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A VIDA

Uma breve e despretensiosa reflexão sobre a vida deter-nos-ia indeterminadamente, na medida em que se
trata de um conceito complexo que pode referir-se a processos inerentes aos seres vivos, à noção de
temporalidade aplicada a tudo o que acontece entre o princípio e o fim histórico de um organismo, à
condição ou à razão pela qual vive um ser vivo.
Com efeito, apesar de se tratar de realidades passíveis de serem descritas desapaixonadamente, o
surgimento da vida na Terra, a sua complexificação, a evolução das espécies, a biodiversidade, os ciclos
naturais, o nascimento de um ser humano ou, simplesmente, a fotossíntese, evocam o milagre da vida, algo
torrencial ou poético que dificilmente nos deixa indiferentes.
Quando falamos da vida humana, numa abordagem metafísica ou através duma observação que se detenha
em aspectos particulares e concretos, bem delimitados e devidamente contextualizados, a questão
redimensiona-se e adquire uma complexidade incontornável. A vida humana, enquanto fenómeno natural e
acontecimento histórico, nas dimensões social, psicológica ou cultural, levanta tantos problemas filosóficos
que poderíamos afirmar que o mais incompreensível da vida é que ela seja compreensível.

UM ACONTECIMENTO IMPROVÁVEL
No outro dia, numa situação quase imprópria e de um modo quase inoportuno, alguém me confessava
os seus infortúnios, as suas frustrações e fracassos: inanidades, inconsequências e algumas
enfermidades. Estava com pressa e sem interesse na narrativa monótona de um coleccionador de
derrotas. Enquanto se queixava de tudo, de si próprio e dos outros, da sua circunstância existencial ou de
uma conspiração cósmica contra si desde o dia em que nasceu, deixei de ouvi-lo naquele tom
monocórdico de quem se prepara para falar durante horas seguidas. Pensei para mim que os pais
daquela pessoa provavelmente sentiram amor e desejo um pelo outro; num momento pouco
determinante para a história do universo o seu pai ejaculou no interior da sua mãe entre 200 e 400
milhões de espermatozóides… talvez mais. Ele continuava a falar e eu, sem atenção ao que dizia,
prossegui o meu raciocínio: o espermatozóide que fecundou o óvulo venceu obstáculos extraordinários e
a concorrência de milhões de outros espermatozóides. Eu sei pouco acerca de probabilidades, mas
naquele instante pareceu-me que a existência daquele indivíduo era, logo à partida, muito pouco
provável, na medida em que resultou da vitória de um espermatozóide contra uns 300 milhões de
concorrentes. Ele continuava a falar e eu pensei que o universo tem mais ou menos 15 mil milhões de
anos; a Terra existe há cerca de 4,5 mil milhões de anos; mil milhões de anos depois surgiram as
primeiras formas de vida; há apenas 2,5 milhões de anos apareceram os primeiros hominídeos. Depois
pensei que ele estava a falar na medida em que a laringe, que corresponde à parte superior da traqueia,
forma uma caixa vocal composta por várias cartilagens; as suas paredes laterais possuem de um e do
outro lado músculos membranosos elásticos, as cordas vocais, que actuam abrindo e fechando a glote,
permitindo assim a passagem de lufadas de ar que provocam vibrações acústicas; os sons produzidos
pelo funcionamento das cordas vocais são amplificados ao nível da faringe, das fossas nasais e da
cavidade bucal, que actuam como se fossem uma série de caixas de ressonância ligadas entre si; são em
seguida moduladas pela acção da língua e dos lábios. Este processo, assim descrito, não parece
corresponder a um passo particularmente significativo no contexto da evolução humana; no entanto, o
desenvolvimento da linguagem é considerado o último grande passo da hominização; ou seja, desde o
momento em que pôde falar, há cerca de 150 mil anos, o Homo sapiens sapiens tornou-se um ser
humano completo. Depois lembrei-me que alguém escrevera que a extinção é a regra, enquanto que a
evolução é a excepção. Visto isto, percebi que precisava de uma boa desculpa para sair dali. Estava a
incomodar-me a ideia de que um indivíduo que se tenha em tão pouca consideração, possa partilhar
uma história cósmica de 15 mil milhões de anos, habite um planeta com 4,5 mil milhões de anos,
transporte consigo cerca de 2,5 milhões de anos de evolução e tenha visto a luz do sol por estes dias, em
que os egípcios construíram pirâmides e Dostoiévski escreveu os Cadernos do Subterrâneo; estava a
incomodar-me a ideia de que um indivíduo se diminuísse desta maneira, depois de uma vitória
estrondosa contra uns 300 milhões de concorrentes; aquela pessoa, ao narrar obsessivamente as suas
pequenas derrotas e os seus insignificantes fracassos, estava a diminuir-se ao ponto de não conseguir
reivindicar algo melhor para si, ao ponto de não conseguir contrariar a única verdadeira fatalidade: a de
não reconhecer que existir representa uma bênção incomensurável, um milagre, um acontecimento
muito improvável. Repeti para mim mesmo: creio que existir é um acontecimento muito improvável.
Depois lembrei-me que Einstein dizia que a coisa mais incompreensível do universo é que ele seja
compreensível; e pensei que a coisa mais incompreensível da vida é que ela seja compreensível.
Interrompi delicadamente o discurso monocórdico com o pretexto de que tinha mesmo que ir. Estou
normalmente disposto a discutir caso-a-caso; mas não neste caso, não me apetece.

Guia de reflexão / proposta de actividade


Individualmente ou em grupo, depois uma leitura atenta deste texto, identifica o problema e a tese do
autor, e responde às questões que se seguem:
1. O que incomoda o autor no que se refere à falta de auto-estima do seu interlocutor?
2. O que significa afirmar, neste contexto, que existir é um acontecimento muito improvável?
3. Com que argumentos o autor realça o valor da vida humana?
4. Tendo em consideração a afirmação de Einstein, que diz que a coisa mais incompreensível do
universo é que ele seja compreensível, comenta a expressão: “a coisa mais incompreensível da vida é
que ela seja compreensível”.

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