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· contextualização e aspectos gerais
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teórico composto pelas ideias fundamentais norteadoras a serem exploradas em Sócrates - Logo, é nisso que consiste a injustiça. Ao contrário, quando
nosso trabalho. ~=.
71 • :> a classe dos homens de negócios, a dos guerreiros e a dos
magistrados exercem a sua função própria e só se ocupam dessa
c1t1 '
função, não é o inverso da injustiça e o que toma a cidade justa?
f Primeiramente, encontramos no início do século XVI a publicação da obra Glauco - Acredito que não pode ser de outra maneira. Sócrates -
u"/. Utopia (1516), de Thomas More, a qual explana o conceito de seu título. Tal
Não o afirmemos ainda categoricamente; porém, se reconhecermos
que esta concepção, se aplicada a cada homem em particular, é
também a justiça, então recaberã a nossa aprovação. Do contrário,
~1-' z p construção, em relação à semântica desse conceito, ocorre a partir do processo dirigiremos a nossa anãlise para outra direção. Agora, completemos
. ~í/(t , de composição por justaposição das palavras gregas ou (ou), cujo significado é /1 esta investigação que, conforme pensãvamos, nos devia permitir
f:,1 ;v
divisar mais facilmente a Justiça do homem, se tentãssemos
primeiramente descobri-la em algum modelo mais amplo que a
não, somando-a a palavra tópos (rorroç), este com significado de lugar. Em
_/f)'y
contivesse. Pareceu-nos que esse individuo era a cidade; por isso,
suma, este conceito pode ser denotado como "lugar nenhum" ou "não-lugar". ,/;)v.ofL fundamos uma tão perfeita quanto possivel, sabendo muito bem que a
justiça se encontraria numa cidade bem governada. Vamos transladar
agora para o individuo o que encontramos na cidade e, se concluirmos
Como forma de expandirmos nosso conhecimento acerca d ~ que a justiça é isso, tanto melhor. Contudo, se descobrinnos que a
justiça é outra coisa no individuo, voltaremos a atenção para a cidade.
encontramos nos estudos da filósofa Marilena Chauí uma importante Pode ser que, comparando estas concepções e pondo-as em cantata
contribuição ao empregar importantes considerações relacionadas ao termo em uma com a outra, façamos brotar a justiça como o fogo de uma
\
pederneira; em seguida, quando ela se tiver tomado evidente, fixá-la-
seu início histórico: emos em nossas almas (PLATÃO, 2012, p. 118).
JÍ l
Platão, ou o projeto arquítetõnico da cidade perfeita traçada pelo
geõmetra e astrõnomo grego Hipodamos de Mileto, que, aplicando a i procuraram explorar tal idealização de luglir em seus respectivos contextos,
geometria e a astronomia ao plano urbanístico, concebeu a cidade de
acordo com a harmonia cósmica, ou ainda a descrição da Idade de / explorando-as em diferentes esferas sõciais, · sejam elas no àmoito religioso,
Ouro nos poemas dos latinos Virgílio e Ovídio (CHAUI, 2016, p. 29-30).
filosófico ou social.
-
exclusivamente por mulh~eguindo esta linha de raciocínio, encontramos
no prefácio da obra Utopi~ uma análise da seguinte passagem sobre a ' Ilha de utopia renascentista, o qual se iniciou a partir do século XVI e se estendeu até o
Utopia", em que, basicamente, explicita o ideal composto pela felicidade de sua Século XVII. Característica deste grupo parte da descrição do Novo Mundo
população baseada no racionalismo: proveniente do período das Grandes Navegações, possuindo como destaque as
obras A cidade do sol (1602), de Tommaso Campanella, Nova Atfantis (1627),
Aquele povo que nlo faz guerra por motivo fútil teria conseguido guiar-
se pela razio, por valores Cristãos, mesmo sem conhecer o de Francis Bacon e Marcària (1641), de Gabriel Plattes. Como exemplificação
cristianismo, teria construido a mais perfeita organização politica e teria
alcançado, com seus próprios costumes, distintos daqueles dos de tal grupo, é importante destacar o diálogo presente na obra de Campanella
europeus, o mais alto grau de civilização. Nenhum Estado terá jamais
atingido ou mesmo procurado atingir o ideal da utopia na sua relação entre as personagens Grão-Mestre dos Hospitalários (G.M.), curioso sobre a
com outros povos, ao tentar realizar um comércio internacional justo, descoberta da Cidade do Sol, e Almirante (ALM.), navegante e responsável pela
ao procurar eliminar a pobreza, ao ser attrulsta e enxergar o interesse
alheio mais do que o seu próprio. O termo "utopia' entrou para o descoberta:
vocabulário comum sobretudo com esse sentido, de uma utopia
positiva (ALMINO, 2004, p. 32).
G. M. - Mas, diga-me, amigo: os magistrados, as repartições, os
cargos, a educação, todo o modo de viver é mesmo de uma verdadeira
Para More, uma das características fundamentais que compõe a sua obra ~\ república, ou o de uma monarquia ou de uma aristocracia? ALM. -
Aquele povo ali se encontra vindo da lndia, por ele abandonada para
trata-se da preocupação com o bem comum, ao qual se submete o bem
'1 individual. Para tanto, os ulopianos, nomeação dada aos cidadãos da ilha ~Y lJr~ · livrar-se da desumanidade dos magos, dos ladrões e dos tiranos, que
atormentavam aquele pais. Todos determinaram, entlo, começar uma
vida filosófica , pondo todas as coisas em comum. E, se bem que em
seu pais natal não esteja em voga a comunidade das mulheres, eles a
J. \Y ·Utopia, optam pela divisão dos bens de maneira igualitária, pois acreditavamrõ r;j'Z_ '\ adotaram unicamente pelo princípio estabelecido de que tudo devia ser
comum e que só a decisão do magistrado devia regular a igual
j y poder de bens materiais não deveria se concentrar na mão de uma minoria distribuição. As ciências e, em seguida, as dignidades e os prazeres
É a partir dessa característica em comum que o filósofo alemão Patrick Dando continuidade em seu estudo, o autor denomina terceiro grupo
Hübner baseou o seu estudo e criou uma classificação para os diferentes tipos como Utopia Moderna, no qual se toma nítida a principal mudança na escrita de
de utopias. Inicialmente, o autor as dividiu em quatro grupos. seus autores. Nos grupos anteriores, encontrávamos em grande parte das obras
O primeiro grupo é classificado como utopia clássica, no qual , _i f utópicas um foco na projeção espacial idealizado. Agora, notamos uma grande
Ilha. Entram nesse grupo as obras A República, O livro do apocalipse e O livro Ê neste grupo que o autor explana pela primeira vez acerca do conceito
da cidade de Senhoras, entre outras. de ucronia, cujo significado pode ser compreendido como idealizações
rela·
cronadas em um tempo distante ou Muro. Obras que merecem destaque por
ralogarem com tais características são O ano 2440, sonho se é que ele existiu 1
\
'
V Na seguinte passagem, o narrador nos convida a tomar um passeio pela
cidade na perspectiva de um balão. Fica notável as mudanças presentes na
(1771 ), do francês Louis-Sébaslian Mercier, cujo enredo é ambientado em uma ! ~~'\ cidade londrina a partir da projeção temporal ao longo do século XX, tais como
Paris futurística, mais precisamente no século XX.V, 2894 ou The fossil man r ~~r/7 a limpeza, o ar não poluído e a igualdade de poderes entre homens e mulheres,
(1894}2, de Walter Browne, na qual o protagonista está inserido em uma L 0 ) elementos incomuns no início do romance.
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sociedade futurística governadas pelas mulheres com os homens submissos a //
Por fim, encontramos o quarto grupo denominado como utopia
elas e Gloriana, ou A revoluç6o de 19oo1 (1890), de Lady Florence Dixie, um dos (
contemporánea. Aqui, deparamo-nos com a figura do homem angustiado do
~ ,
primeiros romances feministas que narra as inúmeras conquistas femininas
ambientadas em Londres no início século XX e perpassa até o ano de 1999
conforme observado a seguir:
y
, ./
século XX. Um dos diversos fatores que contribuíram para tal angústia foi a (
implementação de regimes totalitários ao longo do século, concomitante de
interesses políticos providos das guerras. Tal percepção é complementada pelo
1999. li is a lovely scene on which that balloon looks down, - a scene autor exatamente como o oposto das eutopias clássicas:
of peacetul villages and well-tilled fields, a scene of busy towns and
happy worl<ing people, a scene of peace and prosperity, comtort and A história recente das utopias tende a matar as eutopias clássicas,
contentment, which only a righteous Govemment could produce and
avatares do mito de cidade ideal mais ou menos projetada no tempo,
maintain. The balloon is passing over London, a London vastly changed
para criar o contramodelo procedente de uma total inversão dos
from lhe London of 1900. Somehow lt wears a countrified aspect, for
~ r.aJni!,!~l e reativando o contramlto ·da cidade maldlta
every street has lts double row of shady trees, and gardens and parl<s
abound at every tum. This London, unlike lts predecessor, is not (HUBNER, 2000, p. 9Et,) 1/\r-C..c.#-:>
smoke-begrimed, nor can lt boast of dirty courts and filthy alleys like lhe
London of 1900. Every house, great and small, bears lhe aspect of
? ),--<"~- Laf~{-:--
cieanliness and comfort, for poverty and misery are things no longer
known. A stranger in lhe balloon looks down wlth interest upon this Percebemos que o auto_r_a_d_e_re_~_d_e_se_nv_o_lv_i_m_e_n_to_da_ ideia de utopia ao
scene. His gaze, wandering across the mighty city, is arrested by two
gleaming gilded statues crowning a monster editice, upon whose cap longo da história e suas aparições em obras até~ grupo atual chegaram a um
of glittering panes lhe sun is shining brightly."ls thatthe Hall of Liberty?"
he inquires of his guide. "Yes." answers lhe person addressed, "lhe
f . ponto que produziram uma espécie de contra modelo inicial. Dessa maneira,
sarne as was raised a century ago by lhe great Ouchess of Ravensdale, outras denominações surgiram a partir de tal grupo, tais como anti-utopia, contra-
of noble memory." "Is she buried there?" asks the stranger dreamily.
"Buried there! Ah, no!" replies the man almost indignantly. "I thought ali utopia e distopia.
lhe worid knew where Gloria of Ravensdale sleeps. There is a beautiful
grave over1ooking lhe Atlantic Ocean, on the shores of Glennig Bay. li
is there where Gloria sleeps, by the side of her husband Evelyn , lhe
good Duke of Ravensdale. li was her wish, and her wish wlth the nalion
Podemos encontrar o início de tais ideias na obra O alimento dos Deuses
(1923), de H. G. Wells, na qual somos apresentados a dois cientistas que
% ?_ \
"y iJf!_
was law. Every year the grave is resorted to by thousands, who lay
upon lt their tributes of lovely flowers• (DIXIE, 1890, p. 345). descobriram uma fórmula que poderia fazer que qualquer indivíduo crescesse,
f·
eliminando alguns problemas da sociedad'- como/or exempl~ a fome. Porém,
1
Cujo título original é l'an 2440. Rlve s'il emfutjamais. decorrente de uma grande falha em um de seus experimentos, animais como
' Obra raríssima disponível digltalizada por lntwmet Archlvt no aegutnte endereço:
https:J/archive .org/detai ls/2894orTheFossilMa n
galinhas e vespas se tornaram gigantes e iniciam um' ataque a vários vilarejos,
' Obra disponivel digltalizada por Internet Arr:hivt no seguinte endereço:
htt ://archive.or details/ lorianaorrevolu Odixi
• Traduçio:1999. uma cena ador4ivel em que eaee bailo olha para baixo - uma cena de aldeias pacíficas e campos gerando um conturbado cenário governado pelo temor dos gigantes. Além disso,
bem cultivados, uma cena de cidades movimentadas e trabalhadores felizes, uma cena de paz e prosperidade, conforto
e satisla~o. que apenas um Governo justo poderia produzir e manter. O bailo ntj pauando por Londres, uma Londres a obra realiza a crítica acerca do conformismo dessa situação adversa por
bastante aNerada em reia~o á Londres de 1000. De alguma forma, apresenta um aspecto campestre, poill cada rua tem
sua dupla fileira de árvores frondosas, e jardins e parques abundam a cada pasto. Eeta lorâes, 10 contrjrlo de seu grande parte da população.
antecessor, nto tem fumaça, nem se orgulha de quadras sujas e becos imoodos como I Londres de 1900. Toda casa,
grande e pequeno, tem o aspecto de limpeza e conforto, poill pobreza e millér1a alo coisas nlo é maill conhecida. Algo
estranho no bailo olha com interesse para esta cena. Seu olhar, vagando pela poderose cidade, é preso por duas
estátuas douradas reluzentes que coroam um edifício rnonetruooo, eobre cuja tampa de painéill brHhantes o sol eetá
brilhando intensamente. "Ellle é o Salio da LiberdadeT ele pergunta ao seu guia. ·sim· , reaponde a peuoa abordada,
·o mesmo que foi c:tlado há um léculo pela grande duquesa de Rave,_le, de nobre memória". "Eia está enterrada láT margens da Bala Gltnnig. É lá onde Gloria dorme, 10 lado de seu mando Evelyn, o bom duque de Ravensdale. Era seu
pergunta o estranho eonhldoramente. "Enterrado ili Ah, nlor responde o homem quase Indignado. • Pensei que o -jo. e seu desejo com a nação era lei. Todos os anos, a sepultura é recorrida por milhares, que depositam nela suas
homenagens de lindas flores. ·
mundo inteiro eoubesae onde Gloria de Ravensdale dorme. Há uma bela cova com vleta para o Oceano Atilntlco, nas
~; .
~e, 'I
Eutópos_e que o socialismo, por surgir de uma revolução integral,
tra importantíssima obra que dialoga com tal tendência é a famosa pudesse tersído visto por muitos como utopia, apesar de Marx e
19~4 (1949), de George Orwell. Romance narrado em terceira pessoa pelo Engels. O fundamental, porém, é que em qualquer desses sentidos -
ruptura completa, desenvoMmen1o do que há de melhor numa
protagonista Winston."1l0S" apresenta'~ sociedade oprimida pelo regime ociedade existente - só pode haver utopia quando se considera
I ,,
totalitário do Grande Irmão, cujo slogan é O Grande lrm/10 está de olho em vocé:
1I
L¼-
possível uma sociedade totalmente nova e cuja diferença a.faz ser
t
~ bsolutamente outra (CHAUI, 2016, p. 32).
}!
s \ encontradas no grupo utopia contemporânea de Hubner.
Representação imaginada de uma sociedade que se opõe à existente
a) pela organização outra da sociedade tomada como um todo; b) pela
alteridade das instituições e das relações que .compõem a sociedade
como um todo; e) pelos modos outros segundo os quais o cotidiano é
~>:/ Na quarta, Chauí demonstra que a utopia é radical, pois procura a
liberdade e a felicidade do indivíduo no meio público, graças à reconciliação de
vivido. Essa representação, menos ou mais elaborada nos detalhes,
pode ser encarada como uma das possibilidades da sociedade real e alguns importantes elementos, como exemplo do homem com a natureza, da
'u, ~eva à valorização positiva ou negativa desta sociedade (BACZKO, o,J .
,~ 978, p. 405 apud CHAUI, 2016, p. 31). tríade entre indivíduo, sociedade e Estado, e flá' busca dos outros dois valores
?
,(),v ~ ' presentes no ideal presente na Revolução ~rancesa, ·sendo estes a fraternidade
Baseado em suas palavras, o autor conclui que como forma de alcançar e a igualdade. !~ ·
a perfeição de um lugar imagético;/eve haver de fato uma ruptura com a
sociedade existente em três diferentes níveis, levando à valorização dos
I' 7. A quinta característica é que~constituída pela ideia de imaginação
/./ j
social, em que há combinação entre irrealismo, demarcado pela característica
aspectos positivos aos negativos.
~Jy· ~sibilidade pública, com o realismo, revelando-;;-,;;inimos detalhes da nova
Conforme observado em todas as obras citadas anteriormente, podemos /jÍ f sociedade, resultando assim uma transparência social fundamental, servindo <
concluir que existiram casos em que a sociedade recriada a partir da utopia foi r como base para essa nova sociedade. ~) '~
baseada na negação da sociedade atual, enquanto outras conseguiram se
projetar em um tempo futuro. Nesse segundo caso, Marilena Chauí ressalta que
Por fim, a utopia é um~exercido pela imaginação e não pela ação~
Tal discurso pode ultrapassar as barreiras literárias, como já observamos no
Y
utopia é construída da negação do outro:
projeto arquitetónico da cidade perfeita de Hipodamos. A autora ainda ressalta
que tal discurso ' pode inspirar ações ou uma utopia praticada, que assume o conteúdos isolados do que à estrutura global de pensamento,
encoblindo modos falsos de pensamento e expondo mentiras
risco da história, mas com a fi~dade de alcançar o fim da história ou do tempo (MANNHEIM, 1972, p. 84-85).
e atingir a perenidade' (2016,p. Y
o{Y, '-l/ Assim , conseguimos evidenciar que tal ideologia está voltada mais a um
A partir das vánas definições em nosso estudo acerca do conceito de \f"'
11;) J. '{ pensamento individualista do que um coletivista, podendo adquirir como
l
utopia, devemos progredir explanando uma importante relação entre ideologia e
-i(
f,J' potenciais produtos pensamentos falsos e mentirosos.
~ a i s ideias possuem similaridades e divergências. Contudo, devemos
em nossos leitores. r? I
prosseguir pa_ra a próxima seção a fim de explicitá-las para que não haja dú~
.,,./ if · Em contrapartida, encontramos na concepção de ideologia total a ideia de
não nos referirmos "a casos isolados de conteúdo de pensamento, mas a modos (
de experiência e interpretação amplamente diferentes e a sistemas de 'f
./
·r,;~ ,/
pensamento fundamentalmente divergentes" (MANNHEIM, 1972, p. 83), ou seja, l
v-?
1.2 - Ideologia e Utopia: similaridades e divergências não se leva em conta apenas o pensamento individual, e sim pensamentos
Em busca de expressar tais diferenças, recorremos aos estudos do divergentes coletivos de um determinado grupo.
f:_r,-,{ j11visto que o autor foi vivenciou dois importantes _acontecimentos históricos: a Lf- v
(1929). É importante atentarmos ao contexto social na produção de sua ideia, total? Para isso é simples. Historicamente, podemos observar inúmeros fatos em
0 ~½;
I ,1/~
• .1
Ambos os conceitos são explicados pelo autor como motivações coletivas
- conscientes, as quais determinam as ações e pensamentos dos indivíduos em}b- S
dada sociedade, além de acreditar que "servem para ocultar- em duas direções \
à parte" (Ibidem , p. 91).
\ classif icá-lo como.menti~os~ ndoJal ideia, o_aJ,Jtor compleme~ta f· A fim de complementar tal pensamento de Mannheim, Marilena Chauí •
que: cita-o em sua obra diferindo-o também ao conceito de ideologia: ~' ;v»
Cada individuo participa apenas em detenninados fragmentos deste Utopia é a negação do tópos da classe dominante ou uma visão global
sistema de pensamento, cuja totalidade não é de fonna alguma a da sociedade que se opõe à da classe dominante; é uma elaboração
slmples soma destas experiências Individuais fragmentálias. Sendo da classe hlstolicamente ascendente e expressão de seus anseios
uma totalidade, o sistema de pensamento é Integrado profundos. Em contrapartida, ideologia é o sistema global de
sistematicamente, e não é um mero ajuntamento causal de (_ representações e valores da classe dominante, que defonnam e
expeliências fragmentálias dos membros isolados de um grupo. ·'/° mistificam a realidade social. Imobilizando a consciência de classe.
Segue-se. assim. que somente se pode considerar o individuo como 1> Dessa maneira, a utopia _n~C> é propliamente um discurso, mas um
[;~J+~, ~rr ~,
portador de uma ideologia, na medida em que lidamos com aquela \
concepçAo de ideologia que, por definição, se prende mais aos
t,~ .
>n''-" ~ /
conjunto de práticas e de movimentos sociais contestadores da Para iniciarmos a discussão teórica acerca do tema, encontramos no
sociedade presente no seu todo (2016, p. 4-4).
início do século XX o estudo do sociólogo polonês Jerzy Szachim. O autor
explana sobre o conceito de distopia, diferindo-o aos sonhos produzidos pela
Dessa forma, podemos chegar à conclusão de que há uma modificação utopia:
de sentidos sobre a ideia de utopia com o passar dos séculos. Encontramos (...] lembremos a verdade banal de que os Ideais humanos são
primeiramente na noção fundamental de Thomas More, em que há prevalência extremamente heterogéneos. o que para um parece ser a salvação é
para outro pura perdição. O que atrai a uns, repele a outros. Como
do pensamento em busca de um lugar ideal. Mais adiante, notamos o papel da notou Margaret Mead, ·o sonho de um Individuo é pesadelo de outro".
Os sonhos da humanidade sobre a Ilha feliz não são - como Já tivemos
utopia como atuante, constituída pelo conjunto de práticas que contestam o ocasião de dizer - sonhos sobre uma e a mesma Utopia (SZACHIM ,
1972, p. 112).
presente inserido does~ '.
~}(
( Tal ~ erístª'9cmeça a sa'fumum em obras do século XX, nas quais Percebemos na presente fala de Szachim a ideia de heterogeneidade de
os autores retratam lugares produzidos pelos regimes totalitários. Aquele sonho pensamentos, fato este totalmente ignorado nas construções utópicas, uma vez
e idealização de um governo pacífico e sociedade perfeita proposta pela utopia.:,_ que o modelo de lugar ideal não levaria em conta as divergências de opiniões de
ti
começa a se transformar em pesadelo, obtendo como resultado o medo de um seus habitantes. Seguindo a mesma premissa, o filósofo lsaiah Berlin em sua
futuro em que tal regime continuou a governar. O sonho está para o pesadel~ obra Umites da Utopia: Capítulos da História das Ideias (1991 ), discorre sobre o
~;,~!;
assim como a utopia está para a distopia, conceito este que será debatido em termo de heterogeneidade voltado ao âmbito social. O que para a utopia é a
7
nossa próxima seção. busca do lugar ideal baseado em um modelo político padronizado, para a
distopia é contradição deste local, despertando no indivíduo um desconforto:
~r
. suma, o conceito significa ' lugar ruim" e possui como sinónimos, antiutopia,
h"''y/ >Y'r1
.)r-.1 •
utopia negativa e cacotopia. O termo é citado pela primeira vez no ano de 1868 Por estarem presentes em lados opostos da mesma moeda, as distopias~ ~ . ,
em um discurso do Parlamento Britânico proferido por Gregg Webger e John 'expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem moderno J;O'::>
SWart Mill, = q"8 o ,m,_,. =• ••li" dOicir assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança e
esperança do homem pós-medieval' (FROMM, 2009, p. 269). Além disso,
f
. ..,
'
.
Szachim pontua que utopia e distopia basicamente se contrastam em dois
grandes aspectos:
;;r4~~~?_
"J.()%
Como observado nas palavras de·Skopura, os tra~~roduz1dos pelos
utopistas e distopistas tendem a imaginar tais transformações tanto
Nas utopias positivas contrasta-se a sociedade ideal, concebida mais positivamente quanto negativamente:
ou menos em detalhe, com a sociedade mé que é apreendida em geral
em termos bastante surnérios; com as utopias negativas é o inverso O ato de imaginar transfonnações da realidade com vistas a criar-se
que ocorre. (1972, p. 119). uma nova e melhor, talvez, perfeita realidade, é próprio do pensamento
utópico; bem como a imaginação de uma transfonnação que tenda
para a deterioração e a imperfeição é caracterlstico do pensamento
distópico. Assim, pensar em tennos de utopia e distopia pode auxiliar
Além da característica citada, tal pensamento pode ser considerado no trabalho das imagens, de modo a esboçar a existência ou
inexistência de uma utopia ou distopia cientifica. (SKORUPA, 2002,
i> {eµ,v ~- 1
também "coetãneo e fruto não só dessa nova consciência da individualidade, p.180) \
mas também da biopolítica que se toma aos poucos, desde a Revolução
e,yJJ µ ~
Francesa, o centro da política." (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 309}, ou seja, ao
Tais imagens da realidade em deterioração começam a serem recriadas
defrontarmos com o contexto histórico em questão, deparamos com o avanço da
a partir da segunda década, no momento em que obras, como Nós (1924), de
tecnologia proveniente das revoluções industriais europeias e o nascimento das ~, Yevgeny Zamiatin, Admirável Mundo Novo (1932}, de Aldous Huxley e 1984
ciências, sobretudo a psicologia baseada na psicanálise freudiana, a biologia
( 1949}, de George Orwell começaram a se destacarem por sua construção crítica
baseada no darwinismo e a sociologia baseada no materialismo histórico
1,
ao pensamento homogéneo da utopia, conforme observado nas palavras do
marxista.
autor Berlin:
i
Tais mudanças científicas produziram reflexos em suas sociedades.
Dai o protesto - e as antiutopias - de Aldous Huxtey, Orwell ou
'l Modelos governamentais ascendidos após a Primeira Grande G_uerra Mundial, Zamiatin (na Rússia do inicio da década de 1920), que pintam um
J/i
quadro horripilante de uma sociedade sem atmos em que as diferenças
tais como nazismo de Adolf Hitler, fascismo de Benedito Mussoline e o entre os seres humanos são, tanto quanto possível, eliminadas, ou pelo
menos reduzidas, e o padrão multicolorido dos vários temperamentos,
comunismo de Josef Stalin despertaram na literatura distópica o papel de inclinações e ideais humanos - em suma, o próprio fluxo da vida - é
91
reavaliação de tal sociedade, expondo ao extremo os seus malefícios providos
' iJ. brutalmente reduzido à unifonnidade, aprisionado em uma camisa de
força social e polltica que fere e estropia, tenninando por esmagar os
desses governos totalitários. A fim de buscar uma melhor compreensão estética homens em nome de uma teoria monlstica, do sonho de uma ordem
perfeita e estével (BERLIN, 1991 , p. 48-49).
e política do papel da literatura nesse contexto, é importante ressaltar que a
distopia:
Ê notável a nós leitores ~que há em tais obras a construção de um
Não é a subsunção do particular ao geral, do indivíduo ao todo, mas - (Y .
sim o movimento constante de choque e negação desse todo. O todo modelo de sociedade idealizada homogénea sob ótica utópica-autoritária. Por
é falso. [...]. Este olhar para o singular resume a revolução romantica:
t.J
ao salvar o individual, ela deu um tiro na tradição das utopias que outro lado, também podemos inferir o carácter distópico em tais construções, ao
sempre estipularam um triunfo do todo, de um modelo da razão
observam0s que os indivíduos i n s e r i d o ~são moldados no conceito
universal, sobre o indivíduo. [... ]. Esta reviravolta implicou, no campo
da utopia, o abandono e a crítica radical dos grandes modelos a serem de igualdade e aqueles que não se enquadram e desrespeitam tal modelo,
imitados. (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 319).
sofrem severas punições. Notamos a cena de uma dessas punições presente no
início do romance 1984:
Tomou-se fato que tais grandes mudanças presentes no século passado
A coisa que estava prestes a fazer era começar um diário. Não que
transformaram não só a realidade em questão, mas também a imaginação do isso fosse ilegal (nada era ilegal, visto que jé não existiam leis), mas se
o fato fosse descoberto era praticamente certo que o punissem com a
artista. morte ou com pelo menos vinte e cinco anos de prisão em algum
campo de trabalhos forçados (ORWELL, 2009, p. 14).
Mu1·tas vezes, os proJetos
. . ános
hter . d'1stop1cos
. . ~ .
são re 1aciona
.
. "1/...M
dos tam bem
.
--~
Todavia, outra característica comum que podemos destacar em obras às ficções cientificas, uma vez que em suas composições notamos o incessante
dist6picas é uma falsa noção de felicidade apresentada por grande parte da avanço da tecnologia, transformando-a em material de dominação d~
população que viveif tal ~em modelo governamental auto~ ? sociedades. Além dessa, possuem funções que satirizam e avisam ao leitor que
é,mudanças absurdas sociais são produzidas pela minoria que detêm o poder,
Com o avançar das décadas, foi se tornando mais frequente
igualmente como ocorre em um modelo autoritário.
encontrarmos produções artísticas que dialogam com conceito distópico, vindo
por água a baixo aquela ideia ultrapassada de sociedade perfeita. Utilizando (\ .. Baseado nessas ideias, as temáticas distópicas não são exclusivas ao
como base a vigência de um governo autoritário, encontramos outros inúmeros 'u.,,?i gênero literário. Podemos encontrá-las também em filmes, jogos e animes, não
temas que norteiam esse panorama. ~I...,.. se limitando apenas ao contexto totalitarista. Além deste, a distopia pode ser
corporativista, em que encontramos grandes empresas mundiais como
Encontramos como primeira característica a temática da alienação em
/1~ massa provida pelos discursos governam~ntais. Em seguida, .destacamos a
governantes.
r r}I
í\ . / / ineficiência do uso benéfico provido pelo avanço da tecnologia nessas . Exemplo que assume tal premissa é a produção cinematográfica
sociedades, que são encaradas como causadoras de medo e violência àqueles / Robocop5 (1980). A obra narra a história de Alex Murphy, um policial vítima da
vi/
, que não obedecem a ordem. Deste modo, podemos acrescentar tais temáticas ' decadente e violenta cidade de Detroit que, ao ser ferido fatalmente em um
à distopia literária. atentado, é utilizado como cobaia de um experimento para a criação de um novo
protótipo da corporação Omni Consume, Products (OCP), especializada em
(... ] justamente por desenvolver um projeto llterário cuja base de
representação aciona mecanismos de poder material e simbólico que tecnologia robótica bélica. Consequência desse experimento, nasce o ciborgue
alocam os sujeitos humanos em relações de extrema negatividade,
protagonista Robocop, programado para combater os inúmeros crimes que
,-,
interpretados ·ao rés do chão", diferenciando-se das narrativas
utópicas naquilo que estas têm de apresentação de um
mundo/sociedade melhor. a distopia literária confere às suas assolam a cidade. A trama é complementada por seu tema distópico pelas
personagens um lugar num mundo "piorado" em relação à realidade
aparente, sem saídas ou utopias positivas, sem possibilidades de
diversas denúncias de corrupção e ganância por parte das grandes
sonhos para o dia seguinte, sem respostas para as angústias cooperações.
inaugurais daqueles que passam a experienciar o limiar de uma
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sociedade tecnocrata, injusta com a cultura e com a natureza,
priorizando princípios isolados de sobrevivência em detrimento do Já no mundo dos jogos virtuais, encontramos diversos títulos que
apoio coletivo à manutenção dos membros sociais, estratégias essas
desenvolvidas ou postas em prática por governos totalltérios e conversam com a premissa distópica. Alguns que podemos destacar são
ditatoriais (ERICKSON, 2006, p. 19).
Bioschok (2007), produzido pela 21<, Mass Effect (2007), publicado pela Eletronic
Arts e Fal/out (1997), produzido pela extinta Black lsle Studio. Em um cenário
Cabe ressaltar que as distopias buscam apontar uma projeção temporal pós-apocalíptico, Fallout8 proporciona ao jogador um mundo devastado
em um futuro caótico governado pelo autoritarismo, baseado nos modelos consequentemente de uma guerra nuclear entre Estados Unidos da América e
ditatoriais citados anteriormente, como forma de criticar tais sociedades e suas China. Ambientado na costa oeste norte-americana no ano de 2077, a população
perceptíveis violências.@ ideia é produzida na literatura e possui como sobrevivente vive em locais chamados vaults, uma espécie de abrigo nuclear
finalidade apontar o máximo de problemas que poderiam surgir com a construído pelo governo apenas para aqueles que possuíam boa saúde. Seu
continuidade dessas ditaturas.
gira em tomo da ideia de pessoas que possuem superpoderes, em destaque a presente em outros contextos sociais e ideológicos. Estes podem ser sobretudo
psicocinese. Seu cárter distópico é abordado a partir das relações entre as tecnológico, ambiental, anárquico, generalizado, cibernético, cyberpunk,
personagens, com problemas sociais e políticos. Não há uma crítica filosófica e consumista, pandêmico, moral, religioso, financeiro, cómico, alienígena e entre
profunda na obra , mas sim uma criticidade acerca da alienação de jovens, a outros.
corrupção e ineficiência do governo militar japonês e do medo com um novo Independente de seu cenário, encontramos na literatura distópica a
contato nuclear, dolorosa cicatriz deixada no fim da Segunda Mundial.
nosso}~·/1.j
incessante busca de resposta dos problemas que p e r c o r r e ~
No âmbito nacional, encontramos a temática distópica com grande Nascida em resposta ao modelo utopista, a distopia prova que continua viva em n
presença em nossa atualidade com diversas publicações literárias e nossos dias a i ~corno género crítico imaginado baseado em
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cinematográficas. Destacamos o filme Bacurau (2019), de Kleber Mendonça pensamento atua~otivo foi o que se tomou fundamental para a constituição ,-~ /
Filho, vencedor dos prémios de melhor filme nos festivais de Lima e Munique, de nosso trabalho e as escolhas dos dois romances a serem analisados.
além de receber o Prémio do Júri, no festival de Cannes. Seu cenário se passa Em vista disso, devemos prosseguir nossa fundamentação teórica para
em um pequeno povoado localizado no sertão, onde problemas como falta de mais um passo, no qual encontraremos na pós-utopia o conceito para
água e de incentivo público são comuns. A história se inicia com o falecimento problematização de nossa noção de realidade presente.
da matriarca aos noventa e quatro anos de idade. Após tal acontecimento, os
moradores começam a perceber que sua comunidade sumiu dos mapas
geográficos e que drenes começam a sobrevoar o vilarejo. Forças inimigas 1.4 - Pós-utopia e Realidade: caminhos comuns
fortemente armadas começam o ataque, a fim de dizimar o restante da
população. Temas corno a união à adversidade pela população de Bacurau, os
preconceitos e violência tomam tal obra uma das melhores críticas do cenário
brasileiro da atualidade.