultura popular da política democrática em evolu­
ção. À luz dessa experiência, tentei pensar sobre algumas das condi­
ções nas quais as funções do governamental podem criar condições
não para uma contração, mas de fato para uma expansão da parti­
cipação política democrática. Não é insignificante que a índia seja a
única grande democracia do mundo em que a participação eleitoral
continuou a aumentar em anos recentes, e está na verdade aumen­
tando mais rápido entre os pobres, as minorias, e os grupos populacionais
desprivilegiados. Há também alguma evidência recente de queda na
participação entre os ricos e as classes médias urbanas.133 Isso sugere
uma resposta política aos fatos do governamental muito diferente da­
quela encontrada na maioria das democracias ocidentais.
Também não falei nada sobre gênero. Felizmente, esse é um
tema sobre o qual há uma literatura florescente e sofisticada no con­
texto da democracia indiana.134 De maneira interessante, é quase
sempre o lado mais obscuro da sociedade política que está em jogo
aqui. Houve, por exemplo, uma chuva de leis progressivas nos anos
de 1980, propostas por grupos de mulheres e rapidamente aprovada
pelo parlamento, para assegurar maiores direitos para as mulheres.
Foi levantada agora a questão de se saber se essa não foi uma vitória
tão fácil, através de uma ação legislativa de cima para baixo, porque
as vidas da maioria das mulheres ainda é vivida em famílias e comuni­
dades em que as práticas cotidianas são reguladas não pela lei, mas
por outras autoridades. Foi levantada a questão de se saber se os
direitos das mulheres em comunidades minoritárias serão melhor es­
tendidos por legislações estatais, que poderia inclusive violar os direi­
tos das minorias, ou se a única alternativa viável é o difícil caminho de
transformar crenças e práticas no interior das próprias comunidades
minoritárias. Uma proposta de reservar um terço dos assentos no
parlamento para mulheres foi recentemente contornada pela oposi­
ção vociferante dos líderes das castas rebaixadas, que alegaram que
isso reduziria sua representação arduamente conquistada e a substi­
tuiria por mulheres legisladoras de castas altas. Nessa, como em muitas
outras questões envolvendo os direitos das mulheres, pode-se discernir
o conflito inescapável entre os desejos esclarecidos da sociedade civil
e as preocupações confusas, contenciosas e quase sempre não
palatáveis da sociedade política.
Devo agora concluir. Deixem-me fazê-lo recordando do momen­
to fundador da teoria política da democracia na Grécia antiga. Sécu­
los antes que, tanto a sociedade civil quanto o liberalismo fossem
inventados, Aristóteles concluiu que nem todas as pessoas estavam
aptas a se tornar parte da classe governante porque nem todos ti­
nham a necessária sabedoria prática ou a virtude ética. Mas sua mente
empírica astuta não excluiu a possibilidade de que em algumas socie­
dades, para alguns tipos de povos, sob certas condições, a democra­
cia fosse uma boa forma de governo. Nossa teoria política hoje não
aceita os critérios de Aristóteles sobre a constituição ideal. Mas nos­
sas práticas governamentais reais são ainda baseadas na premissa
de que nem todo mundo pode governar. O que eu tentei demonstrar
foi que, ao lado da promessa abstrata da soberania popular, as pesso­
as na maior parte do mundo estão vislumbrando novas maneiras pe­
las quais elas podem escolher como querem ser governadas. Muitas
das formas da sociedade política que descrevi não contariam, suspei­
to, com a aprovação de Aristóteles, porque pareceria a ele que essas
formas permitem que líderes populares tenham precedência sobre a
lei. Mas poderíamos, creio eu, ser capaz de convencê-lo de que deè-
sa maneira as pessoas estão aprendendo, e forçando seus governantes
a aprender, como elas preferem ser governadas. Essa, o sábio grego
talvez concordasse, é uma boa justificativa ética para a democracia.
Notas

1Sanjay Subrahmanyam. The Portuguese Empire in Asia, 1500-1700: A Political


and Economic History. Londres, Longman, 1992, p. 63. N.R.: há edição em portu­
guês sob o titulo O Império Asiático Português, 1500-1700: uma história política e
económica. Lisboa, Difel, 1995.
2Ver especialmente Sanjay Subrahmanyam. The Carrerand Legend o f Vasco da
Gama. Cambridge, Cambridge University Press, 1997, pp. 24-75. N.R.: em portu­
guês: A carreira e a lenda de Vasco da Gama. Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.
3 N.R.: o autor citou a partir de tradução feita para o inglês de trecho extraído de
Álvaro Velho. Roteiro da primeira viagem de Uasco da Gama (1497-1499). [editada
por A. Fontoura da Costa], 3aed., Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1969, p. 41.
Aqui citamos o original em português. Agradeço a Sanjay Subrahmanyam pela
referência precisa.
4Meu conhecimento dos detalhes da visita de Gama são derivados inteiramente de
sua mais recente biografia, Subrahmanyam. The Carrerand Legend o f Vasco da
Gama, pp. 76-163.
5Idem, ibidem, p. 133.
6A questão foi levantada com vigor por S. N. Balagangadhara. The Heathen in His
Blindness. Leiden, E. J. Brill, 1995.
7 Sanjay Subrhamanyam. The Political Economy o f Commerce: Southern India,
1500-1650. Cambridge, Cambridge University Press, 1990.
8K. N. Chaudhuri. Trade and Civilisation in the Indian Ocean: An Economic History
from the Rise o f Islam to 1750. Cambridge, Cambridge University Press, 1985, pp.
63-64.
9 As embarcações indianas somente podiam navegar com o “cartaz” ou passe
e m itid o pelos portugueses o q ue era garantido com freaüência bastante brutal­
mente, pelo poder dos barcos portugueses armados com canhões. Parece que os
mercadores e governantes indianos terminaram achando mais barato aceitar o
domínio português que embarcar em um projeto de construção de sua própria frota
para lutar contra os portugueses. M. N. Pearson. The Portuguese in India. Cambridge,
Cambridge University Press, 1987, pp, 57-59.
10Tuhfat al-Mujahidin, citado em Stephen Frederic Dale. The Mappilas o fMalabar
1498-1922: Islamic Society on the South Asia Frontier. Oxford, Clarendon Press,
1980, pp. 50-53.
" Surandra Nath Sen. “The Portuguese in Bengal"in Jadunath Sarkar (org.). The
History o f Bengal. Dhaka, University of Dhaka, 1948, v. 2, p. 354.
12Citado em Charles R. Boxer. João de Barros: Portuguese Humanist and Historian
o fAsia, New Delhi, Concept, 1981, p.100. N.R.: usamos aqui a tradução para a
edição em português sob o título João de Barros: humanista português e historia­
dor da Ásia. [Tradução e atualização bibliográfica de Teotônio R. de Souza]. Lisboa,
Centro Português de Estudos do SudesteAsiático, 2002, p. 99. Agradeço a Teotónio
de Souza pela referência.
13Boxer. João de Barros, pp. 99-100.
1,1 Partha Chaterjee. The Nation and Its Fragments: Colonial and Post-colonial
Histories. Princeton, Princeton University Press, pp. 16-18.
15Subrahmanyam. Portuguese Empire in Asia, pp. 270-277.
16 C. A. Bayly. Im perial Meridian: The British Empire and the World 1780-1830.
Londres, Longman, 1989, p. 74.
17Para um enunciado curto desse argumento, ver Burton Stein. ‘‘Eighteenth Century
India: Another View”. Studies in History, 5, 1 (jan.-jun. 1989), pp. 1-26. Outros
enunciados são: Bayly.. Indian Society and the Making o f the British Empire.
Cambridge, Cambridge University Press, 1988; Bayly. Imperial M eridian; D. A.
Washbrook. "Progress and Problems: South Asian Economic and social History, c.
1720-1860”, Modern Asian Studies, 22 (1988), 1, pp. 57-96.
18 Depois de ter começado a escrever essa conferência com o presente título,
recebi uma cópia da coleção de ensaios recentemente publicada de Ranajit Guha
intitulado Dominance without Hegemony: History and Power in colonial India.
Cambridge, Harvard University Press, 1997. Ele traz um epigrama - o famoso
conselho de Maquiavel sobre se um governante deveria ser amado ou temido -
que me proporcionou uma forma de introduzir meu argumento de uma maneira
que eu não havia pensado antes. Aproveito a oportunidade para reconhecer mais
uma vez meu débito para com Ranajit Guha pela inspiração e “insigths” que ele
continua a fornecer a uma geração de estudiosos que já não são jovens.
19
Niccolò Machiavelli. The Prince, [trad. Luigi Ricci], New York, Mentor, 1952, pp.
98-100. N.R.: trata-se de trecho do capítulo XVII - “Da crueldade e da clemência
e do que é melhor: ser amado ou temido” que pode ser encontrado em várias
edições brasileiras.
MVer especialmente Michel Foucault. “Governmentality”,/n Graham Burchell, Colin
Gordon e Peter Miller (orgs.). The Foucault Effect: Studies in Governmentality.
Chicago, University of Chicago Press, 1991, pp. 87-104 e “Politics and Reason”, in
Michel Foucault (org.). Politics, Philosophy, Culture: Interviews and Other Writings,
1977-1984. New York, Routledge, 1988, pp. 57-85. N.R.: há edição brasileira do
texto de Foucault: “A governamentalidade", in Microffsica dopoder. Rio de Janeiro,
Graal, 1992, pp. 277-293.
21 N.T.: o termo "policy” foi traduzido por "políticas públicas", ou, quando aparece
qualificado, apenas como “políticas” (como em “políticas sociais”, “políticas
econômicas” etc). O termo mais geral “politics” foi traduzido como “a política” ou “o
político”, para realçar a distinção bastante explorada pelo autor.
22Ranajit Guha. Dominance without Hegemony, p. 72.
23 Citado em S. N. Mukherjee, Sir William Jones: A Study in 19>hCentury British
Attitudes to India, Cambridge, Cambridge University Press, 1968, p. 122.
24Ranajit Guha. A Rule o f Property for Bengal: An Essay on the Idea o f Permanent
Settlement. Paris, Mouton, 1963.
25
Guha. Dominance without Hegemony, p. 32.
2bCitado em Mukherjee. Sir William Jones, pp. 122-123.
27 Fui conduzido a esse tema pela tese de doutorado de Sionti Sen. “Views of
Europe of Turn of the Century Bengali Travellers, 1870-1910”, PhD dissertation,
University of Calcutta, 1995.
28Mirza Shaikh Ihtisamuddin. Bilayetnama. [trad. Abu Mohamed Habibullah], Dhaka,
Muktadhara, 1981.0 manuscrito persa original é intitulado Shigarf-nama-e-vilayet.
29Travels o fMirza Abu Talib Khan. [trad. Charles Stewart], New Delhi, Sonali, 1972.
A primeira edição e de 1814.
30
Ihtisamuddin, Bilayetnama, p. 37.
31Citado em Simonti Sen, “Views of Europe”, p. 21.
32 Trailokyanath Mukherjee. /4 Visit to Europe. Calcutta, Arunodaya Roy, 1902,
citado em Simonti sen, “Views of Europe”, p. 21.
33Idem, ibidem, p. 98.
34Idem, ibidem, p. 168.
35Idem, ibidem.
36A crítica econômica do domínio colonial na India foi inaugurada por Dadabhai
Naoroji e R. C. Dutt na virada do século XIX, enquanto os fundamentos de uma
estratégia nacionalista de industrialização para pôr fim à pobreza e criar a prospe­
ridade geral foram lançados mias ou menos ao mesmo tempo por G. V. Joshi, M.
G. Ranade e G. K. Gokhale. Isso estabeleceu um quadro teórico para o pensamen­
to econômico nacionalista na índia que se manteria relevante por quase cem anos.
3' Leonard Mosley. The Last Days o f The British Raj. Bombay, Jaico, 1971, pp. 155-
166. A primeira edição é de 1961.
38M. K. Gandhi. Hind Swaraj" /// The Collected Works o f Mahatma Gandhi. New
Delhi, Publications Division, 1958, v. 10.
39Rajnarayan Basu. Se kãl ar e kãl. [editado por Brajendranath Bandyopadhayay e
Sajanikanta Das], Calcutta, Bangiya Sahitya Parishat, 1956. N.T.: Literalmente,
“aqueles dias e estes dias", o que manteria o paralelismo do título original, mas
tornaria mais difícil a tradução das passagens em que o autor faz uso do termo em
sua argumentação.
40 Citado por David Arnold. Colonizing the Body: State Medicine and Ayurvedic
Disease in Nineteenth Century India. Berkeley, University of California Press, 1993,
pp. 282-283.
41 ManikuntalaSem. Sedinerkatha. Calcutta, Nabapatra, 1982, p.-10.
42
Kalyani Datta. Thodbadikhãdã. Calcutta, Thema, 1992, esp. pp. 26-48.
43Immanuel Kant. On History, [editado por Lewis White Beck], Indianápolis, Bobbs-
Merrill, 1963, pp. 3-10. N.T.: Uma tradução usual de “Enlightenment” é “Iluminismo”.
Deve-se evitar aqui, entretanto, uma associação muito estreita com o movimento
cultural de matriz francesa; o autor parece se referir a um processo mais longo,
mais geral e mais difuso. Assim, por vezes foi preferida a tradução literal “esclare­
cimento”, que se aplica tanto ao termo inglês quanto ao alemão “Aufklarung”.
44 Michel Foucault. “What is Enlightenment?”, in Paul Rabinow (ed.). The Foucault
Reader. New York, Pantheon, 1984, pp. 32-50. N.R.: Publicado no Brasil como “O.
que é o lluminismo”, in Carlos Henrique Escobar (org.). Michel Foucault (1926-
1984) - o Dossier - Mimas entrevistas. Rio de Janeiro, Livraria Taurus Editora,
s 1984. Encontra-se também disponível em http://www.foucault.hpg.ig.com.br/
' iluminismo.html.
45
Um relatório sobre egse encontro que apareceu no Bengal Hurkaru, em 13 de
fevereiro de 1843, foi reimpresso em Goutam Chattopadhyay (ed.). Awakening in
Bengalin Early Nineteenth Century (Selected Documents), v. 1, Calcutta, Progressive
Publishers, 1965, pp. 389-399.
46Computado da lista fornecida por Binaybhusan Ray. Unice ceatakerbãmiaybijnãn
sãdhanã. Calcutta, Subarnarekha, 1987, pp. 252-277.
Ar Report oftheShuddha Ayurvedic Education Committee. Delhi, 1963, citado por
Paul R. Brass. “Politics of Ayurvedic Education: A Case Study of Revivalism and
Modernization in India”, in Susanne Hoeber Rudolph e Lloyd I. Rudolph (orgs.).
Education and Politics in India. Cambridge, Harvard University Press, 1972, pp.
342-371.
48
Kamalkumar Majumdar. Antarjãli Yãtrã. Calcutta, Kathasilpa, 1962.
49 N.T.: O neologismo “governance" foi traduzido pelo também neologismo
“governância”, de forma a ser consistente com a bibliografia da recente ciência
política publicada no Brasil.
60N.T.: O autor emprega o neologismo “governmentality”, que foi traduzido aqui e
no decurso do texto pela substantivação do adjetivo “governamental", para indicar
o campo e as estratégias de ação das agências governamentais no terreno da vida
social mundana.
51Benedict Anderson. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread 165
o f Nationalism. Londres, Verso, 1983. N.R.: há edição no Brasil sob o título Nação
e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989.
52
Benedict Anderson. The Spectre o f Comparisons: Nationalism, SoutheastAsia
and the World. Londres, Verso, 1998, p. 29.

Colonialismo, Modernidade e Política


Cy3
N.R.: Foucault desenvolveu o conceito numa palestra feita em março de 1967 e
embora o texto não tenha sido por ele revisado, o manuscrito foi distribuído em
Berlim pouco antes de sua morte, em 1984. Em outubro do mesmo ano, o texto,
intitulado “Des Espace Autres”, foi publicado pela revista francesa Architecture /
Mouvement/Continuité. No Brasil encontra-se publicado sob o título “Outros espa­
ços” em Michel Foucault. Ditos e Escritos, III. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
2001, pp. 411-422.
54 Homi Bhabha, "DissemiNation”, in Homi Bhabha (ed.) Nation and Narration.
Londres, Routledge, 1990, pp. 291 -322. N.R.: No Brasil “DissemiNação” encontra-
se em O local da cultura. Belo Horizonte, UFMG, 2003, pp. 198-238.
55
"Alumnus, Author of Indian Constitution Honored”, Columbia University Record,
21,9 (November 3,1995), p. 3.
56 B. R. Ambedkar. Who Were the Shudras? How They Came to be the Fourth
Varna in the Indo-Aryan Society. 1946; reimpresso, Bombay, Thackers, 1970;
Ambedkar. The U ntouchables: Who Were They and Why They Became
Untouchables. New Delhi, Amrit Book Company, 1948.
57N.R.: Como mostra o autor o sistema de castas é bastante complexo para ser
aqui resumido. Aponto somente alguns de seus elementos. Teve sua origem após
a invasão da índia por tribos árias vindas do noroeste, por volta de 2000 ou 1500
a.C., e que ocuparam a região do Punjab e depois se expandiram. Esta conquista
está narrada nos Vedas. Síntese das culturas ário-dravídica surge o Hinduísmo,
com sua sociedade dividida em castas: a) castas descendentes dos árias
dominadores: brâmanes, membros hereditários da casta sacerdotal; xátrías, mem­
bros hereditários da casta militar; vaixias, indivíduos da terceira casta que inclui os
membros de outras profissões que, por sua vez, incluem subcastas e b) castas
descendentes dos povos subjugados pelos invasores arianos e discriminados pela
cor escura de sua pele: os sudras, submetidos a trabalhos servis e finalmente os
dalits ou intocáveis também chamados de párias, que não pertencem a qualquer
casta, considerados impuros e desprezíveis pela tradição cultural hinduísta. Entre
os párias, se incluem os bastardos - filhos de pais estrangeiros ou pertencentes a
castas diferentes - os filhos de prostitutas e os condenados por graves infrações
aos preceitos sociais ou religiosos. O sistema de castas impõe rígidas normas de
comportamento e tabus que impedem uma série de contatos intercastas. Embora
legalmente abolido, o sistema continua a pautar as relações sociais na índia con­
temporânea. Para maiores detalhes sobre a situação atual dos dalits ver o site
http://www.ambedkar.org.
JCSatinath Bhaduri. Dhnodaicharitmanas (vol. 1, 194-9; vol. 2,1951) in Satinath
granthabali, vol. 2, [ed. Sankha Ghosh and Nirmaiya Acliarya], Calcutta, Signet,
1973, pp. 1-296.
59
N.R.: O Congresso Nacional indiano, também conhecido como Partido do Con­
gresso ou simplesmente Congresso, foi criado em 1885 por indianos com educa­
ção ocidental e funcionou como aglutinador da política nacionalista em toda a
índia, tendo governado o país após a sua independência da Inglaterra em 1947.
60Shahid Amin. “Gandhi as Mahatma’’, in Ranajit Guha (ed.). Subaltern Studies III.
Delhi, Oxford University Press, 1984, pp. 1-61; Shahid Amin. Event, Metaphor,
Memory: Chauri Chaura, 1922-1992. Delhi, Oxford University Press, 1995.
61 M. N. Srinivas. Social Change in Modern India. Berkeley, University of California
Press, 1966; David Hardiman. The Coming o f the Devi: AdivasiAssertion in Western
India. Delhi, Oxford University Press, 1987.
^ Dhorai, p. 70.
63Citado em Gail Omvedt. Dalits and the Democratic Revolution: Dr. Ambedkarand
the D alit Movement in Colonial India. New Delhi, Sage, 1994, p. 146.
64Citado em Omvedt. Dalits, pp. 168-169.
65N.T.: Oautor faz aqui um trocadilho com o titulo atribuido a Gandhi, Mahatma, ou
grande alma. No original: "in an un-mahatma-Jike boast”.
Para o Pacto de Poona e as citações relevantes, ver Ravinder Kumar. “Gandhi,
Ambedkar and the Poona Pact, 1932”, in Jim Masselos (ed.). Struggling and
Ruling: The Indian NationalCongress, 1885-1985. New Delhi, Sterling, 1987; Omvedt.
Dalits, pp. 161-189.
07 N. R.: O autor se refere ao fato de que a índia, ao se tornar independente, foi
dividida em dois países soberanos: a União Indiana e o Paquistão. A partilha,
baseada em critérios religiosos, provocou o deslocamento de milhões de pessoas
e conflitos abertos entre hindus e muçulmanos, que deixaram milhares de mortos.
O Paquistão, muçulmano, era formado por dois territórios separados pela própria
índia: o Paquistão Oriental e o Paquistão Ocidental. Em 1971, o Paquistão Oriental
tornou-se um novo estado independente com o nome de Bangladesh. Conflitos
envolvendo questões de fronteira ainda hoje opõem o atuai Paquistão e índia e
derivam em freqüentes enfrentamentos religiosos entre as comunidades hindus e
muçulmanas desta última.
66
Bhabha, “DissemiNation”.
69
Dhorai, pp. 222-223.
70 B. R. Ambedkar. Pakistan or the Partition o f India. 2a. ed., Bombay, Thacker,
1945.
Exceto por exemplos de ignorância e preconceito politicamente sancionados,
tais como Arun Shourie. Worshipping False Gods: Ambedkarand the Facts Which
Have Been Erased. New Delhi, ASA Publications, 1997.
72
Pakistan, p. vii.
73Pakistan, pp. 55 87.
Pakistan, p. 105.
75 N.R.: O autor se refere aqui aos antigos rajás, senhores absol.utos de seus
súditos, e por analogia a um governo forte, controlado pelos hindus.
76Pakistan, pp. 352-358.
77Anderson. Spectre, p. 44.
78Para o relato sobre as oportunidades legais oferecidas às castas rebaixadas na
índia independente, ver Marc Galanter. Competing Equalities: Law and the Backward
Classes in India. Delhi, Oxford University Press, 1984.
70 Para uma discussão recente sobre a conversão de Ambedkar, ver Gauri
Viswanathan. Outside the Fold: Conversion, Modernity, and Belief. Princeton,
Princeton University Press, 1998, pp. 211 -239.
80Por exemplo, em Ibrahim Abu-Lughod. Arab Rediscovery o fEurope: A Study in
Cultural Encounters. Princeton, Princeton University Press, 1963; Timothy Mitchell.
Colonising Egypt. Cambridge, Cambridge University Press, 1988.
81 Kabir Kausar. Secret Correspondence o f Tipu Sultan. New Delhi, Light and Life,
1980, pp. 165,219.
82James Sutherland, citado em Sophia Dobson Collet. The Life and Letters o fRaja
Rammohun Roy. Editado por Dilip Kumar Biswas and Prabhat Chandra Ganguli,
1900; republicado em Calcutá por Sadharan Brahmo Samaj, 1962, p. 308.
83C. L. R. James. The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo
Revolution. New York, Vintage Books, 1963.
84
Citado em Michel-Rolph Trouillot. Silencing the Past: Powerand the Production of
History. Boston, Beacon Press, 1995, p. 79.
85Trouillot, pp. 70-107.
86N.T.: Em português, a expressão corrente é “autodeterminação dos povos", o
que ilustra a vinculação entre os dois termos. Foi necessário traduzir literalmente
para não prejudicar a conceituação proposta pelo autor.
87 Étienne Balibar. Masses, Classes, Ideas: Studies on Politics and Philosophy
Before and A fter Marx. New York, Routledge, 1994.
88 Especialmente em Karl Marx, “On the Jewish Question" (1843) in Karl Marx e
Frederieh Engels. Collected Works. Moscow, Progress Publishers, 1975, vol. 3., pp.
146-174. N.R.: publicado no Brasil: A questão judaica. São Paulo, Moraes, 1981.
89 Capítulos sobre “The So-called Primitive Accumulation" in Karl Marx. Capital.
(trad. Samuel Moore and Edward Aveling). Moscow, Progress Publishers, 1954, vol.
1, pp. 667-724. N.R.:Trata-se do capítulo XXIVdeOCapital com várias edições em
português. No Brasil o texto foi publicado de maneira avulsa pela primeira vez como
Origem do capital: a acumulação prim itiva. São Paulo, Fulgor, 1964. Há novas
edições.
90
Karl Marx e Frederieh Engels. Collected Works. Moscow, Progress Publishers,
1975, vol. 12, p. 125. N.R.: Foi publicado originalmente no New- York Daily Tribune.
25/06/1853. Na edição brasileira a citação se encontra na página 291 de Karl
Marx. “O domínio britânico na índia”, in M arxe Engels: textos. São Paulo, Edições
Sociais, 1977, vol. Ill, pp. 286-291.
91 "Correspondência com Vera Zasulich” in Teodor Shanin. Late Marx and the
Russian Road: Marx and ‘the Peripheries o f Capitalism’. Londres, Routledge and
Kegan Paul, 1983; Lawrence Krader (ed.). KarlMarx, The EthnologicalNotebooks.
Assen, Van Gorcum, 1974.
t)2
Duas coleções que dão exemplos abundantes desses argumentos são Michael
Sandel (ed.). Liberalism and Its Critics. New York, New York University Press, 1984
e Shlomo Avineri and Avner de-Shalit (eds.). Communitarianism and Individualism.
Oxford, Oxford University Press, 1992.
9J Ver especialmente Quentin Skinner. Liberty Before Liberalism. Cambridge,
Cambridge University Press, 1997 e Philip Pettit. Republicanism:A Theoryo fFreedom
and Government. Oxford, Oxford University Press, 1997.
94
Pettit, Republicanism, p. 241.
90 Ver, em particular, Michel Foucault, “Governmentality”, pp. 87-104.
96
Ian Hacking. The Taming o f Chance. Cambridge, Cambridge University Press,
1990; Mary Poovey. Making a Social Body. Chicago, University of Chicago Press,
1995 eA History o f the Modem Fact. Chicago, University of Chicago Press, 1998.
97Ver em particular Nikolas Rose. Powers o fFreedom: Reframing Political Thought.
Cambridge, Cambridge University Press, 1999; Peter Miller e Nikolas Rose.
"Production, Identity and Democracy”. Theory and Society, 24 (1995), pp. 427-67;
Thomas Osborne. Aspects o fEnlightenment: Social Theory and the Ethics o f Truth.
Londres, UCL Press, 1998.
9B
T. H. Marshall (ed. por T. Bottomore). Citizenship and Social Class (1-949). Lon­
dres, Pluto Press, 1992, pp. 3-51. N.R.: há edição brasileira: Cidadania e classe
social. Brasília, Centro de Estudos Estratégicos, 2002.
99
Nicholas B. Dirks. Castes o f Mind: Colonialism and the Making o fModern India.
Princeton, Princeton University Press, 2001.
100K. Suresh Singh (ed.). People o f India. Calcutta, Anthropological Survey of India,
1995-, 43 vols.
101 Partha Chatterjee. “Two Poets and Death: On Civil and Political Society in the
Non-Christian World”, in Tim Mitchell and Lila Abu-Lughod (eds.). Questions o f
Modernity. Minneapolis, University of Minnesota Press, 2000; "Beyond the Nation?
Or Within?”. Social Text. 56/16.3, Fall 1998, pp. 57-69; "Community in the East”.
Economic and Politbal Weekly, Vol. 33,6, Jan. 1998, pp. 277-282; “The Wages of
Freedom”, in Partha Chatterjee (ed.). The Wages o f Freedom: Fifty Years o f the
Indian Nation-state, Delhi, 1998.
Para argumentos desse tipo, ver Jean L. Cohen and Andrew Arato. Civil Society
and Political Theory. Cambridge, Mass. MIT Press, 1992.
103
ver em particular Ranajit Guha. “On Some Apects of the Historiography of
Colonial India”. Subaltern Studies I. Delhi, Oxford University Press, 1982, pp. 1-8.
104Agradeço a Ashok Dasgupta e Debashis Bhattacharya do Ajkal por sua ajuda
generosa na pesquisa do relato da morte de Balak Brahmachari.
105N.R.: De acordo com os seguidores trata-se de um mantra que não se refere a
nenhum deus, mas ao “grande vazio", reservatório da consciência suprema. Tudo
que vemos, entendemos e conhecemos, combinados, formam o “Ram”. “Narayan”
se refere a uma melodia primordial e universal e entoar este mantra alargaria o
horizonte mental.
106N.R.: Ashram é a sede da organização, local de reunião e culto.
107N.T.: Em francês no original.
108Ajkal, 18/05/1993.
109Ajkal, 21/06/1993.
Ajkal, 26/06/1993.
111Ajkal, 26/06/1993.
112The Telegraph, 01/07/1993; TheStatesman, 01/07/1993.
" 3Ajkal, 02/07/1993.
114Ajkal, 13/07/1993.
" 5'DainikPratibedan, 05/02/1994.
116Sudipta Kaviraj formulou-o explicitamente como um problema tocquevilliano em
“The Culture of Representative Democracy”, in Partha Chatterjee (ed.). The Wages
o f Freedom: Fifty Years o f the Indian Nation-State. Delhi, Oxford University Press,
1998, pp. 147-175.
'17Os escritos do grupo de historiadores dos “Subaltern Studies” exploraram esses
temas de forma mais elaborada. Ver em particular Ranajit Guha. Dominance Without
Hegemony. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1998.
118 Asok Sen. Life and Labour in a ‘Squatters' Colony. Occasional Paper 138,
Centre for Studies in Social Sciences, Calcutta, outubro de 1992.
119Os verdadeiros nomes dos ocupantes foram trocados nesse relato.
120Pesquisa conduzida pela SAVERA, uma organização não governamental para o
bem-estar social que mantém uma escola não formal, um centro de saúde e um
centro de capacitação na colônia ferroviária. Agradeço a Saugata Roy por me
apresentar a essa pesquisa e à recente situação da ocupação.
Ul Asok Sen. The Bindery Workers o f Daftaripara: 1. Forms and Fragments.
Occasional Paper 127, Centre for Studies in Social Sciences, Calcutta, abril de
1991.
122 Asok Sen. The Bindery Workers o f Daftaripara: 2. Their Own Life-stories.
Occasional Paper 128, Centre for Studies in Social Sciences, Calcutta, junho de
1991.
123Dwaipayan Bhattacharya. “Civic Community and its Margins: School Teachers
in Rural West Bengal”. Economic and Political Weekly, 36,8,24/02/2001, pp. 673-
124
Robert D. Putnam, Robert Leonardi and Raffaella Y. Nanetti. Making Democracy
Work: Civic Traditions in Modern Italy. Princeton, Princeton University Press, 1993.
125
Agradeço a Akeel Bilgrami pela sugestão desse ponto.
126N.T.: A expressão “entitlements”, foi traduzida por “direitos específicos”, para
expressar a eletividade para usufruir de benefícios em resultado de situações par­
ticulares (no caso, a realocação por projetos de desenvolvimento). É necessário
distingui-la do termo “rights”, que seriam direitos gerais atrelados às noções de
cidadania universal e igualitária e propriedade.
127
Ver, em particular, Michael M. Cernea. The Economics o fInvoluntary Resettlement:
Questions and Challenges Washington, D.C., World Bank, 1999.
128Para a formulação mais geral, verAmartyaSen, Development as Freedom. New
York, Random House, 1999.
129 '
Para ver exemplos das discussões na India sobre a questão da realocação, ver
Jean Drèze e Veena Das (orgs.). “Papers on Displacement and Resettlement,
presented at workshop at the Delhi School of Economics”. Economic and Political
Weekly, 15/06/1996, pp. 1453-1540.
130
Partha Chatterjee, “Recent Strategies of Resettlement and Rehabilitation in
West Bengal”, comunicação apresentada no Workshop on Social Development in
West Bengal, Centre for Studies in Social Sciences, Calcutta, junho de 2000.
1310 caso da desapropriação de Rajarhatfoi recentemente discutido em detalhe
por Sanjay Mitra, um dos funcionários que administrou o projeto, em um artigo
“Planned Urbanisation through Public Participation: Case of the New Town,
Kolkata”. Economic and Political Weekly, 37,11, de 16/03/2002, pp. 1048-54.
132
Thomas Blom Hansen. Wages o f Violence: Naming and Identity in Postcolonial
Bombay. Princeton, Princeton University Press, 2001; Aditya Nigam. “Secularism,
Modernity, Nation: Epistemology of the Dalit Critique". Economic and Political Weekly,
35,48 de 25/11/2000.
1JJYogendra Yadav. "Understanding the Second Democratic Upsurge: Trends of
Bahujan Participation in Electoral Politics in the 1990s” in F. Frankel, Z. Hasan, R.
Bhargava and B. Arora (eds.). Transforming India: Socialand Political Dynamics o f
Democracy. Delhi, Oxford University Press, 2000.
134 Ver, por exemplo, Nivedita Menon (ed.). Gender and Politics in India. Delhi,
Oxford University Press, 1999.

'' AVI L L h . H & 'l M A \L, Co


P artha C hatterjee (...) faz parte da geração que tem a m esm a idade que a U nião Indiana
independente. (...) nasceu a 5 de N ovem bro de 1947, no seio de um a fam ília burguesa e
brâm ane de C alcutá, e foi criado na província de Bengala O cidental, sem pre em redor da
m esm a cidade de C alcutá. R ecebeu um a sólida educação em letras (sobretudo em literatum
bengali) e em ciências ainda antes de co nclu ir a licenciatura em C iências P olíticas no
prestigiado Presidency C ollege da U niversidade de C alcutá em 1967.
A figura de C hatterjee ganhou fo rça e im portância na historiografia indiana nos inícios dos
anos de 1980 p or duas razões. Em prim eiro lugar, com os dois artigos fundam entais que
publicou nos dois prim eiros volum es dos Subaltern S tudies (...), d e sta cou -se co m o o mais
te ó rico d o grupo (...). Ao m esm o tem po, a recensão crítica que publicou de um a biografia do
N ehru (...) tra n sfo rm o u-se em cause célèbre da época, dadas as tentativas oficiais para
censurar a sua publicação. (...). Ao m esm o tem po, os seus escritos acabaram p or atingir um
p úb lico bem m ais vasto graças à publicação em 1986 de sua obra Nationalist Thought and
the C olonial World, livro que desem penhou um papel central nos d ebates sobre o
nacionalism o naquela época, tal co m o a obra Im agined C om m unities, de B enedict Anderson
A partir deste m om ento, C hatterjee pertence no olhar de alguns m uito m ais ao cam po d o r
debates internacionais do que à historiografia indiana propriam ente dita. (...) C hatterjee
chegou a ser um dos nom es m ais citad o s na historiografia sobre o nacionalism o em gSral <
or, s o l i ;; escritos com eçaram a aparocor cm centenas do cursos universitários nos Fstad
tin id o s e em Inglaterra.
A realidade 6 que existem vários P aiíha C hatterjees. Q uem conhece só a obra sobre o
nacionalism o ignora p or vezes totalm e n te o número im pressionante de ensaios que ele
dedicou à política atual, ta n to na sua província natal de Bengala, com o sobre a índia em
geral. (...) A partir dessas obras, te nta desenvolver duas ideias centrais que aparecem no.,
seus escritos recentes e tam bém nos ensaios pub lica do s nesta coletânea. A prim eira é a
noção de que a 'sociedade civil' não existe para a m aior parte dos indianos, e que seria
[/ --n- '!t*> >* r '. 'j ^ 'M 'T '' ' H M'Opl‘k ’/ V -* 's o n i o f l n r i e p o ! ( H r n ' n n frí

com preender o verdadeiro lun cio n am o u lo da índia de hoje. A segunda, talvez m ais
ooiilrovorsa, consisto na dolosa do conceito do 'co m u n id a d e 1co m o base |>ata o
fu ncionam ento da dem ocracia indiana. A lguns pensam que, ao enveredar p or este ca m i:1
G lia tte ijo o L au;íom:ou sc :m n;a cspóoio do 'corruinitaristn' qüe defenderia n ideia de um
'comunidade prim ordial'. São problem as e debates ainda em aberto e penso que a anális
atual situação brasileira p ode ajudar ao desenvolvim ento do pensam ento do autor. Seria
possível afirm ar, na verdade, que a dem ocracia brasileira funciona ta n to para a criança da
favela co m o para o grande senhor da fazenda? Qual é o vocabulário apro p ria d o para abord,
estos problem as, r.c Brasil com o na índia? E com o evitar, na análise da 'so cie da d e polítif'
um novo tip o de rom antism o, que faria d o chefe crim inoso da favela um herói, para não i;
em qeral da 'qrande ilusão d o carnaval', qlosada p or V inícius de M oraes?
Do P re fá cio d e S anjay S u b ra h m a nya m

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