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V. I.

LENIN

QUE FAZER?
Problemas candentes do nosso movimento
QUE FAZER?
PROBLEMAS CANDENTES
DO NOSSO MOVIMENTO
Títulos desta coleção

Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos


Karl Marx

Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução,


Karl Marx

Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. De um


prussiano, Karl Marx

Miséria da filosofia – resposta à filosofia da miséria do sr. Proudhon,


Karl Marx

Para a questão judaica, Karl Marx

Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, Karl Marx

A origem da família, da propriedade privada e do Estado, F. Engels

A ideologia alemã, K. Marx / F. Engels

Manifesto do Partido Comunista, Karl Marx / F. Engels

Esquerdismo: doença infantil do comunismo, V. I. Lenin

Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento, V. I. Lenin

O Estado e a revolução, V. I. Lenin

Imperialismo, estágio superior do capitalismo, V. I. Lenin

As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, V. I. Lenin

A nova mulher e a moral sexual, Alexandra Kolontai

O papel do indivíduo na História, G. V. Plekhanov

Reforma ou revolução?, Rosa Luxemburgo

A revolução permanente, Leon Trotsky

Sobre a prática & Sobre a contradição, Mao Tse-tung


V. I. Lenin

QUE FAZER?
PROBLEMAS CANDENTES
DO NOSSO MOVIMENTO

2ª edição

EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
São Paulo - 2015
Copyright © 2010, by Editora Expressão Popular

Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho


Tradução: Marcelo Braz
Título espanhol: Que hacer? Problemas candentes de nuestro movimiento
Projeto gráfico e capa e diagramação: Zap Design
Arte da capa: II Congresso do Partido Operário Social-democrata Russo.
Y. Vinogradov
Impressão e acabamento: Paym

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Lenin, Vladimir Ilitch, 1870-1924
L566q Que fazer? Problemas candentes de nosso movimento /
V. I. Lenin ; tradução Marcelo Braz. --2.ed. – São Paulo :
Expressão Popular, 2015.
280 p.

Título original: Que hacer? Problemas candentes de


nuestro movimiento.
Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br
ISBN 978-85-7743-134-2

1. Socialismo - Rússia. I. Braz, Marcelo, trad. II. Título.

CDD 21.ed. 320.5310947


Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

2ª edição: abril de 2015


4ª reimpressão: agosto de 2019

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


Rua Abolição, 201 – Bela Vista
CEP 01319-010 – São Paulo – SP
Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500
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SUMÁRIO

NOTA DOS EDITORES.............................................................7

APRESENTAÇÃO......................................................................9
O lugar de Lenin no movimento socialista e comunista mundial.......10
O permanente exílio de Lenin e o “lugar” de Que Fazer?................... 14
Que Fazer? – estrutura, objetivos e aspectos centrais..........................24
O partido em Que Fazer?...................................................................27

QUE FAZER? PROBLEMAS CANDENTES


DO NOSSO MOVIMENTO

PREFÁCIO..............................................................................................41

I. DOGMATISMO E “LIBERDADE DE CRÍTICA”............................47


Que significa a “liberdade de crítica”..................................................47
Os novos defensores da “liberdade de crítica”.....................................52
A crítica na Rússia..............................................................................60
Engels e a importância da luta teórica................................................68

II. A ESPONTANEIDADE DAS MASSAS


E A CONSCIÊNCIA DA SOCIAL-DEMOCRACIA.............................77
Início do ascenso espontâneo.............................................................78
Culto da espontaneidade. O Rabotchaia Myls.....................................84
O “Grupo de Autoemancipação” e o “Rabotcheie Dielo” ....................94
III. POLÍTICA TRADE-UNIONISTA
E POLÍTICA SOCIAL-DEMOCRATA...............................................107
A agitação política e sua restrição pelos economistas........................108
Como Martinov aprofundou Plekhanov..........................................120
As denúncias políticas e a “educação da atividade revolucionária”....124
O que há de comum entre o economismo e o terrorismo?................130
A classe operária como combatente de vanguarda pela democracia..134
Mais uma vez “caluniadores”, mais uma vez “mistificadores”........... 152

IV. OS MÉTODOS ARTESANAIS DOS “ECONOMISTAS”


E A ORGANIZAÇÃO DOS REVOLUCIONÁRIOS......................... 157
O que é o trabalho artesanal?........................................................... 158
O trabalho artesanal e o “economismo”........................................... 162
A organização dos operários e a organização dos revolucionários .... 170
Relevância do trabalho de organização ............................................188
A organização “conspirativa” e o “democratismo”............................ 195
O trabalho em escala local e nacional .............................................205

V. “PLANO” DE UM JORNAL POLÍTICO


PARA TODA A RÚSSIA....................................................................... 219
Quem se ofendeu com o artigo “Por onde começar”?.......................220
Um jornal pode ser um organizador coletivo?..................................226
De que tipo de organização necessitamos?.......................................240

CONCLUSÃO.......................................................................................249

SUPLEMENTO.................................................................................... 253
Tentativa de fundir o Iskra com o “Rabotcheie Dielo”....................... 253

EMENDA A QUE FAZER?....................................................................263

ANEXO

APRESENTAÇÃO.................................................................................267
Florestan Fernandes (1978)
NOTA DOS EDITORES

Este texto constitui a íntegra da obra Que fazer? Problemas


candentes do nosso movimento, escrita por Lenin entre o outono
de 1901 e fevereiro de 1902 e publicada em março de 1902, em
Stuttgart. Entre 1902-1903, o livro foi amplamente difundido
no âmbito das organizações social-democratas da Rússia. Foi
reeditado por Lenin, com algumas alterações, na compilação
Em doze anos (em novembro de 1907, apesar de na capa e no
frontispício vir indicado o ano de 1908). A presente edição está
em conformidade com o texto de 1902, cotejado com a edição
de 1907.
A presente tradução de Marcelo Braz – Professor Adjunto da
Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro – tomou por base a versão castelhana Que hacer? Problemas
candentes de nuestro movimiento, in: V. I. Lenin, Obras Escogidas
en tres tomos. Moscú: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1, s.f.,
p. 123-290 e foi cotejada com a versão francesa, Que faire? Les
questions brûlantes de notre mouvement, in: V. I. Lénine, Oeuvres
choisies en trois volumes. Moscou: Éditions du Progrès, 1, 1971,
p. 111-260.
As notas de rodapé do próprio Lenin são reproduzidas sem
qualquer indicação especial; as acrescentadas pelo tradutor e
aquelas que são adaptações das notas elaboradas pelos editores das
fontes castelhana e francesa vêm entre colchetes.

9
Que fazer ? P r o b l eNmoats a cda on sd eEndti et so rdeos nosso movimento

Como apêndice dessa edição está a apresentação que Flores-


tan Fernandes fez à edição de 1978 de Que fazer? publicada pela
editora Hucitec.

Os editores

10
APRESENTAÇÃO

Marcelo Braz*

Esta nova tradução de Que Fazer? tem como um dos objetivos


principais a urgente recuperação dos textos clássicos da tradição
marxista. Esta iniciativa da Expressão Popular almeja difundir,
especialmente, aquelas obras cuja contribuição tenha sido decisiva
para momentos históricos específicos e que, além disso, tenham se
caracterizado por influenciar, em maior ou menor grau, processos
revolucionários em todas as partes do mundo. O que particulariza
esses textos já publicados1 é que eles atendem à tarefa irrenunciável
da formação política.
Se tal tarefa é imprescindível – e pode-se dizer que ela vem sendo
relativamente resolvida por inúmeros movimentos e organizações
sociais e grupos políticos, partidários ou não, por meio dos mais di-
versos materiais editoriais e jornalísticos (impressos e eletrônicos) –,
deve-se exclamar que ela, por si só, não basta! Lenin, numa passagem
tornada célebre de seu livro, chegou à seguinte formulação: “sem
teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”. A formação

*
Professor da ESS/UFRJ e da Escola Nacional Florestan Fernandes/ENFF. Autor, dentre
outros, de Partido e Revolução. 1848-1989 (São Paulo: Expressão Popular, 2011) e de,
em coautoria com José P. Netto, Economia Política: uma introdução crítica (São Paulo:
Cortez, 2013 - 9ª edição).
1
Alguns dos quais presentes na coletânea organizada por Ademar Bogo, acertadamente
intitulada Teoria da Organização Política: escritos de Engels, Marx, Lenin, Rosa, Mao
(São Paulo: Expressão Popular, 2005).

11
Apresentação

teórico-política é condição para a ação revolucionária; mas aquela só


tem efetividade quando, dialeticamente, materializa-se na prática
política. A vontade política torna-se vontade consciente quando o
conhecimento sobre a realidade, sobre as situações concretas se alia
à ação política, envolve as massas e adquire força material. Esse é,
seguramente, o aspecto central de Que Fazer?
O caráter prático-político que constitui um dos traços do
pensamento lenineano encontra na obra Que Fazer? Problemas
candentes do nosso movimento sua melhor expressão, o que não
reduz o revolucionário russo a um teórico da prática política. De
sua vasta obra, que abrange as problemáticas mais diversas – po-
lítica, economia, filosofia, história, cultura –, comparece em Que
Fazer? uma riqueza categorial possível àqueles que, como poucos,
dominavam amplamente o que havia disponível da teoria social
de Marx 2, dos teóricos marxistas russos e europeus ocidentais e
do pensamento social de sua época.

O lugar de Lenin no movimento


socialista e comunista mundial
Lenin (1870-1924) está entre os clássicos da tradição marxista
pela importância teórica de suas ideias e pelo destaque que logrou no

2
Como se sabe, parte importante da obra de Marx e de Engels tornou-se conhecida após
a morte de Lenin em 1924. Destacadamente: Os manuscritos econômico-filosóficos de 1844
(obra também conhecida por Manuscritos econômico-filosóficos de Paris) e A ideologia
alemã (com Engels), vieram à público somente em 1932. Deve-se lembrar que quando
Lenin preparava o Que Fazer?, entre 1901 e 1902, ainda não se conhecia o Livro IV
d’O capital, que só veio à luz entre 1905 e 1910 sob os cuidados de Karl Kautsky. Os
importantes e decisivos Grundrisse (“Elementos fundamentais para a crítica da Economia
Política. Rascunhos. 1857-1858”), cuja “Introdução” tem enorme destaque na estrutura
teórico-metodológica da teoria social marxiana, só foram integralmente publicizados
entre 1939 e 1941.
No entanto, já se conhecia o que se consagra como a estrutura essencial da obra máxima de
Marx: desde a edição e publicação por Engels do Livro III em 1894, estavam disponíveis
todos os volumes que compõem os três livros d’O capital. O Livro IV, que ganhou edição
mais cuidada somente nos anos de 1950, tornou-se mais conhecido como As teorias da
mais-valia, tratado como obra autônoma pela maior parte das publicações disponíveis.

12
Marcelo Braz

âmbito do movimento socialista internacional. O seu pensamento


assinala uma corrente própria no marxismo, como um movimento
teórico-político constitutivo de um verdadeiro leninismo. Como
herdeiro de uma tradição teórico-política privilegiada e tendo vi-
venciado intensamente como protagonista um momento histórico
riquíssimo, pôde não só atualizar as ideias de Marx e Engels, mas
também dar continuidade a elas introduzindo análises inovadoras
sobre questões, antes inéditas ou não plenamente desenvolvidas,
postas pelo desenvolvimento capitalista em seu estágio monopólico
e imperialista. Renovou teoricamente o debate sobre a revolução – e,
nela, a questão da organização política do proletariado, a sua relação
com o Estado –, acentuando a necessidade de criação de uma orga-
nização revolucionária disciplinada, coesa e preparada politicamente
para se assumir como a vanguarda do proletariado.
Foi o dirigente máximo da Revolução Russa de 1917, bem como
de sua afirmação nos anos posteriores de guerra civil. A criação da
Internacional Comunista em 1919 sob suas orientações e, a partir dela,
a criação dos partidos comunistas, foram fatores fundamentais para
toda a história das lutas do movimento operário mundial – história
que, seguramente, a partir de Lenin, modifica-se substantivamente,
tanto no plano teórico, quanto no prático-político. Pode-se dizer que
Lenin avançou e aperfeiçoou o comunismo moderno, adicionando
a ele uma concepção de instrumento (partido) para viabilizar a fase
de transição para a sociedade comunista.
Como ativo militante e dirigente revolucionário russo, Lenin
foi muito mais do que um agitador político. Tinha conhecimento
profundo da crítica da Economia Política marxiana, já demons-
trada em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, de 1899. Seu
domínio da obra de Marx e de Engels (dos materiais até então
disponíveis) fica evidente nos escritos sobre a teoria de Marx3 nos

3
Cf. “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo”, in: Três Fontes. São Paulo:
Editora Expressão Popular, 2004.

13
Apresentação

quais encontramos a análise sobre as bases do pensamento mar-


xiano, identificadas por ele nas ideias da filosofia clássica alemã
(Hegel), nas perspectivas teórico-políticas do socialismo utópico
francês (Saint-Simon e Fourier, além do inglês Owen) e, marca-
damente, da Economia Política clássica inglesa, sobremaneira de
Smith e Ricardo.
Com o caráter radicalmente teórico-prático do seu pensamento
– mais que qualquer outro pensador marxista –, Lenin colocou
suas ideias a serviço da revolução. Mais que isso: extraiu da rea-
lidade, como poucos, os elementos revolucionários da sua teoria.
Formulações clássicas, como a que identifica o marxismo como
“análise concreta de situações concretas” ou a que conecta a prática
política à produção de conhecimentos – “sem teoria revolucionária
não existe movimento revolucionário” –, são expressões do pensa-
mento crítico-dialético lenineano. Segundo Florestan Fernandes4,
Lenin “converte o marxismo em processo revolucionário real”
(Fernandes, p. 272, infra). A profunda articulação de suas ideias
às necessidades concretas da práxis política revolucionária, dentre
as quais situavam-se aquelas vinculadas ao plano imediato da luta
política, marcou muitos de seus escritos, especialmente aqueles
em que Lenin apresentava questões de natureza programática
ou aquelas em que combatia todo tipo de tendências, desde as
abertamente contrarrevolucionárias, até o chamado esquerdismo,
passando pelo reformismo ou pelas posições pequeno-burguesas.
Assim é que a forma de exposição de seus trabalhos aparece,
muitas vezes, como pequenas incursões teórico-políticas voltadas
diretamente às massas ou a outros dirigentes e teóricos: cartas,
notas, correspondências, comunicados políticos, pronunciamentos,
discursos etc. Em muitos deles, vemos um estilo irônico e mordaz
que impressiona pela crueza com que Lenin expõe suas ideias. Essa

4
No seu texto de “Apresentação” a Que Fazer? (São Paulo: Hucitec, 1978), oportunamente
republicado no anexo a esta edição.

14
Marcelo Braz

característica aparece no conjunto de sua obra, mas sobremaneira


nos textos dirigidos ao embate político-ideológico.
É preciso atentar para o fato de que o contexto com que Lenin
se defrontava – que envolveu todo o processo político pré e pós-
-Revolução de 1905; o processo revolucionário que culminou em
fevereiro e no outubro/novembro de 1917 na Rússia; o período
imediatamente posterior quando se abre uma longa guerra civil com
forte presença de forças contrarrevolucionárias, o cenário externo
com a I Guerra Mundial – o fazia vincular, a todo tempo, suas
análises teóricas e suas intervenções como dirigente revolucionário
às cambiantes necessidades políticas.
A obra de Lenin compreende uma vasta produção teórica
que abrange os diversos momentos da luta política revolucionária
frente às metamorfoses do desenvolvimento capitalista. Há um
conjunto de textos explicitamente políticos relacionados aos diver-
sos momentos da época histórica de lutas que viveu: a luta contra
os populistas reacionários, contra os reformistas de todo tipo, os
socialistas moderados, os radicalismos pequeno-burgueses, os es-
tratos camponeses mais conservadores, os terroristas, oportunistas,
obreiristas, anarquistas etc. Nos períodos imediatamente pré e
pós-revolução de 1905 e de 1917, encontramos esses escritos, que
têm enorme validade e demonstram o seu espírito prático-político,
suas preocupações com questões imediatamente práticas da luta
revolucionária, como assinalado acima.5
O teórico revolucionário russo publicou inúmeros textos articu-
lando incansavelmente suas atividades teóricas às tarefas práticas até o
fim de sua vida, em 1924. Dentre eles, destacam-se: O desenvolvimento
do capitalismo na Rússia: o processo de formação do mercado interno para
a grande indústria, de 1899; Que Fazer? Problemas candentes do nosso
movimento, de 1901-1902; Um passo a frente, dois passos atrás (a crise no
5
De que são exemplos textos como “As tarefas imediatas do poder soviético”, “Sobre a
fome” (Carta aos operários de Petrogrado) –, dentre outros artigos e discursos (Lenin,
V.I. Obras Escolhidas. t. 2; São Paulo: Alfa-Ômega, 1980).

15
Apresentação

nosso partido), de 1903; Duas táticas da social-democracia na revolução


democrática, de 1905; O imperialismo, fase superior do capitalismo, de
1916-1917; Teses de abril, sobre as tarefas do proletariado na presente
revolução, de 1917; O Estado e a Revolução. A doutrina do marxismo
sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução, escrito ainda em
1917, entre agosto e setembro, portanto no calor da revolução, publi-
cado em 1918; A revolução proletária e o renegado Kautsky, de 1918; A
doença infantil do esquerdismo no comunismo, de 1920.
Já no início da década de 1900 (especialmente após as experiências
de 1905-1907), Lenin passou a ser considerado uma das referências
do movimento revolucionário na Rússia, tornando-se também conhe-
cido no âmbito do movimento socialista europeu. Acumulava uma
década de lutas e experiências políticas contra o regime autocrático
dos tsares. As suas contribuições teórico-políticas já se destacavam no
âmbito da Segunda Internacional, tornando-o um dos seus principais
teóricos, mesmo considerando a densidade do movimento operário
europeu. Além de grande dirigente e formulador teórico, fora grande
organizador editorial: recorde-se a relevância que teve o Iskra (jornal
operário da Rússia) e a Zaria (revista científica).

O permanente exílio6 de Lenin e o “lugar” de Que Fazer?


Afinal, Lenin (e, nisso, ele ocupa posto rigorosamente similar
ao de Marx) raramente é tomado por seus leitores na inte-
gridade original da sua obra (...). A sua leitura é mediada por
leituras – um largo acúmulo de exegeses, análises, interpreta-
ções, reinterpretações e mistificações onde (...) há sabores para
todos os paladares.7
Ainda que vários estudiosos da tradição marxista e das ciências
sociais considerem Que Fazer? uma das principais obras de Lenin,

6
Tomei emprestada essa oportuna expressão do professor Ronaldo do Livramento
Coutinho que a vem utilizando em suas inúmeras intervenções políticas e acadêmicas.
7
Netto, J. P. “Lenin e a instrumentalidade do Estado”, apresentação para a edição brasileira
de O Estado e a Revolução. São Paulo: Global Editora, 1987.

16
Marcelo Braz

seu espírito essencialmente prático-político a relega à condição


de obra de menor peso teórico, voltada para polêmicas políticas
datadas historicamente, cujos conteúdos remontam ao quadro
político e social da Rússia do início do século XX. Isso se deve a
duas razões inteiramente diversas (e opostas), mas que serviram
ao mesmo objetivo: secundá-la no conjunto da tradição marxista
e, mais ainda, renegá-la como teoria no conjunto do pensamento
social moderno.
A primeira se encontra na “canonização” de Lenin, do partido
por ele idealizado e, por conseguinte, de sua obra. O marxismo-
-leninismo, tornado o marxismo oficial de Stalin, tratou de ossificar
as teorias de Lenin, especialmente aquelas voltadas para a prática
política. Se obras como Imperialismo: fase superior do capitalismo
e O Estado e a Revolução conseguiram escapar à canonização e à
ossificação, mantendo assim credibilidade teórica no âmbito da
diferenciada tradição marxista, uma vez que consideradas obras
essenciais no interior do movimento teórico marxista, o mesmo
não se pode dizer de Que Fazer? Esta foi exilada no âmbito do que
Perry Anderson denominou de “marxismo ocidental” que se dedi-
cava aos problemas de natureza teorico-filosófica, segregados pelo
marxismo oficial. Entre as poucas exceções, destaque-se Lukács
e, mais à frente, Togliatti8, que sempre articulavam seus estudos

8
É bastante conhecida a “autocrítica” (as Teses de Blum, apresentadas ao II Congresso
do Partido Comunista Húngaro) que Lukács elaborou – que saiu como Declaração de
Blum (1929) – para não ser expurgado do partido. Sobre a autocrítica escreveu, quase
cinco décadas depois: “A verdade é que eu estava completamente convencido do acerto
da minha proposta, mas também sabia – por exemplo, observando o destino de Karl
Korsch – que, naquela época, ser expulso do Partido significava a impossibilidade de
intervir ativamente na luta contra o fascismo emergente. Redigi aquela autocrítica como
‘bilhete de entrada’ na militância antifascista” (Lukács, 1992, p. 15-16, in: Netto, J. P.
[org.] Lukács. Sociologia. São Paulo: Ática. Grandes Cientistas Sociais, 20). Para além
dessa habilidosa autocrítica, o filósofo húngaro – e isso é o mais importante – nunca
deixou os problemas políticos de lado e tinha Lenin em alta conta. Vale lembrar que no
mesmo período publica Lenin: a coerência do seu pensamento (1924) onde identifica o russo
como um “operador da dialética”. O opúsculo lukasciano foi publicado recentemente
(Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento. São Paulo: Boitempo, [1924] 2012).

17
Apresentação

à luta política, mesmo quando eles não eram o foco central das
suas preocupações, como no caso das problemáticas da estética e
da ontologia lukacsianas.
Uma segunda razão promoveu um segundo exílio a Que Fazer?
Ela se explica pelo absoluto desprezo e repúdio que o livro (e, como
de resto, o conjunto da obra de Lenin) obteve (e continua obtendo)
dos meios acadêmicos9. O repúdio foi se estruturando ao longo do
século XX e por motivos claramente ideológicos. Num primeiro
momento da construção desse exílio, o conservadorismo acadêmico
se incumbiu de neutralizar qualquer possibilidade de incorporação
das ideias de Lenin já desde o pós-1917; num segundo momento, o
repúdio foi agravado com a vulgarização stalinista acentuada nos

Elaborei uma resenha desta obra de Lukács publicada na revista Margem Esquerda, 20,
São Paulo: Boitempo, março/2013, p. 152-156.
De modo diverso pode-se reconhecer no teórico e dirigente do Partido Comunista
Italiano, Palmiro Togliatti, o esforço de atualizar as ideias lenineanas. O “partido novo”
defendido pelo autor apresenta forte inclinação ao pensamento de Lenin (a questão
da vanguarda, a diferenciação entre luta política e luta econômica etc.) e exprime
uma tentativa de “ocidentalizar” a teoria do revolucionário russo. Os desdobramentos
posteriores do chamado eurocomunismo – reformismo, idealização da democracia
burguesa e da própria democracia per si como valor universal-abstrato – não retiram de
Togliatti o mérito da tentativa de atualização teórico-política.
Para o debate acerca do eurocomunismo, leia-se E. Mandel Crítica do Eurocomunismo;
Lisboa; Antídoto, 1978; e as aproximações que realizei em meu livro Partido e Revolução.
1848-1989. São Paulo: Expressão Popular, 2011. E para conhecer as ideias de Togliatti
veja-se Socialismo e democracia. Escritos escolhidos do período 1944/1964. Rio de Janeiro:
Edições Muro, 1980. Para o “pensamento político” de Lúkacs, recorra-se à oportuna
organização de textos feita por J. P. Netto e C. N. Coutinho intitulada Socialismo e
democratização. Escritos políticos 1956-1971. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008.
9
Conforme asseverou Atílio Boron num ótimo prefácio que preparou para uma reedição
argentina de Que Fazer?: “Uma das razões [do desprezo pela obra de Lenin] desta infeliz
situação reside na incontornável politicidade de toda a obra de Lenin. Pronunciar-se
a seu favor ou contra não é uma questão acadêmica, mas antes um ato de vontade
política. A consequência foi a constituição de uma polaridade cujos dois extremos são
igualmente negativos quando chega o momento de tentar compreender o significado da
herança leninista: ou a sua sacralização na União Soviética, transformando ‘uma teoria
subversiva num sistema apologético de uma certa ordem estabelecida; ou então a sua
satanização na literatura acadêmica do Ocidente’”. (Liebman apud Boron “Atualidade
do Que Fazer? de Lenine” in: Revista Socialismo e Liberdade. Rio de Janeiro: Fundação
Lauro Campos; ano I, n. 2, agosto de 2009).

18
Marcelo Braz

anos de 1930 e 1940; reforçou-se, num terceiro momento, no pós-II


Guerra Mundial quando se deflagrou um verdadeiro terrorismo
ideológico contra a “ameaça vermelha” no contexto da nascente
Guerra Fria. E, finalmente, tal neutralização ganhou um ingredien-
te de peso num quarto momento10 quando, nas décadas de 1960 e
1970, parte da intelectualidade da esquerda ocidental e parte dos
movimentos sociais (que convergiram no chamado maio de 1968)11
alimentaram um anticomunismo aberto ou velado (como se pode
constatar no âmbito da ideologia pós-moderna). Contribuiu para
isso também o agravamento da crise das experiências socialistas
existentes no Leste europeu e na própria União Soviética12, que se
aprofundava à medida que se estreitavam os níveis de socialização
da política13, tornando os “regimes” refratários a movimentos con-
10
Esse quarto momento do exílio permanente de Lenin é o mesmo do “terceiro exílio”
de Lukács criativamente identificado por José Paulo Netto, para quem o “cariz
ontológico incompatibiliza a obra lukacsiana posterior aos meados dos anos de 1930
– e, notavelmente, as derradeiras construções sistemáticas de Lukács, a Estética e a
Ontologia... – com a ambiência cultural contemporânea” (Netto, J. P. “Georg Lukács: um
exílio na pós-modernidade”, in: Pinassi, M. O. e Lessa, S. (orgs.). Lukács e a atualidade
do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002).
11
Aqui é importante registrar o interesse que parte dessa intelectualidade e segmentos
dos movimentos sessentoitistas nutriram pelas lutas de libertação nacional (socialistas
e/ou nacionalistas) que se intensificavam no chamado Terceiro Mundo. As experiências
revolucionárias conduzidas por Mao na China (1949), por Fidel e Che Guevara em
Cuba (1959) e por Ho Chi-minh nos anos de 1960-1970 no Vietnã exerceram fascínio
na chamada nova esquerda. Mais do que a solidariedade e a simpatia pelas causas
terceiro-mundistas, estava em questão fundamentalmente um antissovietismo, que no
afã de recusar o marxismo-leninismo, ganhava contornos nitidamente antileninistas.
Estudei o significado dessa “nova esquerda” para um dos seus expoentes em “O Marcuse
de Contrarrevolução e Revolta: crítica da ‘Nova Esquerda’” in: Revista Praia Vermelha n.
18, v. 2. Rio de Janeiro: PPGSS –ESS/UFRJ, 2009. Deve-se ler o próprio Marcuse em
Contrarrevolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
12
Lembre-se de que as denúncias dos crimes da era stalinista, feitas pelos próprios soviéticos,
vieram à tona em 1956, quando da divulgação do Relatório Kruschev no XX Congresso
do PCUS, em 1956. Para uma primeira aproximação aos desdobramentos imediatos
a 1956, veja Boffa, G. Depois de Kurschev. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
Um estudo de suas consequências encontra-se em Braz, M., 2011 (op. cit.).
13
E não nos enganemos que as razões da crise e de tal déficit de democracia política
encontram-se mais nas dificuldades econômicas e nas ameaças imperialistas do que na
burocratização dos Estados socialistas.

19
Apresentação

trários às direções instituídas. A solução encontrada para o caso da


Tchecoslováquia em 1968 (a Primavera de Praga) é emblemática
neste sentido. Mas, o essencial da rejeição a Lenin não está nesse
quadro de problemas atinentes ao movimento comunista mundial.
Não se pode ter dúvidas de que o repúdio e o desprezo acadêmi-
cos a Lenin estavam circunscritos num universo ideo-político que
desbordava os muros universitários: suas bases estavam estruturadas
numa verdadeira “cruzada anticomunista”14 – de espectros variados,
mas ancorados em diretrizes (anticomunistas) político-ideológicas,
militares e econômico-financeiras – que, evidentemente, tinha
seus representantes no mundo acadêmico ocidental (europeu e
estadunidense).
Somem-se a essas duas razões outras duas mais contemporâneas.
Uma primeira diz respeito à falência das experiências socialistas do
século XX, largamente conhecidas pela expressão “socialismo real”.
A segunda envolve as profundas transformações do modo de pro-
dução capitalista engendradas nos últimos 40 anos. Se a primeira
significou a (provisória) derrota do projeto societário alternativo
ao do capital e, junto a ela, a derrota dos modelos de organização
política que lhes eram correspondentes, a segunda assinalou uma
profunda alteração das bases objetivas do desenvolvimento capi-
talista que, ao modificar amplamente seus processos de produção,
mudou o perfil da classe trabalhadora e estabeleceu uma enorme
dificuldade ao salto da consciência em si para a consciência para

14
A expressão é de um insuspeito professor universitário e jornalista norte-americano,
Michael Parenti (autor de A cruzada anticomunista), que publicou um relevante
trabalho para se entender o fenômeno anticomunista. Seu campo de pesquisa permite
revelar as ações de governo e do Parlamento para estabelecer a cruzada que foi, em solo
estadunidense, muito além do macarthismo e da própria guerra fria, antecendendo-os
em larga medida e desdobrando-se em política central que guiou das ações dos EUA. É
indisfarçável a declaração de Truman em plena guerra: “Se verificarmos que a Alemanha
está ganhando a guerra devemos ajudar a Rússia; e se a Rússia estiver vencendo, devemos
ajudar a Alemanha, e deixar que eles matem o maior número possível, embora eu
não queira que Hitler seja vitorioso de forma alguma” (apud Parenti, M. A Cruzada
Anticomunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970; p. 118).

20
Marcelo Braz

si da classe, ou seja, pôs na ordem do dia uma evidente “crise” de


identificação do sujeito político revolucionário.
Por meio de processos bastante diferenciados entre si, ambas
as razões concorreram para difundir um fenômeno na atualidade:
uma verdadeira crise de organização política absorveu a totalidade
das forças sociais do trabalho. E sua expressão mais acabada está
na crise da “forma partido”. Uma breve digressão acerca desses
problemas se faz necessária.
A experiência do “socialismo real” deixou o legado que até hoje
repercute no movimento revolucionário: nos partidos ligados ao
campo da esquerda, nos diversos organismos políticos das classes
trabalhadoras e no conjunto das lutas de classes nos países capita-
listas. O saldo de sua trajetória, entre vitórias e derrotas, pode ser
localizado no próprio “breve século XX”. Cerca de um quinto da
humanidade viveu, durante boa parte daquele século, sob outra
forma de organização econômica e política, sob outro modelo de
participação na riqueza socialmente produzida. Fez progredir os
níveis sociais de vida de centenas de milhões de pessoas no mundo
socialista, condicionando inclusive as condições de vida no mundo
capitalista que se via, entre suas próprias crises cíclicas, permanen-
temente ameaçado pelo “perigo vermelho”.
Deve-se à classe trabalhadora da União Soviética a vitória
final e decisiva sobre as forças mais retrógradas do capitalismo:
mais de 20 milhões de russos morreram lutando, pelo Exército
Vermelho, contra o exército nazista até derrotá-lo. A existência da
União Soviética, de sua força como segunda potência mundial do
pós-II Guerra, foi certamente o aspecto determinante para limitar
o avanço das formas mais perversas de vida nos países capitalistas,
servindo inclusive para fazer avançar a democracia nos Estados
capitalistas como forma de contraponto societário ao socialismo.
Portanto, se tal experiência, edificada sob o sacrifício das classes
trabalhadoras dos países socialistas, forçadas a níveis extremos de
trabalho – como durante a fase da chamada economia de guerra

21
Apresentação

na URSS (1917-1921); da NEP (1921-1928); dos Planos Quinque-


nais; da coletivização forçada da década de 1930, premidas pela
linha dura das políticas stalinistas –, se tal conjunção de esforços
de toda uma geração que envolveu, ainda, diversos países que
ingressaram no “modelo” do “socialismo real”, principalmente
após o triunfo do Exército Vermelho sobre as forças nazistas na
II Guerra Mundial, custou caro aos que viveram diretamente as
suas lutas, deixou enormes conquistas para os trabalhadores de
todo o mundo. Se não se viveu plenamente a famosa expressão
do Manifesto do Partido Comunista – “Trabalhadores de todo
o mundo, uni-vos!” –, espalhou-se por toda a humanidade as
conquistas objetivas do movimento revolucionário e, mais do que
isso, semeou-se entre os trabalhadores os melhores sentimentos
humanos: a fraterna busca da igualdade entre os homens e a
convicta luta pela emancipação humana.
Se a falência dessas experiências socialistas não permite dizer
que o próprio socialismo como alternativa societária se exauriu,
ela deixou um legado denso, carregado de equívocos os mais
diversos que, somados à avalanche ideológica que a burguesia fez
desabar sobre o mundo a partir dos anos de 1990 com a queda
do “Muro de Berlim” e o fim da URSS, formam um quadro
sócio-histórico extremamente adverso para a afirmação de um
projeto alternativo de sociedade. Mais ainda, diante desse quadro,
a própria tarefa de refundação de um projeto socialista tornou-se
extremamente dificultada nos dias atuais. Além dos resultados
da luta ideológica penderem fortemente para o mundo burguês
e para todos os traços que o peculiarizam – o individualismo, a
competitividade, a alienação, a aversão às formas coletivas (livres
e autônomas) de organização dos homens e uma despolitização
colada a ela, a plena mercantilização das relações sociais etc. –,
vive-se uma vaga histórica, ela mesma, pouco propícia (mas ur-
gente!) para se reconstruir uma projeção societária assentada em
valores radicalmente antagônicos aos burgueses. O ser concreto

22
Marcelo Braz

do trabalho encontra-se intensamente fragmentado favorecendo


todo tipo de saídas individuais e corporativistas. As próprias for-
mas de reprodução social do trabalho se acham profundamente
precarizadas pelas modalidades contemporâneas da produção
capitalista15 que engendram numa ponta o desemprego estrutural,
e noutra o aviltamento salarial e as formas de trabalho desprovidas
de qualquer proteção social.
Nesse ambiente terrível para o proletariado, mas paradisíaco
para o capital – é o seu próprio mundo (de barbárie) – a luta
política maior se esvai em lutas fragmentadas que até mesmo no
campo econômico tem sido, predominatemente, defensivas, se
pensarmos na situação do sindicalismo atual, no qual crescem os
sindicatos parceiros do capital. As lutas sociais contemporâneas
vêm assumindo um caráter cada vez mais particularista em detri-
mento de seus conteúdos universais. E tal quadro se agrava, e é
estimulado, por correntes do pensamento social contemporâneo
que veem nelas (nas lutas particularistas) a saída no interior da
própria ordem burguesa.
Pensadores de esquerda as enfatizam não como bases sociais
através das quais podem ser articulados movimentos de natureza
classista, tampouco veem na classe operária o papel principal16. Eles

15
Estruturadas na tríade: reestruturação produtiva, neoliberalismo e financeirização (ver
o cap. 9 de Economia Política: uma introdução crítica, de Netto, J. P. e Braz, M. São
Paulo: Cortez, 2013, 9. Ed.).
16
É o que se deduz, por exemplo, do português Boaventura S. Santos: “Por minha parte,
penso que a primazia explicativa das classes é muito mais defensável que a primazia
transformadora. Quanto a esta última, a prova histórica parece ser por demais concludente
quanto à sua indefensibilidade. Dando de barato que é fácil definir e delimitar a classe
operária, é muito duvidoso que ela tenha interesse no tipo de transformação socialista
que lhe foi atribuído pelo marxismo e, mesmo admitindo que tenha esse interesse, é
ainda mais duvidoso que ele tenha capacidade para o concretizar. Essa verificação,
que parece hoje indiscutível, tem levado muitos a concluir pela impossibilidade ou pela
indesejabilidade de uma alternativa socialista” (Santos, B. de S., Pela Mão de Alice: o social
e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999, p. 41; itálicos meus).

23
Apresentação

as tomam como um fim em si mesmo17, como o possível diante


da força do capital. Esse conformismo possibilista tem dado o tom
no debate contemporâneo, fazendo coro com a ideologia pós-
-moderna do fim das verdades, da impossibilidade de uma teoria
totalizante, da suposta prevalência do molecular e do fragmento.
Essa dissolução analítica da possibilidade de um projeto global
de superação da ordem dissolve igualmente, mas também no
plano analítico, a disposição política e teórica para se reconstruir
organizações políticas revolucionárias como o partido. Ainda que
essa reconstrução não dependa apenas da reunião de fatores sub-
jetivos favoráveis – pois que depende decisivamente de condições
objetivas mais propícias –, ela tampouco pode ser levada adiante
sem a força das melhores e mais qualificadas vontades humanas.
Nas sociedades capitalistas contemporâneas, frente às condi-
ções políticas adversas anteriormente apontadas, tornou-se mais
complexo e difícil – mas imperioso – o desenvolvimento de um
projeto socialista – supondo todos os seus componentes indispen-
sáveis18: combate permanente da propriedade privada dos meios de
produção fundamentais; unidade das forças políticas de esquerda;
propaganda e formação políticas voltadas para o desenvolvimento
da consciência de classe; internacionalismo proletário que envolva
as mediações dos aspectos nacionais das lutas de classes; e, como
instrumento que reúna todos esses elementos e que dirija o pro-
cesso revolucionário, uma organização política revolucionária sob
a forma de partido político.
17
Mais uma vez o mesmo pensador pós-moderno nos fornece a melhor ilustração teórica:
“Mas, enquanto futuro, o socialismo não será mais do que uma qualidade ausente.
Isto é, será um princípio que regula a transformação emancipatória do que existe sem,
contudo, nunca se transformar em algo existente. (...) Nessas condições, a emancipação
não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido” (Idem: 277; itálicos
meus). Diante de tais afirmações torna-se quase impossível não lembrar da célebre frase
do velho reformismo de Bernstein para quem: “O movimento é tudo e o objetivo final
[o socialismo] não significa nada”.
18
Classicamente anunciados no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e de Engels,
em 1848.

24
Marcelo Braz

Ou seja, tornou-se extremamente problemática a consolida-


ção de tal projeto sem que os seus principais pressupostos sejam
submetidos ao crivo da realidade social, às exigências que as
necessidades sociais concretas das classes põem na abertura do
século XXI. Isso implica que, se os conteúdos das lutas de classes
incorporaram novas mediações e novas demandas sociais, a sua
forma não pode ser uma mera reposição (e repetição) dos meios
políticos que correspondiam às requisições de uma outra época.
Em poucas palavras: as formas de lutas, para se afirmar um pro-
jeto socialista, devem se ajustar aos conteúdos atuais das lutas de
classes. E as formas e os princípios (os componentes do projeto
socialista acima arrolados), consagrados historicamente como
revolucionários, só têm validade se ajustados, num processo de
mediação que pressupõe a reflexão teórico-sistemática, ao perfil
das lutas de classes contemporâneas.
Tal “ajuste” (que é na verdade a adequação entre princípio e
realidade) requer uma renovação teórica que procure realizar uma
articulação entre as fontes clássicas da tradição marxista e as con-
tribuições da tradição teórico-política que delas se derivaram e que
a elas se associaram no curso da trajetória do movimento socialista
e comunista; essa articulação deve se dar em função e a partir
dos enormes desafios postos pela contemporaneidade das lutas de
classes, expostos de maneira panorâmica linhas atrás. O desafio
consiste, portanto, numa dupla tarefa: continuar a renovação e a
atualização das análises marxianas e marxistas clássicas e, o que é
mais difícil, transformar a armadura teórico-crítica edificada em
força material real enraizada nas massas.
A conjugação dessa dupla tarefa é magistral em Que Fazer?, o
que faz de Lenin, nesse aspecto, o maior dos marxistas. O arguto
sentido prático-político de seu pensamento fez com que os seus
adversários (e também alguns de seus admiradores) tentassem
reduzir a sua figura à de um político sagaz, limitado à realpolitik,
e seu pensamento a modalidades estreitas que, ao esclerosarem con-

25
Apresentação

ceitos e teses políticas, acabam por serem mesmo posições pouco


ou nada relacionadas ao legado de Lenin19. Como conclui Lukács,
Lenin deve ser estudado pelos comunistas tal como Marx foi estudado
por Lenin. Para aprender a operar o método dialético. Para aprender a
encontrar o geral no particular por meio da análise concreta da situação
concreta; a encontrar, no novo momento de uma situação, aquilo que o
liga ao processo anterior e, nas leis gerais do processo histórico, o elemento
novo que nunca cessa de surgir; a encontrar a parte no todo e o todo na
parte [...]20.

Que Fazer? – estrutura, objetivos e aspectos centrais


Diante da realidade contemporânea brevemente esboçada
linhas acima, podemos afirmar com toda a segurança: a crise de
organização política exige uma recuperação crítica urgente do
legado­de Lenin, especialmente de Que Fazer?, sua mais acabada
obra voltada para os problemas práticos do movimento revolu-
cionário e que estabelece princípios para a organização política
revolucionária que me parecem atuais, conforme veremos.
Antes de avançar é bom que se tenha em conta a seguinte
constatação: o partido concebido por Lenin foi o que mais in-
fluenciou as diversas gerações revolucionárias que dele fizeram as
mais variadas interpretações: reafirmando-o, complementando-o
ou contestando-o em alguns de seus aspectos. No plano prático-
-político, o partido leninista inspirou muitas das formulações
sobre a questão da organização política que surgiram – a trotskis-
ta, a luxemburgueana 21, a maoista, a stalinista e, até mesmo, a
eurocomunista, ainda que refutando-o; elas resultaram nas mais
19
Cf. Braz, M. 2013.
20
Lukács, G., op. cit., p. 101.
21
As ideias que Rosa Luxemburgo defendeu para a questão da organização política do
proletariado se desenvolveram a partir das necessidades das lutas de classes na Alemanha;
no entanto, a revolucionária travou intensa e fecunda polêmica com a experiência do
partido bolchevique de Lenin. Boa parte de Greve de massas, partido e sindicatos foi
escrita tendo como base teórico-histórica o processo revolucionário russo.

26
Marcelo Braz

diversas consequências práticas e ideológicas. Entretanto, o tipo


de partido defendido por Lenin esteve voltado para uma reali-
dade específica que se não significa que ele deva ser abandonado,
tampouco permite dizer que tal forma de partido sirva, tout court,
de modelo para os dias atuais. O esforço consiste em extrair o
que permanece atual e o que pode, portanto, ser atualizado, de
Que Fazer?
Além da indispensável distinção entre lutas econômicas e luta po-
lítica revolucionária, certamente, têm enorme validade as distinções
que faz das lutas espontâneas e das lutas revolucionárias – e a tese de
que a consciência de classe não surge imediatamente das primeiras
(tese que, como reconhece o próprio Lenin, já fora defendida por
Kautsky) – que exigem a direção de um partido de vanguarda ca-
paz de politizar as lutas de classes em suas várias expressões. Essa
centralização política que se vê no partido de vanguarda leninista
depende e varia de acordo com as condições históricas das lutas
de classes, o que significa que os aspectos organizativos internos
ao próprio partido devem obedecer a uma flexibilidade política,
conforme as exigências políticas de cada época.
Entretanto, deve ser enaltecido em Que Fazer? algo que
poucos salientam: Lenin maneja com impressionante facilidade
o método de Marx. A riqueza categorial do texto advém de um
rigor teórico capaz de extrair da superfície da realidade aquilo que
sua aparência fenomênica oculta: os elos e nexos causais do real,
as engrenagens motoras de sua dinâmica, os aspectos negadores
da sua imediaticidade, as múltiplas determinações que formam o
concreto como unidade do diverso, ou seja, a estrutura mesma que
articula a realidade como totalidade social.
A centralidade da questão organizacional do livro não dá lu-
gar a nenhum esquematismo teórico. Ao contrário, Lenin trata o
problema numa perspectiva dialética na qual a organização política
do proletariado se expressa como forma de mediação entre a teoria
revolucionária e a prática política efetiva. Daí que a forma que o

27
Apresentação

partido deverá assumir no processo das lutas de classes, bem como


os variados instrumentos da luta política – como o são os inúmeros
meios de propaganda revolucionária (jornais, revistas, panfletos
etc.) – desdobram-se de análises que articulam dialeticamente a
estrutura de classes da Rússia tsarista, a natureza do capitalismo
no país, a forma do Estado e de suas instituições políticas, o papel
da ideologia e as possibilidades de desenvolvimento da consciência
de classe, as formas de ser do proletariado em suas diversas franjas
urbanas e rurais etc.
Vê-se que no pensamento lenineano as “análises concretas de
situações concretas” aparecem na identificação das classes com
uma riqueza incontestável. Não há em Que Fazer? qualquer tipo
de simplismo analítico que reduziria a estrutura de classes na
Rússia a uma mera reprodução do antagonismo entre burguesia
e proletariado. Surgem de suas argutas análises uma miríade de
estratos de classes e subclasses sociais derivadas de setores os mais
diversos da vida social russa, desde aqueles que expressam resquícios
da estrutura feudal na campo e nos núcleos aristocratas remanes-
centes, até aquelas expressões que indicam o desenvolvimento
de segmentos operários do semidesenvolvido capitalismo russo.
Daí desdobram-se setores médios no campo e na cidade, frações
distintas estabelecidas no Estado tsarista – entre os aparatos repres-
sivos e no interior da burocracia estatal –, uma pequena burguesia
que oscila entre o conservantismo da ordem e as aspirações por
mudanças e que, dadas as enormes dificuldades de se reproduzir
socialmente, se vê, em parte, seduzida pelas transformações sociais
pleiteadas pelos estratos mais pauperizados das classes trabalhado-
ras, incluindo entre elas parcelas intelectuais que também vivem
a mesma oscilação.
Numa palavra: a problemática da organização aparece em Que
Fazer? subordinada a uma densa análise teórica da situação concreta
russa, pressuposta à obra e que se evidencia nela como síntese de
múltiplas determinações, unidade do diverso. Aí se assenta o rigor

28
Marcelo Braz

teórico-metodológico lenineano: seu método é o das aproximações


sucessivas à realidade concreta, donde se erigem interpretações,
reflexões e análises concretas.
Só a partir dessa compreensão do caráter profundamente dia-
lético e rigorosamente marxista – recorde-se da já citada expressão
criada por Lukács para designar Lenin: o “operador da dialética”
– é que se pode apreender o essencial de Que Fazer? E o essencial,
uma vez que se ocupa centralmente da problemática organizacional,
está na discussão do partido revolucionário.

O partido em Que Fazer?


Lenin viveu – e dela foi herdeiro – a época imediatamente
posterior aos processos revolucionários do século XIX na Europa
que conformaram, por um lado, a afirmação da burguesia como
classe dominante (e, portanto, conservadora) e, por outro, a ascen-
são político-organizativa do movimento operário, que se pôs pela
primeira vez como sujeito político autônomo na década de 1840,
especialmente a partir de 1848. Na segunda metade daquele século,
manifesta-se também um novo cenário ao movimento socialista
internacional diante das crises capitalistas que se intensificam a
partir da década de 1870, quando se transita à era dos monopó-
lios, das intensas repressões ao movimento operário na Europa (o
caso da Comuna de Paris é emblemático, assim como as leis de
exceção contra os socialistas na Alemanha, entre os anos de 1880
e o início da década seguinte) e do divisionismo no interior da
Segunda Internacional.
Escrito entre meados de 1901 e início (fevereiro) de 1902 e
publicado em março de 1902, Que Fazer? pretendeu introduzir
uma noção de organização revolucionária que, para Lenin, se co-
locava como uma necessidade para o avanço das lutas proletárias.
Sua grande contribuição teórica com o Que Fazer? foi imprimir,
mais do que qualquer outra à época, um “espírito prático” ao
marxismo. O livro resultou num salto de qualidade no movimento

29
Apresentação

socialista na Rússia e na Europa 22, uma vez que seus pressupostos


“correspondiam às ‘exigências da situação histórica’, não eram fruto
de uma especulação ‘genial’ e tampouco uma ousadia ‘isolada’”
(Fernandes, p. 271, infra).
A contribuição de Lenin, como já afirmei, suplanta os marcos
da Segunda Internacional. Sua apropriação, por parte do movi-
mento socialista mundial, deu-se de modo extremamente diverso
ao longo do século XX, ao sabor das interpretações de seus varia-
dos discípulos. Nas últimas décadas23, pelas razões sociopolíticas
apontadas no item anterior, as ideias de Lenin, em particular as
contidas em Que Fazer?, passaram a ser associadas, muitas vezes
e equivocadamente, ao legado stalinista que empreendeu práticas
políticas nas quais se destacavam os marcos estreitos de democracia
política, dada a centralização de poderes nas burocracias centrais
dos partidos dirigentes únicos em diversos países do antigo “bloco
socialista”, no Leste europeu e na ex-URSS, especialmente.
A melhor resposta ao antileninismo contemporâneo é o resgate
das ideias centrais de sua vasta obra, incluindo Que Fazer?, espe-
cialmente aquelas referentes ao partido e ao movimento operário.
O período compreendido entre 1901-1902, quando escreve sua
obra, e a Revolução Russa, em 1917, envolve diversos momentos
históricos. No curso dos acontecimentos que abalavam os pilares da
Rússia tsarista – cujos espaços políticos para o desenvolvimento de
22
Inclui-se nesse quadro, o esforço político-teórico de Lenin para a criação de um jornal
de cunho político-científico, o Iskra, e de uma revista operária chamado Zaria para
toda a Rússia. Tais iniciativas foram objeto de intenso debate no movimento russo
e em Que Fazer? podemos perceber o enorme empenho de Lenin em combater as
tendências oportunistas que se explicitavam no conjunto dos meios de propaganda
política existentes, tais como Rabotcheie Dielo e Rabotchaia Myls. Nota-se, com isso, que
o revolucionário russo foi responsável pelo estabelecimento de um nível de organização
política superior até mesmo ao que existia no movimento socialista da Europa Ocidental,
notadamente por ter conseguido articular o plano teórico com a prática política das
massas.
23
A partir da crise e derrocada das experiências do chamado “socialismo real”, mais
precisamente nas décadas de 1970, 1980 e 1990, culminando com o fim da URSS,
entre 1991 e 1992.

30
Marcelo Braz

ações revolucionárias eram estreitíssimos – as ideias de Lenin varia-


ram de acordo com as necessidades prático-políticas. Em seu livro,
ele traça uma noção de partido cuja função seria, ao mesmo tempo,
a de vanguarda do processo revolucionário e a de centralização das
ações políticas, com vistas à construção da revolução socialista. Por
isso, o partido de Lenin tinha no seu âmago as exigências de uma
estrutura rígida e altamente disciplinada. Essas peculiaridades do
partido lenineano se devem a dois determinantes principais, quais
sejam: as condições histórico-políticas da Rússia e o combate às
tendências espontaneístas e demasiadamente obreiristas no seio
do movimento operário.
Lenin estava preocupado em estruturar uma organização polí-
tica que fosse capaz de provocar o movimento revolucionário, que
conseguisse centralizar de forma disciplinada as ações políticas,
como formas alternativas às tradições políticas até então vislum-
bradas na Europa e na Rússia, a saber: o populismo, as tendências
socialistas reformistas e o terrorismo que, ali, acabava por envolver
diversos tipos de militantes revolucionários que lutavam contra as
arbitrariedades do governo autocrático tsarista. Sua proposta pre-
tendia se diferenciar, sobretudo, das lutas obreiristas (meramente
econômicas)24, dos limites da luta econômica. Por isso, distinguia
claramente as funções das organizações operárias daquelas refe-
rentes às organizações revolucionárias. Diz Lenin:
A luta política da social-democracia é muito mais ampla e mais complexa
que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo. Do
mesmo modo (e como consequência), a organização de um partido social-
-democrata revolucionário deve inevitavelmente constituir um gênero dife-
rente da organização dos operários para a luta econômica. A organização
dos operários deve ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar,
o mais ampla possível; em terceiro lugar, deve ser o menos clandestina
possível (aqui e mais adiante refiro-me, bem entendido, apenas à Rússia

24
Que para Lenin têm em comum o “culto da espontaneidade”.

31
Apresentação

autocrática). Ao contrário, a organização dos revolucionários deve englobar,


antes de tudo e sobretudo, homens cuja profissão seja a atividade revolucio-
nária (por isso, falo de uma organização de revolucionários, pensando nos
revolucionários social-democratas). Diante dessa característica geral dos
membros de tal organização, deve desaparecer por completo toda distinção
entre operários e intelectuais, que vale, ainda mais, para a distinção entre as
diversas profissões de uns e de outros. Necessariamente, tal organização
não deve ser muito extensa e é preciso que seja o mais clandestina possível
(Capítulo IV, p. 171).
Havia uma clara distinção dos objetivos (e das formas de or-
ganização) entre partido e organizações operárias (equivalentes ao
que conhecemos como sindicatos). Estas se vinculam a um nível
mais imediato da luta de classes, envolvendo o conjunto de parti-
cularidades (e de interesses sociais) atuantes na luta, evidenciados
nas lutas econômicas que os operários travam nas fábricas. Seu
foco político de atuação limita-se à defesa de interesses particulares
diversos, podendo, através de permanentes “denúncias políticas”,
ser relacionados à luta política mais ampla. Essa última caberia
ao partido (organizações revolucionárias) que deveria ter o papel
simultâneo de promover as “denúncias políticas”, de realizar o
processo constante de “educação para a atividade revolucionária”
e, ainda, de provocar a agitação político-ideológica das massas em
todos os aspectos da vida social, para além da “agitação política
no terreno econômico”. Para Lenin, essas “denúncias políticas que
abarcam todos os aspectos da vida são uma condição indispensável
e fundamental para educar a atividade revolucionária das massas”
(Capítulo III, p. 125-126).
Somente quando o partido revolucionário é capaz de organizar
“campanhas de denúncias realmente direcionadas a todo o povo
poderá tornar-se, nos nossos dias, vanguarda das forças revolucio-
nárias” (Capítulo III, p. 146). A noção de partido de vanguarda
está colada àquelas funções de toda organização revolucionária,
anteriormente levantadas: educação para a atividade revolucionária

32
Marcelo Braz

através de permanentes denúncias políticas em todos os aspectos


da vida do povo e de promoção de agitações políticas no seio das
massas. Para Lenin, o partido jamais poderá ser vanguarda do
processo revolucionário se não estiver ativamente envolvido com
o conjunto da lutas cotidianas, sejam elas quais forem, desde que
abranjam as condições de vida dos trabalhadores. Ele deve conhecer
verdadeiramente os anseios da classe trabalhadora, pois só assim
conseguirá realizar a tarefa de dirigir a organização política, ou
seja, só assim poderá vincular (realizar a mediação) a luta cotidiana
com a luta política.
A noção de vanguarda é cristalina em Lenin:
Para chegar a ser, aos olhos do público, uma força política faz-se necessário
trabalhar muito e com obstinação para elevar o nosso nível de consciência,
o nosso espírito de iniciativa e a nossa energia; para tanto, não basta colar
o rótulo de “vanguarda” numa teoria e numa prática de “retaguarda”. (...)
[Para tanto] essa ampla e abrangente agitação política será realizada por
um partido que articula, num todo indissolúvel, a ofensiva em nome de
todo o povo contra o governo, a educação revolucionária do proletariado,
salvaguardando, ao mesmo tempo, a sua independência política, a dire-
ção da luta econômica da classe operária e a utilização dos seus conflitos
espontâneos com os seus exploradores, conflitos que fazem levantar novas
camadas do proletariado, atraindo-as incessantemente para o nosso campo!
(Capítulo III, p. 147).
Subjacente à noção de partido como vanguarda está a com-
preensão de que a classe operária pode, por si mesma, ser pro-
tagonista de lutas de classes abrangentes que mesmo atadas aos
objetivos imediatos do proletariado pode ampliá-los e politizá-los.
Entretanto, o alçamento à condição superior de consciência de
classe só pode ser obra do partido revolucionário. E ele só pode
promover tal elevação de consciência a partir de duas condições:
se estiver preparado teórica e politicamente para tanto, o que
supõe a formação de quadros políticos capazes de instruir e edu-
car as massas conforme as orientações programáticas emanadas

33
Apresentação

dos objetivos estratégicos do partido; e se estiver – antes mesmo


da def lagração do momento revolucionário para o qual deve
assumir a dianteira – profundamente enraizado nas fileiras do
proletariado, ou seja, se tiver feito, até então, das lutas objetivas
e imediatas do proletariado as suas próprias causas, se estiver
efetivamente identificado com ele, que enxergará em seus quadros
os seus dirigentes revolucionários.
Para Lenin, a classe operária não reúne, em si, as condições
para superar a consciência de classe determinada pelas necessidades
prementes das lutas econômicas contra o capital – por isso, a sua
luta e a sua crítica radical contra toda forma de economicismo.
Tampouco pode enfrentar as manobras burguesas que atuam no
sentido de desmobilizá-la, valendo-se tanto dos meios abertamente
repressivos quanto daqueles de natureza manipulatória, através dos
quais procura cooptar as lideranças mais combativas do operariado.
Ademais, a luta operária alterna, historicamente, momentos de
maior combatitividade e momentos mais conformistas, ao sabor das
variações conjunturais que determinam as possibilidades objetivas
das lutas sociais. A tarefa do partido de vanguarda é exatamente
atuar sobre essa realidade operária de modo a explicitar, a todo
tempo, a natureza intrinsecamente exploradora e desigual da ordem
burguesa, preparando politicamente o conjunto do proletariado
para o momento dos embates decisivos que podem emergir tanto
por meio das agitações políticas provocadas pelo partido quanto
pode irromper espontaneamente do seio das contradições de classes
engendradas na cotidianidade capitalista. O “elemento espontâneo”
como o “embrião da consciência” só se põe como tal, ou seja, a
consciência de classe só pode brotar das ações espontâneas, se o
partido estiver preparado como organização de vanguarda da classe
operária, o que significa estar em condições de fazer de seu progra-
ma (de suas estratégias e táticas) os próprios objetivos do proletariado.
Do contrário, ou seja, sem a atuação do partido como vanguarda,
o “elemento espontâneo” não passará de “embrião da consciência”.

34
Marcelo Braz

Aqui se encontra a perspectiva que, aliás, Lenin herda de alguma


maneira de Kautsky – para quem a consciência de classe deve ser atri-
buída, deve vir de fora –, de que a consciência de classe revolucionária
não é algo que nasce do próprio operário ou algo que ele possa por si
só alcançar; a consciência de classe, em seu mais alto nível político, só
pode surgir no proletariado a partir do/e pelo partido revolucionário
– o que não pode significar que é o partido quem faz a revolução: “a
emancipação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios traba-
lhadores”. Não há, então, nenhuma oposição entre espontaneidade
das massas e organização política revolucionária de vanguarda, preci-
samente porque elas se complementam, no sentido de que a partir do
“elemento espontâneo”, o partido, apoiando-se sobre suas iniciativas,
amplia-o, o faz ser suplantado pelo próprio proletariado organizado
e consciente, aproximando-o progressivamente das questões mais
decisivas da luta política revolucionária, da própria revolução como
superação da ordem do capital através da destruição do poder político
de classe da burguesia. Em Lenin, o partido não é nem a organização
que se constitui como o pressuposto do processo revolucionário (como
em Kautsky) e nem um mero resultado (ou produto) do movimento
revolucionário das massas. Como observa com clareza Lukács, em
Lenin “a função do partido na preparação da revolução faz dele,
ao mesmo tempo, e com a mesma intensidade, produtor e produto,
pressuposto e resultado dos movimentos revolucionários de massa”.
O partido em Lenin tem um caráter profundamente histórico-social:
“ele não é, mas vem a ser” no próprio processo revolucionário para o
qual deve estar preparado para dirigir25.
As questões principais do Que Fazer?, considerando seus deter-
minantes históricos, assentam-se em dois pontos centrais por meio
dos quais se articulam outros aspectos relevantes do pensamento de
Lenin. O primeiro ponto central, como se viu, refere-se à relação entre
a espontaneidade das massas e a consciência de classe para a qual desen-

25
Cf. Lukács, op. cit., p. 52, 57.

35
Apresentação

volveu uma crítica radical ao culto do espontâneo e afirmou a necessidade


do conhecimento revolucionário: “sem teoria revolucionária não há
movimento revolucionário”. Deve-se enfatizar que, ao mesmo tempo,
reconhece-se a importância do elemento espontâneo como portador
da gênese da consciência de classe: como embrião da consciência. Daí
a relevância da mediação fundamental entre o elemento espontâneo e
a consciência de classe feita através da organização política; a oposição
e a distinção entre movimentos de orientação economicista dos movi-
mentos de orientação social-democrata (revolucionária). A diferença
principal se encontra na organização política e no conhecimento da
totalidade social. Esse conhecimento revolucionário não é gerado
espontaneamente nas massas. Ele vem “de fora”, trazido pela parte
consciente do movimento, que se expressa na vanguarda do partido
que, como tal, só pode concretizar-se se estiver presente em todas as lutas
operárias. Para Lenin, o partido de vanguarda deve funcionar como o
mediador entre a teoria revolucionária e a prática política das massas,
buscando construir, a partir de objetivos estratégicos bem definidos, a
unidade ideológica entre os diversos movimentos. Sem essa mediação
não há vanguarda, que só é possível se o partido estiver envolvido em
todas as lutas do proletariado. Tal partido dirigente deve ter no seu
organismo “profissionais revolucionários”, que articulem as diversas
particularidades que envolvem a classe proletária, como facilitadores
para o conjunto do proletariado.
O segundo ponto central está relacionado ao entendimento de
que as lutas de classes compreendem tanto as lutas econômicas,
quanto a luta política mais ampla. O que supõe a diferenciação entre
modalidades de organização política do proletariado: organização
operária e organização revolucionária. Lenin combate o economi-
cismo e o obreirismo, estabelecendo a diferença principal entre os
dois tipos de organização. A tarefa das organizações revolucionárias
consiste na elevação da consciência de classe no âmbito das lutas
econômicas. As lutas econômicas podem se elevar à luta política
mais ampla, mas não perdem seu conteúdo imediato; exatamente

36
Marcelo Braz

por isso, elas não podem ser revolucionárias, já que expressam frações
do proletariado e não todo o proletariado. O papel da organização
revolucionária consiste na educação política, na agitação e na pro-
moção de denúncias políticas que explicitem o caráter de classe das
variadas lutas sociais. Essa explicitação é proporcionada tanto pela
realização de agitações políticas em todos os níveis da luta, quanto
pela permanente educação política das massas; para tanto, Lenin
ressalta a função dos meios de divulgação da teoria revolucionária
através de órgãos de comunicação: Iskra, Zaria etc.
Mais uma vez vale ressaltar o contexto histórico no qual Que
Fazer? foi escrito. Mesmo que no texto se encontrem os traços
principais do partido lenineano, e que, o mais importante a con-
siderar, tal partido de fato conduziu o processo revolucionário
russo – uma vez que no II Congresso do POSDR (Partido Operário
Social-democrata Russo), em 1903, os bolcheviques saíram vito-
riosos –, deve-se ter em conta que suas características são bastante
marcadas pelas vicissitudes políticas da realidade autocrática
russa; elas imprimiram ao movimento revolucionário como um
todo a premência de uma organização fortemente centralizada
e disciplinada, orientadas para atuar em situações praticamente
clandestinas e sob a ilegalidade. Foi o que o próprio Lenin chamou
atenção em texto posterior, quando rebatia exatamente as críticas
ao “modelo” de seu partido em 1907. A longa citação abaixo me
parece necessária e esclarecedora:
O principal erro daqueles que hoje polemizam com Que Fazer? consiste em
separarem, por completo, esse trabalho de determinadas condições históricas,
de um período determinado do desenvolvimento de nosso Partido, período
que já há tempos pertence ao passado. (...) Que Fazer? é um resumo da tática
do Iskra e de sua política de organização em 1901 e 1902. Precisamente um
resumo, nem mais, nem menos. Quem se preocupar em ler o Iskra, de 1901
e 1902, se convencerá disso, indubitavelmente. E quem julgar esse resumo,
sem conhecer a luta do Iskra contra o economicismo então predominante, e
sem compreendê-la, não fará mais que lançar palavras ao vento. O Iskra lutava

37
Apresentação

pela organização de revolucionários profissionais; lutou com especial energia


em 1901 e 1902; triunfou sobre o economicismo então predominante; criou
definitivamente, em 1903, aquela organização e a manteve, apesar da cisão
que se produziu mais tarde entre os ‘iskristas’, apesar de todas as atribula-
ções de uma época de tempestades e violência, mantendo-a durante toda a
revolução russa e conservando-a desde 1901-1902 até 1907. (...) E nenhuma
organização, a não ser o Iskra, poderia, nas nossas condições históricas, na
Rússia de 1900-1905, criar um partido operário social-democrata como o
que agora está formado. O revolucionário profissional cumpriu sua missão
na história do socialismo proletário russo. E não existem forças que possam
agora destruir sua obra, que ultrapassou, há tempos, o estreito marco dos
‘círculos’ de 1902-1905; nenhuma lamentação tardia pode ser feita sobre
os exageros das tarefas urgentes, por parte de quem em seu tempo somente
pôde assegurar, por meio da luta que se iniciara, acertadamente, o cumpri-
mento daquelas tarefas; e nenhuma lamentação poderá colocar em dúvida
a importância do já conquistado. (...) Tanto na brochura Que Fazer? quanto
no livro Um passo a frente, dois passos atrás, publicado depois, o leitor terá
perante seus olhos a luta apaixonada, às vezes furiosa e exterminadora dos
círculos no estrangeiro. É inegável que essa luta de círculos tem muitos aspec-
tos negativos. (...) Somente a afluência de elementos proletários ao partido
pode, ligada a uma atividade legal junto às massas, eliminar completamente
todos os traços da desarticulação dos círculos isolados, vestígios herdados
do passado, que não estão em consonância com as tarefas do momento
atual. A passagem para uma organização democrática do partido operário,
proclamado pelos bolcheviques, em novembro de 1905, no Novaia Zhisn,
quando surgiram as condições necessárias a essa atividade legal, equivaleu,
na verdade, a uma ruptura definitiva com tudo que era caduco dentro dos
círculos isolados26.
Para Florestan Fernandes, o marxista russo teve e tem enor-
me importância para o movimento socialista mundial. Ela se

26
Lenin, in: Marx, Engels, Lenin, Trotsky. A questão do partido. São Paulo: Kairós, 1978,
p. 36, 37, 39, 41.

38
Marcelo Braz

ancora no seu talento teórico e na sua contribuição efetiva aos


desafios prático-políticos daqueles que estão à frente de processos
de organização política. A despeito de polêmicas que as ideias
lenineanas desencadearam, não restam dúvidas sobre sua posição
de destaque na tradição marxista. Para Fernandes, o “que Lenin
faz com o marxismo só pode ser definido de uma maneira: ele
converte o marxismo em processo revolucionário real” (Fernan-
des, p. 272, infra).
As ideias lenineanas foram decisivas para o sucesso do
processo revolucionário russo. Posteriormente, construiu-se
em torno delas, no interior da Internacional Comunista, um
verdadeiro leninismo que foi, ao mesmo tempo, uma expressão
prático-política do pensamento de Lenin – suas ideias postas em
movimento –, como uma expressão teórica representada pelos
vários seguidores de Lenin que, a partir dele, balizavam suas
ideias. O bolchevismo – que representava a maioria do Partido
– foi fundado por Lenin, que o reconhecia como tendência e
como partido. Em 1917, na Conferência de Abril, o nome foi
incorporado ao Partido Operário Social-democrata Russo, tor-
nado então partido bolchevique. Ele incorpora ideias centrais
do Que Fazer?, como a questão da vanguarda revolucionária
e o centralismo democrático. Foi incorporado na trajetória do
movimento comunista mundial por dirigentes e teóricos os mais
distintos: Trotsky, Stalin, Mao Tsé-tung, que deram a ele faces
diferentes. O leninismo de Stalin tornou o marxismo-leninismo
doutrina oficial do partido bolchevique, operando mudanças
significativas nas ideias de Lenin. O partido como dirigente
da classe operária passa a se confundir com o Estado, que tem
funções morais e políticas de “defender” a revolução de toda
forma contrarrevolucionária, como superestrutura dominante
que refletiria os interesses de toda a classe.
As formas de incorporação do pensamento lenineano, o de-
senvolvimento do leninismo, bem como a criação do marxismo-

39
Apresentação

-leninismo stalinista ao longo da Internacional Comunista devem


ser tratados como desdobramentos da enorme influência que
a autoridade teórica e política de Lenin acabou exercendo por
gerações seguintes a sua morte em 1924, mas, ao mesmo tempo,
não podem ser confundidos com as ideias do próprio Lenin. Essa
separação deve ser feita não por razões de natureza propedêutica.
Ela é uma exigência para tratar Lenin no seu devido lugar: como
um clássico do marxismo, o que é o mesmo que dizer um clássico
do pensamento revolucionário.
O conjunto de sua obra, incluindo Que Fazer?, não é suficiente
para a tarefa da revolução em nossa época27. Mas sem ela, perdemos
o que de melhor o pensamento marxista revolucionário foi capaz
produzir no século XX.

O quadro, como se demonstrou brevemente aqui, é bastante adverso à tarefa. No Brasil,


27

não é diferente. Após a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder a situação


se complicou, pois instaurou-se uma divisão entre as forças sociais de esquerda que
perdura até hoje. Se o PT nunca fora – e isso é extremamente polêmico – um partido
revolucionário, configurando-se até mesmo numa organização política distante das ideias
marxistas (leninistas, especialmente), é inconteste que cumpriu, no ocaso do processo
de redemocratização da sociedade brasileira do final dos anos 1970 à década de 1990,
um papel estratégico de aglutinação das forças do trabalho contra o grande capital e
seus aliados da burguesia brasileira, tendo sido a maior referência das lutas populares de
resistência ao neoliberalismo. O giro do PT pós-2002 levou consigo diversos segmentos
(especialmente os sindicais) à prioridade da via eleitoral e institucional. Deve-se adicionar
que tal contexto de progressiva moderação e institucionalização das lutas, não se deu isolado
do plano internacional marcado pelo aprofundamento da crise do movimento comunista
internacional deflagrado após a queda do Muro de Berlim em 1989, pela dissolução da
União Soviética no início dos anos 1990 e pela crise terminal daquilo que se chamou
“socialismo real”.
Portanto, a tarefa da construção de um processo revolucionário (e, junto a ele, de um
partido revolucionário) no Brasil é tão urgente quanto complexa. Experimentamos aqui
a mesma fragmentação das lutas de classes apontada anteriormente. As dificuldades, para
se afirmar a forma partido, são enormes. Elas não serão superadas se forem abandonadas
as ideias dos clássicos da tradição marxista, dentre os quais, Lenin. Ao contrário, sem
elas não se chegará a lugar nenhum. Como afirmou Netto (op. cit, 2009): o déficit não é
teórico, mas organizacional.

40
QUE FAZER?
PROBLEMAS CANDENTES DO NOSSO MOVIMENTO

V. I. Lenin

A luta interior dá força e vitalidade ao partido;


a maior prova da debilidade de um partido é o seu amorfismo
e a ausência de fronteiras nitidamente delimitadas;
o Partido reforça-se depurando-se (...)
(trecho de uma carta de Lassalle a Marx,
24 de junho de 1852)
PREFÁCIO

Segundo o plano inicial do autor, esta brochura deveria


ser dedicada a desenvolver detalhadamente as ideias expos-
tas no artigo “Por onde começar?”1 (Iskra 2 nº 4, maio de
1
[O artigo de V. I. Lenin “Por onde começar?”, publicado como artigo de fundo no nú-
mero 4 do Iskra, contém respostas às questões mais importantes referentes ao movimento
social-democrata da Rússia: sobre o caráter e o conteúdo principal da agitação política,
as tarefas de organização e o plano de criação de um combativo partido marxista de
toda a Rússia. Lenin denominou o artigo “Por onde começar?” como um esboço do
que foi desenvolvido no livro Que fazer? O artigo serviu de documento programático
para a social-democracia revolucionária, tendo sido difundido amplamente tanto na
Rússia quanto no exterior. As organizações social-democratas locais o liam no Iskra e
reeditavam-no como brochura à parte. A União Social-Democrata siberiana imprimiu
5 mil exemplares da obra e a divulgou por toda a Sibéria. Foi impressa também em
Rzhev e difundido em Saratov, Tambov, Nizhni Novgorod, Ufá e em outras cidades.]
2
[Iskra (Centelha): primeiro jornal marxista ilegal de toda a Rússia, fundado por Lenin
em 1900, desempenhando um papel decisivo para a criação do partido marxista revo-
lucionário da classe operária. Como era impossível editar um jornal revolucionário na
Rússia por conta das perseguições políticas, Lenin, quando se encontrava deportado
na Sibéria, traçou em detalhes o plano de edição do jornal no exterior. Terminada a
deportação (janeiro de 1900), Lenin pôs seu plano em prática imediatamente. O pri-
meiro número do Iskra leninista surgiu em dezembro de 1900, em Leipzig; os seguintes
apareceram em Munique; a partir de julho de 1902, em Londres e, desde a primavera
de 1903, em Genebra. Os social-democratas alemães C. Zetkin, A. Braun e outros, o
social-democrata polonês J. Marchlewsky que residia naquele período em Munique,
e G. Quelch, um dos dirigentes da Federação Social-Democrata inglesa, deram uma
grande ajuda para preparar o periódico (organização da imprensa secreta e aquisição
de caracteres russos). Faziam parte da redação do Iskra: V. I. Lenin, G. V. Plekhanov, I.
O. Martov, P. B. Axelrold, A. N. Potressov e V. I. Zassulitch. I. Smidovich-Leman foi
secretária da redação no início e, depois, desde a primavera de 1901, N. Krupskaia, que se
encarregava também da correspondência do Iskra com as organizações social-democratas

43
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

1901).3 Antes de tudo, devemos nos desculpar perante o leitor


por haver cumprido tardiamente a promessa que fizemos na-
quele artigo (e que repetimos em resposta a muitas solicitações
e cartas particulares). Uma das causas do atraso foi a tentativa
de unificação de todas as organizações social-democratas no
exterior, empreendida em junho do ano passado (1901).4 Era

russas. Lenin exercia, de fato, as funções de redator-chefe e diretor do Iskra, escrevendo


artigos sobre todas as questões fundamentais da construção do partido e da luta de
classes do proletariado da Rússia, e difundia os acontecimentos mais importantes da
vida internacional. O Iskra converteu-se no centro de unificação das forças do partido,
de seleção e preparação dos seus quadros e em diversas cidades da Rússia (Petersburgo,
Moscou, Sâmara e outras) foram constituídos grupos e comitês do POSDR (Partido
Operário Social-Democrata Russo) de orientação leninista-iskrista. As organizações
iskristas surgiam e atuavam sob a direção imediata dos discípulos e companheiros
de luta de Lenin: N. Bauman, I. Babusshkin, S. Gusev, M. Kalinin, P. Krasikov, G.
Krzhizhavovski, F. Lengnik, P. Lepeshinski, I. Radchenko e outros. Por iniciativa de
Lenin e com sua participação direta, a redação do Iskra elaborou o projeto do programa
do partido (publicado no número 21 do Iskra) e preparou o II Congresso do POSDR,
realizado em julho-agosto de 1903. Em relação à data de convocatória do congresso, a
maioria das organizações social-democratas locais da Rússia aderiu ao Iskra, aprovando
sua tática, seu programa e seu plano de organização, reconhecendo-o como seu órgão
dirigente. Numa resolução especial, o congresso assinalou o papel excepcional do Iskra
na luta pelo partido, proclamando-o Órgão Central do POSDR. O congresso aprovou
a redação composta por Lenin, Plekhanov e Martov. A despeito da decisão do congresso
do partido, Martov negou-se a fazer parte da redação, e os números 46 a 51 saíram sob
a direção de Lenin e Plekhanov. Posteriormente, Plekhanov aderiu às posições do men-
chevismo e exigiu que fossem incluídos na redação do Iskra todos os antigos redatores
mencheviques rejeitados pelo congresso. Lenin não aceitou essa condição e abandonou
a redação do periódico em 19 de outubro (1º de novembro) de 1903, sendo designado
para o Comitê Central, donde passou a lutar contra os oportunistas mencheviques. O
número 52 apareceu sob a direção exclusiva de Plekhanov. Em 13 (26) de novembro de
1903, Plekhanov, por sua conta e risco, contrariando a vontade do congresso, designou
para a redação do Iskra os antigos redatores mencheviques. A partir do número 52, os
mencheviques transformaram o Iskra em seu próprio órgão.]
3
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4a ed. em russo, t. 5, p. 1-12.]
4
[Na primavera e verão de 1901, por iniciativa e por intermédio do grupo Borba, foram
realizadas negociações entre as organizações social-democratas no exterior (“União dos
social-democratas russos”, o Comitê do Bund no exterior, a organização revolucionária
Sotsial-demokrat e a seção estrangeira da organização do Iskra e da Zaria) com o objetivo
de se chegar a um acordo de unificação. A fim de preparar o congresso no qual se daria a
unificação, realizou-se uma conferência de representantes dessas organizações em junho
de 1901, em Genebra, donde resultou seu nome: “Conferência de Junho” ou “de Genebra”.

44
V. I. Lenin

natural a espera pelos resultados dessa tentativa, pois, se tivesse


êxito, talvez fosse necessário expor, sob um ângulo diferente, as
concepções do Iskra relativas à organização; em todo caso, tal
êxito prometeria pôr fim, de modo muito rápido, à existência
de duas correntes na social-democracia russa. O leitor sabe
que a tentativa fracassou e, como buscaremos demonstrar, não
podia terminar de outra maneira após a nova mudança para
o “economismo” 5 de Rabocheie Dielo 6 , em seu número 10.
Tornou-se absolutamente necessário empreender uma decidida
luta contra essa direção vaga e pouco determinada que, por
isso mesmo, é tanto mais resistente e capaz de ressuscitar sob

O Congresso “ de unificação” das organizações do POSDR no exterior ocorreu em 21 e 22


de setembro (4-5 de outubro) de 1901, em Zurique. Nele estavam representados seis
membros da organização do Iskra e da Zaria (Lenin, Krupskaia, Martov e outros), oito
membros da organização revolucionária Sotsial-demokrat (dos quais três eram membros
do grupo “Emancipação do Trabalho”: Plekhanov, Axelrod, Zassulitch), 16 membros
da “União” (incluindo cinco do Comitê do Bund no exterior) e três membros do grupo
Borba. Foram apresentados emendas e aditamentos de caráter oportunista à resolução
de junho, adotados pelo III Congresso da “União”. Frente a isso, os segmentos revolu-
cionários do congresso – membros das organizações do Iskra-Zaria e Sotsial-demokrat
– tornaram pública a declaração sobre a impossibilidade da unificação e abandonaram
o fórum. Por iniciativa de Lenin, em outubro de 1901, tais organizações se uniram na
“Liga da social-democracia revolucionária russa no exterior”.]
5
[Economismo: tendência oportunista surgida de um segmento dos social-democratas russos
na segunda metade dos anos de 1890. Afirmava que a tarefa do movimento operário se
restringia à luta econômica pela melhoria da situação dos operários, ou seja, na busca pela
redução da jornada de trabalho, pelo aumento de salários etc. Em relação à luta política
contra tsarismo, os “economistas” julgavam que se tratava de uma luta a ser travada pela
burguesia liberal e não pelos operários. Opunham-se à formação de um partido político
independente da classe operária, além de negarem a importância da teoria revolucionária
para o movimento operário, rejeitando assim a propaganda das ideias do socialismo.]
6
[Rabotcheie Dielo (A Causa Operária): jornal, órgão da “União dos Social-democratas
Russos” no exterior. Foi editado em Genebra, de abril de 1899 a fevereiro de 1902;
surgiram 12 números (nove volumes). A redação do Rabotcheie Dielo foi o centro dos
“economistas” no exterior. O jornal apoiava a palavra de ordem bernsteiniana de “liber-
dade de crítica” ao marxismo e mantinha posições oportunistas em relação às questões
de tática e às tarefas de organização da social-democracia russa; negava as possibilida-
des revolucionárias do campesinato etc. No congresso do POSDR os partidários do
Rabotcheie­ Dielo representavam o segmento oportunista, de extrema-direita, do partido.]

45
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

variadas formas. A partir disso, modificou-se e ampliou-se,


consideravelmente, o plano inicial desta brochura.
Seu tema principal deveria abarcar três questões postas no artigo
“Por onde começar?”, a saber: o caráter e o conteúdo principal de
nossa agitação política; nossas tarefas de organização; o plano de
criar, simultaneamente e por todo lado, uma organização combativa
voltada para toda a Rússia. Essas questões interessam há muito tem-
po ao autor, que já buscou levantá-las em Rabotchaia Gazeta7, por
ocasião de uma das tentativas fracassadas de reavivar sua publicação
(ver o Cap. V). No entanto, o propósito inicial de nos limitarmos,
nesta brochura, à análise dessas três questões e expor, dentro do
possível, nossas ideias de forma positiva, sem recorrer ou quase sem
recorrer à polêmica, mostrou-se completamente irrealizável, por
duas razões. Por um lado, o “economismo” revelou-se mais forte
que imaginávamos (empregamos o termo “economismo” em senti-
do amplo, como explicado no nº 12 do Iskra [dezembro de 1901],
no artigo “Uma conversa com os defensores do economismo”, que
traçou, por assim dizer, um esboço da brochura8 que oferecemos à
atenção do leitor). Não há dúvidas de que as diferentes concepções
acerca da resolução dessas três questões se explicam muito mais pelo
antagonismo radical entre as duas tendências da social-democracia
russa do que por divergências menores. Por outro lado, a perplexi-
dade dos “economistas” ao ver que o Iskra sustentava, de fato, nossas
concepções evidenciou que falamos línguas literalmente diferentes;
que, por conseguinte, não podemos chegar a nenhum acordo sem
começar ab ovo [desde o princípio – latim]; que é necessário buscar
uma “explicação” sistemática na forma mais popular possível, com
7
[Rabotchaia Gazeta ( Jornal Operário): órgão clandestino dos social-democratas de Kiev.
Apenas dois números foram publicados. O I Congresso do POSDR (março de 1898)
reconheceu-o como órgão oficial do partido. Após o congresso, em consequência das
prisões dos membros do Comitê Central e da redação do Rab. Gazeta e da destruição
da tipografia, o nº 3, já preparado para composição, acabou não sendo publicado. Em
1899, tentou-se reavivar a sua publicação.]
8
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 5, p. 287-293.]

46
V. I. Lenin

base em inúmeros exemplos concretos, com todos os “economistas”,


sobre todos os pontos capitais de nossas divergências. E me decidi
por essa tentativa de “explicação” com plena consciência de que
isso aumentaria significativamente as dimensões desta brochura,
atrasando seu aparecimento. No entanto, não encontrei nenhum
outro caminho para cumprir minha promessa feita no artigo “Por
onde começar?”. Às desculpas pelo atraso acrescento outras pelos
enormes defeitos da forma literária desta brochura: tive que traba-
lhar com extrema pressa e, por outro lado, muitos outros trabalhos
reclamavam minha atenção.
A análise das três questões acima indicadas constitui-se no
tema principal da brochura. Contudo, tive que começar por dois
problemas de caráter mais geral: por que uma palavra de ordem
tão “inocente” e “natural” como a “liberdade de crítica” é para nós
um verdadeiro grito de guerra? Por que não chegamos a um acordo
nem sequer na questão fundamental do papel da social-democracia
em relação ao movimento espontâneo das massas? Ademais, a
exposição de minhas ideias acerca do caráter e do conteúdo da
agitação política converteu-se numa explicação da diferença entre
a política trade-unionista e a social-democrata, e as minhas ideias
sobre as tarefas de organização funcionam como uma explicação
das diferenças entre os métodos artesanais de trabalho, que satis-
fazem os “economistas”, e a organização de revolucionários, que
consideramos indispensável. Em seguida, insisto no “plano” de um
jornal político para toda a Rússia, por serem tão inconsistentes as
objeções feitas a ele, e porque, no fundo, não se tem dado resposta
à questão, colocada em “Por onde começar?”, de como poderíamos
empreender, por todos os lados e de uma só vez, a formação da
organização de que necessitamos. Por fim, na última parte da bro-
chura, espero demonstrar: que fizemos tudo o que dependia de nós
para prevenir uma ruptura definitiva com os “economistas” que,
entretanto, se mostrou inevitável; que Rabotcheie Dielo adquiriu
um significado especial, “histórico”, se quiserem, por refletir da

47
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

forma mais completa, e com maior relevo, não o “economismo”


consequente, mas a dispersão e as vacilações que têm constituído,
na história da social-democracia russa, um traço distintivo de todo
um período; que, por essa razão, adquire importância também a
polêmica, à primeira vista bastante pormenorizada, com Rabotcheie
Dielo, uma vez que não podemos avançar sem liquidar definitiva-
mente esse período.

N. Lenin
Fevereiro de 1902

48
I

DOGMATISMO E “LIBERDADE DE CRÍTICA”

Que significa a “liberdade de crítica”


A “liberdade de crítica” é, sem dúvidas, a palavra de ordem mais
em voga atualmente, a que com mais frequência se emprega nas dis-
cussões entre socialistas e democratas de todos os países. À primeira
vista, nada mais estranho que imaginar uma das partes em disputa
recorrer, solenemente, à “liberdade de crítica”. Por acaso, no seio dos
partidos avançados se levantaram vozes contrárias à lei constitucional
que, na maioria dos países europeus, garante a liberdade da ciência
e da investigação científica? “Algo se passa aqui”, dirá toda pessoa
alheia à questão e que tenha ouvido a palavra de ordem em voga,
repetida em todas as esquinas, mas que não tenha, ainda, penetrado
no cerne das divergências. “Essa palavra de ordem é, evidentemente,
uma dessas expressões convencionais que, como os apelidos, são
legitimados pelo uso e se tornam quase nomes comuns”.
Com efeito, não é segredo para ninguém que, no seio da social-
-democracia internacional 9 contemporânea, se formaram duas

9
A propósito. É um fato talvez único na história do socialismo moderno e, no seu gê-
nero, extremamente consolador, que uma disputa entre diferentes tendências no seio
do socialismo tenha se convertido, pela primeira vez, de nacional em internacional.
Antes, as discussões entre lassalleanos e eisenachianos, entre guesdistas e possibilistas,
entre fabianos e social-democratas (da Federação Social-democrata da Inglaterra), entre
partidários de “A Vontade do Povo” e social-democratas eram puramente nacionais,
refletiam particularidades claramente nacionais, desenvolviam-se, por assim dizer, em
planos diferentes. Atualmente (hoje se vê isso muito claramente), os fabianos ingleses,

49
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

os ministerialistas franceses, os bernsteinianos alemães, os críticos russos formam uma


única família. Elogiam-se mutuamente, aprendem uns com os outros e, em comum,
lutam contra o marxismo “dogmático”. Será que, nessa primeira luta verdadeiramente
internacional contra o oportunismo socialista, a social-democracia revolucionária in-
ternacional se fortalecerá o suficiente para acabar com a reação política que impera na
Europa há um longo tempo?
[Lassalleanos e eisenachianos: dois partidos do movimento operário alemão da década de
1860 e início da década de 1870 que lutavam intensamente entre si sobretudo nas questões
táticas relacionadas ao problema político mais acentuado da Alemanha: as vias da reunifi-
cação. Os primeiros eram partidários do socialista-burguês alemão F. Lassalle (cf., infra,
nota 56) e membros da “União Geral Operária Alemã”, fundada em 1863 no Congresso das
sociedades Operárias, em Leipzig. Lassalle foi seu primeiro presidente, tendo formulado seu
programa político que pleiteava o sufrágio universal e a criação de associações operárias de
produção subvencionadas pelo Estado como seu programa econômico. Apoiavam a política
de grande potência de Bismarck. Inúmeras vezes, Marx e Engels criticaram severamente a
teoria, os princípios e a tática do lassalleanismo, considerando-a uma corrente oportunista
do movimento operário alemão. Os eisenachianos eram membros do Partido Operário
Social-democrata Alemão, fundado em 1869 no Congresso Constituinte de Eisenach. Seus
dirigentes eram A. Bebel e W. Liebknecht, influenciados por Marx e Engels. No programa
eisenachiano assinalava-se que o POSDA (Partido Operário Social-Democrata Alemão)
se reconhecia como uma “seção da AIT – Associação Internacional dos Trabalhadores e
compartilhava suas aspirações”. Os conselhos e críticas de Marx e de Engels possibilitaram
aos eisenachianos desenvolver uma política revolucionária mais consequente do que a da
União Geral Operária alemã dos lassalleanos.
Guesdistas: partidários de J. Guesde e P. Lafargue. Corrente marxista de esquerda que
propunha uma política proletária revolucionária independente. Seu programa (de 1880),
elaborado no âmbito do Partido Operário da França, teve a contribuição teórica de
Marx. Em 1901, os guesdistas formaram o Partido Socialista da França.
Possibilistas: membros da corrente oportunista surgida no movimento operário francês
nos anos de 1880, liderada por B. Melon e P. Brousse (donde surgiu o termo broussis-
tas). Por sua política oportunista, que se limitava à “política de possibilidades”, foram
qualificados ironicamente por Guesde de “possibilistas”. Fundaram, junto a outros
reformistas, o Partido Socialista francês.
Fabianos: membros da Sociedade Fabiana, organização reformista inglesa fundada em
1884, cujo nome se deve ao dirigente militar romano Fabio Máximo (século III antes
da nossa era), apelidado de “o Contemporizador” pela sua tática que evitava os embates
decisivos na guerra com Aníbal. A Sociedade Fabiana compunha-se fundamentalmente
de intelectuais burgueses (cientistas, escritores, políticos, tais como B. Webb, B. Shaw,
R. MacDonald, dentre outros). Os fabianos negavam a necessidade da luta de classes
do proletariado e da revolução socialista, asseverando que a transição para o socialismo
só poderia ser obra de pequenas reformas e mudanças paulatinas na sociedade. Lenin
definiu o fabianismo como uma “corrente do oportunismo extremo”. Em 1900, a Socie-
dade Fabiana ingressou no Partido Trabalhista.
A vontade do Povo (Narodnaia Volia): Associação política secreta de populistas-terroristas,
surgida em agosto de 1879, resultante da divisão no interior da organização Terra e Li-

50
V. I. Lenin

tendências cuja luta ora se reaviva e se incendeia, ora se acalma e


adormece sob as cinzas de impotentes “resoluções de tréguas”. Em
que consiste a “nova tendência” que assume uma atitude “crítica”
frente ao marxismo “velho, dogmático”, disse-o Bernstein, o que
Millerand mostrou com clareza suficiente.
A social-democracia deve transformar-se de partido da revolu-
ção social em um partido democrático de reformas sociais. Berns-
tein tem apoiado essa reivindicação política com toda uma bateria
de “novos’” argumentos e considerações muito harmoniosamente
articulados. Negou-se a possibilidade de fundamentar cientifica-
mente o socialismo e de demonstrar, por meio da concepção ma-
terialista da história, sua necessidade e inevitabilidade. Foi negado
o fato da crescente miséria, da proletarização e da exacerbação das
contradições capitalistas. Foi declarada inconsistente a própria
concepção de “objetivo final” e rechaçada absolutamente a ideia
da “ditadura do proletariado”. Foi negada a oposição de princípios
entre o liberalismo e o socialismo. Negou-se a teoria da luta de

berdade (cf., infra, a nota 129). Seus membros, ao defenderem as posições do socialismo
utópico populista, acabaram ingressando, por outro lado, no caminho da luta política, ao
considerar como primordiais a derrubada da autocracia e a conquista da liberdade política.
Seus partidários levaram adiante uma luta heroica contra a autocracia tsarista. Entretanto, ao
partirem da equivocada ideia dos “heróis” ativos e da “multidão” passiva, pensavam alcançar
a transformação da sociedade sem a participação do povo, somente com suas próprias forças,
através de atos individuais de terror. Após o 1º de março de 1881 (data do assassinato do
tsar Alexandre II), o governo esmagou a organização. Foram vãs as múltiplas tentativas de
reerguer A vontade do povo empreendidas durante a década de 1880.
Ministerialistas franceses: corrente oportunista no interior dos partidos socialistas euro-
peus ocidentais do final do século XIX e início do século XX. Teve no socialista francês
A. Millerand seu principal expoente (originando o termo millerandismo). Millerand
integrou, em 1899, o governo reacionário em seu país, participando de sua política
imperialista.
Críticos russos: assim eram chamados os marxistas legais que expressavam uma corrente
surgida nos anos de 1890 no seio da intelectualidade liberal burguesa da Rússia e repre-
sentada, entre outros, por Struve, Bulgakov e Tugan-Baranovski que, apresentando-se
como partidários do marxismo, extraíam da doutrina de Marx apenas a sua teoria da
inevitabilidade da substituição da formação socioeconômica feudal pela capitalista.
Posteriormente, os “marxistas legais” passaram a inimigos do marxismo, tornando-se
membros do partido burguês dos democratas-constitucionalistas.]

51
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

classes, supondo que não é aplicável a uma sociedade estritamente


democrática, governada conforme a vontade da maioria etc.
Assim, a exigência de uma mudança decisiva – da social-
-democracia revolucionária para o social-reformismo burguês – foi
acompanhada de um giro não menos decisivo no sentido de uma
crítica burguesa a todas as ideias fundamentais do marxismo. E
como tal crítica contra o marxismo vinha se realizando, desde há
muito, da tribuna política e das cátedras universitárias, em nume-
rosos textos e numa série de tratados científicos; como toda a nova
geração das classes ilustradas tem sido educada, sistematicamente,
durante decênios, com base nessa crítica, não é de se estranhar
que a “nova” tendência “crítica” na social-democracia surgisse,
de modo repentino, plenamente definida, tal como Minerva da
cabeça de Júpiter. Por seu conteúdo, essa tendência não teve que
se desenvolver e nem se formar; foi transplantada diretamente da
literatura burguesa para a literatura socialista.
Prossigamos. Se a crítica teórica e as aspirações políticas de
Bernstein estavam ainda pouco claras para alguns, os franceses
cuidaram de dar uma demonstração prática do “novo método”. A
França justificou, mais uma vez, sua velha reputação de “país em
que as lutas históricas de classes foram, mais do que em qualquer
outro, levadas até o fim decisivo” (Engels, do prefácio a O 18
brumário, de Marx). Em vez de teorizar, os socialistas franceses
puseram mãos à obra. O maior desenvolvimento, no sentido demo-
crático, das condições políticas na França permitiram-lhes passar
imediatamente ao “bernsteinianismo prático”, com todas as suas
consequências. Millerand deu um exemplo brilhante desse berns-
teinianismo prático: não foi em vão que Bernstein e Vollmar têm
se apressado em defender e enaltecer tão zelosamente Millerand!
Com efeito, se a social-demcoracia é, em sua essência, simplesmente
um partido de reformas, e deve ter a franqueza de reconhecê-lo
deliberadamente, um socialista não só tem o direito de participar
de um ministério burguês como, também, de aspirar sempre a

52
V. I. Lenin

isso. Se a democracia implica, no fundo, a supressão da dominação


de classes, por que um ministro socialista não encantaria todo o
mundo burguês com discursos sobre a colaboração das classes? Por
que não continuaria no ministério mesmo depois dos assassinatos
de operários por policiais expressarem, pela centésima e milésima
vezes, o verdadeiro caráter democrático de colaboração das classes?
Por que não há de participar pessoalmente na felicitação ao tsar,
a quem os socialistas franceses não dão agora outros nomes que
heróis do chicote, da forca e da deportação (knouteur, pendeur et
déportatour)? Em troca desse infinito envilecimento e autodegra-
dação do socialismo frente ao mundo inteiro, da corrupção da
consciência socialista das massas operárias – o único sustentáculo
que nos pode garantir a vitória –, recebemos grandiosos projetos
de miseráveis reformas; tão miseráveis que se conseguiria obter
mais dos governos burgueses!
Aqueles que não fecham os olhos deliberadamente não podem
deixar de ver que a nova tendência “crítica”, surgida no seio do
socialismo, não é senão uma nova variação do oportunismo. Se
não julgamos os homens pelo brilho do uniforme que os mesmos
vestem, nem pelo título pomposo que a si próprios atribuem, mas
por seus atos e pelas ideias que divulgam efetivamente, veremos
claramente que a “liberdade de crítica” é a liberdade da tendência
oportunista no seio da social-democracia, a liberdade de fazer
dessa última um partido democrata de reformas, a liberdade de
introduzir no socialismo as ideias e elementos burgueses.
A liberdade é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da
liberdade da indústria que se fizeram as piores guerras de pilha-
gens e foi sob a bandeira da liberdade de trabalho que se espo-
liaram os trabalhadores. A mesma falsidade intrínseca encerra o
uso atual da expressão “liberdade de crítica”. Pessoas realmente
convencidas de ter feito avançar a ciência não reclamariam, para
as novas concepções, a liberdade de existir ao lado das antigas,
mas a substituição dessas últimas pelas primeiras. Porém, os

53
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

gritos atuais de “Viva à liberdade de crítica!” lembram bastante


a fábula do tonel vazio.
Marchamos em pequeno e unido grupo por um caminho
escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados
por todas as partes de inimigos e temos que marchar quase sempre
debaixo de seu fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente
tomada, precisamente para lutar contra os inimigos e não cair,
com passos em falso, no pântano vizinho, cujos moradores nos
censuram desde o início por nos separarmos num grupo à parte
e por escolhermos o caminho da luta e não o da conciliação. De
imediato alguns dos nossos começam a gritar: “Vamos para o
pântano!”. E quando se tenta envergonhá-los, replicam: “Que gente
tão atrasada vocês são! Como é que não se envergonham de nos
negar a liberdade de convidar-vos a escolher um caminho melhor!”.
Sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, senão de ir aonde
melhor vos parecer, inclusive para o pântano; até consideramos que
vosso lugar é precisamente o pântano, e nos sentimos dispostos a
prestar toda a colaboração que estiver a nosso alcance para levar-
-vos até lá. Neste caso, soltai as nossas mãos, não nos agarrai, nem
manchai a grande palavra liberdade, porque nós também somos
“livres” para ir aonde nos convier, livres para lutar não só contra o
pântano, como também contra os que se desviam para ele!

Os novos defensores da “liberdade de crítica”


Essa palavra de ordem (“liberdade de crítica”) tem sido solene-
mente propugnada nos últimos tempos por Rabotcheie Dielo (nº
10), órgão da “União dos Social-Democratas Russos” no exterior10,

[A “União dos Social-democratas Russos no exterior” foi fundada em 1894 por ini-
10

ciativa do grupo “Emancipação do Trabalho”. O I Congresso do POSDR (março de


1898) reconheceu a “União” como representante do partido no exterior. Mais tarde
predominaram tendências oportunistas – “economistas” ou os chamados “jovens” –,
tendo inclusive não se solidarizado com o “Manifesto” do I Congresso do POSDR. A
luta no seio da União continuou até o seu II Congresso realizado em Genebra (abril
de 1900), quando o grupo “Emancipação do Trabalho” resolveu abandonar o fórum

54
V. I. Lenin

não como postulado teórico, mas como uma reivindicação política,


como resposta à pergunta: “É possível a união das organizações
social-democratas russas no exterior?”. “Para uma união sólida, é
indispensável liberdade de crítica” (p. 36).
Dessa declaração decorrem duas conclusões bem definidas:
1) Rabotcheie Dielo assume a defesa da tendência oportunista na
social-democracia internacional, em geral; 2) Rabotcheie Dielo exige
a liberdade de oportunismo no seio da social-democracia russa.
Examinemos essas conclusões.
O que desagrada, “acima de tudo”, à Rabotcheie Dielo é a
“tendência do Iskra e da Zaria11 de prognosticar a ruptura entre a
Montanha e a Gironda na social-democracia internacional.”12

optando por criar uma organização independente, denominada Sotsial-demokrat. No II


Congresso do POSDR, os representantes da “União” mantiveram posições de extremo
oportunismo, terminando por abandonar o fórum quando se decidiu reconhecer a “Liga
da Social-democracia Revolucionária Russa no exterior” como a única organização do
partido fora do país. A partir do II Congresso a “União” foi dissolvida.]
11
[Zaria (Aurora): revista político-científico marxista, editada em 1901-1902, em
Stuttgart­, pela redação do Iskra, que teve apenas quatro números (três volumes). A
revista Zaria criticou o revisionismo internacional e russo e defendeu os fundamentos
teóricos do marxismo.]
12
A comparação das duas tendências no seio do proletariado revolucionário (a revolu-
cionária e a oportunista) com as duas correntes da burguesia revolucionária do século
XVIII (a jacobina – a “Montanha” – e a girondina) foi realizada no artigo de fundo do
numero 2 do Iskra (fevereiro de 1901). O autor do artigo foi Plekhanov. Os democrata-
-constitucionalistas, os “sem título” e os mencheviques gostam ainda hoje de falar
de “jacobinismo” na social-democracia russa. Mas hoje em dia preferem calar ou...
esquecer que Plekhanov lançou esse conceito pela primeira vez contra a ala direita da
social-democracia. [Nota de Lenin para a edição de 1907.]
[Os “sem título” eram um grupo semidemocrata-constitucionalista, semimenchevique,
originário da intelectualidade burguesa da Rússia que se constituiu no período de
refluxo da revolução de 1905-1907. A denominação vem da revista semanal política
Benz Zaglavia (Sem título), editada de janeiro a maio de 1906 em Petersburgo, sob a
redação de Prokopovitch. Encobrindo-se com a sua posição formal sem partido, os “sem
título” propugnaram as ideias do liberalismo burguês e do oportunismo e apoiaram os
revisionistas da social-democracia russa e internacional.
Montanha e Gironda denominam dois grupos políticos da burguesia durante a revolu-
ção francesa de fins do século XVIII. Conhecia-se por Montanha – jacobinos – aqueles
representantes mais decididos da burguesia, a classe revolucionária daquele tempo, que
defendia a necessidade de destruir o absolutismo e o feudalismo. Os girondinos, ao

55
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Em geral – escreve B. Kritchevski, diretor de Rabotcheie Dielo –, falar em


Montanha e Gironda nas fileiras da social-democracia parece-nos uma ana-
logia histórica superficial, estranha na pena de um marxista: a Montanha e
a Gironda não representavam dois temperamentos ou correntes intelectuais
distintos, como pode parecer aos historiadores-ideólogos, mas classes ou
camadas diferentes: a média burguesia de uma lado, a pequena burguesia e o
proletariado do outro. No entanto, no movimento socialista contemporâneo
não existem choques de interesses de classes; em todas (itálico de B. Kritchevski)
as suas variedades, incluindo os mais declarados bernsteinianos, o movimento
abraça inteiramente a posição dos interesses de classe do proletariado, de sua
luta de classe por sua emancipação política e econômica (p. 32-33).
Afirmação ousada! Não ouviu B. Kritchevski falar do fato, há
muito tempo observado, de que foi precisamente a ampla partici-
pação da camada dos “acadêmicos” no movimento socialista nos
últimos anos que assegurou a difusão tão rápida do bernsteinia-
nismo? Mas, antes de tudo, em que fundamenta nosso autor sua
opinião de que “os mais declarados bernsteinianos” abraçam a
posição da luta de classes pela emancipação política e econômica
do proletariado? Ninguém o sabe. Essa decidida defesa dos mais
declarados bernsteinianos não se sustenta em nenhum argumento,
em nenhuma razão. Pelo visto, a autor entende que, repetindo o
que de si próprio dizem os bernsteinianos mais declarados, torna-
-se desnecessário apresentar provas de sua afirmação. No entanto,
é possível algo mais “superficial” do que uma opinião acerca de
toda uma tendência fundada no que dizem de si mesmos os seus
próprios representantes? É possível imaginar algo mais superficial
do que a moral subsequente a propósito dos tipos ou vias diferentes
de desenvolvimento do partido, distintos e até mesmo diametral-
contrário dos jacobinos, vacilaram entre a revolução e a contrarrevolução e seguiram
a via do compromisso com a monarquia. Lenin intitulou Gironda socialista à corrente
oportunista da social-democracia e Montanha, jacobinos proletários, aos social-demo-
cratas revolucionários. Depois da cisão do POSDR em bolcheviques e mencheviques,
Lenin sublinhou repetidas vezes que os últimos representavam a corrente girondina no
movimento operário.]

56
V. I. Lenin

mente opostos (Rabotcheie Dielo, p. 34-35)? Os social-democratas


alemães, diz-se, reconhecem uma completa liberdade de crítica; ao
contrário, os franceses não o fazem, e é precisamente o exemplo
que demonstra todo o “mal da intolerância”.
Precisamente o exemplo de B. Kritchevski – respondemos
nós – demonstra que há pessoas que por vezes se denominam
marxistas, mas que consideram a história, literalmente, “à maneira
de Ilovaiski”. Para explicar a unidade do Partido Socialista Ale-
mão e o fracionamento do francês, não há nenhuma necessidade
de vasculhar as particularidades da história de um ou de outro
país, comparar as condições de semiabsolutismo militar e o par-
lamentarismo republicano, analisar as consequências da Comuna
e as da lei de exceção contra os socialistas, comparar a situação
e o desenvolvimento econômicos, recordar como “o crescimento
ímpar da social-democracia alemã” foi acompanhado de uma
luta vigorosa inigualável na história do socialismo, não só contra
as aberrações teóricas (Mühlberger, Dühring13, os socialistas de

Quando Engels atacou Dühring, muitos representantes da social-democracia alemã se


13

inclinaram para esse último e acusaram Engels, inclusive publicamente, num congresso
do partido, de aspereza, de intolerância, de polêmica imprópria entre camaradas etc.
Most e seus camaradas propuseram (no Congresso de 1877) eliminar do Vorwärts
[Avante] os artigos de Engels “por não apresentarem interesse para a enorme maioria dos
leitores”; Vahlteich declarou que a publicação desses artigos tinha prejudicado muito o
partido, que também Dühring tinha prestado serviços à social-democracia: “devemos
aproveitá-los todos no interesse do partido, e se os professores discutem, o Vorwärts não
tem de modo algum que servir de espaço de tais disputas” (Vorwärts, 1877 nº 65, 6 de
junho). Como se vê, esse também é um exemplo de defesa da “liberdade de crítica”,
sobre o qual fariam bem em refletir os nossos críticos legais e oportunistas ilegais, que
gostam tanto de se referir ao exemplo dos alemães!
[O Congresso ordinário do Partido Operário Socialista da Alemanha realizou-se de
27 a 29 de maio de 1877 em Gotha. Nesse congresso, ao ser discutido o problema
da imprensa do partido, foram rejeitadas as tentativas de alguns delegados (Most,
Vahlteich) para censurar o jornal Vorwärts (Avante), órgão central do partido, por ter
publicado os artigos de Engels contra Dühring (editados em 1878 em livro, com o
título O senhor Eugen Dühring revoluciona a ciência), bem como o próprio Engels pelo
caráter áspero da sua polêmica. Ao mesmo tempo, e por motivos práticos, o congresso
decidiu continuar as discussões dos problemas teóricos não mais no jornal, mas num
suplemento científico deste.

57
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

cátedra14), como também contra as aberrações táticas (Lassalle) etc.


etc. Tudo isso é supérfluo! Os franceses discutem entre si porque
são intolerantes; os alemães estão unidos porque são bons moços.
E observe-se que, por meio dessa incomparável profundidade
de pensamento, “recusa-se” um fato que destrói completamente
a defesa dos bernsteinianos. Só através da experiência histórica
se pode resolver definitivamente, e sem voltar atrás, o problema
de saber se assumem a posição de luta de classes do proletariado.
Portanto, o mais importante aqui é o exemplo da França, por ser
o único país onde os bernsteinianos tentaram agir independente-
mente, com a aprovação calorosa de seus colegas alemães (e, em
parte, dos oportunistas russos: ver R. D. nº 2-3, p. 83-84). A alusão
à “intransigência” dos franceses – ademais de sua significação “his-
tórica” (no sentido de Nozdriov15) – não é mais que uma tentativa
de dissimular, com palavras acrimoniosas, fatos extremamente
desagradáveis.
Aliás, não temos qualquer intenção de dar os alemães de
presente para B. Kritchevski e para os numerosos defensores da

O Vorwärts era um diário da direção central do Partido Social-Democrata da Alemanha;


foi publicado em Berlim desde 1891. Em suas páginas, Engels conduziu a luta contra
todas as manifestações do oportunismo. A partir da segunda metade da década de 1890,
depois da morte de Engels, a redação do diário passou para as mãos da ala direita do
Partido. Durante a guerra imperialista mundial (1914-1918), o Vorwärts manteve-se
numa posição social-chauvinista. Após a Revolução socialista de 1917, dedicou-se à
propaganda antissoviética. Continuou sendo publicado em Berlim até 1933.]
14
[Socialistas de Cátedra (Kathreder-Sozialisten): representantes de uma das correntes da
economia política burguesa dos anos de 1870-1880. Do alto das cátedras universitárias,
defendiam o reformismo liberal burguês, fazendo-o passar por socialismo. Pensavam
o Estado burguês como uma instituição “acima das classes”, capaz de reconciliar as
classes antagônicas e de introduzir o “socialismo” paulatinamente, mas sem que fos-
sem contrariados os interesses capitalistas, e, na medida do possível, incorporando as
reivindicações dos trabalhadores. Na Rússia eram os “marxistas legais” que difundiam
os seus pontos de vista.]
15
[Nozdriov: um dos personagens da maior obra satírica do escritor russo N. Gogol –
“Almas Mortas”. Personificava o tipo de indivíduo presunçoso, sem cerimônia e falso.
Gogol caracterizava-o como “homem histórico”, pois onde quer que ele aparecesse
surgiam escândalos e “histórias”.]

58
V. I. Lenin

“liberdade de crítica”. Se os “mais declarados bernsteinianos” são


ainda tolerados nas fileiras do partido alemão, deve-se unicamente
a sua submissão à resolução de Hannover16 que rejeitou, decidida-
mente, as “emendas” de Bernstein, bem como de Lübeck,17 que,
mesmo com toda a diplomacia, traz uma advertência direta a
Bersntein. Do ponto de vista do partido alemão, pode-se discutir
o caráter oportuno dessa diplomacia e perguntar se, nesse caso,
é mais válido um mau acordo do que uma boa discussão; em
resumo, pode-se discordar deste ou daquele meio de repudiar o
bernsteinianismo, mas não de deixar de constatar que o partido
repudiou o bernsteinianismo por duas vezes. Portanto, acreditar que
o exemplo dos alemães corrobora a tese segundo a qual “os mais
declarados bernsteinianos se colocam no campo da luta de classes
do proletariado por sua emancipação econômica e política” é não
compreender absolutamente nada do que passa sob nossos olhos18.
16
[Lenin refere-se à resolução do Congresso de Hannover do Partido Social-Democrata
da Alemanha, realizado de 9 a 14 de outubro de 1889 – “Ataques aos pontos de vista
fundamentais e à tática do partido”. Na resolução foram censuradas as tentativas da
ala oportunista da social-democracia alemã, cujo dirigente ideológico era E. Bernstein.
Buscava-se rever as teses fundamentais do marxismo e conseguir a modificação da tática
do partido social-democrata, convertendo-o num partido de reformas democráticas.
O fato de faltar na resolução a crítica clara do revisionismo e dos seus representantes
concretos provocou o descontentamento dos social-democratas de esquerda (Rosa Lu-
xemburgo e outros), mas levou os adeptos de Bernstein a votarem a favor dessa resolução.]
17
[Lenin refere-se à resolução do Congresso de Lübeck do Partido Social-Democrata da
Alemanha (22-28 de setembro de 1901), dirigida contra E. Bernstein que, depois do
Congresso de Hannover de 1889, não só não cessou os seus ataques contra o programa
e a tática da social-democracia, como, ao contrário, também os intensificou e, ainda
mais, os levou para fora do partido. No decorrer dos debates e na resolução apresentada
por Bebel e aprovada pela esmagadora maioria do congresso, foi feita a Bernstein uma
advertência direta. Contudo, no Congresso de Lübeck não se pôs de maneira intransi-
gente a questão da incompatibilidade da revisão do marxismo com a filiação no partido
social-democrata.]
18
Note-se que o R. Dielo, ao tratar do problema do bernsteinianismo no seio do partido
alemão, limitou-se sempre a uma mera descrição dos fatos, “abstendo-se” inteiramente de
qualquer análise. Veja-se, por exemplo, o nº 2-3, p. 66, sobre o Congresso de Stuttgart;
todas as divergências são reduzidas a problemas de “tática”, afirmando-se apenas que
a imensa maioria se mantém fiel à tática revolucionária anterior. Ou o nº 4-5, p. 25 e
seguintes, que traz uma simples reprodução dos discursos pronunciados no Congresso

59
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Ainda há mais. O Rab. Dielo, como já se viu, coloca a reivindi-


cação da “liberdade de crítica” à social-democracia russa e defende
o bernsteinianismo. Aparentemente, deve ter se convencido de que
os nossos “críticos” e os nossos bernsteinianos foram, injustamente,
ofendidos. Mas, quais precisamente? Por quem, onde e quando? Em
que, precisamente, consistiu a injustiça? A esse respeito, o R. Dielo
silencia; nem uma única menção a um crítico ou a um bernsteiniano
russo! Só nos resta escolher dentre duas hipóteses possíveis. Ou a
ofensa injusta foi ao próprio R. Dielo (o que pode ser confirmado pelo
fato de seus dois artigos do nº 10 se referirem unicamente às ofensas
dirigidas pela Zaria e pelo Iskra a R. Dielo). Nesse caso, como explicar
o estranho fato de que R. Dielo, que sempre se negou, obstinadamen-
te, a qualquer solidariedade ao bernsteinianismo, não tenha podido
defender-se a si próprio sem intervir a favor dos “bernsteinianos mais
declarados” e da liberdade de crítica? Ou as ofensas injustas foram
dirigidas a terceiros. Quais os motivos para não mencioná-los?
Assim, vemos R. Dielo a jogar às escondidas, modo ao qual
vem se atendo desde que existe (como mostraremos mais adiante).

de Hannover, com a resolução de Bebel; são novamente adiadas (como no nº 2-3) para
um “artigo especial” tanto a exposição das concepções de Bernstein quanto a crítica
às mesmas. O curioso é que na p. 33 do nº 4-5, lemos: “... as concepções expostas por
Bebel têm o apoio da enorme maioria do Congresso”, e um pouco mais adiante: “...
David defendia as concepções de Bernstein ... Em primeiro lugar procurava demonstrar
que ... Bernstein e seus amigos, apesar de tudo (sic!), colocavam-se no campo da luta
de classes...”. Isso foi escrito em dezembro de 1899 e, em setembro de 1901, o R. Dielo,
pelo visto, já não acredita que Bebel tivesse tomando para si os argumento de David!
[O Congresso de Stuttgart do Partido Social-Democrata da Alemanha, realizado de 3
a 8 de outubro de 1898, discutiu pela primeira vez a questão do revisionismo na social-
-democracia alemã. Tornou-se pública uma declaração de Bernstein, que se encontrava
na imigração, enviada especialmente ao congresso, na qual ele expunha e defendia os
pontos de vista oportunistas, já manifestados numa série de artigos. Entre os adversá-
rios de Bernstein não houve unidade no congresso; uns, liderados por Bebel e Kautsky,
receando provocar uma cisão no partido, tentavam combinar a luta de princípios contra
o bernsteinianismo com uma tática cautelosa dentro do partido; outros (R. Luxem-
burgo e Parvus), que representavam a minoria, mantinham as posições mais decididas,
procurando ampliar e aprofundar a discussão sem se assustarem com a questão, mas
no decorrer dos debates, assim como outras decisões, mostraram que a maioria no
Congresso conservou a fidelidade às ideias do marxismo revolucionário.]

60
V. I. Lenin

Ademais, note-se essa primeira aplicação prática da tão famosa


“liberdade de crítica”. De fato, essa liberdade logo se restringiu não
só à absoluta inexistência de crítica, como também à ausência de
qualquer julgamento independente em geral. Esse mesmo R. Dielo,
que evita mencionar o bernsteinianismo russo, como se fosse uma
doença secreta (segundo a feliz expressão de Starover19), propõe
como cura dessa doença a pura e simples cópia da última receita
alemã contra a variedade alemã da doença! Em vez de liberdade
de crítica, imitação servil ou... pior ainda: simiesca! O conteúdo
social e político do oportunismo internacional contemporâneo
se manifesta, de modo idêntico, numas ou noutras variedades
conforme as particularidades nacionais. Num país, um grupo de
oportunistas atua há muito sob uma bandeira distinta; noutro,
desdenhando a teoria, seguiram na prática a política dos radicais
socialistas; num terceiro, alguns membros do partido revolucio-
nário foram para o campo do oportunismo e procuram alcançar
seus objetivos, não por meio de uma luta aberta em favor dos
princípios e da nova tática, mas valendo-se de uma corrupção
gradual, imperceptível e, se se pode usar essa expressão, impune
no partido; num quarto país, esses mesmos trânsfugas valem-se
de semelhantes processos nas trevas da escravatura política, através
de uma relação completamente original entre a atividade “legal”
e a “ilegal” etc. etc. No entanto, falar da liberdade de crítica e
do bernsteinianismo russo como uma condição para a união dos
social-democratas russos, deixando de analisar as manifestações
concretas e as consequências especificas do bernsteinianismo russo,
é o mesmo que dizer nada.
Tentemos então dizer, ainda que com poucas palavras, o que
não quis dizer (ou talvez não tenha sido capaz de sequer compreen­
der) R. Dielo.

Trata-se do artigo de A. Potressov (Starover) – “Que aconteceu?” –, publicado no nº 1


19

da revista Zaria de abril de 1901.

61
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

A crítica na Rússia
A particularidade fundamental da Rússia, no que diz respei-
to ao aspecto em análise, consiste em que o próprio começo do
movimento operário espontâneo, por um lado, e a mudanças da
opinião pública avançada em direção ao marxismo, por outro, se
caracterizaram pela combinação de elementos notoriamente hete-
rogêneos, sob uma bandeira e uma luta comuns contra o mesmo
inimigo: as concepções políticas e sociais caducas. Referimo-nos
à lua de mel do “marxismo legal”, que foi em geral um fenôme-
mo extraordinariamente original, cujas possiblidades ninguém
acreditaria na década de 1880 ou no início da de 1890. Num
país autocrático, com uma imprensa completamente subjugada,
numa época de terrível reacionarismo político que reprimia míni-
mas manifestações de descontentamento e de protesto político, a
teoria do marxismo revolucionário, subitamente, abriu caminho
na literatura perseguida pela censura, exposta numa linguagem
esópica, mas compreendida por todos os “interessados”. O go-
verno habituou-se a não considerar como perigosa senão a teoria
de Narodnaia Volia [A vontade do povo] (revolucionária), sem
perceber, como lhe ocorre comumente, a sua evolução interna,
regozijando-se com toda a crítica dirigida contra ela. Antes de o
governo se dar conta, antes do pesado exército de censores e poli-
ciais se defrontar com o novo inimigo e avançar sobre ele, muito
tempo se passou (um bom tempo para nós, russos). E, durante
esse período, foram se sucedendo publicações de obras marxistas,
fundaram-se jornais e revistas marxistas; todo mundo tornava-
-se marxista; os marxistas eram elogiados, adulados; os editores
entusiasmavam-se com a extrema rapidez com que vendiam as
obras marxistas. Compreende-se que entre os marxistas princi-
piantes, envoltos nessa atmosfera de êxitos, tenha havido mais de
um “escritor envaidecido”20 (...).

20
Referência à “Um escritor envaidecido”, título de um conto de Máximo Gorki.

62
V. I. Lenin

Hoje pode-se falar tranquilamente desse período como já pas-


sado. Ninguém ignora que o florescimento efêmero do marxismo
à superfície da nossa literatura adveio da aliança entre tendências
extremistas e tendências bastante moderadas. No fundo, esses
últimos eram democratas burgueses, e essa conclusão (evidenciada
por seu desenvolvimento “crítico” ulterior) já se impunha a certas
pessoas à época em que a “aliança” estava ainda intacta 21.
Mas, nesse caso, os maiores responsáveis pela subsequente
confusão não são os social-democratas revolucionários que fizeram
essa aliança com os futuros “críticos”? Essa pergunta, seguida de
uma resposta afirmativa, ouve-se, por vezes, na boca de pessoas
que veem as coisas de maneira muito linear, embora não tenham
razão alguma. Só receiam alianças temporárias, mesmo com
elementos inseguros, aqueles que não confiam em si próprios; e
nenhum partido poderia existir sem essas alianças. Ora, a aliança
com os marxistas legais foi uma pioneira aliança verdadeiramente
política realizada pela social-democracia. Graças a ela, foi possível
obter uma vitória assombrosamente rápida sobre o populismo, bem
como uma difusão extremamente ampla das ideias marxistas (ainda
que sob uma forma vulgarizada). Ademais, a aliança não foi rea-
lizada inteiramente sem “condições”. Testemunha-o a compilação
marxista Materiais sobre o desenvolvimento econômico na Rússia,
queimada pela censura em 1895. Se se pode comparar como uma
aliança política o acordo literário com os marxistas legais, pode-se
comparar essa obra com um pacto político.

21
Aludimos ao artigo de K. Tuline contra Struve [ver V. I. Lenin, Obras completas, 4a ed.,
em russo, t.1, p. 315-484], redigido com base na conferência intitulada O reflexo do
marxismo na literatura burguesa. Ver o prefácio. [Nota de Lenin para a edição de 1907.
Aqui Lenin refere-se ao seu artigo “O conteúdo econômico do populismo e sua crítica
no livro do sr. Struve (Reflexo do marxismo na literatura burguesa)”, publicado em 1895
na compilação “Materiais para a caracterização do nosso desenvolvimento econômico”
e reeditado em 1907 na coletânea de artigos de Lenin – Em 12 anos –, e ao prefácio
para a mesma obra, onde se faz uma caracterização da história e das condições nas quais
surgiu o artigo citado.]

63
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

A ruptura não se deve, evidentemente, ao fato de os “aliados”


terem se revelado democratas burgueses. Ao contrário, seus represen-
tantes são aliados naturais e desejáveis da social-democracia, sempre
quando se trata de tarefas democráticas desta, tarefas que a situação
atual da Rússia coloca no primeiro plano. No entanto, é condição
indispensável para essa aliança que os socialistas disponham de
plenas possibilidades de revelar à classe operária a oposição hostil
entre seus interesses e os da burguesia. Porém, o bernsteinianismo
e a tendência “crítica”, para qual evoluiu em geral a maior parte dos
marxistas legais, eliminavam essa possibilidade e corrompiam a
consciência socialista, aviltando o marxismo, preconizando a teoria
da atenuação das contradições sociais, proclamando que é absurda
a ideia da revolução e da ditadura do proletariado, reduzindo o mo-
vimento operário e a luta de classe a um trade-unionismo estreito e à
luta “realista” por pequenas e graduais reformas. Isso seria precisa-
mente o mesmo que a negação, por parte da democracia burguesa,
do direito à independência do socialismo e, consequentemente, do
direito a sua própria existência; na prática, isso tendia a converter o
nascente movimento operário em um apêndice dos liberais.
Naturalmente, nessas condições, a ruptura tornou-se neces-
sária. No entanto, essa ruptura significou, dada a particularidade
“original” da Rússia, apenas a eliminação dos social-democratas
da literatura legal, a mais acessível a todos e a mais amplamente
difundida. Nela se entrincheiraram os “ex-marxistas”, agrupados
“sob o signo da crítica” e que obtinham quase o monopólio para
“difamar” o marxismo. As palavras de ordem “contra a ortodo-
xia” e “ viva a liberdade de crítica” (repetidas agora por R. Dielo)
tornaram-se imediatamente palavras muito correntes; as três edições
russas do famoso (famoso à maneira de Heróstrato) Bernstein22

22
O livro de E. Bernstein – Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der
Sozialdemokratie (As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia) foi editado
em russo, em 1901, sob diferentes títulos: 1) Materialismo histórico, 2) Problemas
sociais, 3) Problemas do socialismo e tarefas da Social-democracia.

64
V. I. Lenin

ou a recomendação de Zubatov dos livros de Bernstein, do sr.


Prokopovitch, dentre outros (Iskra nº 10) demonstram que nem
mesmo os censores e nem os policiais resistiram a essa moda. Aos
social-democratas cabia então uma tarefa, em si difícil, incrivel-
mente mais dificultada devido a obstáculos puramente exteriores:
a de combater a nova corrente. E essa corrente não se restringiu ao
campo da literatura. A mudança para a “crítica” foi acompanhada
de um movimento em sentido contrário: a inclinação dos social-
-democratas práticos ao “economismo”.
Essa interessante questão – o surgimento e o estreitamento de
relações de interdependência entre a crítica legal e o “economismo”
ilegal – poderia servir de tema para um artigo especial. Aqui, basta-
-nos assinalar a existência incontestável dessa ligação. O famoso
Credo obteve uma celebridade tão merecida precisamente por ter
formulado abertamente essa ligação e por ter revelado a tendência
política fundamental do “economismo”: que os operários travem
a luta econômica (ou, mais precisamente, a luta trade-unionista23,
uma vez que abrange também a política especificamente operária)
e que a intelectualidade marxista se unifique com os liberais para
a “luta” política. O trabalho trade-unionista junto ao “povo” foi a
concretização da primeira metade dessa tarefa, e a crítica legal a
realização da segunda metade. Essa declaração foi uma arma tão
perfeita contra o “economismo” que, se o Credo não tivesse existido,
valeria a pena tê-lo inventado.
O Credo não foi inventado, mas sim publicado sem o consen-
timento e talvez até mesmo contra a vontade de seus autores. Pelo
menos o autor destas linhas, que contribuiu para trazer à luz do dia
o novo “programa”24, teve de ouvir lamentações e censuras pelo fato

23
[Luta sindical. As trade-unions (uniões sindicais) surgiram na primeira metade do século
XIX na Inglaterra, expandindo-se a partir de 1824, quando foi aprovado no Parlamento
o direito à livre associação.]
24
Trata-se do protesto dos 17 contra o Credo. O autor destas linhas participou na reda-
ção desse protesto (em fins de 1899). Foi publicado no exterior, junto com o Credo,

65
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

de o resumo dos pontos de vista dos oradores ter sido divulgado em


cópias, sendo rotulado com o nome de Credo e publicado na impren-
sa juntamente com o protesto! Referimos-nos a esse episódio porque
revela um traço muito curioso do nosso “economismo”: o medo da
publicização. Trata-se de uma característica do “economismo” em ge-
ral, e não somente dos autores do Credo. Manifesta-se no Rabotchaia
Myls 25 – o adepto mais franco e honesto do “economismo” – e no R.
Dielo (ao indignar-se com a publicação de documentos “economistas”
no Vademecum26), bem como no Comitê de Kiev que, há dois anos,
não quis autorizar a publicação de sua Profession de Foi [Profissão de
fé – francês] em conjunto com a refutação27 desta última, além dos
muitos e muitos representantes isolados do “economismo”.
Esse medo da crítica manifestado pelos adeptos da liberdade
de crítica não pode ser explicado apenas pela astúcia (ainda que,
por vezes, as coisas não aconteçam, indiscutivelmente, sem as-

na primavera de 1900 [ver Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 149-169.]


Atualmente já é sabido, através do artigo da senhora Kuskova (publicado, creio, na revista
de Biloie), que ela foi a autora do Credo e que, dentre os economistas então no exterior, o
sr. Prokopovitch desempenhava um papel de destaque [nota de Lenin à edição de 1907.]
[O Protesto dos Social-Democratas da Rússia foi escrito por Lenin em agosto de 1899
quando se encontrava deportado. Era dirigido contra o manifesto de um grupo de “eco-
nomistas” (S. N. Prokopovitch, E. D. Kuskova e outros). Foi discutido e unanimemente
aprovado numa reunião dos 17 marxistas deportados políticos, convocada por Lenin
no povoado de Ermakovskoe, distrito de Minussinsk. As colônias de deportados em
Turukhannsk e Orlov (província de Viatka) aderiram ao Protesto. Foi enviado por Lenin
ao grupo “Emancipação do Trabalho” no exterior e, no início de 1900, reproduzido por
Plehkanov na coletânea Vademecum para a redação de Rabotcheie Dielo.
A revista Biloie (O Passado) dedicava-se, principalmente, à história do populismo e dos
movimentos sociais anteriores; foi editada, com prolongadas interrupções, de 1900 a
1926.]
25
[Rabotchaia Myls (Pensamento Operário): jornal, órgão dos “economistas”, publicado
desde outubro de 1897 até dezembro de 1902. Saíram 16 números. Foi editado sob a
direção de K. M. Takhtarev, dentre outros.]
26
[O Vademecum para a redação do Rabotcheie Dielo. Compilação de materiais editada
pelo grupo “Emancipação do trabalho” com um prefácio de G. Plekhanov (Genebra,
fevereiro de 1900). Dirigia-se contra o oportunismo nas fileiras do POSDR; em primeiro
lugar, contra o “economismo” da “União dos Social-Democratas Russos” no exterior e
do seu órgão – Rabotcheie Dielo.]
27
Pelo que sabemos, a composição do Comitê de Kiev foi modificada posteriormente.

66
V. I. Lenin

túcia: não é vantajoso deixar expostos à força dos adversários os


rebentos ainda frágeis da nova tendência!). Não, a maioria dos
“economistas”, com absoluta sinceridade, reprova (e tem mesmo
de fazê-lo, pela própria essência do “economismo”) todo tipo de
controvérsias teóricas, divergências divisionistas, grandes questões
políticas, projetos de organização dos revolucionários etc. “Seria
melhor deixar tudo isso no exterior!”, disse-me um dia um dos
“economistas” dos mais consequentes, expressando uma ideia
muito difundida (e também inteiramente trade-unionista): cabe a
nós o movimento operário e suas organizações existentes aqui em
nosso local, enquanto que o resto são invenções dos doutrinários,
uma “superestimação da ideologia”, conforme a expressão usada
pelos autores da carta publicada no nº 12 do Iskra, fazendo coro
com o nº 10 de R. Dielo.
Agora cabe perguntar: dadas essas particularidades da “crítica”
e do bernsteinianismo russos, no que consistiria a tarefa daqueles
que, efetivamente, e não somente por palavras, queriam ser adver-
sários do oportunismo? Primeiramente, era necessário retomar o
trabalho teórico que apenas foi iniciado à época do marxismo legal
e que, agora, voltava-se para os militantes ilegais: sem esse tipo de
trabalho não é possível um crescimento efetivo do movimento.
Em segundo lugar, era preciso empreender uma luta ativa contra
a “crítica” legal, que corrompia profundamente os espíritos. Por
fim, fazia-se necessária uma atuação enérgica contra a dispersão
e as vacilações no movimento prático, denunciando e refutando
qualquer tentativa de rebaixar, consciente ou inconscientemente,
nosso programa e nossa tática.
É sabido que R. Dielo não cumpriu nem a primeira, nem a
segunda e nem a terceira dessas tarefas. Mais adiante teremos que
esclarecer essa verdade bem conhecida, pormenorizadamente e
nos seus mais diversos aspectos. Por ora, queremos simplesmente
mostrar a flagrante contradição existente entre a reivindicação da
“liberdade de crítica” e as particularidades da nossa crítica nacional

67
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

e do “economismo” russo. Deem um olhadela na resolução da


“União dos Social-Democratas Russos no Exterior”, que confirmou
o ponto de vista de R. Dielo:
No interesse do ulterior desenvolvimento ideológico da social-democracia,
reconhecemos que a liberdade de criticar a teoria social-democrata nas
publicações do partido é absolutamente necessária, na medida em que
tal crítica não contradiga o caráter de classe e revolucionária dessa teoria
(Dois congressos, p. 10).
Eis os motivos: a resolução “coincide em sua primeira parte com
a resolução do Congresso do Partido em Lübeck a propósito de
Bernstein”... Na sua simplicidade, os “aliados” nem sequer notam
que testimonium paupertatis [certificado de indigência – latim]
passam a si próprios com essa maneira de copiar!... “Mas... na sua
segunda parte, restringe a liberdade de crítica de um modo mais
estrito que o Congresso de Lübeck.”
A resolução da “União” é, então, dirigida contra os bernsteinia-
nos russos? Porque, de outro modo, seria completamente absurda
a referência a Lübeck. Porém, não é verdade que “restrinja de um
modo estrito a liberdade de crítica”. Na resolução de Hannover,
os alemães rejeitaram, ponto por ponto, precisamente as emendas
apresentadas por Bernstein e, na de Lübeck, fizeram uma advertên-
cia pessoal a Bernstein, mencionando-o. Contudo, nossos imitadores
não fazem a menor alusão a uma única das manifestações da crítica
e do “economismo” especialmente russos. Com esse silêncio, a
alusão abstrata ao caráter de classe e ao caráter revolucionário da
teoria deixa muito mais liberdade para falsas interpretações, sobre-
tudo se a “União” se recusa a classificar o “chamado economismo”
como oportunismo (Dois congressos, p. 8, § 1º). Mas dizemos isso
de passagem. O importante é que, na Alemanha e na Rússia,
as posições dos oportunistas em relação aos social-democratas
revolucionários são diametralmente opostas. Sabe-se que, na Ale-
manha, os social-democratas revolucionários são pela manutenção
do que existe: do antigo programa e da antiga tática, conhecidos

68
V. I. Lenin

por todos e já explicados em detalhes ao longo de dezenas e de-


zenas de anos de experiência. Ao contrário, os “críticos” querem
introduzir mudanças mas, como formam uma ínfima minoria e
suas aspirações revisionistas são muito acanhadas, compreende-
-se as razões que levam a maioria a se limitar à rejeição, pura e
simples, das inovações. Na Rússia, ao contrário, são os “críticos” e
os “economistas” que desejam manter o que já existe: os “críticos”
querem que continuem sendo considerados marxistas e que lhes
seja assegurada a “liberdade de crítica” da qual desfrutam em todos
os sentidos (pois, no fundo, nunca reconheceram qualquer vínculo
partidário28; ademais, não tínhamos um órgão de partido capaz
de “restringir” a liberdade de crítica, nem mesmo por meio de um
conselho); os “economistas” querem que os revolucionários reco-
nheçam “a plenitude de direitos do movimento na atualidade” (R.
D. nº 10, p. 25), isto é, a “legitimidade” da existência do que existe;
que os “ideólogos” não busquem desviar o movimento do caminho
“determinado pela interação entre os elementos materiais e o meio
material” (Carta do nº 12 do Iskra); que se reconheça como dese-
jável travar a luta “que é possível aos operários, nas circunstâncias
presentes” e, como possível, a luta “que travam concretamente no
momento presente” (Suplemento separado do R. Myls, p. 14). Ao
contrário, a nós, social-democratas revolucionários, desagrada-nos

Essa ausência de vínculos partidários públicos e de tradições de partido constitui-se, por


28

si só, uma diferença fundamental entre a Rússia e a Alemanha que deveria ter deixado
vigilantes todas as expressões sensatas do socialismo contra qualquer imitação cega. Aqui
está uma amostra daquilo a que chegou a “liberdade de crítica” na Rússia. Um crítico
russo, sr. Bulgakov, dirige a Hertz, crítico, austríaco, a seguinte advertência: “mesmo
com toda a independência de suas conclusões, Hertz, nesse ponto (o das cooperativas),
permanece aparentemente atado em demasia às opiniões do seu partido e, ainda que
discordando nos pormenores, não se decide pelo abandono do princípio geral” (O capi-
talismo e a agricultura, t. II, p. 287). Um súdito de um Estado politicamente escravizado,
no qual 999/1000 da população estão corrompidos até a medula dos ossos pelo servilismo
político e pela absoluta incompreensão da honra e dos vínculos de partido, repreende
com altivez um cidadão de um Estado constitucional por estar excessivamente “atado
à opinião do partido!”. Nada mais resta às nossas organizações ilegais do que se pôr a
redigir resoluções sobre a liberdade de crítica.

69
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

esse culto da espontaneidade, do que existe “no momento presente”;


exigimos que seja alterada a tática que prevaleceu nos últimos anos
e declaramos que “antes de nossa união, e para a nossa união, é
preciso começar por demarcar-nos, clara e decididamente” (ver
anúncio da publicação do Iskra)29. Numa palavra, conformam-se
os alemães com o que já existe, rejeitando mudanças; quanto a nós,
rechaçando a resignação e a submissão ao estado de coisas atual,
exigimos a modificação do que está posto.
É exatamente essa “pequena” diferença que os nossos “livres”
copiadores de resoluções alemãs não perceberam!

Engels e a importância da luta teórica


“Dogmatismo, doutrinarismo”, “esclerose do partido, castigo
inevitável do sufocamento violento do pensamento”, tais são os
inimigos contra os quais arremetem, com fidalguia, os campeões
da “liberdade de crítica” no R. Dielo. Muito nos agrada que essa
questão tenha sido posta na ordem do dia; proporíamos apenas
completá-la com uma outra:
E quem são os juízes?
Temos diante de nós dois anúncios de publicações literárias.
Um deles é o “Programa do Órgão Periódico da União dos Social-
-Democratas Russos, R. Dielo” (uma separata do nº 1 do R. D.).
O outro é o “Anúncio do recomeço das publicações do grupo
‘Emancipação do Trabalho’”30. Ambos datam de 1899, quando a

[Ver Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 329.]


29

[Grupo “Emancipação do Trabalho”: o primeiro grupo marxista russo fundado por G.


30

Plekhanov na Suíça, em 1883. Levou adiante um grande trabalho de propaganda do


marxismo na Rússia, desferindo um sério golpe no populismo que constituía o principal
obstáculo ideológico no caminho da difusão do marxismo e do desenvolvimento do
movimento social-democrata russo. Os dois projetos de programa dos social-democratas
russos (de 1883 e de 1885), escritos por Plekhanov e publicados pelo grupo “Eman-
cipação do Trabalho”, representaram um passo importante na criação do Partido
Social-democrata Russo. O grupo tinha estabelecido laços com o movimento operário
internacional e, a partir do primeiro Congresso da II Internacional (Paris, 1889), o grupo,
ao longo de sua existência, representou a social-democracia russa em todos os congressos

70
V. I. Lenin

“crise do marxismo” estava, já há algum tempo, na ordem do dia.


Pois bem, em vão procuraríamos na primeira das ditas obras uma
alusão a esse fenômeno e, em face dele, uma exposição clara acerca
da atitude que o novo órgão pensa adotar. Nem esse programa
nem seus suplementos, aprovados pelo III Congresso da “União”
em 190131 (Dois Congressos, p. 15-18), mencionam o seu trabalho
teórico e seus objetivos imediatos no momento atual. Durante
todo esse período, a redação de R. Dielo secundarizava as questões
teóricas, ainda que elas preocupassem os social-democratas do
mundo inteiro.
O outro anúncio, ao contrário, assinala logo de início que, ao
longo dos últimos anos, se verifica um menor interesse pela teoria,
reclama com insistência uma “atenção vigilante para o aspecto
teórico do movimento revolucionário do proletariado” e conclama
a “criticar implacavelmente as tendências bernsteinianas e outras
antirrevolucionárias” no nosso movimento. Os números da Zaria
publicados mostram como foi cumprido esse programa.
Vemos, assim, que as frases altissonantes dirigidas à esclerose
do pensamento etc. dissimulam o desinteresse e a impotência
em desenvolver o pensamento teórico. O exemplo dos social-

da Internacional. Ao mesmo tempo, o grupo ”Emancipação do Trabalho” incorreu em


vários e sérios erros: superestimava o papel da burguesia liberal e subestimava o espírito
revolucionário do campesinato como reserva da revolução proletária. Esses erros foram
os embriões das futuras posições mencheviques de Plekhanov e outros membros do
grupo. Lenin assinalou que o grupo apenas “lançou os fundamentos teóricos da social-
-democracia e deu o primeiro passo ao encontro do movimento operário”. (V. I. Lenin,
A luta ideológica no movimento operário.)]
31
[O III Congresso da “União dos Social-democratas Russos” realizou-se na segunda
quinzena de setembro de 1901 em Zurique; suas resoluções selaram a vitória do oportu-
nismo nas fileiras da “União”. O congresso aprovou emendas e aditamentos aos projetos
sobre a unificação das organizações dos social-democratas russos no exterior, elaborados
na conferência de Genebra, em junho de 1901, e que tiveram um caráter abertamente
oportunista. Tudo isso predeterminou o fracasso do congresso “de unificação” das orga-
nizações do POSDR no exterior, que foi realizado alguns dias depois do III Congresso
da União. O congresso aprovou também as Instruções para a Redação do Rabotcheie
Dielo, que, de fato, constituíam um estímulo para os revisionistas.]

71
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

-democratas ilustra, com particular evidência, um fenômeno


generalizado na Europa (também assinalado, há muito, pelos
marxistas alemães): a famosa liberdade de crítica não implica na
substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade de prescin-
dir de qualquer teoria coerente e refletida, expressando ecletismo
e ausência de princípios. Quem conhece, mesmo que pouco, a
situação real do nosso movimento não pode deixar de verificar
que a ampla difusão do marxismo foi acompanhada por um re-
lativo rebaixamento do nível teórico. Muitos, poucos preparados
teoricamente, outros inclusive sem qualquer preparo, aderiram ao
movimento por seus êxitos práticos e por sua significação efetiva.
Por isso, pode-se julgar a falta de cuidado demonstrada por R.
Dielo ao trombetear, triunfantemente, a seguinte frase de Marx:
“Cada passo do movimento efetivo é mais importante do que
uma dúzia de programas”32. Repetir essas palavras, num momento
de dissensões teóricas, é rigorosamente o mesmo que exclamar à
passagem de um cortejo fúnebre: “Tomara que tenham sempre
algo a levar!” Ademais, tais palavras de Marx foram extraídas da
sua carta sobre o programa de Gotha, na qual condena enfatica-
mente o ecletismo na formulação dos princípios. Uma vez que a
união se faz necessária – escrevia Marx aos dirigentes do partido
–, façam acordos a fim de alcançar os objetivos práticos do mo-
vimento, mas não se permitam a barganha de princípios, nem
façam “concessões” teóricas. Esse era o pensamento de Marx, e

[A frase de Marx comparece na sua carta a W. Bracke, de 5 de maio de 1875, que o leitor
32

brasileiro encontra junto à Crítica do programa de Gotha, texto publicado em Marx, K.


e Engels, F. – Obras escolhidas; São Paulo: Alfa Omega, s/d. v. 2., 189-202.
O programa do Partido Operário Social-democrata Alemão foi aprovado em 1875
no Congresso de Gotha no qual se unificaram os dois partidos social-democratas
alemães, que até então tinham estado separados: os eisenachianos e os lassalleanos
(ver supra nota 1). O programa padecia de ecletismo e era oportunista, uma vez que
os eisenachianos fizeram concessões aos lassalleanos, cedendo em aspectos centrais.
K. Marx e F. Engels submeteram o projeto do Programa de Gotha a uma crítica
demolidora, considerando-o um grande passo atrás em comparação com o programa
de Eisenach, aprovado em 1869.]

72
V. I. Lenin

eis que há entre nós pessoas que, em seu nome, procuram reduzir
a importância da teoria!
Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário.
Nunca será demasiado insistir nessa ideia, numa época em que a
propaganda em voga do oportunismo vem acompanhada de uma
atração pelas formas mais estreitas da atividade prática. Para a
social-democracia russa, a importância da teoria é ainda maior
por três razões, muito frequentemente esquecidas, a saber: inicial-
mente, porque o nosso partido apenas começou a sua formação,
apenas começou a conceber a sua fisionomia e está muito distante
do acerto de contas com outras tendências do pensamento revolu-
cionário que ameaçam desviar o movimento do caminho correto.
Ao contrário, a época recente se distingue notadamente (como
Axelrod já havia antecipado há muito aos “economistas”33) por uma
revitalização de tendências revolucionárias não social-democratas.
Nessas condições, um erro, “sem importância” à primeira vista,
pode levar às mais deploráveis consequências, e é preciso ser mío­
pe para considerar inoportunas ou supérfluas as discussões de
tendências e a delimitação rígida de matizes. Da consolidação de
um ou outro “matiz” pode depender o futuro, por muitos e longos
anos, da social-democracia russa.
Em segundo lugar, o movimento social-democrata é, por
própria natureza, internacional. O que significa que não devemos
combater apenas o chauvinismo nacional. Significa também que
um movimento incipiente num país jovem só se desenvolve com
êxito quando incorpora a experiência de outros países. Para tanto,
não basta apenas conhecer essa experiência ou simplesmente copiar
as últimas resoluções: é necessário saber adotar uma atitude crítica
ante essa experiência e comprová-la por si próprio. Quando se
percebe o monumental crescimento e ramificação do movimento

[Lenin se refere à brochura de P. B. Axelrod intitulada “A propósito das tarefas atuais


33

e da tática dos social-democratas russos” (Genebra, 1898).]

73
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

operário contemporâneo compreende-se o acúmulo de forças teó­


ricas e experiência política (bem como revolucionária) que se faz
necessário para o cumprimento dessa tarefa.
Em terceiro lugar, a social-democracia russa tem tarefas nacio-
nais que jamais se colocaram a qualquer outro partido socialista
no mundo. Mais adiante, trataremos das obrigações políticas e de
organização que nos impõe a tarefa de libertar todo o povo do jugo
da autocracia. Por ora, queremos apenas sinalizar que só um partido
orientado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel
de combatente de vanguarda. E, para se ter uma ideia do que isso
significa, que o leitor recorde os precursores da social-democracia
russa, como Herzen, Bielinski, Tchernichevski e a brilhante plêiade
de revolucionários da década de 1870; que pense na importância
mundial que a literatura russa vai conquistando na atualidade;
que... mas, basta!
Citaremos as observações feitas por Engels em 1874 acerca da
relevância da teoria para o movimento social-democrata. Engels
reconhece na grande luta da social-democracia não duas formas (a
política e a econômica) – como se dá entre nós – mas três, colocando
a seu lado a luta teórica. Suas recomendações ao movimento operá-
rio alemão, já vigoroso prática e politicamente, são tão instrutivas
no que se refere aos problemas e discussões atuais que esperamos
que o leitor não se importe que transcrevamos uma longa passagem
do prefácio do livro A guerra camponesa na Alemanha 34, que já é
uma raridade bibliográfica há muito tempo:
Os operários alemães têm duas vantagens essenciais sobre os operários
do restante da Europa. A primeira delas é que pertencem ao povo
mais teórico da Europa e conservaram esse sentido teórico quase já
completamente perdido pelas chamadas classes “cultas” da Alemanha.

34
[Verlag der Genossenschaftsbuchdrukerei. (A guerra camponesa na Alemanha, 3ª edição,
Leipzig, 1875, Editorial Cooperativa. No Brasil, pode-se encontrar o Prefácio de Engels
lembrado por Lenin em Engels, F – A revolução antes da revolução I; São Paulo: Expressão
Popular, 2008.]

74
V. I. Lenin

Sem a filosofia alemã que o precedeu, sobretudo sem a filosofia de


Hegel, o socialismo científico alemão, o único socialismo científico já
existente, jamais se constituiria. Se os operários alemães não tivessem
esse sentido teórico, esse socialismo científico nunca se tornaria, tal
como se tornou hoje, carne de sua carne, sangue de seu sangue. E que
essa imensa vantagem se expressa, por um lado, quando se constata a
indiferença do movimento operário inglês por qualquer teoria, uma
das principais razões do seu tão lento avanço, apesar da excelente
organização dos diferentes ofícios e, por outro lado, na perturbação e
na confusão semeados pelo proudhonismo, em sua forma inicial, entre
franceses e belgas, e, em sua forma caricatural (que lhe deu Bakunin),
entre espanhóis e italianos.
A segunda vantagem consiste no fato de os alemães serem quase os últimos
a se integrar ao movimento operário. Assim como o socialismo alemão
jamais esquecerá que assenta nos ombros de Saint-Simon, Fourier e
Owen – três pensadores que, apesar de todo o caráter fantasioso e utópico
das suas doutrinas, estão entre os maiores cérebros de todos os tempos,
antecipando-se genialmente a uma infinidade de verdades cuja exatidão
agora demonstramos cientificamente –, do mesmo modo o movimento
operário alemão nunca deve esquecer que se desenvolveu debruçado sobre
os ombros do movimento inglês e francês, que teve a possibilidade sim-
plesmente de aproveitar sua dura experiência, assim evitando no presente
os erros que outrora, na maior parte dos casos, não se podia evitar. Onde
nos encontraríamos agora sem o precedente das trades-unions inglesas e
da luta política dos operários franceses, sem o monumental impulso dado
especialmente pela Comuna de Paris?
Deve-se fazer justiça aos operários alemães por terem aproveitado, com
rara inteligência, as vantagens da sua situação. Pela primeira vez desde o
surgimento do movimento operário, a luta é conduzida metodicamente
nas suas três direções – teórica, política e econômica-prática (resistência
contra capitalistas) –, coordenadas e articuladas entre si. É nesse ataque,
concêntrico por assim dizer, que residem, precisamente, a força e a inven-
cibilidade do movimento alemão.

75
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Por um lado, essa situação vantajosa, por outro, as particularidades insu-


lares do movimento inglês e a repressão violenta ao movimento francês,
fazem com que os operários alemães assumam a frente da luta proletária.
Não é possível prever quanto tempo durarão os acontecimentos que lhes
permitem ocupar esse lugar de honra. No entanto, enquanto o ocuparem
espera-se que irão cumprir as obrigações que lhes são impostas. Para tanto,
terão de redobrar seus esforços em todos os domínios da luta e da agita-
ção. Particularmente, os dirigentes deverão se instruir cada vez mais em
todas as questões teóricas, libertando-se progressivamente da fraseologia
tradicional, específica da velha concepção de mundo, tendo sempre claro
que o socialismo, desde que se tornou uma ciência, exige ser tratado como
uma ciência, ou seja, ser estudado. A consciência dessa maneira alcançada,
e cada vez mais lúcida, deve ser difundida entre as massas operárias com
cuidado ainda maior, deve se consolidar ainda mais fortemente a organi-
zação do partido e dos sindicatos [...].
[...] Se os operários alemães continuam avançando nesse sentido, não diria
que marcharão à frente do movimento – não é de modo algum conveniente
ao movimento que os operários de uma outra nação em particular marchem
à sua frente –, mas que assumirão um lugar de honra na primeira linha
de combate e se encontrarão preparados para isso se, de repente, duras
provas ou grandes acontecimentos exigirem deles maior coragem, maior
decisão e energia.
Tais palavras de Engels revelaram-se proféticas. Alguns anos
mais tarde, os operários alemães foram surpreendentemente
submetidos a duras provas quando se decretou a lei de exceção
contra os socialistas. Com efeito, enfrentaram-na bem preparados
e souberam sair vitoriosos.
O proletariado russo viverá provas incomensuravelmente
mais duras e terá de enfrentar um monstro em comparação com
o qual a lei de exceção num país constitucional mais parece um
verdadeiro pigmeu. Na atualidade, a história nos coloca uma tarefa
imediata, que é a mais revolucionária de todas as tarefas imediatas
do proletariado de qualquer outro país. O seu cumprimento – a

76
V. I. Lenin

destruição do baluarte mais poderoso, não só da reação europeia,


mas também (podemos hoje dizê-lo) da reação asiática – tornaria
o proletariado russo a vanguarda do proletariado revolucionário
internacional. Temos o direito de esperar que conquistaremos
essa honraria – merecida desde já pelos nossos precursores, os
revolucionários da década de 1870 – se soubermos estimular o
nosso movimento, mil vezes mais amplo e mais profundo, com a
mesma convicção e a mesma energia.

77
II

A ESPONTANEIDADE DAS MASSAS E A


CONSCIÊNCIA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

Já afirmamos que é preciso trazer ao nosso movimento, muito


mais amplo e profundo do que o da década de 1870, a mesma
decisão abnegada e a mesma energia daquela época. De fato,
parece que até agora ninguém ainda duvidara de que a força do
movimento contemporâneo consistisse no despertar das massas (e,
principalmente, do proletariado industrial) e que sua debilidade
se devesse à ausência de consciência e de espírito de iniciativa dos
dirigentes revolucionários.
No entanto, uma assombrosa descoberta recente ameaça subverter
todas as ideias, até então dominantes, atinentes a essa questão. Foi feita
por R. Dielo que, em polêmica com Iskra e Zaria, não se limitou a
objeções particulares e tentou relacionar o “desacordo geral” à sua raiz
mais profunda: a uma “apreciação diferente da importância relativa
do elemento espontâneo e do elemento conscientemente ‘metódico’”.
R. Dielo acusa-nos de “subestimar a importância do elemento objetivo
ou espontâneo do desenvolvimento” 35. A esse respeito, contestaremos:
se a polêmica de Iskra e Zaria não tivesse outro efeito do que levar R.
Dielo a descobrir esse “desacordo geral”, esse resultado, em si, traria
enorme satisfação a nós, por tão significativa que é essa tese, a tal
ponto que ilustra claramente toda a essência das atuais divergências
teóricas e políticas entre os social-democratas russos.

Rabotcheie Dielo nº 10, setembro de 1901, p. 17-18 [itálico original.]


35

79
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Por isso mesmo, a questão das relações entre o consciente e o


espontâneo encerra um enorme interesse geral e é necessário que
seja analisada detalhadamente.

Início do ascenso espontâneo


No capítulo anterior, destacamos o interesse generalizado da
juventude instruída da Rússia pela teoria do marxismo, em meados­
dos anos de 1890. O mesmo ocorreu com as greves operárias que
adquiriram, àquela época – após a famosa guerra industrial de
189636, em Petersburgo –, um caráter geral. Sua extensão por toda
a Rússia atestava claramente como era profundo o movimento
popular que voltava a renascer – e, já que se trata de “elemento
espontâneo”, é certamente esse movimento grevista que deve ser
considerado, a priori, como espontâneo. No entanto, há diferentes
formas de espontaneidade. Houve greves na Rússia, nas décadas
de 1860 e 1870 (e até mesmo na primeira metade do século XIX),
que foram acompanhadas da destruição de máquinas etc. Se com-
paradas a esses “motins”, as greves da década de 1890 poderiam
até ser chamadas de “conscientes”, tal foi o progresso do movi-
mento operário naquele período. Isso nos mostra que, no fundo,
o “elemento espontâneo” não é mais do que a forma embrionária
do consciente. E os motins primitivos já expressavam um relativo
despertar do consciente. Os operários deixavam a crença tradicio-
nal na perpetuidade do regime que os oprimia; começavam... não
diria a compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência

[Lenin refere-se à greve de massas dos operários têxteis de Petersburgo, que se de-
36

senrolou entre os meses de maio e junho de 1896. Foi liderada pela “União de Luta
pela Emancipação da Classe Operária” daquela cidade, que fez campanha panfletária
mobilizando os operários para defesa, firme e conjunta, de seus direitos. A “União de
Luta” difundia as principais reivindicações dos operários: redução da jornada de traba-
lho para dez horas e meia, aumento dos salários, pagamento regular etc. As greves de
Petersburgo contribuíram para o desenvolvimento do movimento grevista em toda a
Rússia e obrigaram o governo tsarista a acelerar a revisão das leis fabris e a promulgar
uma nova lei, em 2(14) de junho de 1897, reduzindo a jornada de trabalho nas fábricas
e oficinas para onze horas e meia.]

80
V. I. Lenin

mais coletiva e rompiam deliberadamente com a submissão servil


às autoridades. No entanto, tratava-se mais de uma manifestação
de desespero do que uma luta. O que temos com as greves de
1890 são muito mais lampejos de consciência: formulam-se rei-
vindicações determinadas, busca-se identificar antecipadamente o
momento mais favorável, discutem-se as experiências e os exemplos
de outras regiões etc. Se os motins eram, simplesmente, revoltas
de oprimidos, as greves sistemáticas representavam os embriões da
luta de classes, todavia nada mais que embriões. Em si, essas greves
eram luta trade-unionista, não se configurando ainda como luta
social-democrata; assinalavam o despertar do antagonismo entre
os operários e os patrões, ainda que os operários não tivessem, e
nem poderiam ter, a consciência da oposição irreconciliável entre
seus interesses e a ordem política e social existente. Quer dizer:
não tinham consciência social-democrata. Nesse sentido, as greves
dos anos de 1890, apesar do imenso progresso que representavam
em relação aos “motins”, continuavam a ser um movimento es-
sencialmente espontâneo.
Já afirmamos que os operários nem sequer podiam ter cons-
ciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora.
A história de todos os países comprova que a classe operária,
valendo-se exclusivamente de suas próprias forças, só é capaz de
elaborar uma consciência trade-unionista, ou seja, uma convicção
de que é preciso reunir-se em sindicatos, lutar contra os patrões,
cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias
aos operários etc.37 Já a doutrina do socialismo nasceu das teorias
filosóficas, históricas e econômicas formuladas por representantes
instruídos das classes proprietárias, por intelectuais. Os próprios
fundadores do socialismo científico moderno, Marx e Engels,

37
O trade-unionismo não descarta de modo algum toda a “política”, como por vezes se
pensa. As trade-unions sempre conduziram uma relativa agitação e luta políticas (mas
não social-democrata). No capítulo seguinte, mostraremos a diferença entre a política
trade-unionista e a política social-democrata.

81
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

pela sua situação social, pertenciam à intelectualidade burguesa.


Do mesmo modo, na Rússia, a doutrina teórica social-democrata
surgiu de uma forma completamente independente do avanço
espontâneo do movimento operário; emergiu como consequência
natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os
intelectuais revolucionários socialistas. Nessa época, meados dos
anos de 1890, essa doutrina não só se constituía como um programa
já completamente formado do grupo “Emancipação do Trabalho”,
como também tinha conquistado a maioria da juventude revolu-
cionária da Rússia.
Existiam, assim, ao mesmo tempo, um despertar espontâneo
das massas operárias, um despertar para a vida consciente, para
a luta consciente, como uma juventude revolucionária que, mu-
nida da teoria social-democrata, voltava-se com todas as forças
para os operários. Ademais, importa sobretudo recuperar o fato,
frequentemente esquecido (e relativamente pouco conhecido),
de que os primeiros social-democratas desse período – que, com
fervor, ocupavam-se com a agitação econômica (valendo-se, para
tanto, das indicações verdadeiramente úteis do folheto Sobre a
agitação38, na ocasião ainda um manuscrito) –, longe de a consi-
derarem como sua única tarefa, ao contrário disso, desde o começo
estabeleciam para a social-democracia russa, em âmbito geral, as
mais amplas tarefas históricas, e, em particular, a derrubada da
autocracia. Assim, por exemplo, o grupo dos social-democratas de
Petersburgo, fundador da “União de Luta pela Emancipação da
Classe Operária”39, redigiu, já em fins de 1895, o primeiro número

38
[Escrito em 1894, resumia a experiência do trabalho social-democrata em Vilno e
continha, ademais, apelos para que se renunciasse à propaganda em círculos restritos
e se passasse à agitação de massas entre os operários, com base nas suas necessidades e
reivindicações cotidianas. No entanto, a ênfase atribuída à luta puramente econômica,
em prejuízo da agitação política exigindo direitos e liberdades de caráter democrático
geral, acabou se plasmando no germe do futuro “economismo”.]
39
[A “União de Luta pela Emancipação da Classe Operária”, organizada por Lenin no
outono de 1895, agrupava uns 20 círculos operários marxistas de Petersburgo. Todo o

82
V. I. Lenin

de um jornal intitulado Rabotcheie Dielo. Completamente prepa-


rado para ser impresso, esse número foi apreendido pelos policiais
quando identificaram o endereço de um dos membros do grupo (A.
A. Vaneiev40), onde realizaram uma busca na noite de 8 para 9 de
dezembro de 1895. Desse modo, o Rab. Dielo do primeiro período
não teve a sorte de ver a luz do dia. Seu editorial (que talvez daqui
a uns 30 anos terá seus arquivos exumados do departamento da
polícia por uma revista como Russkaia Stariná 41) esboçava os objeti-
vos históricos da classe operária da Rússia, colocando em primeiro
lugar a conquista da liberdade política. Logo em seguida, vinham
o artigo “Em que pensam nossos ministros”42, dedicado à violenta
dissolução, pela polícia, dos Comitês de Instrução Elementar, e
uma série de artigos de correspondentes não apenas de Petersburgo,

trabalho da “União de Luta” se baseava nos princípios do centralismo e numa rigorosa


disciplina. Acima da organização havia o Grupo Central, dirigido por Lenin.
Na noite de 8 para 9 (de 20 para 21) de dezembro de 1895, grande parte dos militantes
da “União” foi presa, entre eles o próprio Lenin. Foi apreendido o primeiro número de
Rabotcheie Dielo, já preparado para composição. Na prisão, Lenin continuou a dirigir as
atividades da “União” por meio de orientações, cartas e panfletos cifrados. Além disso,
redigiu a brochura “Sobre as greves” e “Projeto e explicação do Programa do Partido
Social-democrata”.
A importância da “União de luta pela Emancipação da Classe Operária” de Petersburgo
consistiu, segundo Lenin, no fato de ter sido o germe do partido revolucionário, apoiada
no movimento operário e dirigindo a luta de classe do proletariado. Os membros da
organização que continuaram em liberdade prepararam o I Congresso do POSDR e
elaboraram o Manifesto, publicado em seguida. Mas a prolongada ausência dos funda-
dores da “União de Luta”, especialmente de Lenin, deportados para a Sibéria, favoreceu o
oportunismo político dos “jovens”, “economistas” que desde 1897, através de Rabotchaia
Myls, tratavam de introduzir ideias do trade-unionismo e do bernsteinianismo. A partir
da segunda metade de 1898, a direção da “União” passou às mãos dos mais declarados
“economistas” – os partidários de Rabotchaia Myls.]
40
A. A. Vaneiev morreu em 1899, na Sibéria Oriental, de uma tuberculose contraída
quando se encontrava incomunicável, em prisão preventiva. Por isso, consideramos
possível publicar a informação contida no texto, cuja autenticidade garantimos, pois
que provém de pessoas que o conheciam, pessoal e intimamente.
41
[O editorial “Aos operários russos”, escrito por Lenin para o jornal Rabotcheie­ Dielo,
não foi até hoje encontrado. A revista histórica Russkaia Starina (Antiguidade Russa)
foi publicada mensalmente em Petersburgo, entre 1870 e 1918.]
42
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 2, p. 71-76.]

83
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

mas também de outras localidades da Rússia (por exemplo, acerca


do massacre de operários na província de Yaroslav43). Assim, se não
nos equivocamos, esse “primeiro ensaio” dos social-democratas
russos da década de 1890 não consistia num jornal de natureza
estritamente local e, muito menos, de caráter “economista”; obje-
tivava unir a luta grevista ao movimento revolucionário contra a
autocracia e levar todas as vítimas da opressão do obscurantismo
reacionário a apoiar a social-democracia. E aquele que conhece,
por pouco que seja, a realidade do movimento nessa época não
poderá duvidar que um jornal como esse obteria toda a simpatia e
acolhimento tanto dos operários quanto dos intelectuais revolucio-
nários, bem como desfrutaria da mais ampla difusão. O fracasso
desse projeto provou simplesmente que os social-democratas da
época não estavam em condições de atender às exigências vitais
do momento, posto que carentes de experiência revolucionária e
de preparação prática. O mesmo deve ser dito em relação a Sankt-
-Peterbúrgski Rabotchi Listok 44 e, principalmente, do Rabotchaia
Gazeta e do Manifesto do Partido Operário Social-democrata da
Rússia, fundado na primavera de 1898. Que fique subentendido
que nem sequer passa por nossa cabeça censurar os militantes desse
período por tal falta de preparação. No entanto, deve-se aproveitar
a experiência do movimento e dela tirar lições práticas, buscando
compreender por completo as causas e o significado de um ou
outro problema. Daí que seja de extrema importância estabelecer
que uma parte (até mesmo a maioria) dos social-democratas que

43
[Lenin faz alusão à repressão aos operários grevistas da Grande Manufatura de Yaroslavl­,
em 27 de abril (9 de Maio) de 1895. A greve, da qual participaram mais de 4.000 ope-
rários, foi provocada pela introdução de novas tarifas que reduziam os salários e acabou
sendo brutalmente reprimida. O artigo de Lenin sobre a greve de Yaroslavl não foi até
hoje encontrado.]
44
[Boletim Operário de São Petersburgo: órgão da “União de Luta pela Emancipação da
Classe Operária” de Petersburgo, que teve apenas dois números publicados. Foi o órgão
que introduziu a tarefa de unir a luta econômica da classe operária às amplas reivindi-
cações políticas, assinalando a necessidade da criação de um partido operário.]

84
V. I. Lenin

atuaram entre 1895 e 1898 considerava possível, com toda razão,


já naquela época – no alvorecer do movimento “espontâneo” –,
defender um programa e uma tática de combate os mais amplos45.
A própria falta de preparo da maioria dos revolucionários não
podia gerar nenhuma apreensão particular, uma vez que se trata
de um fenômeno perfeitamente natural. A partir do momento
em que havia uma escolha correta dos objetivos, em que havia
energia suficiente para tentar reiteradamente atingir os objetivos,
os reveses eventuais constituem apenas um mal menor. A experiên­
cia revolucionária e a capacidade de organização são coisas que se
adquirem com o tempo. A única coisa que se requer é a vontade
de desenvolver em si as qualidades necessárias. A única coisa que
se exige é a consciên­cia dos seus defeitos, o que, no trabalho revo-
lucionário, já pode ser considerado meio caminho para corrigi-los.
Mas o que era um mal menor tornou-se uma verdadeira desgra-
ça quando essa consciência começou a se obscurecer (e é de se notar
que era muito viva entre os militantes dos grupos mencionados),
quando surgiram pessoas, e até mesmo órgãos social-democratas,
dispostas a erigir os defeitos em virtudes e que até tentaram atribuir
um fundamento teórico à sua submissão servil e ao seu culto da
espontaneidade. É tempo de fazer o balanço dessa tendência, muito
imprecisamente caracterizada pela palavra “economismo”, termo
extremamente limitado para exprimir o seu conteúdo.

45
“Ao manter uma atitude negativa em relação à atividade dos social-democratas de fins
da década de 1890, o Iskra não leva em conta que à época não existiam condições para
um trabalho que não fosse a luta por pequenas reivindicações”, dizem os “economistas”
em sua “Carta aos Órgãos Social-democratas Russos” (Iskra nº 12). Os fatos presentes
no texto demonstram que a afirmação acerca da “inexistência de condições” é diame-
tralmente oposta à verdade. Não somente no final, mas em meados dos anos de 1890 já
existiam todas as condições para desenvolver outro trabalho, além da luta por pequenas
reivindicações; havia todas as condições, exceto o suficiente preparo dos dirigentes. E eis
que, em vez de reconhecer com franqueza o despreparo da nossa parte (dos ideólogos,
dos dirigentes), os “economistas” querem jogar a responsabilidade para a “inexistência
de condições”, para a influência da realidade objetiva que determina o caminho do qual
nenhum ideólogo conseguirá desviar o movimento.

85
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Culto da espontaneidade. O Rabotchaia Myls


Antes de conhecer as manifestações literárias desse culto, res-
saltaremos a seguir um fato particular (informado pela fonte acima
citada), que lança alguma luz sobre a forma como surgiu e cresceu
entre os camaradas que atuavam em Petersburgo o desacordo entre
as duas futuras tendências da social-democracia russa. No início de
1897, A. A. Vaneiev e alguns de seus camaradas tiveram oportunidade
de participar, antes da sua deportação, de uma reunião privada em
que se encontraram “velhos” e “jovens” membros da “União de Luta
pela Emancipação da Classe Operária”.46 A conversa girou em torno,
principalmente, da organização e, particularmente, lidou com os
“Estatutos das Caixas Operárias” que, em sua forma definitiva, foram
publicados no nº 9-10 da Listok “Rabotnika” [Folha do Trabalhador]
(p. 46). Entre os “velhos” (os “dezembristas”, como eram ironica-
mente chamados os social-democratas de Petersburgo) e alguns dos
jovens (que mais tarde colaboraram ativamente na Rabotchaia Myls)
manifestou-se de imediato uma divergência explícita e se estabele-
ceu uma acalorada polêmica. Os “jovens” defendiam os princípios
essenciais dos “Estatutos” tais como foram publicados. Os “velhos”
diziam que isso não era o essencial: o essencial era consolidar a “União
de Luta”, transformando-a em uma organização de revolucionários
à qual deveriam estar subordinadas as diversas caixas operárias, os
círculos de propaganda entre a juventude estudantil etc. É claro que
as duas partes não viam nessa divergência razão para um desacordo;
ao contrário, tratavam-na como isolada e casual. No entanto, esse
fato prova que, também na Rússia, o “economismo” não surgiu e
nem se difundiu sem luta contra os “velhos” social-democratas (o
que é esquecido frequentemente pelos “economistas”). E se essa luta
46
[Trata-se das reuniões dos “velhos” fundadores da “União de Luta pela Emancipação
da Classe Operária” de Petersburgo – V. I. Lenin, A. A. Vaneiev, G. M. Krjijanovski,
I. O. Martov, dentre outros – com os novos membros, ocorridas naquela cidade entre 4
e 17 de fevereiro (26 de fevereiro e 1º de março) de 1897, quando os “velhos” membros
da “União” foram postos em liberdade antes de serem deportados para a Sibéria. Nessas
reuniões revelaram-se sérias divergências quanto às questões da organização e tática.]

86
V. I. Lenin

não deixou, em geral, vestígios “documentais”, deve-se unicamente à


impressionante frequência de mudanças na composição dos círculos
que funcionavam, não havendo nenhuma continuidade, razão pela
qual as divergências não ficaram registradas em qualquer documento.
O surgimento de Rab. Myls trouxe o “economismo” à luz do
dia, porém não de modo imediato. É preciso pensar concretamente
acerca das condições de trabalho e da vida efêmera de numerosos
círculos russos (e só as tendo experimentado pode se pensar de tal
maneira) para compreender o quanto foi ocasional o êxito ou o
fracasso da nova tendência nas diferentes cidades, e quão longo
foi o tempo em que não se determinou, e não tinham (nem os
partidários nem os adversários dessa nova tendência) possibilidade
de fazê-lo, se realmente se tratava de uma tendência diferente ou se
era expressão simplesmente da falta de preparo de pessoas isoladas.
Dessa forma, os primeiros números, tirados em hectógrafo, do
Rab. Myls não chegaram às mãos da imensa maioria dos social-
-democratas e, se agora podemos nos referir ao editorial do seu
primeiro número, devemo-lo exclusivamente à sua reprodução no
artigo de V. I. (Listok “Rabotnika” nº 9-10, p. 47 e seguintes) que,
evidentemente, não deixou de louvar com dedicação – uma dedi-
cação desatinada – o novo jornal, que se distinguia notadamente
de outros existentes e de projetos de jornais anteriormente citados47.
Esse editorial exprime com tanto relevo todo o espírito do Rab. Myls
e do “economismo” em geral que vale a pena examiná-lo.
Após ter indicado que o braço de manga azul [polícia tsarista]
não poderia deter o avanço do movimento operário, o editorial
prossegue: “... O movimento operário deve sua vitalidade ao fato
de que o próprio operário toma, finalmente, as rédeas de seu desti-

47
Diga-se de passagem que esse elogio do Rabotchaia Myls – em novembro de 1898, quan-
do o “economismo” havia se definido por completo, sobretudo no exterior –, partia do
próprio V. I., que se tornaria logo depois um dos redatores de Rab. Dielo. Ainda assim,
Rab. Dielo continuou a negar a existência de duas tendências no seio da social-democracia
russa, como continua a negar atualmente!

87
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

no, arrancando-as das mãos dos dirigentes”; essa tese fundamental


segue sendo desenvolvida de modo mais detalhado. Na realidade,
os dirigentes (os social-democratas, organizadores da “União de
Luta”) foram arrancados pela polícia, por assim dizer, das mãos dos
operários48; no entanto, os fatos são veiculados como se os operários
tivessem lutado contra esses dirigentes, libertando-se do seu jugo! Em
vez de conclamar ao avanço, de consolidar a organização revolucio-
nária e de ampliar a atividade política, começaram a incitar a voltar
para trás, no sentido de uma luta exclusivamente trade-unionista.
Proclamou-se que “a base econômica do movimento é encoberta
pela permanente aspiração de um ideal político”, que o lema do
movimento operário deve ser a “luta pela situação econômica”(!),
ou, melhor ainda, “os operários para os operários”; declarou-se que
as caixas de greve “valem mais para o movimento do que uma cen-
tena de organizações” (compare-se essa afirmação, feita em outubro
de 1897, com a discussão entre os “dezembristas” e os “jovens”, do
início de 1897) etc. Frases como aquelas em que se diz ser necessário
colocar em primeiro lugar não a “nata” dos operários, mas o ope-
rário “médio”, o operário da massa, ou a que afirma que “a política
segue sempre docilmente a economia”49 etc. etc. entraram na moda
e angariaram uma irresistível influência sobre a massa da juventude
atraída pelo movimento e que não conhecia, na maioria dos casos,
mais do que fragmentos do marxismo em sua forma legal.
48
O seguinte fato característico mostra que essa comparação é correta. Quando, após a
prisão dos “dezembristas”, espalhou-se entre os operários da estrada de Schlüsselburg a
notícia de que a polícia tinha sido ajudada pelo provocador N. M. Mikhailov (um den-
tista), que mantinha relações com um grupo que tinha contatos com os “dezembristas”,
aqueles operários ficaram tão indignados que decidiram matar Mikhailov.
49
Do mesmo editorial do primeiro número do Rabotchaia Myls. Diante disso, pode-se
julgar a preparação teórica desses “V. V. da social-democracia russa”, que reproduziam
essa grosseira vulgarização do “materialismo econômico” enquanto, em suas publicações,
os marxistas faziam guerra contra o verdadeiro sr. V. V., há tempos alcunhado “mestre
em assuntos reacionários” por pensar desse mesmo modo a relação entre a política e a
economia. [V. V. – Pseudônimo de V. P. Vorontsov, um dos ideológos do populismo
liberal dos anos de 1880-1890. Lenin, com a expressão “V. V da social-democracia
russa”, alude aos “economistas”, corrente oportunista na social-democracia russa.]

88
V. I. Lenin

Isso significava a completa submissão da consciência à espon-


taneidade – à espontaneidade dos social-democratas que repetiam
as “ideias” do sr. V. V.; à espontaneidade dos operários que se dei-
xavam levar pelo argumento de que um aumento de um copeque
por rublo valia mais que todo o socialismo e toda a política, de que
deveriam “lutar sabendo que o faziam não para incertas gerações
futuras, mas para eles próprios e seus filhos” (editorial do nº 1 do
Rabotchaia Myls). Frases desse tipo foram sempre a arma preferida
dos burgueses da Europa Ocidental, cujo ódio ao socialismo os fazia
(como fez o “social-político” alemão Hirsch) buscar transplantar o
trade-unionismo inglês para seus próprios países, defendendo junto
aos operários que a luta exclusivamente sindical50 é uma luta para
eles próprios e para seus filhos e não para gerações futuras incertas e
um vago socialismo futuro. E agora os “V. V. da social-democracia
russa” estão repetindo essa fraseologia burguesa. Importa assinalar
aqui três circunstâncias que nos serão muito úteis para continuar
o exame das divergências atuais 51.
Em primeiro lugar, a submissão da consciência à espontanei-
dade, acima referida, produziu-se também de modo espontâneo.
Isso parece um jogo de palavras, mas infelizmente é uma verdade
amarga. Essa submissão não resultou de uma luta aberta entre
duas concepções diametralmente opostas e do triunfo de uma
sobre a outra, mas se deve ao fato de um número cada vez maior
de “velhos” revolucionários terem sido “afastados” pelos policiais
e à entrada em cena de um número cada vez maior de “jovens”
“V. V. da social-democracia russa”. Qualquer um que tenha, não
exatamente participado no movimento russo contemporâneo, mas
50
Os alemães têm até uma palavra especial: Nur-Gewerkschaftler, com a qual designam
os partidários da luta “exclusivamente sindical”.
51
Destacamos atuais para os que, de maneira farisaica, dão de ombros e dizem: agora é
muito fácil denegrir a Rabotchaia Myls, quando não é mais que um arcaísmo. Mutato
nomine de te fabula narratur [sob outro nome, a fábula fala de ti – latim], contestaremos
a esses fariseus contemporâneos, cuja completa submissão servil às ideias de Rab. Myls
será demonstrada mais adiante.

89
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

simplesmente respirado seus ares, sabe perfeitamente que a situa-


ção é a que acabamos de descrever. E se, ainda assim, insistimos
particularmente para que o leitor tenha bem em conta esse fato
conhecido – e se, para maior clareza, introduzimos dados sobre o
Rabotcheie Dielo do primeiro período e sobre as discussões entre
os “velhos” e os “jovens” do início de 1897 –, é porque pessoas que
se gabam de “democratismo” especulam sobre o desconhecimento
dessa situação por parte do grande público (ou os muito jovens).
Mais adiante voltaremos a insistir nesse ponto.
Em segundo lugar, desde a primeira manifestação literária do
“economismo” podemos verificar um fenômeno, especialmente
original e extremamente característico, que serve para compreender
todas as divergências entre os social-democratas contemporâneos.
Diz respeito aos partidários do “movimento puramente operário”,
aos adeptos da vinculação mais estreita e mais orgânica (expressão
do Rab. Dielo) com a luta operária e aos adversários de todos os
intelectuais não operários (ainda que sejam intelectuais socialistas)
que se veem obrigados, para sustentar sua posição, a recorrer aos
argumentos dos “trade-unionistas puros” burgueses. Isso demonstra
que, desde o seu surgimento, ao R. Myls tinha começado – sem se
dar conta disso – a realizar o programa do Credo. Isso prova (coisa
que R. Dielo não pode compreender de modo algum) que tudo o
que seja inclinar-se perante à espontaneidade do movimento ope-
rário, tudo o que seja rebaixar o papel do “elemento consciente”, o
papel da social-democracia, equivale – independentemente da von-
tade de quem o faz – a fortalecer a influência da ideologia burguesa
sobre os operários. Todos aqueles que falam da “supervalorização
da ideologia”52, de exagero do papel do elemento consciente53 etc.,
imaginam que o movimento puramente operário pode por si só
elaborar, e que elaborará, uma ideologia independente, desde que

Carta dos “economistas”, no nº 12 do Iskra.


52

Rabotcheie Dielo nº 10.


53

90
V. I. Lenin

os operários “tomem as rédeas de seus destinos das mãos dos diri-


gentes”. No entanto, isso é um erro crasso. Para completar o que
já dissemos atrás, citaremos as seguintes palavras, inteiramente
justas e relevantes, de K. Kautsky, a propósito do projeto do novo
programa do Partido Social-democrata Austríaco:54
Muitos de nossos críticos revisionistas entendem que Marx teria afirmado
que o desenvolvimento econômico e a luta de classes, além de criarem
condições para a produção socialista, engendram diretamente a consciência
(itálico de K. K.) da sua necessidade. E eis que esses críticos respondem
que a Inglaterra, o país de maior desenvolvimento capitalista, é mais alheio
do que qualquer outro país a essa consciência. A julgar pelo projeto, pode-
-se acreditar que essa suposta concepção marxista ortodoxa – refutada,
como se viu – é também partilhada pela comissão que redigiu o programa
austríaco. O projeto diz: “Quanto mais o proletariado cresce com o desen-
volvimento capitalista, tanto mais se vê obrigado a empreender a luta contra
o capitalismo e tanto mais capacitado está para empreendê-la. O proleta-
riado passa a adquirir a consciência da possibilidade e da necessidade do
socialismo. Nessa ordem de ideias, a ‘consciência’ socialista aparece como
o resultado necessário e direto da luta de classe do proletariado”. Porém,
isso é completamente falso. Como doutrina, é claro que o socialismo tem
as suas raízes nas relações econômicas atuais, assim como a luta de classes
do proletariado; e, tal como essa, o socialismo deriva da luta contra a po-
breza e a miséria das massas, pobreza e miséria que o capitalismo cria; no
entanto, o socialismo e a luta de classes surgem paralelamente, e um não
deriva do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista
moderna somente pode surgir com base em profundos conhecimentos
científicos. De fato, a ciência econômica contemporânea constitui tanto

Neue Zeit, 1901-1902, XX, I nº 3, p. 79. O projeto da comissão de que fala K. Kautsky
54

foi aprovado pelo Congresso de Viena (no fim do ano passado) sob uma forma um
pouco modificada. [Nesse Congresso, que se realizou de 2 a 6 de novembro de 1901, foi
aprovado o novo programa do partido em substituição ao velho programa de Heinfeld
(1888). No projeto do novo programa, elaborado por uma comissão especial (V. Adler
e outros), por incumbência do Congresso de Brunn de 1899, foram feitas significativas
concessões ao bernsteinianismo.]

91
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

uma premissa da produção socialista quanto também, por exemplo, a


técnica moderna, e, por mais que deseje, o proletariado não pode criar
nem uma nem outra; ambas surgem do processo social contemporâneo.
Mas o portador da ciência não é o proletariado, mas a intelectualidade
burguesa (itálico de K. K.): foi do cérebro de alguns membros dessa camada
que surgiu o socialismo moderno, transmitido por eles aos proletários de
maior desenvolvimento intelectual, os quais por sua vez o introduzem na
luta de classe onde as condições o permitirem. Desse modo, a consciência
socialista é algo introduzido de fora (von Aussen Hineintragenes) na luta de
classe do proletariado e não algo que surgiu espontaneamente (urwüchsig)
em seu interior. De acordo com isso, já o velho programa de Heinfeld dizia,
com toda a razão, que a tarefa da social-democracia é levar ao proletariado
(literalmente: saturar o proletariado de) a consciência da sua situação e da
sua missão. Não haveria necessidade de o fazer se essa consciência derivasse
automaticamente da luta de classes. O novo projeto transcreveu essa tese
do antigo programa e somou-a à tese citada mais atrás. No entanto, isso
interrompeu completamente o curso do pensamento [...].
Já que não se pode sequer falar de uma ideologia independente,
elaborada pelas próprias massas operárias no curso de seu movi-
mento55, o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa
ou ideologia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade
não elaborou nenhuma “terceira” ideologia; ademais, em geral, na
sociedade cortada pelas contradições de classe, não pode nunca

55
Isso não significa, naturalmente, que os operários não tenham participação nessa elaboração.
Não participam como operários, mas como teóricos do socialismo, como os Proudhon e os
Weitling; noutros termos, só participam no momento e na medida em que conseguem
dominar, em menor ou maior grau, a ciência de seu século, fazendo-a avançar. E para
que os operários o consigam com maior frequência, necessita-se do maior empenho possível
para elevar o nível de consciência dos operários em geral; é preciso que os operários não
se limitem ao marco artificialmente restrito da “literatura para operários”, aprendendo a
assimilar cada vez mais a literatura geral. Inclusive, seria mais correto dizer, em vez de
“não se limitem”, “não sejam limitados”, uma vez que os operários leem e querem ler
também tudo o que se escreve para os intelectuais, e apenas alguns intelectuais (de
ínfima categoria) pensam que “para os operários” basta descrever o estado das coisas
nas fábricas e ruminar sobre o que já se conhece há muito tempo.

92
V. I. Lenin

existir uma ideologia à margem das classes ou acima das classes).


Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que
seja afastar-se dela, significa fortalecer a ideologia burguesa. Fala-
-se de espontaneidade. No entanto, o desenvolvimento espontâneo
do movimento operário marcha precisamente para a sua subor-
dinação à ideologia burguesa, marcha precisamente pelo caminho
do programa do “Credo”, pois o movimento operário espontâneo
é trade-unionismo, é Nur-Gewerkschaftlerei, e o trade-unionismo
implica exatamente na escravidão ideológica dos operários pela
burguesia. Por isso, a nossa tarefa, a tarefa da social-democracia,
consiste em combater a espontaneidade, em fazer com que o mo-
vimento operário abandone essa tendência espontânea do trade-
-unionismo a se abrigar sob a asa da burguesia e em atraí-lo para
a asa da social-democracia revolucionária. A frase dos autores da
carta “economista” publicada no nº 12 do Iskra, de que nenhum
esforço dos ideólogos mais inspirados poderá desviar o movimento
operário do caminho determinado pela ação recíproca entre os
elementos materiais e o meio material, equivale plenamente, por-
tanto, a renunciar ao socialismo, e se esses autores fossem capazes
de meditar sobre o que dizem, de meditar até as últimas conse-
quências, corajosa e logicamente – como se exige de todos os que
intervêm na atividade literária e pública –, não lhes restaria outro
remédio senão “cruzar os seus braços inúteis sobre o peito vazio”
e... ceder o campo de ação aos senhores Struve e Prokopovitch, que
arrastam o movimento operário “pela linha da menor resistência”,
ou seja, pela linha do trade-unionismo burguês, ou a dos senhores
Zubatov, que o arrastam pela linha da “ideologia” clerical-policial.
Recorde-se o exemplo da Alemanha. Em que consistiu o mérito
histórico de Lassalle56 em face do movimento operário alemão? Em ter

Ferdinand Lassalle (Breslau, 1825 – Genebra, 1864) foi estudante de Filosofia em


56

Berlim e tornou-se um jovem hegeliano progressista, colaborando com Marx na Nova


Gazeta Renana e durante as revoluções de 1848. Fundou, em 1861, o primeiro partido
socialista da Alemanha – União Geral dos Trabalhadores Alemães –, controlado por

93
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

afastado o movimento do caminho do trade-unionismo progressista


e do cooperativismo, para o qual ele se encaminhava espontanea-
mente (com a participação benévola dos Schulze-Delitzch e consortes).
Para cumprir essa tarefa foi necessário algo completamente diferente
do falatório em torno da subestimação do elemento espontâneo, da
tática-processo, da ação recíproca dos elementos e do meio etc. Foi
necessário encetar uma luta encarniçada contra a espontaneidade e
foi apenas como resultado dessa luta, que durou longos anos, que
se conseguiu, por exemplo, que a população operária de Berlim se
transformasse de base de sustentação do partido progressista em um
dos melhores baluartes da social-democracia. E essa luta não termi-
nou ainda (como poderiam supor pessoas que estudam a história do
movimento alemão a partir de Prokopovitch, e sua filosofia através de
Struve). Também atualmente a classe operária alemã encontra-se fra-
cionada, se é possível usar essa expressão, entre várias ideologias: uma
parte dos operários está agrupada nos sindicatos operários católicos e
monárquicos; outra, nos sindicatos de Hirsch-Duncker,57 fundados
pelos admiradores burgueses do trade-unionismo inglês; uma terceira,
nos sindicatos social-democratas. Essa última é incomparavelmente
maior que as demais, porém a ideologia social-democrata só pôde
conquistar essa supremacia e só poderá preservá-la através de uma
luta perseverante contra todas as outras ideologias.
Por que – perguntará o leitor – o movimento espontâneo, o
movimento pela linha da menor resistência, conduz precisamente

ele. Apesar da colaboração que mantinha com Marx, suas ideias, tanto no campo da
economia quanto no da política, receberam fortes críticas de Marx e de Engels. Prova
disso foi o combate que Marx travou contra a influência lassalleana no programa do
partido adotado em Gotha, opondo-se a várias de suas propostas, tal como a famosa
“lei férrea (ou de bronze) dos salários”.
57
[Organizações sindicais reformistas da Alemanha fundadas em 1868 pelos militantes
do progressismo burguês M. Hirsch e F. Duncker. Pregavam a ideia da “harmonia” dos
interesses do trabalho e do capital e negavam a necessidade da luta grevista. Conside-
ravam que a tarefa principal dos sindicatos consistia em servir de intermediários entre
os operários e os empresários e em acumular recursos pecuniários e que deveria se ater
na organização de caixas de auxílio mútuo e de trabalhos culturais educativos.]

94
V. I. Lenin

à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a


ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a
ideologia socialista, porque é mais completa a sua elaboração e porque
possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos.58 E
quanto mais jovem é o movimento socialista num país, tanto mais
enérgica deve ser, por isso mesmo, a luta contra todas as tentativas
de consolidar a ideologia não socialista, tanto mais decididamente
se deve preservar os operários dos maus conselheiros que vocife-
ram contra o “exagero do elemento consciente” etc. Os autores
da carta dos economistas atacam, fazendo coro com Rab. Dielo,
a intransigência própria do período infantil do movimento. A isso
responderemos: sim, efetivamente, nosso movimento realmente se
encontra em sua infância e, para que chegue com maior velocidade
à sua maturidade, deve ser intransigente contra aqueles que freiam
o seu desenvolvimento, prosternando-se ante a espontaneidade. Não
há nada mais ridículo e nocivo do que presumir de velho militante
que, há muito, já passou por todos os episódios decisivos da luta!
Em terceiro lugar, o primeiro número da Rabotchaia Myls
demonstra que a denominação de “economismo” (à qual, eviden-
temente, não temos a intenção de renunciar, uma vez que, de um
modo ou de outro, é um mote já estabelecido) não expressa com su-
ficiente exatidão a essência da nova corrente. Rab. Myls não repudia
completamente a luta política: nos estatutos das caixas, publicados
em seu primeiro número, fala-se da luta contra o governo. O Rab.
Myls entende tão somente que “a política segue sempre docilmente

Frequentemente se diz: a classe operária tende de um modo espontâneo ao socialismo.


58

Isso é inteiramente justo no sentido de que a teoria socialista determina, com mais
profundidade e exatidão do que qualquer outra, as causas dos males de que padece a
classe operária, e é precisamente por isso que os operários a assimilam com tanta facili-
dade, desde que essa teoria não retroceda, ela mesma, ante a espontaneidade, desde que
submeta a si a espontaneidade. Geralmente isso está subentendido, porém o Rab. Dielo
esquece-o e deturpa-o. A classe operária tende de modo espontâneo ao socialismo, mas
a ideologia burguesa, a mais difundida (e incessantemente ressuscitada sob as formas
mais diversas) é, contudo, a que mais se impõe espontaneamente aos operários.

95
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

a economia” (enquanto o Rabotcheie Dielo diversifica essa tese,


assegurando em seu programa que “na Rússia, mais que em qual-
quer outro país, a luta econômica está inseparavelmente ligada à
luta política”). Essas teses de Rabotchaia Myls e de Rabotcheie Dielo
são completamente falsas, se entendermos por política a política
social-democrata. Como já vimos, é muito frequente que a luta
econômica dos operários esteja ligada (se bem que não de modo
inseparável) à política burguesa, clerical etc. As teses de Rab. Dielo
são corretas se entendermos por política a política trade-unionista,
isto é, a aspiração comum a todos os operários de obter do Estado
estas ou aquelas medidas cujos fins consistem em remediar os
males próprios da sua situação, mas que ainda não suprimem essa
situação, ou seja, não suprimem a submissão do trabalho ao capi-
tal. Essa aspiração é realmente comum tanto aos trade-unionistas
ingleses que mantêm uma atitude hostil ao socialismo quanto aos
operários católicos, aos operários “de Zubatov” etc. Há diferentes
gêneros de política. Vemos, pois, que o Rab. Myls, também no que
se refere à luta política, mais que repudiá-la, prosterna-se perante
a sua espontaneidade, a sua falta de consciência. Ao reconhecer
plenamente a luta política que surge em sua forma espontânea
do próprio movimento operário (ou, dito com mais exatidão: os
anseios e as reivindicações políticas dos operários), renuncia por
completo à elaboração independente de uma política social-democrata
específica, que corresponda aos objetivos gerais do socialismo e às
condições atuais da Rússia. Mais adiante demonstraremos que o
Rab. Dielo incorre no mesmo erro.

O “Grupo de Autoemancipação”59 e o Rabotcheie Dielo


Analisamos tão detalhadamente o editorial, pouco conhecido e
quase esquecido na atualidade, do primeiro número do Rab. Myls

[Pequeno grupo de “economistas” que se constituiu em Petersburgo no outono de


59

1898, e que teve apenas alguns meses de vida. O grupo lançou um apelo que trazia
seus objetivos e editou os seus estatutos e algumas proclamações aos operários.]

96
V. I. Lenin

porque expressou muito antes e com maior relevo do que ninguém


essa corrente geral, que logo viria a aparecer à luz do dia através
de pequenos e numerosos arroios. V. I. tinha plena razão quando,
exaltando esse primeiro número e o editorial do Rab. Myls, disse
que tinha sido escrito “com energia e com ardor” (Listok “Rabotnika”
nº 9-10, p. 49). Todo homem de convicções firmes que pensa que
traz algo novo escreve com “ardor” e escreve de tal maneira que dá
relevo ao seu ponto de vista. Somente aqueles que estão habituados
a nadar entre duas águas carecem de “ardor”; somente pessoas com
essa índole são capazes, depois de terem elogiado ontem o ardor de
Rab. Myls, de atacar hoje o “ardor polêmico” de seus adversários.
Sem nos determos no Suplemento Especial de “Rab. Myls” (mais
adiante teremos, por diferentes motivos, de nos referir a essa obra,
que expressa de modo mais consequente as ideias dos “economis-
tas”), por agora registraremos, apenas brevemente, o Apelo do Grupo
de Autoemancipação dos Operários (março de 1899, reproduzido
na Nakanune60 de Londres nº 7, julho do mesmo ano). Os autores
desse apelo dizem, com toda a razão, que “a Rússia operária não
fez mais que começar a despertar, a olhar à sua volta, e se agarra
instintivamente aos primeiros meios de luta que encontra ao al-
cance de suas mãos”; porém, deduzem disso a mesma conclusão
falsa que o Rab. Myls, esquecendo que o instintivo é justamente
o inconsciente (o espontâneo), em ajuda do qual devem acudir os
socialistas; que os primeiros meios de luta “que encontram ao al-
cance de suas mãos” serão sempre, na sociedade moderna, os meios
de luta trade-unionistas e que a primeira ideologia que encontram
ao seu alcance será a ideologia burguesa (trade-unionista). Tam-
pouco esses autores “negam” a política; todavia, seguindo o sr. V.
V., apenas (apenas!) dizem que a política é uma superestrutura e
que, por isso, “a agitação política deve ser uma superestrutura da

[A Véspera: revista mensal de orientação populista, editada em língua russa, em Londres,


60

de janeiro de 1899 a fevereiro de 1902. Agrupou em torno de si representantes dos


diferentes partidos e correntes pequeno-burgueses.]

97
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

agitação a favor da luta econômica, deve surgir no terreno dessa


luta e seguir atrás dela”.
Quanto ao R. Dielo, sua atividade começou diretamente pela
“defesa” dos economistas. Após ter enunciado falsamente em seu
primeiro número (nº 1, p. 141-142) “ignorar a que jovens cama-
radas se referia Axelrod”, que em seu conhecido folheto61 dirigia
uma advertência aos “economistas”, o R. Dielo teve de reconhecer,
no âmbito de sua polêmica com Axelrod e Plekhanov suscitada
pelo referido falseamento, que, “fingindo não saber de quem se
tratava, quis defender todos os jovens social-democratas emigrados
dessa acusação injusta” (Axelrod considerava estreita a visão62 dos
“economistas” ). Na realidade, a acusação era inteiramente justa
e o R. Dielo sabia muito bem que ela aludia, entre outros, a V. I.,
membro da sua redação. Anotarei de passagem que, na polêmica
mencionada, Axelrod tinha completa razão e que R. Dielo estava
totalmente equivocado na interpretação do meu folheto – “As
Tarefas dos Social-Democratas Russos”63. Ele foi escrito em 1897,
antes do aparecimento de Rabotchaia Myls, quando eu considerava,

61
Em torno da questão das tarefas atuais e da tática dos Social-democratas Russos, Genebra,
1898. Duas cartas ao Rabotchaia Gazeta, escritas em 1897.
62
[A polêmica entre o grupo “Libertação do Trabalho” e a redação do Rabotcheie Dielo
se deve à publicação, no nº 1 de R. D., de abril de 1899, de um balanço da brochura
de V. I. Lenin “As tarefas dos Social-democratas Russos” (Genebra, 1898). A redação
do R. D., negando o caráter oportunista da “União dos Social-democratas Russos” no
exterior e a crescente influência dos “economistas” nas organizações da social-democracia
russa, afirmava nesse balanço que “o conteúdo da brochura coincide plenamente com
o programa da redação do Rabotcheie Dielo” e que a redação desconhecia a “que ca-
maradas jovens Axelrod” se referia no prefácio da brochura. Na Carta à Redação do
R. D., escrita em agosto de 1899, Axelrod provou a inconsistência das tentativas do
periódico de identificar a posição da social-democracia revolucionária – exposta por
Lenin em sua brochura – com a posição dos “economistas” russos e estrangeiros. Em
fevereiro de 1900, o grupo “Emancipação do Trabalho” publicou a coletânea Vademe-
cum para a Redação do R. D. e demonstrou o real predomínio dos traços oportunistas
e das ideias “economistas” no seio da emigração social-democrata russa, agrupada em
torno da “União dos social-democratas russos” e de Rabotcheie Dielo. Posteriormente,
a polêmica com R. D. continuou nas páginas do Iskra e da Zaria.]
63
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 5a ed. em russo, t. 2, p. 433-470.]

98
V. I. Lenin

com toda a razão, que a tendência inicial da “União de Luta” de


São Petersburgo, definida mais acima, era a predominante. E, ao
menos até meados de 1898, essa tendência era realmente a que pre-
dominava. Por isso, Rabotcheie Dielo não tinha o menor direito de
referir-se, para refutar a existência e o perigo do “economismo”, a
um folheto que expunha concepções que foram suplantadas em São
Petersburgo, em 1897-1898, pelas concepções dos “economistas”64.
No entanto, R. Dielo não só “defendia” os “economistas” como
reincidia continuamente em suas aberrações principais. Isso se devia
ao modo ambíguo de interpretar a seguinte tese de seu próprio
programa: “O movimento operário de massas (itálico de R. D.) que
surgiu nesses últimos anos constitui, em nosso juízo, um fenômeno
da maior importância da vida russa, chamado principalmente a
determinar as tarefas (itálico meu) e o caráter da atividade literária
da União.” Não há dúvida de que o movimento de massas é um
fenômeno da maior importância. Mas a questão está em saber
como interpretar a “determinação das tarefas” por esse movimento
de massas. Pode ser interpretada de duas maneiras: ou no sentido
do culto da espontaneidade desse movimento, isto é, reduzindo o
papel da social-democracia ao de simples servidor do movimento
operário como tal (assim como o entendem o Rab. Myls, o “Grupo
de Autoemanciapação” e os outros “economistas”); ou no sentido
de que o movimento de massas nos coloca novas tarefas teóricas,

64
Defendendo-se, Rabotcheie Dielo completou sua primeira falsidade (“Ignoramos a que
camaradas jovens se referiu P. B. Axelrod”) com uma segunda, quando escreveu na
sua Resposta: “Desde o aparecimento da crítica de As tarefas, surgiram ou definiram-se,
mais ou menos claramente, entre alguns social-democratas russos, tendências para a
unilateralidade econômica, que significam um passo atrás em comparação ao estado
do nosso movimento, esboçado em As tarefas” (p. 9). Isso é dito na Resposta, surgida no
ano de 1900. O primeiro número de Rabotcheie Dielo (com a crítica) apareceu em abril
de 1899. Será que o “economismo” só surgiu em 1899? Não. Em 1899 se ouviu pela
primeira vez a voz de protesto dos social-democratas russos contra o “economismo” (o
protesto contra o Credo). Porém, o “economismo” tinha aparecido em 1897, como o sabe
muito bem Rabotcheie Dielo, pois V. I., já em novembro de 1898 (Listok “Rabotnika” nº
9-10), se desfazia em elogios ao Rabotchaia Myls.

99
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

políticas e de organização, muito mais complexas do que aquelas


com que nos podíamos contentar no período anterior ao surgi-
mento do movimento de massas. O Rab. Dielo tendeu, e tende, à
primeira concepção, porque nunca disse nada de concreto acerca
das novas tarefas e, sobretudo, raciocina como se o “movimento
de massas” nos eximisse da necessidade de conceber com clareza
e de efetivar as tarefas que ele coloca. Basta recordar que R. Dielo
considerava impossível colocar ao movimento operário de massas
como primeira tarefa o derrubamento da autocracia, rebaixando
essa tarefa (em nome do movimento de massas) ao plano da luta
por reivindicações políticas imediatas (Resposta, p. 25).
Deixando de lado o artigo “A luta econômica e política no mo-
vimento russo”, de B. Kritchevski, diretor do Rab. Dielo, publicado
no nº 7, no qual repete os mesmos erros65, passaremos diretamente
ao nº 10 de Rab. Dielo. Evidente que não nos deteremos a anali-
sar as objeções isoladas de B. Kritchevski e de Martinov contra a

A “teoria das fases” ou a teoria dos “tímidos zigue-zagues”, na luta política, é exposta,
65

por exemplo, do seguinte modo nesse artigo: “As reivindicações políticas, que pelo seu
caráter são comuns a toda Rússia, devem, todavia, durante os primeiros tempos” (isso foi
escrito em agosto de 1900!) “corresponder à experiência adquirida por uma determinada
camada (sic!) de operários na luta econômica. Só (!) com base nessa experiência se pode
e se deve iniciar a agitação política” etc. (p. 11). Na página 4, o autor, indignado com as
acusações, na sua avaliação completamente infundada, de heresia economista, exclama
em tom patético: “Qual é o social-democrata que ignora que, de acordo com a doutrina
de Marx e Engels, os interesses econômicos das diferentes classes desempenham um
papel decisivo na história e que, portanto (grifado por mim), a luta do proletariado pelos
seus interesses econômicos deve, em particular, ter uma importância primordial para
o seu desenvolvimento como classe e para a sua luta de emancipação?” Esse “portanto”
está completamente fora de lugar. Do fato de os interesses econômicos desempenharem
um papel decisivo não se depreende de maneira alguma a conclusão de que a luta econô-
mica (= sindical) tenha uma importância primordial, pois os interesses mais essenciais,
“decisivos”, das classes somente podem ser satisfeitos, em geral, por transformações
políticas radicais; em particular, o interesse econômico fundamental do proletariado
só pode ser satisfeito por meio de uma revolução política que substitua a ditadura da
burguesia pela ditadura do proletariado. B. Kritchevski repete o raciocínio dos “V. V.
da social-democracia russa” (a política segue a economia etc.) e dos bernsteinianos da
social-democracia alemã (por exemplo, Woltmann alegava precisamente os mesmos
argumentos para provar que os operários, antes de pensar numa revolução política,
deviam adquirir uma “força econômica”).

100
V. I. Lenin

Zaria e o Iskra. A única coisa que aqui nos interessa é a posição


de princípio adotada pelo Rab. Dielo no seu nº 10. Não nos de-
teremos, por exemplo, a analisar o caso curioso de Rab. Dielo ver
uma “contradição flagrante” entre a tese:
A social-democracia não se ata as mãos, não restringe suas atividades a
qualquer plano ou procedimento de luta política preestabelecido: admite
todos os meios de luta, desde que correspondam às forças efetivas do
Partido etc. (Iskra nº 1).66
E a tese:
Se não existe uma organização forte, experiente em travar a luta política
em qualquer circunstância e em qualquer período, não se pode sequer
falar de um plano de atividade sistemático, baseado em princípios firmes
e aplicado rigorosamente, único plano que merece o nome de tática
(Iskra nº 4).67
Confundir em princípio o reconhecimento de todos os meios
de luta, de todos os planos e procedimentos, contanto que sejam
convenientes, com a exigência de guiar-se em um momento político
determinado por um plano rigidamente aplicado, quando se quer
falar de tática, equivale a confundir o fato de a medicina reconhecer
todos os sistemas terapêuticos com a obrigação de se ter de seguir
um sistema determinado no tratamento de uma dada doença. Mas
do que se trata é de que o próprio Rab. Dielo, que sofre da doença
a que chamamos culto da espontaneidade, não quer reconhecer
nenhum “sistema terapêutico” para curar essa doença. Por isso, fez
a descoberta notável de que “a tática-plano está em contradição
com o espírito fundamental do marxismo” (nº 10, p. 18), que a
tática é “um processo de crescimento das tarefas do partido, que cres-
cem junto com o partido” (p. 11, grifado por R. D.). Essa última
sentença tem todas as probabilidades de se tornar célebre, de se
tornar um monumento indestrutível à “tendência” de Rab. Dielo.

[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 345-346.]


66

[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª. ed. em russo, t. 5, p. 6.]


67

101
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

À pergunta: “Para onde ir?”, esse órgão dirigente responde: O


movimento é um processo de mudança de distância entre o ponto
de partida e os pontos seguintes do movimento. Esse pensamento
de incomparável profundidade não é somente curioso (se só fosse
curioso não valeria a pena determo-nos a analisá-lo em particular),
mas representa, além disso, o programa de toda uma tendência, a
saber: o mesmo programa que Rabotchaia Myls expressou (em seu
Suplemento Especial) nos seguintes termos: é desejável a luta que
é possível e é possível a que se trava neste momento. Essa é preci-
samente a tendência do oportunismo ilimitado, que se adapta de
modo passivo à espontaneidade.
“A tática-plano está em contradição com o espírito fundamental
do marxismo”! Mas isso é caluniar o marxismo, é convertê-lo numa
caricatura análoga à que os populistas nos opunham, na sua guerra
contra nós. Isso é justamente rebaixar a iniciativa e a energia dos
que atuam conscientemente, enquanto o marxismo, ao contrário,
dá um impulso gigantesco à iniciativa e à energia dos social-
-democratas, abrindo-lhes as mais amplas perspectivas, pondo (se
podemos expressar) à sua disposição as poderosas forças de milhões
e milhões de operários que se levantam “espontaneamente” para a
luta! Toda a história da social-democracia internacional está cheia
de planos, formulados por este ou aquele chefe político, planos
que mostram a clarividência e a justeza das concepções políticas
e de organização de uns ou revelam a miopia e os erros políticos
de outros. Quando a Alemanha atravessou um dos maiores giros
históricos – formação do Império, abertura do Reichstag, concessão
do sufrágio universal –, Liebknecht tinha um plano da política
e da ação em geral a ser desenvolvido pela social-democracia e
Schweitzer tinha outro. Quando a lei de exceção se abateu sobre
os socialistas alemães, Most e Hasselmann, dispostos a exortar
pura e simplesmente à violência e ao terror, tinham um plano;
Höchberg, Schramm e (em parte) Bernstein tinham outro e se
puseram a pregar aos social-democratas, dizendo-lhes que, com a

102
V. I. Lenin

sua insensata violência e o seu revolucionarismo, tinham provocado


essa lei e que deviam agora obter o perdão através de uma conduta
exemplar; um terceiro plano tinham os que vinham preparando a
publicação de um órgão ilegal,68 levada a cabo. Quando se lança
um olhar retrospectivo, muitos anos depois de terminada a luta
pela escolha de um caminho e depois de a história ter pronunciado
o seu veredicto sobre a conveniência do caminho escolhido, não é
difícil, claro, manifestar profundos pensamentos sentenciando que
as tarefas do partido crescem junto a ele. Mas, num momento de
confusão69, quando os “críticos” e os “economistas” russos rebaixam
a social-democracia ao plano do trade-unionismo e os terroristas
pregam com ardor a adoção de uma “tática-plano” que repete os
velhos erros, limitar-se em um momento desses a pensamentos pro-
fundos desse tipo é passar a si próprio “um certificado de pobreza”.
Num momento em que muitos social-democratas russos padecem,
precisamente, de iniciativa e de energia, de falta de “amplitude na
propaganda, na agitação e na organização política”70, de ausência
de “planos” para uma organização mais ampla do trabalho re-
volucionário, em tal momento dizer que “a tática-plano está em
contradição com o espírito fundamental do marxismo” significa
não só aviltar teoricamente o marxismo, mas também, na prática,
arrastar o partido para trás.

68
[Trata-se do jornal Der Sozialdemokrat, órgão central do Partido Social-democrata da
Alemanha do período de vigência da lei de exceção contra os socialistas. Foi editado
em Zurique de 28 de setembro de 1879 a 22 de setembro de 1888, e em Londres de
1º de outubro de 1888 a janeiro de 1889 por E. Bernstein, que à época era fortemente
influenciado por F. Engels. A direção ideológica de Engels garantia a orientação mar-
xista do jornal. Com a suspensão da lei de exceção deixou de publicar-se, devolvendo
ao Vorwärts o papel de órgão central do partido.]
69
“Ein Jahr der Verwirrung” (“Um Ano de Confusão”) é o título dado por Mehring ao
capítulo da sua História da Social-democracia Alemã no qual descreve as hesitações e
indecisões manifestadas inicialmente pelos socialistas na escolha de uma “tática-plano”
correspondente às novas condições.
70
Do editorial do nº 1 do Iskra. [ver V. I. Lenin, Obras completas, 4a ed. em russo, t. 4, p. 344.]

103
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Um social-democrata revolucionário se propõe como tarefa – alerta-nos


mais adiante R. Dielo – unicamente acelerar com o seu trabalho consciente
o desenvolvimento objetivo e não suprimi-lo ou substituí-lo por planos
subjetivos. Teoricamente, Iskra sabe tudo isso. Mas a enorme relevância
que o marxismo atribui, com razão, ao trabalho revolucionário consciente
leva-o, na prática, como resultado de seu conceito doutrinário da tática, a
minimizar a importância do elemento objetivo ou espontâneo do desen­
volvimento (p. 18).
Mais uma vez uma grande confusão teórica, digna do senhor V.
V. e confrades. No entanto, gostaríamos de perguntar ao nosso filó-
sofo: em que se pode traduzir a “minimização” do desenvolvimento
objetivo por parte do autor de planos subjetivos? Pelo que se vê, em
perder de vista que esse desenvolvimento objetivo cria ou consolida,
arruína ou debilita estas ou aquelas classes, camadas, grupos, estas
ou aquelas nações, grupos de nações etc., condicionando assim um
ou outro agrupamento político internacional de forças, uma ou
outra posição dos partidos revolucionários etc. Porém, o erro de tal
autor não consistirá então em minimizar o elemento espontâneo,
mas em minimizar, ao contrário, o elemento consciente, uma
vez que o que lhe faltará será a “consciência” necessária para uma
correta compreensão do desenvolvimento objetivo. Por isso, só o
simples fato de falar de “apreciação da importância relativa” (itálico
de Rabotcheie Dielo) do espontâneo e do consciente revela uma
absoluta falta de “consciência”. Se certos “elementos espontâneos do
desenvolvimento” são, em geral, acessíveis à consciência humana,
a apreciação errônea desses elementos equivalerá a “minimizar o
elemento consciente”. E se são inacessíveis à consciência, não os
conhecemos e não podemos falar deles. De que fala, então, B.
Kritchevski? Se ele considera errôneos os “planos subjetivos” do
Iskra (e ele declara-os, de fato, errados), deveria mostrar quais os
fatos objetivos que não são levados em conta por esses planos e
acusar o Iskra por essa razão de falta de consciência, de “minimi-
zar o elemento consciente”, usando a sua linguagem. Mas se ele,

104
V. I. Lenin

descontente com os planos subjetivos, não tem outro argumento


que não seja invocar a “minimização do elemento espontâneo” (!!),
a única coisa que demonstra com isso é que: 1) em teoria, com­
preende o marxismo à la Kareiev e Mikhailovski, suficientemente
ridicularizados por Béltov; 2) na prática, dá-se absolutamente por
satisfeito com os “elementos espontâneos de desenvolvimento” que
arrastaram os nossos marxistas legais para o bernsteinianismo e
os nossos social-democratas para o “economismo” e mostra uma
“grande indignação” contra aqueles que decidiram desviar, a todo
custo, a social-democracia russa do caminho do desenvolvimento
“espontâneo”.
E mais adiante surgem coisas completamente divertidas. “As-
sim como os homens que, apesar de todos os êxitos das ciências
naturais, seguirão multiplicando-se segundo os métodos ancestrais,
também o nascimento de uma nova ordem social, apesar de todos
os avanços das ciências sociais e do aumento do número de comba-
tentes conscientes, será também no futuro o resultado, sobretudo,
de explosões espontâneas” (p. 19). Do mesmo modo que a velha
sabedoria diz: A quem faltará inteligência para ter filhos? – também
a sabedoria dos “socialistas modernos” (à la Nartsisse Tuporilov71)
diz: para participar no surgimento espontâneo de um novo sistema
social a ninguém faltará inteligência. Também acreditamos que a
ninguém faltará inteligência para isso. Para participar dessa ma-
neira, basta deixar-se arrastar pelo “economismo” quando reina o
“economismo” e pelo terrorismo quando surge o terrorismo. Assim,
na primavera desse ano, quando era tão importante prevenir contra
a paixão pelo terrorismo, Rabotcheie Dielo estava perplexo frente a
essa questão, “nova” para ele. E, seis meses mais tarde, quando a
questão tinha perdido a atualidade, apresenta-nos ao mesmo tempo

[Lenin está se referindo à sátira poética denominada “Hino do moderno socialista


71

russo”, publicada no número 1 da Zaria (abril de 1901), de Nartsisse Tuporilov. Nela


foram ridicularizados os “economistas” pela sua inclinação ao movimento espontâneo.
O autor da poesia era L. Martov.]

105
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

a seguinte declaração: “Entendemos que a tarefa da social-demo-


cracia não pode nem deve consistir em contrarrestar à ascensão do
espírito terrorista” (R. D. nº 10, p. 23), e a resolução do congresso:
“O congresso considera inoportuno o terror agressivo sistemático”
(Dois congressos, p. 18). Que clareza e coerência tão notáveis! Não
nos opomos, mas o declaramos inoportuno; e o declaramos de tal
maneira que o terror não sistemático e defensivo não está incluído
na “resolução”. Há que reconhecer que semelhante resolução não
corre qualquer perigo e fica garantida por completo contra todos
os erros, tal como um homem que fala para nada dizer! E para
redigir tal resolução, não é necessário mais do que uma coisa: saber
seguir atrás do movimento, mantendo-se na retaguarda. Quando
o Iskra ridiculariza Rab. Dielo por este ter declarado que a questão
do terror era uma questão nova72, Rab. Dielo, contrariado, acusou
o Iskra “de ter a pretensão verdadeiramente incrível de impor à
organização do partido a solução de problemas de tática feita há
mais de 15 anos por um grupo de escritores emigrados” (p. 24).
Com efeito, que pretensão e que exagero do elemento consciente:
resolver de antemão os problemas em teoria, para depois convencer
da justeza dessa solução tanto a organização quanto o Partido e
as massas!73 Outra coisa é repetir lugares-comuns e, sem “impor”
nada a ninguém, submeter-se a cada “mudança”, seja para o
“economismo”, seja para o terrorismo! O Rabotcheie Dielo chega,
inclusive, a generalizar esse grande preceito da sabedoria humana,
acusando o Iskra e a Zaria de “opor seu programa ao movimento,
como um espírito que se forma sobre o caos amorfo” (p. 29). Po-
rém, em que consiste o papel da social-democracia, senão o de ser
o “espírito” que não só se forma sobre o movimento espontâneo,
mas também eleva esse último ao plano do “seu programa”? Não

[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 6-8.]


72

Também não se deve esquecer de que, ao resolver “em teoria” a questão do terror, o
73

grupo “Emancipação do Trabalho” sintetizou a experiência do movimento revolucionário


anterior.

106
V. I. Lenin

consiste em seguir se arrastando na retaguarda do movimento,


coisa que, no melhor dos casos, seria inútil para o movimento e,
no pior, extremamente nociva. Mas Rabotcheie Dielo não só segue
essa “tática-processo”, como também até a erige em princípio, de
modo que seria mais correto chamar essa tendência de seguidismo
em vez de oportunismo. É imperioso reconhecer que aqueles que
estão firmemente decididos a seguir o movimento marchando
em sua retaguarda estão, absolutamente e para sempre, contra a
“minimização do elemento espontâneo do desenvolvimento”.

***

Assim, pois, persuadimo-nos de que o erro fundamental da


“nova tendência” no seio da social-democracia russa consiste em
render culto à espontaneidade, em não compreender que a espon-
taneidade das massas exige de nós, social-democratas, uma elevada
consciência. Quanto mais poderoso é o ascenso espontâneo das
massas, quanto mais amplo se tornar o movimento, incomparavel-
mente maior é a rapidez com que aumenta a necessidade de uma
elevada consciência, tanto no trabalho teórico da social-democracia
quanto no político e no de organização.
O movimento de ascensão espontânea das massas na Rússia
foi (e segue sendo) tão rápido que a juventude social-democrata
acabou por se revelar pouco preparada para cumprir essas tarefas
gigantescas. Essa falta de preparação é a nossa desgraça comum,
a desgraça de todos os social-democratas russos. A ascensão das
massas se deu e se estendeu de forma ininterrupta e contínua e
não só não cessou onde tinha começado, como também ainda se
propagou a novas localidades e a novos setores da população (sob
a influência do movimento operário, reanimou-se a efervescência
entre a juventude estudantil, entre os intelectuais em geral e até
entre os camponeses). No entanto, os revolucionários atrasaram-se
em relação a esse movimento ascensional tanto nas suas “teorias”

107
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

quanto na sua atividade, não conseguiram criar uma organização


permanente que funcionasse sem solução de continuidade, capaz
de dirigir todo o movimento.
No primeiro capítulo constatamos que Rab. Dielo rebaixa as
nossas tarefas teóricas e repete “espontaneamente” o grito da moda:
“liberdade de crítica”; os que o repetem não tiveram a “consciência”
suficiente para compreender que são diametralmente opostas as
posições dos “críticos” oportunistas e as dos revolucionários na
Alemanha e na Rússia.
Nos capítulos seguintes examinaremos como se manifesta o
culto da espontaneidade no terreno das tarefas políticas, bem como
no trabalho de organização da social-democracia.

108
III

POLÍTICA TRADE-UNIONISTA E POLÍTICA


SOCIAL-DEMOCRATA

Começaremos mais uma vez por um elogio a Rabotcheie


Dielo. “Literatura de denúncias e luta proletária” é o título com
que Martinov encabeça, no nº 10 de Rab. Dielo, um artigo sobre
as divergências com o Iskra. “Não podemos nos circunscrever a
denunciar o estado de coisas que entorpece o seu desenvolvimento
(do partido operário). Devemos também nos fazer eco dos interesses
imediatos e cotidianos do proletariado” (p. 63). Assim formulava
Martinov a essência dessas divergências. “... o Iskra... é de fato
um órgão de oposição revolucionária que denuncia o estado de
coisas reinante no nosso país e, preferencialmente, o estado de
coisas político... Por outro lado, nós trabalhamos e seguiremos
trabalhando pela causa operária, em estreito vínculo orgânico
com a luta proletária” (idem). É forçoso agradecer a Martinov por
essa formulação. Ela adquire um destacado interesse geral, porque,
no fundo, não só abarca nossas divergências com Rab Dielo, mas
também, de uma maneira geral, todas as divergências entre nós
e os “economistas” no que se refere à luta política. Já demonstra-
mos que os “economistas” não negam em absoluto a “política”,
mas que tão somente se desviam constantemente da concepção
social-democrata para a concepção trade-unionista da política. De
modo exatamente igual se desvia Martinov e, por isso, dispomo-
-nos a tomá-lo como espécime dos erros dos economistas referentes
a essa questão. Trataremos de demonstrar que ninguém – nem os

109
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

autores do Suplemento Separado de Rab. Myls, nem os autores da


proclamação do “Grupo de Autoemancipação” e nem os autores
da carta “economista” publicada no nº 12 do Iskra – poderá “jogar
em nossa cara” a escolha feita.

A agitação política e sua restrição pelos economistas


Todos sabem que a luta econômica74 dos operários russos se
estendeu em vasta escala e se consolidou paralelamente ao apare-
cimento da “literatura” das denúncias econômicas (concernentes
às fábricas e às profissões). O conteúdo principal dos “panfletos”
consistia em denunciar a ordem de coisas existente nas fábricas,
e entre os operários de imediato se engendrou uma verdadeira
paixão por essas denúncias. Quando os operários viram que os
círculos dos social-democratas queriam e podiam fornece-lhes
panfletos de novo tipo – que lhes diziam toda a verdade sobre a
sua vida miserável, o seu trabalho incrivelmente penoso e a sua
situação de párias – começaram a chover, por assim dizer, cartas
das fábricas e das empresas. Essa “literatura de denúncias” pro-
duziu uma enorme sensação, não só nas fábricas, cujo estado de
coisas fustigava, mas ainda em todas as fábricas donde chegavam
notícias dos fatos denunciados. E já que as necessidades e os sofri-
mentos dos operários de diferentes empresas e ofícios têm muito
de comum, a “verdade sobre a vida operária” entusiasmava a todos.
Entre os operários mais atrasados desenvolveu-se uma verdadeira
paixão “por aparecer em letra de forma”, paixão nobre por essa
forma embrionária de guerra contra toda a ordem social moderna,
baseada na pilhagem e na opressão. E os “panfletos”, na imensa
maioria dos casos, eram de fato uma declaração de guerra, por-

74
A fim de evitar interpretações equivocadas, fazemos notar que, na exposição que se segue,
entendemos sempre por luta econômica (segundo o uso estabelecido entre nós), a “luta
econômica prática” que Engels, na citação apresentada mais atrás, chamou “resistência
aos capitalistas” e que, nos países livres, se chama luta profissional, sindical ou trade-
-unionista.

110
V. I. Lenin

que a denúncia exercia uma ação terrivelmente excitante, movia


todos os operários a reclamar que se pusesse fim aos escândalos
mais flagrantes e dispunha-os a defender suas reivindicações por
meio de greves. Os próprios proprietários das fábricas tiveram,
no final das contas, de reconhecer até tal ponto a importância
desses panfletos como declaração de guerra que, por vezes, nem
sequer queriam aguardar a própria guerra. As denúncias, como
sempre acontece, produziam enorme efeito pelo simples fato da
sua aparição, adquirindo o valor de uma poderosa pressão moral.
Por mais de uma vez, bastou que aparecesse um panfleto para que
as reivindicações fossem satisfeitas total ou parcialmente. Numa
palavra, as denúncias econômicas (das fábricas) foram e continuam
a ser uma alavanca importante da luta econômica. E conservarão
essa importância enquanto subsistir o capitalismo, que engendra
necessariamente a autodefesa dos operários. Nos países europeus
mais avançados se pode observar, inclusive na atualidade, como
a denúncia de escândalos que ocorrem em alguma “indústria”
situada num ponto remoto ou em algum ramo de trabalho em
domicílio esquecido de todos se converte em ponto de partida
para despertar a consciência de classe, para iniciar a luta sindical
e a difusão do socialismo75.
A imensa maioria dos social-democratas russos esteve, nos úl-
timos tempos, quase inteiramente absorvida por esse trabalho de
75
No presente capítulo, falamos unicamente da luta política, de seu conceito mais amplo ou
mais restrito. Por isso, assinalaremos apenas de passagem, como um simples fato curioso,
a acusação lançada por Rabotcheie Dielo contra Iskra de “abstenção extensiva” em relação
à luta econômica (Dois congressos, p. 27, repetida de modo maçante por Martinov na sua
brochura A Social-democracia e a classe operária). Se os senhores acusadores medissem
(como gostam de fazer) em pesos ou em folhas impressas a seção do Iskra dedicada à
luta econômica durante o ano, e a comparassem com a mesma seção de Rab. Dielo e
Rab. Myls juntos, logo veriam que, mesmo nesse sentido, estão atrasados. É evidente
que a consciência dessa simples verdade força-os a recorrer a argumentos que mostram
claramente a sua confusão. “O Iskra – escrevem – queira ou não (!), deve (!) levar em
consideração as exigências imperiosas da vida e publicar, pelo menos (!!), cartas sobre o
movimento operário” (Dois congressos, p. 27). Esse, sim, é um argumento que nos deixa
verdadeiramente aniquilados!

111
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

organização das denúncias nas fábricas. Basta recordar o caso de


Rab. Myls para ver até que ponto chegou essa absorção e como se
tinha esquecido que essa atividade por si só não era ainda, no fundo,
social-democrata, mas tão somente trade-unionista. Na realidade,
as denúncias diziam respeito apenas às relações dos operários de
uma determinada profissão com os seus respectivos patrões e o único
objetivo que buscavam era que os vendedores da força de trabalho
aprendessem a vender com maiores vantagens essa “mercadoria” e
a lutar contra os compradores no terreno de transações puramente
comerciais. Essas denúncias podiam converter-se (com a condição
de serem usadas até um certo grau pela organização dos revolu-
cionários) em ponto de partida e elemento integrante da atividade
social-democrata; no entanto, mesmo assim, podiam conduzir (e
com o culto da espontaneidade acabavam, necessariamente, por
conduzir) à luta “exclusivamente sindical” e a um movimento
operário não social-democrata. A social-democracia dirige a luta da
classe operária não só para obter condições vantajosas de venda da
força de trabalho, mas para que seja destruído o regime social que
obriga aos não proprietários a venderem sua força de trabalho aos
ricos. A social-democracia representa a classe operária não só na sua
relação com um grupo determinado de patrões, mas também nas
suas relações com todas as classes da sociedade contemporânea, com
o Estado como força política organizada. Compreende-se, portanto,
que os social-democratas não só não podem circunscrever-se à luta
econômica, como nem sequer podem admitir que a organização
das denúncias econômicas constitua a sua atividade predominante.
Devemos empreender ativamente o trabalho de educação política
da classe operária, de desenvolvimento da sua consciência política.
Hoje em dia, depois da primeira investida de Zaria e do Iskra contra
o “economismo”, “todo mundo está de acordo” com isso (se bem
que alguns o estejam só em palavras, como o veremos em seguida).
Cabe perguntar: em que deve consistir a educação política? É
possível limitar-se à propaganda da ideia de que a classe operária

112
V. I. Lenin

é hostil à autocracia? Naturalmente que não. Não basta explicar


a opressão política de que são objeto os operários (tal como não
bastava explicar-lhes o antagonismo entre os seus interesses e os dos
patrões). É necessário fazer agitação acerca de cada manifestação
concreta dessa opressão (como começamos a fazer em relação às
manifestações concretas da opressão econômica). E uma vez que as
mais diversas classes da sociedade são vítimas dessa opressão, já que
se manifesta nos mais diversos aspectos da vida e da atividade sindi-
cal, cívica, pessoal, familiar, religiosa, científica etc., não é evidente
que não cumpriremos a nossa missão de desenvolver a consciência
política dos operários se não nos comprometermos a organizar uma
vasta campanha de denúncias políticas da autocracia? Porque, para
fazer agitação acerca das manifestações concretas da opressão, é
necessário denunciar essas manifestações (da mesma maneira que
para fazer a agitação econômica era necessário denunciar os abusos
cometidos nas fábricas).
Poder-se-ia dizer que a coisa está clara. No entanto, de fato,
o que se constata é que só em palavras estão “todos” de acordo
quanto à necessidade de desenvolver a consciência política em todos
os seus aspectos. Aqui se verifica que Rab. Dielo, por exemplo, não
só não empreendeu o trabalho de organizar denúncias políticas em
todos os aspectos (ou começar a sua organização), como também
até se pôs a puxar para trás também o Iskra, que já tinha iniciado
essa tarefa. Ouçam: “A luta política da classe operária é apenas”
(precisamente, não é “apenas”) “a forma mais desenvolvida, mais
ampla e efetiva da luta econômica” (programa do Rab. Dielo nº 1,
p. 3). “Na atualidade, aos social-democratas coloca-se a tarefa de
imprimir à própria luta econômica, dentro do possível, um caráter
político” (Martinov nº 10, p. 42). “A luta econômica é o meio mais
amplamente aplicável para incorporar as massas na luta política
ativa” (Resolução do Congresso da União [“União dos Social-
-democratas russos estrangeiros”] e “emendas”: Dois congressos,
p. 11 e 17). Como o leitor pode ver, todas essas teses impregnam

113
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Rab. Dielo desde o seu aparecimento até as últimas “instruções à


redação”, que em conjunto expressam, evidentemente, uma con-
cepção da agitação e da luta política cujo critério – de que deve
seguir a agitação econômica – é o mesmo que predomina entre
todos os “economistas”. Será correto que a luta econômica é em
geral76 “o meio mais amplamente aplicável” para incorporar as
massas na luta política? Isso é inteiramente falso. Meios não me-
nos “amplamente aplicáveis” para tal “incorporação” são também
todas as manifestações da opressão policial e dos desmandos da
autocracia e de modo algum tão somente as manifestações ligadas
à luta econômica. Por que os zemskie natchalniki 77 e os castigos
corporais impostos aos camponeses, as extorsões dos funcionários
e o tratamento que a polícia dá à “plebe” das cidades, a luta contra
os famintos e a perseguição às aspirações do povo à cultura e ao
saber, a exação de impostos, a perseguição às seitas religiosas, a
dura disciplina dos chicotes infligida aos soldados e o tratamento
grosseiro que recebem os estudantes e os intelectuais liberais; por
que todas essas manifestações de opressão, assim como milhares
de outras manifestações análogas, que não têm ligação direta da
luta econômica, representam em geral meios e motivos menos “am-
plamente aplicáveis” à agitação política para incorporar as massas

76
Dizemos “em geral” porque em Rab. Dielo se trata precisamente dos princípios gerais
e das tarefas gerais de todo o partido. Não há dúvidas de que há casos, na prática, em
que a política deve efetivamente seguir a economia, mas só os “economistas” podem
dizer isso numa resolução destinada a toda a Rússia. Pois há também casos em que, “já
desde o início mesmo”, se pode levar a cabo a agitação política “unicamente no terreno
econômico” e, não obstante, o Rab. Dielo chegou, por fim, à conclusão de que “não há
nenhuma necessidade” disso (Dois congressos, p. 11). No capítulo seguinte assinalaremos
que a tática dos “políticos” e dos revolucionários, longe de desconhecer as tarefas trade-
-unionistas da social-democracia, é, ao contrário, a única que assegura a sua realização
consequente.
77
Em 1899, com o propósito de reforçar o poder dos latifundiários sobre os camponeses,
o governo tsarista instituiu o cargo administrativo de zemski natchalnik. Os zemskie
natchalniki, designados entre os latifundiários nobres locais, tinham não só enormes
atribuições administrativas, mas também direitos judiciais sobre os camponeses, in-
cluindo o direito de os encarcerar e submeter a castigos corporais.

114
V. I. Lenin

na luta política? Justamente ao contrário: na totalidade dos casos


cotidianos em que o operário sofre (ele próprio e as pessoas que
lhe são próximas) privação de direitos, arbitrariedade e violência,
é indiscutível que os casos de opressão policial especificamente
no terreno da luta sindical não constituem senão uma pequena
minoria. Para que, então, restringir de antemão a amplitude da
agitação política declarando como “mais amplamente aplicável”
só um dos meios, ao lado do qual, para um social-democrata, se
inserem outros que, de modo geral, não são menos amplamente
“aplicáveis”?
Em tempos muito, muito remotos (já faz um ano!...) Rab. Dielo
dizia: “As reivindicações políticas imediatas tornam-se acessíveis às
massas depois de uma greve ou, quando muito, de várias greves”,
“desde que o governo empregue as forças policiais” (nº 7, p. 15,
agosto de 1900). Agora essa teoria oportunista das fases foi rejei-
tada pela “União”, que nos faz uma concessão declarando: “não
há nenhuma necessidade de desenvolver desde o início a agitação
política exclusivamente no terreno econômico” (Dois congresos, p.
11). O futuro historiador da social-democracia russa verá, somente
por esse repúdio da “União” a uma parte dos seus antigos erros,
que ele mostra – melhor que os mais longos raciocínios – até que
ponto os nossos “economistas” aviltaram o socialismo! No entanto,
que ingenuidade a da “União” ao imaginar que, em troca dessa
renúncia a uma forma de restrição da política, nos poderia levar
a aceitar uma outra forma de restrição! Não teria sido mais lógico
dizer, também aqui, que se deve desenvolver a luta econômica o
mais amplamente possível, que é preciso utilizá-la sempre para a
agitação política, mas que “não há nenhuma necessidade” de con-
siderar a luta econômica como o meio mais amplamente aplicável
para incorporar as massas numa luta política ativa?
A “União” atribui importância ao fato de ter substituído a ex-
pressão “o melhor meio” pelas palavras “o meio mais amplamente
possível”, presente na correspondente resolução do IV Congresso

115
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

da União Operária Judaica (Bund 78). É certo que nos veríamos


num aperto se tivéssemos que dizer qual dessas duas resoluções é
melhor: na nossa opinião são as duas as piores. Tanto a “União”
quanto o Bund caem, nesse caso (em parte, talvez mesmo incons-
cientemente, sob a influência da tradição), numa interpretação
economista, trade-unionista da política. No fundo, a questão em
nada se modifica, quer se empregue o termo “o melhor”, quer se
empregue a expressão “o mais amplamente aplicável”. Se a “União”
dissesse que “a agitação política no terreno econômico” é o meio
mais amplamente aplicado (e não “aplicável”), teria razão em
relação a certo período do desenvolvimento do nosso movimento
social-democrata. A saber: teria razão precisamente no que diz
respeito aos economistas, em relação a muitos (se não a maior parte)
dos militantes práticos de 1898-1901, uma vez que esses militantes
práticos-economistas aplicaram, de fato, a agitação política (no
nível que, em geral, a praticavam!) quase exclusivamente no terreno
econômico. Semelhante agitação política era tolerada e até recomen-
dada, como vimos, tanto pelo Rab. Myls quanto pelo “Grupo de
Autoemancipação”! Rab. Dielo devia ter condenado resolutamente
o fato de o trabalho útil de agitação econômica ter sido acompa-
nhado de uma nociva restrição da luta política; porém, em vez de
fazê-lo, declara que o meio mais aplicado (pelos “economistas”) é
o meio mais aplicável! Não é de estranhar que quando tachamos
essa gente de “economistas”, não encontrem outra saída que a de

[A União Geral Operária Judaica da Lituânia, Polônia e Rússia (Bund) foi organizada
78

em 1897 no congresso constituinte dos grupos social-democratas judeus em Vilno,


reunindo principalmente os elementos semiproletários dos artesãos judeus das regiões
ocidentais da Rússia. No I Congresso do POSDR (1898), o Bund passou a fazer parte
do POSDR como “uma organização autônoma, apenas independente nas questões
referentes especificamente ao proletariado judeu”. No II Congresso do POSDR, tendo
este rejeitado as exigências do Bund de ser reconhecido como único representante do
proletariado judeu, o Bund abandonou o partido. Em 1906, de acordo com a resolução
do IV Congresso (de Unificação), o Bund voltou a fazer parte do POSDR. No seio do
POSDR, os bundistas sempre apoiaram a ala oportunista do partido (“economistas”,
mencheviques) e lutaram contra os bolchevismo.]

116
V. I. Lenin

nos insultar, até não mais poder, chamando-nos de “mistificadores”,


“desorganizadores”, “núncios do papa”, “caluniadores”79, que há de
se lamentar perante a todos dizendo que lhes fizemos uma afronta
mortal e a de declarar, quase sob juramento, que “nem uma única
organização social-democrata peca hoje de ‘economismo’”80. Ah!,
esses caluniadores, esses homens maus, esses políticos! Não teriam
inventado propositalmente todo esse “economismo” para dirigir às
pessoas, por simples ódio à humanidade, afrontas mortais?
Que sentido concreto, real, tem, na boca de Martinov, o fato
de colocar à social-democracia a tarefa de “imprimir à própria
luta econômica um caráter político”? A luta econômica é a luta
coletiva dos operários contra os patrões, para conseguir condições
vantajosas de venda da força de trabalho, melhorar as suas condi-
ções de trabalho e de vida. Essa luta é, necessariamente, uma luta
profissional, porque as condições de trabalho são extremamente
variadas nas diferentes profissões e, portanto, a luta pela melhoria
dessas condições deve, forçosamente, ser travada por profissões (por
sindicatos no Ocidente, por associações profissionais de caráter
provisório e por intermédio de panfletos na Rússia etc.). Imprimir
à “própria luta econômica um caráter político” significa, portanto,
procurar a consecução dessas mesmas reivindicações profissionais,
dessa mesma melhoria das condições de trabalho nas profissões
por meio de “medidas legislativas e administrativas” (segundo a
expressão de Martinov, na página seguinte, 43, de seu artigo).
É justamente o que fazem e sempre fizeram todos os sindicatos
operários. Folheai a obra do casal Webb, verdadeiros eruditos (e
“verdadeiros” oportunistas), e vereis que os sindicatos operários
ingleses desde há muito compreenderam e realizam a tarefa de
“imprimir à própria luta econômica um caráter político”; que desde
há muito lutam pela liberdade de greve, pela supressão de todos

79
Assim se exprime literalmente a brochura Dois congressos, p. 31, 32, 28 e 30.
80
Dois congressos, p. 32.

117
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

os obstáculos jurídicos que se opõem ao movimento cooperativo e


sindical, pela promulgação de leis de proteção à mulher e à criança,
pela melhoria das condições de trabalho mediante uma legislação
sanitária e industrial etc.
Assim, a frase pomposa “imprimir à própria luta econômica
um caráter político”, “terrivelmente” profunda e revolucionária,
oculta, no fundo, a tendência tradicional de rebaixar a política
social-democrata ao plano da política trade-unionista! Sob o pre-
texto de corrigir a unilateralidade do Iskra, que prefere – saibam
– “revolucionar o dogma a revolucionar a vida”81, oferecem-nos,
como algo de novo, a luta pelas reformas econômicas. De fato, a
frase “imprimir à própria luta econômica um caráter político” não
possui absolutamente nenhum outro conteúdo do que a luta pelas
reformas econômicas. E o próprio Martinov poderia ter chegado a
essa conclusão simplória se tivesse meditado devidamente sobre o
significado de suas próprias palavras. “O nosso partido – diz ele,
apontando sua artilharia mais pesada contra o Iskra – poderia e
deveria apresentar ao governo reivindicações concretas de medidas
legislativas e administrativas contra a exploração econômica, contra
o desemprego, contra a fome etc.” (R. D. nº 10, p. 42-43). Reivindi-
car medidas concretas não é por acaso reivindicar reformas sociais?
E perguntamos uma vez mais aos leitores imparciais se caluniamos
os rabotchedielentsi [partidários do Rabotcheie Dielo] (perdoem-me
esse pouco feliz vocábulo em voga!) por os qualificarmos como
bernsteinianos velados quando lançam, como divergência com o
Iskra, a tese sobre a necessidade da luta por reformas econômicas.
A social-democracia revolucionária sempre incluiu e continua
a incluir na órbita de suas atividades a luta pelas reformas. Mas

Rab. Dielo nº 10, p. 60. Essa é a variante martinoviana da aplicação ao atual estado caótico
81

do nosso movimento da tese “cada passo do movimento real tem mais importância do
que uma dúzia de programas”, que já caracterizamos mais atrás. No fundo, não é mais
do que a tradução russa da célebre frase de Bernstein: “O movimento é tudo, o objetivo
final não é nada”.

118
V. I. Lenin

usa a agitação “econômica” não só para exigir do governo todo


tipo de medidas, como também (e em primeiro lugar) para exigir
que ele deixe de ser um governo autocrático. Ademais, considera
seu dever apresentar ao governo essa exigência não só no terreno
da luta econômica, mas também no terreno de todas as manifes-
tações da vida política e social. Numa palavra, como parte de um
todo, subordina a luta pelas reformas à luta revolucionária pela
liberdade e pelo socialismo. Martinov, ao contrário, ressuscita sob
uma forma diferente a teoria das fases, tratando de prescrever a
necessidade da via econômica, por assim dizer, para o desenvolvi-
mento da luta política. Ao propugnar, num momento de ascenso
revolucionário, a luta pelas reformas como uma pretensa “tarefa”
especial, puxa o partido para trás e faz o jogo do oportunismo
“economista” e liberal.
Prossigamos. Depois de ter ocultado pudicamente a luta pelas
reformas por trás da pomposa tese “imprimir à própria luta eco-
nômica um caráter político”, Martinov apresenta, como algo de
particular, unicamente as reformas econômicas (e, entre elas, apenas
as reformas na vida fabril). Não sabemos por que o fez. Talvez por
descuido? Porém, se não tivesse levado em conta senão as reformas
“fabris”, toda a sua tese, que acabamos de expor, perderia por com-
pleto o sentido. Talvez porque considere possível e provável que
o governo faça “concessões” somente no campo econômico?82 Se
assim fosse, estamos diante de um estranho equívoco: as concessões
são possíveis e são feitas também no domínio da legislação sobre
os castigos corporais, passaportes, pagamentos de resgates83, seitas,

82
P. 43: “É claro que, quando recomendamos aos operários que encaminhem ao governo
algumas reivindicações, isso se deve ao fato de que, no âmbito econômico, a autocracia
está disposta, por necessidade, a certas concessões”.
83
[Pesados pagamentos decorrentes da abolição do regime de servidão que os camponeses
deviam aos latifundiários pelos lotes de terra que recebiam, causadores de ruína e pau-
perização das massas camponesas. Durante a primeira revolução russa de 1905-1907,
o movimento camponês obrigou o governo tsarista a abolir os pagamentos a partir de
janeiro de 1907.]

119
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

censura etc. As concessões “econômicas” (ou pseudoconcessões)


são, entende-se, mais baratas e vantajosas para o governo, porque
espera ganhar com elas a confiança das massas operárias. Mas, por
isso mesmo, os social-democratas não devemos de modo algum
e absolutamente por nenhum motivo dar lugar à opinião (ou ao
equívoco) de que apreciamos mais as reformas econômicas, de que
consideramos de particular importância justamente essas reformas
etc. “Essas reivindicações – diz Martinov, referindo-se às reivindi-
cações concretas de medidas legislativas e administrativas, de que
fala mais atrás – não seriam um simples gesto, já que ao prometer
certos resultados plausíveis, poderiam ser apoiadas ativamente pela
massa operária”... Não somos “economistas”, oh! não! Apenas nos
arrastamos aos pés da “plausibilidade” dos resultados concretos, tão
servilmente como o fazem os senhores Bernstein, Prokopovitch,
Struve, R. M. e tutti quanti! Somente damos a entender (com Nar-
ciso Tuporilov) que tudo o que não “promete resultados plausíveis”
não é mais do que uma “simples frase oca”! Não fazemos mais
do que nos expressar como se a massa operária não fosse capaz (e
como se não tivesse provado a sua capacidade, apesar de todos os
que lhe atribuem o seu próprio filisteísmo) de apoiar ativamente
todo protesto contra a autocracia, incluindo o que não lhe promete
absolutamente nenhum resultado plausível!
Tomemos esses mesmos exemplos citados pelo próprio Marti-
nov sobre as “medidas” contra o desemprego e a fome. Enquanto
Rab. Dielo se ocupa, segundo promete, em elaborar e desenvolver
“reivindicações concretas (sob a forma de projetos de lei?) de me-
didas legislativas e administrativas” que “prometem resultados
plausíveis”, o Iskra, “que sempre prefere revolucionar o dogma a
revolucionar a vida”, tratou de explicar o nexo que une indisso-
luvelmente o desemprego a todo o regime capitalista, advertindo
que “a fome se aproxima”, denunciando “a luta da polícia contra os
famintos”, bem como o escandaloso “regulamento provisório inqui-
sitorial”, e a Zaria publicou como folheto de agitação uma parte da

120
V. I. Lenin

sua Revista da Situação Interna84 dedicada à fome. Mas, meu Deus,


como foram “unilaterais” esses ortodoxos incorrigivelmente estrei-
tos, esses dogmáticos, surdos aos imperativos da “própria vida”!
Nem um único de seus artigos contém – que horror! – uma única,
reparem bem, nem sequer uma única “reivindicação concreta” que
“prometa resultados plausíveis”! Infelizes dogmáticos! Haveria que
levá-los a aprender com os Kritchevski e os Martinov, para que
se convencessem de que a tática é o processo do crescimento, do
que cresce etc., e que é preciso imprimir à própria luta econômica
um caráter político!
“A luta econômica dos operários contra os patrões e o governo
(“luta econômica contra o governo”!!), além do seu significado
revolucionário direto, tem também o de levar continuamente os
operários a pensar em sua privação de direitos políticos” (Martinov,
p. 44). Inserimos essa citação não para repetir pela centésima ou
milésima vez o que já dissemos mais atrás, mas para agradecer de
maneira especial a Martinov por essa nova e excelente formulação:
“A luta econômica dos operários contra os patrões e o governo”.
Formidável! Com que talento inimitável, com que magistral eli-
minação de todas as divergências parciais e diferenças de matizes
entre os “economistas” se encontra aqui expressa, numa exposição
concisa e clara, toda a essência do “economismo”, começando por
chamar os operários à “luta política que realizam em nome do
interesse geral, para melhorar a situação de todos os operários”,85
continuando depois com a teoria das fases e concluindo na re-
solução do congresso sobre o “meio mais amplamente aplicável”
etc. “A luta econômica contra o governo” é precisamente política
trade-unionista, que está a uma distância muito grande, mas muito
grande, da política social-democrata.

84
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 5, p. 231-251.]
85
Rab. Myls. Suplemento Separado, p. 14.

121
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Como Martinov aprofundou Plekhanov


“Quantos Lomonossov social-democratas surgiram nos últi-
mos tempos no nosso país!”, observou certo dia um camarada,
referindo-se à espantosa inclinação pela qual muitos, propensos
ao “economismo”, querem chegar infalivelmente, através da “sua
própria inteligência”, às grandes verdades (como, por exemplo, a de
que a luta econômica leva os operários a pensar em seu estado de
párias), desconhecendo, com um magnífico desdém, próprio dos
gênios inatos, tudo o que já foi produzido pelo desenvolvimento
anterior do pensamento revolucionário e do movimento revolu-
cionário. Lomonossov-Martinov é, precisamente, um gênio dessa
índole. Observem seu artigo “Questões imediatas” e vereis como
se aproxima pela “sua própria inteligência” de coisas que há muito
tinham sido expostas por Axelrod (acerca do qual o nosso Lomo-
nossov guarda, naturalmente, um silêncio absoluto); como começa,
por exemplo, a compreender que não podemos ignorar a oposição
de uma ou outra camada da burguesia (R. D. nº 9, p. 61, 62 e 71;
comparem com a Resposta da redação de R. Dielo a Axelrod, p. 22,
23 e 24) etc. No entanto, oh!, só “se aproxima” e só “começa”, nada
mais; pois, apesar de tudo, a essa altura ainda não compreendeu
as ideias de Axelrod a ponto de falar de “luta econômica contra os
patrões e o governo”. No curso de três anos (de 1898 a 1901), Rab.
Dielo vinha acumulando esforços para compreender Axelrod e, não
obstante, não compreendeu! Talvez isso aconteça também porque à
social-democracia, “do mesmo modo que à humanidade”, sempre
se colocam unicamente tarefas realizáveis?
Mas os Lomonossov se distinguem não só por ignorarem
muitas coisas (isso seria apenas um meio mal!), mas ainda por não
perceberem a própria ignorância. Isso já é, em si, uma verdadeira
desgraça, que os leva diretamente a empreender a tarefa de “apro-
fundar” Plekhanov.
Depois que Plekhanov escreveu o opúsculo citado (Sobre as tarefas dos
socialistas na lua contra a fome na Rússia), muita água correu sob as pontes

122
V. I. Lenin

– diz Lomonossov-Martinov. Os social-democratas, que no transcurso


de dez anos dirigiram a luta econômica da classe operária..., não tiveram
ainda tempo de oferecer uma ampla fundamentação teórica acerca da
tática do partido. Na atualidade, essa questão amadureceu e, se quisésse-
mos apresentar uma fundamentação teórica dessa natureza, deveríamos
sem dúvida aprofundar consideravelmente os princípios táticos que, em
seu tempo, foram desenvolvidos por Plekhanov... Seríamos obrigados a
definir a distinção entre a propaganda e a agitação de maneira diferente
da que foi feita por Plekhanov (Martinov acaba de citar as palavras de
Plekhanov: “O propagandista divulga muitas ideias para uma só pessoa
ou para um pequeno número de pessoas, enquanto o agitador divulga
uma só ideia ou um pequeno número de ideias, mas em contrapartida,
divulga-as a toda uma massa de pessoas”). Por propaganda entenderíamos
a explicação revolucionária de todo o regime atual, ou das suas manifes-
tações parciais, indiferentemente se isso se realiza de uma forma acessível
somente a algumas pessoas ou às grandes massas. Por agitação, no sentido
estrito da palavra (sic!) entenderíamos o apelo dirigido às massas para certas
ações concretas, à contribuição da intervenção revolucionária direta do
proletariado na vida social.
Felicitamos a social-democracia russa – assim como a interna-
cional – por essa nova terminologia martinoviana, mais rigorosa
e mais profunda. Até agora acreditávamos (com Plekhanov e com
todos os chefes do movimento operário internacional) que um
propagandista, quando trata, por exemplo, da questão do desem-
prego, deve explicar a natureza capitalista das crises, assinalar a
causa da inevitabilidade das mesmas na sociedade atual, indicar a
necessidade­de transformar a sociedade capitalista em socialista etc.
Numa palavra, deve oferecer “muitas ideias”, tantas, que todas essas
ideias, no seu conjunto, poderão ser assimiladas no ato somente por
um número (“relativamente”) reduzido de pessoas. Por outro lado,
ao tratar da mesma questão, o agitador tomará um exemplo, o mais
evidente e o mais conhecido do seu auditório – por exemplo, o caso
de uma família de desempregados morta de inanição, o aumento

123
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

da miséria etc. – e aproveitando esse fato conhecido, dirigirá todos


esforços para divulgar para as “massas” uma só ideia: a ideia do
absurdo da contradição entre o incremento da riqueza e o aumento
da miséria; tratará de despertar nas massas o descontentamento e a
indignação contra essa flagrante injustiça, deixando ao propagan-
dista o cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição.
Por isso, o propagandista procede principalmente por meio da
palavra impressa, enquanto o agitador atua de viva voz. Ao propa-
gandista exigem-se qualidades diferentes das do agitador. Assim,
chamaremos Kautsky e Lafargue, por exemplo, de propagandistas;
Bebel e Guesde, de agitadores. Estabelecer um terceiro terreno ou
uma terceira função da atividade prática, incluindo nessa função
“o apelo dirigido às massas para certas ações concretas”, é o maior
dos desatinos, porque o “apelo”, como ato isolado, ou bem é um
complemento natural e inevitável do tratado teórico, da brochura
de propaganda e do discurso de agitação, ou bem constitui uma
função claramente executiva. Com efeito, tomemos, por exemplo,
a luta atual dos social-democratas alemães contra os impostos sobre
cereais. Os teóricos, em seus estudos de investigação sobre a política
aduaneira, “apelam”, digamos assim, para a luta pela conclusão
de tratados comerciais e pela liberdade de comércio; o mesmo
faz o propagandista nas revistas, e o agitador nos seus discursos
públicos. A “ação concreta” das massas consiste, nesse caso, na
assinatura de uma petição dirigida ao Reichstag exigindo que não
sejam aumentados os impostos sobre os cereais. O apelo para essa
ação parte indiretamente dos teóricos, dos propagandistas e dos
agitadores, e diretamente dos operários que percorrem as fábricas
e as casas particulares com as listas de adesão à petição. Segundo
a “terminologia de Martinov” resultaria que Kautsky e Bebel são
ambos propagandistas, e os portadores das listas de adesão são
agitadores. Não é assim?
O exemplo dos alemães fez-me recordar a palavra alemã
Verballhornung, literalmente, “ballhornização”. Johann Ballhorn

124
V. I. Lenin

era um editor de Leipzig no século XVI; editou um abecedário


no qual, como era de costume, estampou um desenho que re-
presentava um galo; porém, em lugar do desenho habitual do
galo com esporões, figurava um sem esporões e com um par de
ovos ao lado. Na capa do abecedário, dizia: “Edição corrigida
de Johann Ballhorn”. Desde então os alemães identificam Ver-
ballhornung a uma “correção” que, de fato, piora o corrigido. E,
involuntariamente, recordo-me de Ballhorn quando vejo como
os Martinov “aprofundam” Plekhanov...
Para que terá “inventado” o nosso Lomonossov essa confusão?
Para demonstrar que o Iskra, “da mesma maneira que Plekhanov
há uns 15 anos, presta atenção a um só aspecto da questão” (p. 39).
“Conforme o Iskra, pelo menos para o período atual, as tarefas de
propaganda relegam para segundo plano as de agitação” (p. 52). Se
traduzirmos essa última frase da linguagem de Martinov para a
linguagem corrente (porque a humanidade não teve tempo ainda de
adotar essa terminologia recém-descoberta), resultaria no seguinte:
de acordo com o Iskra, as tarefas de propaganda e de agitação po-
lítica relegam para segundo plano a tarefa de “colocar ao governo
reivindicações concretas de medidas legislativas e administrativas”
que “prometem certos resultados plausíveis” (ou, em outras pala-
vras, reivindicações de reformas sociais, se nos é permitido, uma
vez mais, empregar a velha terminologia da velha humanidade,
que não chegou ao plano de Martinov). Propomos ao leitor que
compare com essa tese o seguinte fragmento:
Espanta-nos nesses programas (os programas dos social-democratas revolu-
cionários), que eles coloquem eternamente em primeiro plano as vantagens
da atividade dos operários no Parlamento (que não existe em nosso país) e
passem completamente por cima (devido ao seu niilismo revolucionário) da
importância da participação dos operários nas assembleias legislativas dos
industriais, existentes em nosso país, para a discussão de assuntos fabris
(...) ou da importância da participação dos operários ainda que apenas na
administração municipal urbana (...)

125
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

O autor desse fragmento expressa de um modo mais direto,


claro e franco a ideia a que Lomonossov-Martinov chegou pela
sua própria inteligência. O autor é R. M., no Suplemento Especial
do Rab. Myls (p. 15).

As denúncias políticas e a “educação da atividade


revolucionária”
Ao lançar contra o Iskra a sua “teoria” da “elevação da ativi-
dade da massa operária”, Martinov revelou, na realidade, a sua
tendência para rebaixar essa atividade, uma vez que declarou
que a própria luta econômica, diante da qual rastejaram também
todos os “economistas”, era o meio preferível – de particular im-
portância, “mais amplamente aplicável” – para despertá-la, bem
como o campo dessa atividade. Esse é um típico erro precisamente
porque não é apenas próprio de Martinov. Na realidade, pode-se
“elevar a atividade da massa operária” com a condição de que não
nos circunscrevamos à “agitação política no terreno econômico”.
E uma das condições essenciais para essa expansão indispensável
da agitação política é organizar denúncias políticas que abarquem
todos os terrenos. A consciência política e a atividade revolucionária
das massas não podem ser educadas senão com base nessas denún-
cias. Por isso, essa atividade constitui uma das mais importantes
funções de toda a social-democracia internacional, porque mesmo
a liberdade política não elimina de modo algum essas denúncias;
apenas desloca um pouco a esfera a que são dirigidas. Por exem-
plo, o partido alemão consolida as suas posições e estende a sua
influência graças, sobretudo, à persistente energia das suas campa-
nhas de denúncias políticas. A consciência da classe operária não
pode ser uma verdadeira consciência política se os operários não
estão habituados a reagir contra todos os casos de arbitrariedade e
opressão, todas as formas de violência e abuso, quaisquer que sejam
as classes afetadas; e a reagir, além disso, do ponto de vista social-
-democrata e não de qualquer outro. A consciência das massas

126
V. I. Lenin

operárias não pode ser uma verdadeira consciência de classe se os


operários não aprenderem, com base em fatos e acontecimentos
políticos concretos e atuais, a observar cada uma das classes sociais,
em todas as manifestações da sua vida intelectual, moral e políti-
ca; se não aprenderem a aplicar na prática a análise materialista
e a apreciação materialista de todos os aspectos da atividade e da
vida de todas as classes, camadas e grupos da população. Quem
orientar a atenção, a capacidade de observação e a consciência
da classe operária exclusivamente (ou mesmo preferencialmente)
para si própria não é um social-democrata, pois o conhecimento
de si mesma por parte da classe operária está inseparavelmente
ligado a uma clareza não só dos conceitos teóricos... ou melhor:
não tanto dos conceitos teóricos, como das ideias elaboradas com
base na experiência da vida política acerca das relações entre todas
as classes da sociedade atual. É por essa razão que a pregação, feita
pelos nossos “economistas”, da luta econômica como o meio mais
amplamente aplicável para incorporar as massas ao movimento
político assume, pelo seu significado prático, um caráter tão
profundamente nocivo e tão profundamente reacionário. Para se
tornar um social-democrata, o operário deve ter uma ideia clara
da natureza econômica e da fisionomia política e social do lati-
fundiário e do padre, do dignitário e do camponês, do estudante
e do vagabundo, conhecer os seus pontos fortes e os seus pontos
fracos, saber orientar-se diante das frases e sofismas mais correntes
e de toda a espécie com que cada classe e cada camada encobre seus
apetites egoístas e sua verdadeira “natureza”, saber distinguir que
instituições e leis refletem estes ou aqueles interesses e como os re-
fletem. E não é nos livros onde se pode encontrar essa “ideia clara”:
só a podem proporcionar quadros vivos, assim como denúncias
formuladas a partir de fatos marcantes e recentes, de tudo o que
sucede num dado momento à nossa volta, do que todos e cada um
falam à sua maneira (ou do que, pelo menos, murmuram), do que
se manifesta em determinados acontecimentos, números, sentenças

127
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

judiciais etc. etc. etc. Estas denúncias políticas que abarcam todos
os aspectos da vida são uma condição indispensável e fundamental
para educar a atividade revolucionária das massas.
Por que razão o operário russo ainda manifesta pouca atividade
revolucionária perante a violência brutal com que a polícia trata
o povo, a perseguição às seitas, os castigos corporais impostos aos
camponeses, os abusos da censura, os maus-tratos de que são objeto
os soldados, as perseguições das iniciativas culturais mais inofensi-
vas etc.? Não será porque a “luta econômica” não o “leva” a pensar
nisso, porque isso lhe “promete” poucos “resultados plausíveis”,
porque não lhe oferece nada de “positivo”? Não, semelhante juízo,
repetimos, não é senão uma tentativa de pôr a culpa nos outros, de
atribuir o seu próprio filisteísmo (ou seja, o seu bernsteinianismo) à
massa operária. Devemos imputar a culpa a nós próprios, ao nosso
atraso em relação ao movimento de massas, a não sabermos ainda
organizar denúncias suficientemente amplas, ressonantes e rápidas
contra todas essas infâmias. E se chegarmos a fazê-lo (e devemos e
podemos fazê-lo), o operário mais atrasado compreenderá ou sentirá
que o estudante e o membro de uma seita, o mujique e o escritor
são humilhados e menosprezados por essa mesma força tenebrosa
que tanto o oprime e o subjuga em cada passo da sua vida; e, ao
senti-lo, ele próprio quererá reagir, e o quererá movido por um
desejo incontido, e saberá então organizar uma barulheira contra
os censores, manifestar-se amanhã em frente da casa do governador
que sufocou um levante de camponeses, dar depois de amanhã
uma lição aos policiais com batina que desempenham a função da
santa inquisição etc. Até agora fizemos muito pouco, quase nada,
para lançar entre as massas operárias denúncias diversificadas e
atuais. Muitos de nós nem sequer têm ainda consciência dessa
sua obrigação e arrastam-se espontaneamente atrás da “cinzenta
luta cotidiana”, no interior dos marcos estreitos da vida fabril.
Nessas condições, dizer: “O Iskra tem tendência para subestimar
a importância da marcha ascendente da cinzenta luta cotidiana,

128
V. I. Lenin

em comparação com a propaganda de ideias brilhantes e acabadas”


(Martinov, p. 61) – significa puxar o partido para trás, significa
defender e exaltar a nossa falta de preparação, o nosso atraso.
Quanto ao apelo dirigido às massas para a ação, surgirá por si
mesmo, sempre que houver uma enérgica agitação política e denúncias
vivas e ressonantes. Apanhar alguém em flagrante delito e estigmatizá-
-lo imediatamente ante todo mundo e em toda parte produz mais
efeito do que qualquer “apelo” e exerce muitas vezes uma influência
tão grande que mais tarde nem sequer é possível determinar quem
foi, propriamente, que “apelou” para a multidão e quem foi, especifi-
camente, que lançou um ou outro plano de manifestação etc. Não se
pode convocar a massa a uma ação – no sentido concreto da palavra
e não no sentido geral – senão no próprio lugar da ação; nem se pode
exortar os outros à ação sem que se dê imediatamente o exemplo. A
nós, propagandistas social-democratas, cabe-nos aprofundar, estender
e intensificar as denúncias políticas e a agitação política.
A propósito dos “apelos”. O único órgão que, antes dos acon-
tecimentos da primavera86, apelou aos operários para intervir ati-
vamente numa questão que não prometia absolutamente nenhum
resultado plausível ao operário, como era a do recrutamento militar
dos estudantes, foi o Iskra. Imediatamente depois da publicação da
ordem de 11 de janeiro sobre “a incorporação de 183 estudantes nas
fileiras do exército”, o Iskra publicou um artigo sobre esse fato (nº
2, fevereiro)87 e, antes de começar qualquer manifestação, apelou
abertamente “para os operários acudirem os estudantes”, apelou
para que o “povo” respondesse ao insolente desafio do governo. Per-
guntamos a todos: como explicar o fato notável de Martinov, que
tanto fala de “apelos”, que até destaca os “apelos” como uma forma
particular de atividade, não ter mencionado nada acerca desse apelo?

86
[Tais acontecimentos referem-se às ações revolucionárias de massas de estudantes e de
operários – manifestações políticas, comícios e greves – de fevereiro e março de 1901,
em Petersburgo, Moscou, Kiev, Kharkov, Kazan, Tomsk e outras cidades da Rússia.]
87
[Ver V. I. Lenin, Obras Completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 388-393.]

129
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Depois disso, não será filisteísmo da parte de Martinov declarar


que o Iskra é unilateral porque não “apela” suficientemente para
a luta por reivindicações “que prometam resultados plausíveis”?
Nossos “economistas”, entre eles Rabotcheie Dielo, tiveram
êxito porque se adaptaram à mentalidade dos operários atrasados.
Mas o operário social-democrata, o operário revolucionário (e o
número desses operários aumenta dia após dia) rejeitará com in-
dignação todos esses raciocínios acerca da luta por reivindicações
“que prometam resultados plausíveis” etc., pois compreenderá
que não são mais do que variações da velha cantiga do aumento
de um copeque por rublo. Esse operário dirá aos seus conselhei-
ros do Rab. Myls e do Rab. Dielo: esforçam-se em vão, senhores,
intervindo com demasiado zelo nos assuntos que nós mesmos
resolvemos e esquivando-se ao cumprimento de seus verdadeiros
deveres. Não é muito inteligente dizer, como fazem, que a tarefa
dos social-democratas é imprimir à própria luta econômica um
caráter político; isso não é mais do que o começo e não consiste
na tarefa principal dos social-democratas, uma vez que na Rússia,
como no mundo inteiro, é a própria polícia quem começa, muitas
vezes, a imprimir à luta econômica um caráter político e os pró-
prios operários aprendem a compreender ao lado de quem está o
governo88. Com efeito, essa “luta econômica dos operários contra
os patrões e o governo” – que ostentam como uma nova América

A exigência de “imprimir à própria luta econômica um caráter político” expressa com o


88

maior relevo o culto da espontaneidade no terreno da atividade política. A luta econômica


adquire, com frequência, um caráter político espontaneamente, isto é, sem intervenção
desse “bacilo revolucionário que são os intelectuais”, sem a intervenção dos social-
-democratas conscientes. Por exemplo, a luta econômica dos operários na Inglaterra
adquiriu também um caráter político sem participação alguma dos socialistas. Mas a
tarefa dos social-democratas não se limita à agitação política no terreno econômico; a
sua tarefa é transformar essa política trade-unionista numa luta política social-democrata,
aproveitar os lampejos de consciência política que a luta econômica fez penetrar no espí-
rito dos operários para elevar estes ao nível da consciência política social-democrata. Pois
bem, os Martinov, em vez de elevar e impulsionar a consciência política que desperta
espontaneamente, rebaixam-se à espontaneidade e repetem, repetem até a náusea, que a
luta econômica “estimula” os operários a pensar na sua privação de direitos políticos.

130
V. I. Lenin

descoberta – é travada em numerosos lugares remotos da Rússia


pelos operários, que ouviram falar de greve, mas que, provavelmen-
te, ignoram tudo sobre o socialismo. Essa nossa “atividade”, dos
operários, atividade que quereis apoiar apresentando reivindicações
concretas que prometem resultados plausíveis, já existe entre nós
e, no nosso trabalho cotidiano, sindical, limitado, nós próprios
apresentamos essas reivindicações concretas, frequentemente sem
qualquer ajuda dos intelectuais. No entanto, essa atividade não nos
basta; não somos crianças que possam ser alimentadas apenas com
a papinha da política “econômica”; queremos saber tudo o que os
outros sabem, queremos conhecer detalhadamente todos os aspectos
da vida política e participar ativamente de todos os acontecimentos.
Para tanto, é necessário que os intelectuais nos repitam menos o que
nós próprios sabemos,89 e que nos deem mais daquilo que ainda ig-
noramos, o que jamais poderemos saber em nossa experiência fabril

É de lamentar, senhores, que esse despertar espontâneo da consciência política trade-


-unionista não os “estimule” a pensar em suas próprias tarefas social-democratas.
89
Para confirmar que todo esse discurso dos operários aos “economistas” não é fruto da nossa
imaginação, referimo-nos a duas testemunhas que conhecem sem dúvida diretamente o
movimento operário e que não são, de modo algum, propensos a mostrar parcialidade
por nós (“dogmáticos”), pois um deles é um “economista” (que até considera Rabotcheie
Dielo um órgão político!) e o outro um terrorista. A primeira testemunha é o autor de um
artigo notável por sua veracidade e vivacidade: “O movimento operário em Petersburgo
e as tarefas práticas da Social-democracia” (R. D. nº 6). O autor divide os operários em:
1) revolucionários conscientes; 2) camada intermediária; 3) o resto da massa. A camada
intermediária “interessa-se frequentemente mais pelos problemas da vida política do que
pelos seus interesses econômicos imediatos, cuja relação com as condições sociais gerais
foi, há muito, compreendida” (...) Rab Myls é “duramente criticado”: “sempre o mesmo,
há muito que o sabemos, há muito que o lemos”, “na crônica política, tampouco traz algo
de novo” (p. 30-31). Mas mesmo a terceira camada: “a massa operária mais sensível, mais
jovem, menos corrompida pela taberna e pela igreja, que quase nunca tem possibilidade
de arranjar um livro de conteúdo político, fala a torto e a direito dos acontecimentos da
vida política, medita sobre as notícias fragmentárias de um motim de estudantes” etc.
E o terrorista escreve: “(...) Leem uma ou duas vezes as linhas que relatam minúcias da
vida das fábricas em cidades desconhecidas e logo deixam de ler (...) Aborrece-os (...) Não
falar sobre o Estado num jornal operário (...) é considerar o operário uma criança (...) O
operário não é uma criança” (Svoboda, ed. do grupo revolucionário-socialista, p. 69-70).
[Svoboda/Liberdade: revista editada na Suíça pelo grupo “revolucionário-socialista”
homônimo. Até 1903, quando encerrou as atividades, saíram apenas dois números (o

131
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

e “econômica”: os conhecimentos políticos. Esses conhecimentos


apenas os intelectuais podem adquiri-los, tornando-se seu dever
proporcionar-nos cem e mil vezes mais do que têm feito até agora;
ademais, devem fornecê-los não apenas sob a forma de raciocínios,
brochuras e artigos (os quais frequentemente – desculpai a nossa
franqueza! – são um pouco maçantes), mas indispensavelmente sob
a forma de denúncias vivas de tudo aquilo que o nosso governo e as
nossas classes dominantes fazem atualmente em todos os aspectos
da vida. Cumpri com o maior zelo esse dever e falai menos sobre
“a elevação da atividade da massa operária”. Desenvolvemos muito
mais atividades do que pensais, e sabemos apoiar, por meio de uma
luta aberta nas ruas, até mesmo as reivindicações que não prometem
nenhum “resultado plausível”! E não sereis vós que “elevarão” a
nossa atividade, pois careceis justamente dessa atividade. Não vos
rebaixeis tanto perante a espontaneidade e pensai mais em elevar
a sua própria atividade, senhores!

O que há de comum entre o economismo e o terrorismo?


Anteriormente, em nota, confrontamos um “economista” e
um terrorista não social-democrata que, por acaso, se revelaram
solidários. Porém, de modo geral, há entre eles um vínculo não alea­
tório, mas intrínseco e necessário, do qual falaremos ainda e a que
devemos referir especificamente ao tratar da educação da atividade
revolucionária. Os “economistas” e os terroristas contemporâneos
têm uma raiz comum, a saber: o culto da espontaneidade, do qual
falamos no capítulo anterior como de um fenômeno geral e cuja
influência no âmbito da atividade e da luta política analisaremos
agora. Aparentemente, nossa afirmação pode parecer parodoxal:
parece ser enorme a diferença entre os que enfatizam a “cinzenta luta
cotidiana” e aqueles que se voltam ao indivíduo isolado apelando à

primeiro em 1901 e o segundo em 1902). Defendia as ideias do “economismo” e do


terrorismo e apoiava as organizações anti-iskristas da Rússia.]

132
V. I. Lenin

luta mais abnegada. Mas isso não é de maneira alguma um para-


doxo. Os “economistas” e os terroristas cultuam dois polos opostos
da tendência espontânea: os “economistas”, a espontaneidade do
“movimento nitidamente operário”, e os terroristas a espontaneidade­
da mais inflamada indignação dos intelectuais, que não sabem
ou não têm possibilidade de articular o trabalho revolucionário
e o movimento operário como um todo. É de fato difícil àqueles
que perderam a convicção acerca dessa possibilidade, ou que nela
nunca acreditaram, encontrar outra saída para a indignação e o
vigor revolucionário que não seja o terror. Por isso, o culto da
espontaneidade, nas duas direções indicadas, não é mais do que o
começo da realização do famoso programa do Credo: os operários
conduzem a sua “luta econômica contra os patrões e o governo” (que
o autor do Credo nos perdoe por expressarmos o seu pensamento
na linguagem de Martinov! Julgamo-nos no direito de o fazer, uma
vez que no Credo a luta econômica também é tratada na direção
de como os operários “entram em choque com o regime político”)
e os intelectuais conduzem a luta política com suas próprias forças
e, naturalmente, valendo-se do terror! Trata-se de uma conclusão
absolutamente lógica e inevitável, sobre a qual nunca é demasiado
insistir, mesmo quando aqueles que põem em prática esse programa
não a compreendam. A atividade política tem a sua lógica, que não
depende da consciência daqueles que, mesmo com as melhores
intenções do mundo, conclamam ao terror ou à introdução de um
caráter político na própria luta econômica. De boas intenções o
inferno está cheio e, no caso presente, elas não são suficientes para
impedir que as pessoas sejam espontaneamente absorvidas pela
“tendência do menor esforço”, pela linha do programa nitidamen-
te burguês do Credo. De fato, não é por acaso que muitos liberais
russos – tanto os declarados quanto aqueles que se ocultam com a
máscara marxista – simpatizam de coração com o terror e buscam,
atualmente, apoiar o crescimento do ideário terrorista.

133
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

O surgimento do “grupo revolucionário-socialista Svoboda”, que


se pôs a cooperar por todos os meios com o movimento operário,
incluindo no seu programa o terror e livrando-se, por assim dizer, da
social-democracia, confirmou outra vez a notável sabedoria de P. B.
Axelrod que, já no final de 1897, antecipou com precisão esse resultado
das vacilações social-democratas (“A propósito das tarefas e da tática
atuais”) e esboçou as suas célebres “duas perspectivas”. Todas as dis-
cussões e divergências posteriores entre os social-democratas russos
pressupõem, como a planta na semente, essas duas perspectivas.90
Nesse sentido, também se compreende que Rab. Dielo, que não
pôde resistir à espontaneidade do “economismo”, tampouco tenha
podido resistir à espontaneidade do terrorismo. Importa assinalar
aqui a argumentação original com que o Svoboda sustentou a defesa
do terror. “Nega por completo” o caráter intimidador do terror
(“Renascimento do revolucionarismo”, p. 64), mas, por outro lado,
destaca o seu “significado como estimulante”. Isso se caracteriza,
inicialmente, como uma das expressões da decomposição e da
decadência desse círculo tradicional (pré-social-democrata) de
ideias que obrigava a que se continuasse preso ao caráter terrorista.
Reconhecer que atualmente é impossível “intimidar” o governo – e,
por conseguinte, desestabilizá-lo – por meio do terror equivale, no
fundo, a uma inteira condenação do terror como modelo de luta,

90
Martinov “imagina um outro dilema, mais real (?)” (A Social-democracia e a classe
operária, p. 19): “Ou a social-democracia assume a direção imediata da luta econô-
mica do proletariado e, por isso mesmo(!), a transforma em luta revolucionária da
classe (...)” “Por isso mesmo”, quer dizer, evidentemente, pela direção imediata da luta
econômica. Que Martinov nos mostre onde já se viu que, pelo único e simples fato de
dirigir a luta sindical, se tenha conseguido transformar o movimento trade-unionista
em movimento revolucionário de classe. Não se aperceberá que, para realizar essa
“transformação”, devemos nos ocupar ativamente da “direção imediata” da agitação
política em todos os seus aspectos? (...) “Ou então essa outra perspectiva: a social-
-democracia abandona a direção da luta econômica dos operários e, com isso (...) fica
com as asas cortadas”(...). Segundo a opinião de Rab. Dielo, já citada, é o Iskra que
“abandona essa direção”. Mas, como já vimos, o Iskra faz muito mais do que Rab.
Dielo para dirigir a luta econômica e, além disso, não se limita a ela, nem restringe,
em nome dela, as suas tarefas políticas.

134
V. I. Lenin

como campo de atividade garantido por um programa. Em segun-


do lugar, isso se caracteriza mais ainda como expressão da incom-
preensão das nossas tarefas imediatas no que se refere à “educação
da atividade revolucionária das massas”. O Svoboda faz propaganda
do terror como meio para “estimular” o movimento operário e
atribuir-lhe “um forte impulso”. Não é possível imaginar uma
argumentação que a si própria se refute com tamanha evidência!
Cabe perguntar se são poucas as arbitrariedades existentes na vida
russa, tornando necessário que se inventem meios “estimulantes”
especiais. E, por outro lado, se há quem não se estimule (ou não é
estimulável) nem sequer pela arbitrariedade russa, não parece óbvio
que continuará a observar, passivamente, o duelo entre o governo e
um punhado de terroristas? Ora, precisamente, as massas operárias
estimulam-se muito com as infâmias da vida russa, mas nós não
sabemos recolher, se é possível usar essa expressão, e concentrar
todas as gotas e pequenos arroios da ebulição popular que a vida
russa destila em quantidade incomensuravelmente maior do que
aquilo que nós imaginamos, mas que há que agrupar numa única
torrente gigantesca. A possibilidade de isso se realizar pode ser
comprovada pela espetacular ascensão do movimento operário,
bem como a paixão dos operários, já sinalizada antes, pela literatura
política. E as conclamações ao terror, bem como os apelos voltados
à necessidade de imprimir à luta econômica um caráter político,
não são mais do que formas diferentes de escapar do dever mais
imperioso dos revolucionários russos: o de organizar a agitação po-
lítica em todas as suas formas. O Svoboda quer substituir a agitação
pelo terror, declarando abertamente que “basta que seja iniciada a
agitação intensa e vigorosa entre as massas para que aquele papel
estimulante desapareça” (“Renascimento do revolucionarismo”,
p. 68). Isso mostra exatamente que tanto os terroristas quanto os
“economistas” subestimam a atividade revolucionária das massas,
mesmo diante das provas cabais verificadas nos acontecimentos

135
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

da primavera,91 e uns arvoram-se à procura de “estimulantes” ar-


tificiais, outros se referem a “reivindicações concretas”. Nem uns
nem outros prestam suficiente atenção ao desenvolvimento da sua
própria atividade referente à agitação política e à organização de
denúncias políticas. E não há nada, nem agora e nem em qualquer
outro momento, que possa substituir essa atividade.

A classe operária como combatente


de vanguarda pela democracia
Já vimos que a realização da mais ampla agitação política e, por
consequência, a organização de campanhas de denúncias políticas
em todos os níveis constituem uma tarefa absolutamente neces-
sária, a tarefa mais imperiosamente necessária à atividade, quando
se trata de atividade verdadeiramente social-democrata. Mas
chegamos a essa conclusão partindo unicamente da necessidade
mais premente da classe operária, voltada para os conhecimentos
políticos e para a educação política. Ora, essa forma de colocar
a questão é, em si mesma, demasiado restrita, uma vez que não
considera as tarefas democráticas de toda a social-democracia
em geral, e da social-democracia russa atual em particular. Para
esclarecer essa tese, da maneira mais concreta possível, buscaremos
abordar a questão a partir de uma perspectiva mais “familiar” ao
“economista”, do ponto de vista prático. “Todos estão de acor-
do” em que é preciso desenvolver a consciência política da classe
operária. A questão que se coloca é a de como fazê-lo e o que é
necessário para isso. A luta econômica “induz” os operários “a
pensar” unicamente na atitude do governo em relação à classe
operária; por isso, por mais que empenhemos esforços para “conferir
à própria luta econômica um caráter político”, nunca poderemos,
nos limites dessa tarefa, desenvolver a consciência política dos

91
Trata-se da primavera de 1901, quando começaram grandes manifestações nas ruas.
[Nota de Lenin à edição de 1907.]

136
V. I. Lenin

operários (até o nível da consciência política social-democrata),


já que os próprios limites dessa tarefa são demasiado estreitos. A
fórmula de Martinov é preciosa para nós, não como exemplo do
confusionismo do seu autor, mas porque expressa com relevo o
erro capital de todos os “economistas”, a saber: a convicção de que
se pode desenvolver a consciência política de classe dos operários,
por assim dizer, a partir do interior da sua luta econômica, isto é,
partindo unicamente (ou, pelo menos, principalmente) dessa luta,
baseando-se unicamente (ou, pelo menos, principalmente) nessa
luta. Essa perspectiva é inteiramente falsa, justamente porque
os “economistas”, irritados pela nossa polêmica contra eles, não
querem refletir seriamente sobre a origem das nossas divergências
e por fim acabamos, literalmente, não nos compreendendo, por
falarmos línguas diferentes.
A consciência política de classe não pode ser levada ao ope-
rário senão do exterior, isto é, de fora da luta econômica, de fora
da esfera das relações entre operários e patrões. A única esfera de
onde se poderá extrair esses conhecimentos é a das relações de
todas as classes e camadas com o Estado e o governo, na esfera das
relações de todas as classes entre si. Por isso, à questão: “que fazer
para levar aos operários conhecimentos políticos?” – não se pode
simplesmente dar a resposta com a qual se contentam, na maioria
dos casos, os militantes práticos, sem falar daqueles que tendem
para o “economismo”, ou seja: aqueles que respondem que se “deve
ir até aos operários”. Para levar aos operários os conhecimentos po-
líticos, os social-democratas devem ir a todas as classes da população,
devem enviar para toda a parte os destacamentos do seu exército.
Se decidimos por essa fórmula rude, se a nossa linguagem é
deliberadamente simplificada e direta, não é absolutamente pelo
prazer de lançar paradoxos, mas para “provocar” os “economistas”
a pensar nas tarefas que desdenham de maneira tão imperdoável,
na diferença existente entre a política trade-unionista e a política
social-democrata, que não querem compreender. Por isso, pedimos

137
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

ao leitor para não se impacientar e para nos acompanhar atenta-


mente até o fim.
Consideremos o tipo de círculo social-democrata mais difundi-
do nesses últimos anos e analisemos a sua atividade. Mantém “con-
tatos com os operários” e contenta-se com isso, editando panfletos
onde condena os abusos nas fábricas, as posições que o governo
toma em favor dos capitalistas e as ações violentas da polícia. Nas
reuniões com os operários, é sobre tais temas que se desenrola
regularmente a conversa, pouco saindo disso; as conferências e de-
bates sobre a história do movimento revolucionário, sobre a política
interna e externa do nosso governo, sobre a evolução econômica
da Rússia e da Europa, sobre a realidade das distintas classes na
sociedade contemporânea etc., configuram exceções extremas, e
não há quem pense em buscar desenvolver sistemáticas relações
no seio das outras classes da sociedade. Verdadeiramente, o perfil
ideal do militante, para os integrantes de tal círculo, assemelha-se
na maioria dos casos muito mais ao de secretário de trade-union
do que ao de dirigente político socialista. Com efeito, o secretário
de uma trade-union inglesa, por exemplo, ajuda constantemente os
operários a se engajarem na luta econômica, organizando denúncias
sobre as arbitrariedades cometidas na fábrica, explicando a injus-
tiça das leis e regulamentos que limitam a liberdade de greve e a
liberdade dos piquetes (que alertam a todos a deflagração de greve
numa determinada fábrica), mostra a parcialidade dos juízes que
pertencem às classes burguesas etc. etc. Numa palavra, todo secre-
tário de trade-union trava e ajuda a travar a “luta econômica contra
os patrões e o governo”. E não seria demais insistir que isso ainda
não é atividade social-democrata, que o social-democrata não deve
ter por ideal o secretário de trade-union, mas o de tribuno popular
que saiba reagir contra toda manifestação de arbitrariedade e de
opressão, onde quer que se produza, qualquer que seja a classe ou
camada social atingida; que saiba sintetizar todos esses fatos num
quadro completo da brutalidade policial e da exploração capitalista,

138
V. I. Lenin

que saiba aproveitar a menor ocasião para expor diante de todos as


suas convicções socialistas e as suas reivindicações democráticas,
para explicar a todos e a cada um o alcance histórico-mundial da
luta emancipadora do proletariado. Comparemos, por exemplo,
homens como Robert Knight (o secretário e dirigente bem co-
nhecido da “União” dos operários caldeireiros, um dos sindicatos
mais poderosos da Inglaterra) e Wilhelm Liebknecht e busquemos
aplicar-lhes os argumentos com os quais Martinov expôs suas
divergências com o Iskra. Veremos – começo a folhear o artigo
de Martinov – que R. Knight “conclamou muito mais as massas
a determinadas ações concretas” (p. 39) e que W. Liebknecht se
ocupou mais em “tratar de uma perspectiva revolucionária todo
o regime atual ou as suas manifestações parciais” (p. 38-39); que
R. Knight “formulou as reivindicações imediatas do proletariado
e indicou os meios de alcançá-las” (p. 41), e que W. Liebknecht,
fazendo a mesma tarefa, não deixou de “dirigir, ao mesmo tempo,
a vigorosa atividade dos diferentes segmentos oposicionistas”, a
“ditar-lhes um programa positivo de ação”92 (p. 41); que R. Knight
se dedicou justamente a “conferir, tanto quanto possível, à própria
luta econômica um caráter político” (p. 42), e soube com perfeição
“direcionar ao governo reivindicações concretas que prometiam re-
sultados tangíveis” (p. 43), enquanto W. Liebknecht se ocupou, “de
forma unilateral”, muito mais de “denúncias dos abusos” (p. 40);
que R. Knight deu muito mais importância “à marcha progressiva
da cinzenta luta cotidiana” (p. 61) e W. Liebknecht à “propaganda
de ideias brilhantes e acabadas” (p. 61); que W. Liebknecht fez do
jornal que dirigia exatamente “o órgão da oposição revolucionária
que denuncia o estado de coisas reinante no nosso país e, principal-
mente, a situação política, que vai contra os interesses das diversas
camadas da população” (p. 63), enquanto R. Knight “trabalhou

Desse modo, ao longo da guerra franco-prussiana, Liebknecht indicou um programa


92

de ação para toda a democracia, como já haviam feito, em âmbito maior, Marx e Engels
em 1848.

139
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

pela causa operária em estreita ligação orgânica com a luta pro-


letária” – se se entender por “estreita ligação orgânica” esse culto
da espontaneidade que estudamos anteriormente tomando como
exemplos Kritchevski e Martinov, – e “restringiu a esfera da sua
influência” naturalmente persuadido, como Martinov, que “desse
modo se acentuava essa influência” (p. 63). Numa palavra, vere-
mos que, de fato, Martinov rebaixa a social-democracia ao plano
do trade-unionismo, certamente não por deixar de querer o bem
da social-democracia mas, simplesmente, porque se apressou um
pouco em aprofundar Plekhanov em lugar de se dar ao trabalho
de compreendê-lo.
Mas voltemos à nossa exposição. Dissemos que quando o
social-democrata é, não só em palavras, defensor do desenvolvi-
mento integral da consciência política do proletário, então deve
“ir a todas as classes da população”. Surgem as seguintes questões:
como fazê-lo? Temos forças suficientes para isso? Existe em todas
as outras classes espaço para isso? Esse trabalho não implicará
no abandono do ponto de vista de classe ou não conduzirá a ele?
Analisemos estas questões.
Devemos “ir a todas as classes da população” como teóricos,
como propagandistas, como agitadores e como organizadores.
Ninguém duvida que o trabalho teórico dos social-democratas deva
orientar-se para o estudo de todas as particularidades da situação
social e política das diferentes classes. Mas muito, muito pouco se
faz nessa direção se se compara com o estudo das particularidades
da vida na fábrica. Nos comitês e nos círculos, podem-se encontrar
pessoas que se especializam, inclusive, no estudo de um ramo da
produção siderúrgica, mas quase não se encontram exemplos de
membros de organizações que (obrigados, como ocorre por vezes,
a deixar a atividade prática por alguma razão) se ocupem espe-
cialmente em recolher materiais sobre uma questão da atualidade
na nossa vida social e política que pudesse dar motivos para um
trabalho social-democrata entre outros setores da população.

140
V. I. Lenin

Quando se fala da débil preparação da maior parte dos dirigentes


atuais do movimento operário, não se pode deixar de lembrar,
igualmente, a fraca preparação nesse sentido, pois que também
está relacionada à concepção “economista” da “estreita ligação
orgânica com a luta proletária”. Mas o principal, evidentemente,
é a propaganda e a agitação em todos os setores da população. Para
o social-democrata da Europa Ocidental, essa tarefa é facilitada
pelas reuniões e assembleias populares assistidas por todos aqueles
que o desejam, pela existência do Parlamento, onde o representante
da social-democracia fala diante dos deputados de todas as classes.
Em nosso país, não temos Parlamento, nem liberdade de reunião,
mas, contudo, sabemos organizar reuniões com os operários que
querem ouvir um social-democrata. Da mesma maneira, devemos
saber realizar reuniões com representantes de todas as classes da
população que queiram ouvir um democrata. Pois não é social-
-democrata aquele que, na prática, esquece que os “comunistas
apoiam por toda parte todo movimento revolucionário”93, que, con-
sequentemente, temos o dever de expor e de destacar diante de todo
o povo os objetivos democráticos gerais, sem dissimular, nem por um
instante, as nossas convicções socialistas. Não é social-democrata
aquele que, na prática, esquece que o seu dever é ser o primeiro a
levantar, ressaltar e resolver todas as questões democráticas gerais.
“Mas todos, sem exceção, estão de acordo com isso!”, inter-
romperá o leitor impaciente – e as novas instruções à redação do
Rabotcheie Dielo, adotadas no último congresso da União, declaram
abertamente: “Devem servir à propaganda e à agitação política
todos os fenômenos e acontecimentos da vida social e política que
afetem o proletariado, seja como classe particular, seja como van-
guarda de todas as forças revolucionárias na luta pela liberdade” (Dois
congressos, p. 17, grifado por mim). Com efeito, estas são palavras

93
K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, cap IV. [São Paulo,
Editora Expressão Popular, 2008.]

141
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

excelentes e muito precisas, e estaríamos inteiramente satisfeitos


se o Rabotcheie Dielo as tivesse compreendido e não apresentasse, ao
mesmo tempo, outras que as contradizem. Pois não basta intitular-
-se “vanguarda”, destacamento avançado: é preciso proceder de
forma a que todos os outros destacamentos se deem conta e sejam
obrigados a reconhecer que somos nós que marchamos à frente.
Portanto, perguntamos ao leitor: os representantes dos outros “des-
tacamentos” seriam, pois, imbecis a ponto de acreditar que somos
“vanguarda” só porque o dizemos? Imaginem apenas este quadro
concreto: um social-democrata apresenta-se no “destacamento”
dos radicais russos ou dos constitucionalistas liberais, e diz: So-
mos a vanguarda; “agora, a nossa tarefa consiste em imprimir, na
medida do possível, um caráter político à própria luta econômica”.
Um radical ou um constitucionalista, por pouco inteligente que
seja (e há muitos homens inteligentes entre os radicais e os cons-
titucionalistas russos), apenas sorrirá ao ouvir isso, e dirá (para si,
claro, pois na maioria dos casos é um diplomata experimentado):
Eis uma vanguarda bem ingênua! Não compreende sequer que é tarefa nossa
– a tarefa dos representantes avançados da democracia burguesa – conferir
à própria luta econômica um caráter político. Porque também nós, como
todos os burgueses do ocidente europeu, queremos integrar os operários
na política, mas apenas na política trade-unionista, e não na política social-
-democrata. A política trade-unionista da classe operária é precisamente a
política burguesa da classe operária. E a formulação desta tarefa por parte
dessa “vanguarda” é tão somente a formulação da política trade-unionista!
Que se autointitulem, quantas vezes quiserem, que são social-democratas!
Não sou uma criança, não vou me aborrecer por conta de um rótulo! Mas
que não se deixem levar por esses nefastos dogmáticos ortodoxos, que dei-
xem a “liberdade de crítica” para aqueles que arrastam, inconscientemente,
a social-democracia para a tendência trade-unionista!
O ligeiro sorriso de ironia de nosso constitucionalista trans-
muta-se numa homérica gargalhada quando percebe que os
social-democratas que falam de vanguarda da social-democracia,

142
V. I. Lenin

precisamente nesse momento no qual há uma prevalência quase


completa da espontaneidade no nosso movimento, temem acima
de tudo que se “minimize o elemento espontâneo”, que se “dimi-
nua o papel da marcha progressiva da cinzenta luta cotidiana em
relação à propaganda das ideias brilhantes e bem acabadas” etc.
etc.! Um destacamento de “vanguarda” que receia que o conscien-
te prevaleça sobre o espontâneo, que teme formular um “plano”
audacioso que obrigue à aceitação geral, mesmo por aqueles que
pensam diferentemente! Será que confundem a palavra vanguarda
com a palavra retaguarda?
Reflitam, de fato, sobre o seguinte raciocínio de Martinov. Na
página 40, declara ele que a tática de denúncias do Iskra é unilateral;
que “por mais que cultivemos a desconfiança e o ódio contra o
governo, não conseguiremos alcançar o nosso objetivo enquanto
não desenvolvermos uma energia social suficientemente ativa para
a sua derrubada”. Eis aqui, diga-se entre parênteses, a preocupação,
que já conhecemos, de intensificar a atividade das massas, levan-
do, ao mesmo tempo, a tendência a restringir a sua própria. Mas
não é disso que se trata agora. Como se vê, Martinov fala aqui de
energia revolucionária (“para a derrubada”). Mas a que conclusão
chega? Como em condições normais as diferentes camadas sociais
atuam, inevitavelmente, com dispersão, “é claro, em decorrência,
que nós, social-democratas, não podemos simultaneamente dirigir
a atividade intensa dos diversos setores da oposição, não podemos
ditar-lhes um programa de ação positivo, não podemos indicar-lhes
as formas com as quais lutarão, dia após dia, para defender os seus
interesses (...). Os setores liberais ocupar-se-ão, eles próprios, dessa
luta ativa pelos seus interesses imediatos, o que os colocará num
embate frontal com nosso regime político” (p. 41). Assim, após
levantar a questão da energia revolucionária, da luta ativa para a
derrubada da autocracia, Martinov desvia-se logo para a energia sin-
dical, para a luta ativa pelos interesses imediatos! É evidente que não
podemos dirigir a luta dos estudantes, dos liberais etc. pelos seus

143
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

“interesses imediatos”; mas não era disso que se tratava, respeitável


“economista”! Tratava-se da participação possível e necessária das
diferentes camadas sociais na derrubada da autocracia, e não apenas
podemos, como devemos dirigir, indispensavelmente, se quisermos
ser a “vanguarda”, essa “atividade intensa das diferentes camadas
da oposição”. Quanto a colocar os nossos estudantes, os nossos
liberais etc. “a enfrentar o nosso regime político”, não serão eles os
únicos a se preocuparem com isso, mas, sobretudo, a polícia e os
funcionários do governo autocrático. Mas “nós”, se quisermos ser
democratas avançados, devemos nos preocupar em sugerir àqueles
que estão descontentes não apenas com o regime universitário mas
também com os zemstvos 94 etc. que pensem que é ruim todo o regi-
me político. Nós devemos assumir a organização de uma ampla luta
política sob a direção do nosso partido, tão abrangente que todos
os segmentos da oposição, quaisquer que sejam, possam prestar e
prestem efetivamente a essa luta, assim como ao nosso partido, a
ajuda de que são capazes. Devemos tornar os militantes práticos
da social-democracia dirigentes políticos capazes de dirigir todas
as manifestações dessa luta abrangente, capazes de, no momento
necessário, “ditar um programa positivo de ação” aos estudantes
em agitação, aos zemstvos descontentes, aos membros indignados
de seitas, aos professores primários lesados em seus interesses etc.
etc. Por isso, é completamente falsa a afirmação de Martinov de que
“só nos é possível, em relação a eles, desempenhar o papel nega-
tivo de denunciadores do regime [...] só podemos dissipar as suas
esperanças nas diferentes comissões governamentais” (o itálico é
nosso). Assim, Martinov mostra que não compreende absolutamente
nada do verdadeiro papel de uma “vanguarda” revolucionária. E se

[Os zemstvos eram formas de autoadministração local sob a égide da nobreza nas provín-
94

cias centrais da Rússia tsarista e foram criados em 1864. A sua competência limitava-se às
questões puramente locais (organização de hospitais, construção de estradas, estatísticas
etc.). Eram controlados pelos governadores e pelo Ministério do Interior, que podiam
suspender as resoluções indesejáveis para o governo.]

144
V. I. Lenin

o leitor tomar isso em consideração, compreenderá o real sentido


da seguinte conclusão de Martinov:
O Iskra é um órgão da oposição revolucionária que denuncia a situação
reinante no nosso país e, principalmente, o nosso regime político, na
medida em que este contraria os interesses dos diversos setores da popu-
lação. Quanto a nós, trabalhamos e trabalharemos pela causa operária em
estreita ligação orgânica com a luta proletária. Ao restringir a esfera da
nossa influência acabamos por torná-la mais acentuada (p. 63).
O verdadeiro sentido dessa conclusão é o seguinte: o Iskra al-
meja elevar a política trade-unionista da classe operária (política à
qual, entre nós, por mal-entendido, por falta de preparação ou por
convicção, frequentemente se limitam os nossos práticos) ao plano
da política social-democrata. Em contrapartida, o Rabotcheie Dielo
deseja rebaixar a política social-democrata ao plano da política trade-
-unionista. E, ainda por cima, garante a todos que “essas duas posi-
ções são perfeitamente compatíveis no âmbito do trabalho comum”
(p. 63). Oh!, sancta simplicitas! [Oh!, santa simplicidade –latim).
Prossigamos. Teremos forças suficientes para levar a nossa pro-
paganda e a nossa agitação a todas as classes da população? Certa-
mente que sim. Os nossos “economistas”, que muitas vezes tendem
a negá-lo, esquecem-se do gigantesco progresso realizado pelo nosso
movimento de 1894 (mais ou menos) a 1901. Verdadeiros “segui-
distas”, têm frequentemente ideias próprias do período do começo
do nosso movimento, há muito já superado. À época, nossas forças
eram muito diminutas, a nossa decisão de se voltar inteiramente
ao trabalho entre os operários e de condenar severamente todo o
desvio dessa linha era natural e legítima; nossa tarefa consistia,
então, em nos consolidar no seio da classe operária. Agora, uma
massa monumental de forças está integrada no movimento; vemos
chegar até nós os melhores representantes da jovem geração das
classes cultas; por toda a parte, vemos, nas províncias, pessoas que
já participam ou querem participar no movimento e que tendem
para a social-democracia (enquanto que, em 1894, podia-se contar

145
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

pelos dedos os social-democratas russos). Um dos defeitos principais


do nosso movimento, tanto do ponto de vista político quanto do
ponto de vista organizativo, é o de não sabermos empregar todas
essas forças, atribuindo-lhes um trabalho adequado (voltaremos
a isso, mais detalhadamente, no capítulo seguinte). A imensa
maioria dessas forças se encontra completamente impossibilitada
de “ir até os operários”; por conseguinte, não se coloca a questão
do perigo de desviar as forças do nosso trabalho essencial. E para
preparar os operários com conhecimentos políticos verdadeiros,
vivos, abrangentes em todos os aspectos, é preciso que tenhamos
“homens nossos”, social-democratas, sempre e em toda a parte,
em todas as camadas sociais, em todas as posições que permitam
conhecer as engrenagens internas do nosso mecanismo estatal.
E precisamos desses homens, não apenas para a propaganda e a
agitação, mas, ainda, e sobretudo, para a organização.
Há campo para atividade em todas as classes da população? Os
que não o veem mostram, uma vez mais, que a sua consciência está
atrasada relativamente ao ascenso espontâneo das massas. Entre
uns, o movimento operário suscitou e suscita o descontentamento;
entre outros, desperta a esperança no apoio da oposição; para ou-
tros, enfim, traz a consciência da inviabilidade do regime autocrá-
tico, da sua derrubada inevitável. Não seríamos “políticos” e social-
-democratas senão em palavras (como, com frequência, acontece
efetivamente) se não tivéssemos a consciência de que a nossa tarefa
consiste em utilizar todas as manifestações de descontentamento,
de todo tipo, em articular e elaborar todas as formas de protesto,
por embrionário que sejam. Sem contar que a massa de milhões
de camponeses, trabalhadores, pequenos produtores, artesãos etc.,
escutará sempre avidamente a propaganda de um social-democrata
minimamente hábil. Existirá uma só classe da população em que
não haja indivíduos, círculos e grupos descontentes com a ausência
de direitos e com a arbitrariedade e, consequentemente, acessíveis à
propaganda do social-democrata, porta-voz que é das mais urgentes

146
V. I. Lenin

aspirações democráticas gerais? Àqueles que quiserem ter uma ideia


concreta dessa agitação política do social-democrata em todas as
classes e setores da população, sugeriremos as denúncias políticas,
no sentido amplo da palavra, como principal meio dessa agitação
(porém não o único, que fique claro).
Devemos – escrevia no meu artigo “Por onde começar?” (Iskra nº 4, maio
de 1901), de que voltaremos a falar, mais detalhadamente, mais adiante –
despertar em todos os elementos minimamente conscientes da população a
paixão pelas denúncias políticas. Não devemos nos amedrontar pelo fato de,
na política, as vozes que denunciam politicamente serem ainda tão débeis,
raras, tímidas. O motivo disso, não está, de modo algum, na resignação
geral à arbitrariedade policial. A razão disso é que os homens capazes de
denunciar e dispostos a fazê-lo não têm uma tribuna donde possam falar,
não têm um auditório que escute avidamente e encoraje os oradores; não
veem em parte alguma no povo uma força que faça valer a pena dirigir uma
queixa contra o “todo-poderoso” governo russo (...) podemos e devemos
oferecer uma tribuna para denunciar o governo tsarista a todo o povo; e
essa tribuna deve ser um jornal social-democrata.95
Esse auditório ideal para essas denúncias políticas é precisa-
mente a classe operária, que tem necessidade, antes e sobretudo,
de conhecimentos políticos amplos e vivos, e que é a mais capaz
de aproveitar esses conhecimentos em luta ativa, mesmo que esta
não prometa qualquer “resultado tangível”. A tribuna para essas
denúncias perante todo o povo só pode ser um jornal para toda a
Rússia. “Sem um órgão político, seria inconcebível na Europa con-
temporânea um movimento que merecesse o nome de movimento
político”, e, nesse sentido, a Rússia também deve ser compreendida
no âmbito da Europa contemporânea. Em nosso país, desde há
muito, a imprensa se tornou uma força; se não o fosse, o governo
não despenderia dezenas de milhares de rublos para subornar e
subvencionar todas as espécies de Katkov e de Mechtcherski. E

[V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 5, p. 9-10.]


95

147
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

não é novidade o fato de, na Rússia autocrática, a imprensa ilegal


romper as barreiras da censura e obrigar os órgãos legais e con-
servadores a falar dela abertamente. Assim aconteceu nos anos de
1870, e mesmo nos anos de 1850. E como são, atualmente, mais
amplos e profundos os setores populares dispostos a ler a imprensa
ilegal para nela aprender “a viver e a morrer”, como na expressão
usada por um operário, autor de uma carta endereçada ao Iskra
(nº 7)96. As denúncias políticas constituem uma declaração de
guerra ao governo, da mesma forma que as denúncias de natureza
econômica constituem uma declaração de guerra aos fabricantes.
E essa declaração de guerra terá um significado moral tanto maior
quanto mais vasta e vigorosa for a campanha de denúncias, quanto
mais decidida e numerosa for a classe social que declara a guerra
para começá-la. As denúncias políticas são, por si próprias, um
dos meios mais poderosos para desagregar o regime adversário,
para separar o inimigo dos seus aliados fortuitos ou temporários,
semeando a hostilidade e a desconfiança entre os que participam
permanentemente do poder autocrático.
Somente o partido que organize campanhas de denúncias
realmente direcionadas a todo o povo poderá tornar-se, nos nossos
dias, vanguarda das forças revolucionárias. As palavras “todo o
povo” abrangem um conteúdo muito amplo. A imensa maioria
dos denunciadores que não pertencem à classe operária (e para ser
vanguarda é preciso, justamente, atrair outras classes) é composta
de políticos realistas e de pessoas sensatas e com espírito prático.
Sabem perfeitamente como é perigoso “queixar-se” mesmo de um
modesto funcionário, e como o é fazê-lo contra o “todo poderoso”
governo russo. Por isso, só direcionarão suas queixas a nós quando
perceberem que realmente podem ter efeito e que representamos

[No nº 7 do Iskra, de agosto de 1901, na seção “Crônica do movimento operário e cartas


96

de fábricas e empresas”, publicou-se uma carta de um operário tecelão de Petersburgo


que testemunhava a enorme influência que o Iskra leninista exercia sobre os operários
avançados.]

148
V. I. Lenin

uma força política. Para chegar a ser, aos olhos do público, uma força
política faz-se necessário trabalhar muito e com obstinação para
elevar o nosso nível de consciência, o nosso espírito de iniciativa e a
nossa energia; para tanto, não basta colar o rótulo de “vanguarda”
numa teoria e numa prática de “retaguarda”.
No entanto – perguntarão, como já perguntam, os partidários
demasiadamente zelosos da “estreita ligação orgânica com a luta
proletária” –, se devemos nos encarregar de organizar denúncias
dos abusos cometidos pelo governo, direcionadas realmente a
todo o povo, em que, então, se manifestará o caráter de classe do
nosso movimento? Precisamente no fato de sermos nós, os social-
-democratas, os organizadores dessas denúncias direcionadas a
todo o povo; em que todas as questões levantadas pelo trabalho de
agitação serão esclarecidas, sistematicamente, a partir de um ponto
de vista social-democrata, sem a menor condescendência para com
as deformações, intencionais ou não, do marxismo; em que essa
ampla e abrangente agitação política será realizada por um partido
que articula, num todo indissolúvel, a ofensiva em nome de todo o
povo contra o governo, a educação revolucionária do proletariado,
salvaguardando, ao mesmo tempo, a sua independência política,
a direção da luta econômica da classe operária e a utilização dos
seus conflitos espontâneos com os seus exploradores, conflitos
que fazem levantar novas camadas do proletariado, atraindo-as
incessantemente para o nosso campo!
Mas um dos traços mais característicos do “economismo” é
precisamente não compreender essa relação; mais ainda, não com-
preender que a necessidade mais urgente do proletariado (educação
política em todos os aspectos, por meio da agitação política e das
denúncias políticas) coincide com as necessidades do movimento
democrático geral. Essa incompreensão sobressai não apenas nas
frases “à Martinov”, mas também nas diferentes passagens de signi-
ficado absolutamente idêntico, nas quais os “economistas” invocam
um pretenso ponto de vista de classe. Eis, por exemplo, como se

149
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

exprimem os autores da carta “economista” publicada no nº 12 do


Iskra97: “Esse mesmo defeito essencial do Iskra (superestimação da
ideologia) é a causa da sua inconsequência nas questões relativas à
atitude da social-democracia com as diversas classes e tendências
sociais. Resolvendo por meio de formulações teóricas (...)” (e não
se apoiando no “crescimento das tarefas do partido que aumentam
ao mesmo tempo que ele” (...) “a tarefa de saltar imediatamente
para a luta contra o absolutismo e percebendo, provavelmente,
toda a dificuldade dessa tarefa para os operários, no estado atual
das coisas (...)” (e não somente percebendo, mas sabendo muito
bem que essa tarefa parece menos difícil aos operários do que aos
intelectuais “economistas” – que os tratam como crianças – pois
os operários estão prontos para a luta por reivindicações que não
prometem, para usar a linguagem do inesquecível Martinov, qual-
quer “resultado tangível”) (...) “mas não tendo a paciência de esperar
que se acumulem forças suficientes para essa luta, o Iskra começa
a procurar aliados nas fileiras dos liberais e dos intelectuais” (...).
Sim, sim, perdemos, de fato, toda a “paciência” para “esperar” os
dias felizes que nos prometem desde há muito os “conciliadores” de
todo tipo, e nos quais os nossos “economistas” deixarão de lançar a
culpa de seu próprio atraso sobre os operários, de justificar a sua in-
suficiente energia pela pretensa insuficiência de forças dos operários.
Em que, perguntaremos aos nossos “economistas”, deve consistir
a “acumulação de forças pelos operários para essa luta”? Não está
claro que consiste na educação política dos operários, em desnudar
para eles todos os aspectos do nosso nefasto regime autocrático? E
não está claro que, justamente para esse trabalho, necessitamos de ter
“aliados entre os liberais e os intelectuais” que se encontrem prontos
97
Por falta de espaço no Iskra não nos foi possível uma resposta completa e detalhada a essa
carta tão peculiar dos “economistas”. Seu aparecimento causou-nos verdadeira alegria
porque já há muito tempo ouvíamos dizer, de diferentes lados, que ao Iskra faltava um
ponto de vista de classe consequente, e só esperávamos uma situação favorável ou a
manifestação precisa dessa acusação em voga para lhe responder. E temos por costume
não responder a um ataque com a defesa, mas com um contra-ataque.

150
V. I. Lenin

para nos trazer as suas denúncias sobre a campanha política contra


os zemstsi, os professores, os funcionários da estatística, os estudantes
etc.? É assim tão difícil compreender esse espantosamente “sábio
mecanismo”? P. Axelrod não os repete, desde 1897, que “a questão de
os social-democratas russos terem conquistado partidários e aliados
diretos ou indiretos entre as classes não proletárias foi decidida, antes
de tudo e principalmente, pelo caráter da propaganda realizada no
seio do próprio proletariado”? No entanto, Martinov e os outros
“economistas” continuam achando, ainda, que os operários devem
primeiro acumular forças por meio “da luta econômica contra os
patrões e o governo” (para a política trade-unionista) e só depois
“passar”, ao que parece, da “educação” do tipo trade-unionista da
“atividade” à atividade social-democrata!
Nas suas indagações – continuam os “economistas” –, o Iskra desvia-se
muitas vezes do ponto de vista de classe, escamoteando os antagonismos
de classe e atribuindo prioridade ao descontentamento contra o governo,
apesar das causas e do grau desse descontentamento serem muito diferentes
entre os “aliados”. Tal postura, por exemplo, dá-se nas relações do Iskra
com os zemstvos”.
O Iskra (segundo os “economistas”) “promete aos nobres
descontentes com as esmolas governamentais o apoio da classe
operária, calando-se em relação ao antagonismo de classe que
separa esses dois setores da população”. Ao consultar os artigos
“A autocracia e os zemstvos” (nºs 2 e 4 do Iskra)98, aos quais, pelo
visto, os autores dessa carta fazem alusão, o leitor poderá ver que

98
[Trata-se do artigo de P. Struve “A autocracia e os zemstvos”, publicado nos nos 2 e 4
do Iskra, de fevereiro e maio de 1901. A publicação no Iskra do artigo de Struve e, na
Zaria, da “memória confidencial” de S. Witte “A autocracia e os zemstvos”, com um
prólogo de P. Struve (R.N.S.), foi possível graças ao acordo estabelecido em janeiro de
1901 entre as redações dos dois periódicos e a “oposição democrática” (Struve). Esse
acordo, finalizado por P. Axelrod e V. Zassulitch, com a ajuda de G. Plekhanov e o
voto contra de Lenin, durou pouco: na primavera de 1901, evidenciou-se a completa
impossibilidade da colaboração dos social-democratas com os democratas burgueses,
desfazendo-se o bloco com Struve.]

151
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

são dedicados99 à atitude do governo em relação “à branda agitação


do zemstvo burocrático censitário” frente à “atividade independente
até mesmo das próprias classes proprietárias”. No artigo diz-se que
o operário não pode ficar indiferente à luta do governo contra o
zemstvo; convoca os zemstsi a deixar de lado os seus moderados
discursos e a pronunciar palavras firmes e categóricas quando a
social-democracia revolucionária se levantar com toda sua força
contra o governo. O que há nisso de inaceitável aos autores da
carta? Ninguém o sabe. Pensam que o operário “não compreen-
derá” as palavras “classes proprietárias” e “zemstvo burocrático
censitário”? Acham que o fato de pressionar os zemstsi a superar
os discursos moderados com palavras categóricas consiste numa
“superestimação da ideologia”? Imaginam que os operários po-
dem “acumular forças” para a luta contra o absolutismo sem que
saibam como também é tratado o zemstvo pelo regime? Mais uma
vez, ninguém o sabe. A única coisa clara é que os autores têm uma
ideia muito vaga das tarefas políticas da social-democracia. Isso
fica mais evidente ainda na frase seguinte: “Tal atitude do Iskra
é idêntica em relação ao movimento estudantil” (ou seja, nesse
caso, também se “escamoteiam os antagonismos de classe”). Em
vez de exortar os operários a afirmar através de uma manifestação
pública que a verdadeira origem da violência, da arbitrariedade
e do desregramento não está na juventude universitária, mas no
governo russo (Iskra nº 2)100, deveríamos, pelo que se vê, ter publi-
cado raciocínios elaborados no espírito de R. Mysl! E tais opiniões
são expressas pelos social-democratas no outono de 1901, após os
acontecimentos de fevereiro e de março, às vésperas de um novo
ascenso do movimento estudantil, demonstrando que, também
nesse âmbito, a “espontaneidade” do protesto contra a autocracia

99
[E no intervalo entre as publicações desses artigos, saiu um (Iskra nº 3) especialmente
voltado para a questão dos antagonismos de classe no campo (V. I. Lenin, Obras com-
pletas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 391-396.).]
100
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 388-393.]

152
V. I. Lenin

supera a direção consciente do movimento pela social-democracia.


O ascenso espontâneo dos operários que os levou a intervir em
favor dos estudantes espancados pela polícia e pelos cossacos supera
a atividade consciente da organização social-democrata!
“Entretanto, noutros artigos”, continuam os autores da carta,
“o Iskra condena energicamente todo o compromisso e defende,
por exemplo, a postura intolerante dos guesdistas”. Aconselhamos
aqueles que afirmam, com tanta presunção e ligeireza, que as atuais­
divergências de ponto de vista entre os social-democratas não são
essenciais e não justificam uma cisão que reflitam bem nessas
palavras. É possível o trabalho comum numa mesma organização
entre aqueles que afirmam que quase nada fizemos para demonstrar
a hostilidade da autocracia em relação às mais diferentes classes e
para revelar aos operários a oposição dos mais diferentes setores da
população à autocracia, e aqueles que veem nessa atividade “um
compromisso”, evidentemente um compromisso com a teoria da
“luta econômica contra os patrões e o governo”?
No 40º aniversário da emancipação dos camponeses, falamos
da necessidade de levar a luta de classes ao campo (nº 3)101; a pro-
pósito do memorando secreto de Witte, relatamos a incompatibi-
lidade existente entre os órgãos da administração autônoma local
e a autocracia (nº 4); a propósito da nova lei (nº 8)102, combatemos
o espírito feudal dos setores agrários e do governo que os serve e
saudamos o congresso ilegal dos zemstvos, encorajando os zemstsi
a abandonar as intervenções humilhantes para passar à luta (nº
8)103; estimulamos os estudantes à luta política, uma vez que já
começavam a compreendê-la (nº 3, por ocasião da mensagem do
Comitê Executivo de estudantes de Moscou, de 25 de fevereiro)
e, ao mesmo tempo, fustigamos a “descabida incompreensão” dos

101
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 394-401.]
102
[Ibidem, t. 5, p. 78-83.]
103
[Ibidem, t. 5, p. 84-85.]

153
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

partidários do movimento “puramente universitário”, que exor-


tavam os estudantes a não participar das manifestações de rua;
denunciamos os “sonhos absurdos”, a “mentira e a hipocrisia” dos
espertalhões liberais do jornal Rossia104 (nº 5) e, ao mesmo tem-
po, estigmatizamos a fúria repressiva do governo de torturadores
contra “pacíficos literatos, velhos professores e cientistas, contra
conhecidos liberais dos zemstvos” (nº 5: “Golpe da polícia contra a
literatura”); revelamos o verdadeiro sentido do programa “de tutela
do Estado para a melhoria da vida dos operários” e celebramos
a “preciosa confissão” de que “mais vale prevenir com reformas
pelo alto as reivindicações por reformas vindas de baixo, do que
esperar que estas ocorram” (nº 6)105; encorajamos os funcionários
da estatística no seu protesto (nº 7) e condenamos aqueles que
furavam greve (nº 9). Quem vê nessa tática um obscurecimento
da consciência de classe do proletariado e um compromisso com o
liberalismo demonstra que não compreende absolutamente nada
do verdadeiro sentido do programa do Credo e, efetivamente, acaba
aplicando justamente esse programa, por mais que o repudie! Com
efeito, por isso mesmo, arrasta a social-democracia à “luta econômi-
ca entre os patrões e o governo”, e retrocede perante o liberalismo,
renunciando à tarefa de intervir ativamente em cada problema de
natureza “liberal” e determinar, frente a cada um desses problemas,
a sua própria atitude, a sua atitude social-democrata.

Mais uma vez “caluniadores”, mais uma vez


“mistificadores”
Como o leitor se lembrará, essas amáveis palavras foram ditas
pelo Rabotcheie Dielo que assim responde à nossa acusação de “pre-
parar indiretamente o terreno para fazer do movimento operário
um instrumento da democracia burguesa”. Em sua simplicidade,

[Rossia (Rússia): diário liberal moderado, editado em Petersburgo de 1889 a 1902.]


104

[Ibidem, t. 5, p. 71-72.]
105

154
V. I. Lenin

Rabotcheie Dielo decidiu que essa acusação nada mais era do que
um instrumento para a polêmica. Como se dissesse: esses pro-
vocadores dogmáticos resolveram dizer-nos todas as espécies de
coisas desagradáveis, pois o que pode haver de mais desagradável
do que ser o instrumento da democracia burguesa? E publicou,
em negrito, “um desmentido”: “Calúnia não dissimulada” (Dois
congressos, p. 30), “uma mistificação” (p. 31), “uma dissimulação”
(p. 33). Como Júpiter (embora se pareça pouco com ele), o Rabo-
tcheie Dielo irrita-se precisamente porque não tem razão, e, pelas
suas injúrias irrefletidas, prova que é incapaz de seguir o fio do
pensamento dos seus adversários. E, entretanto, não é necessário
refletir muito para compreender a razão por que todo o culto da
espontaneidade do movimento de massa, todo o rebaixamento
da política social-democrata ao plano da política trade-unionista,
corresponde a preparar o terreno para fazer do movimento ope-
rário um instrumento da democracia burguesa. O movimento
operário espontâneo não pode resultar, por ele mesmo, senão no
trade-unionismo (e inevitavelmente resulta), e a política trade-
-unionista da classe operária não é mais do que a política burguesa
da classe operária. A participação da classe operária na luta polí-
tica, e mesmo na revolução política, não faz de maneira alguma
da sua política uma política social-democrata. O Rabotcheie Dielo
pensará em negar isso? Pensará, finalmente, em expor diante de
todos, sem restrições nem rodeios, a sua concepção dos problemas
candentes da social-democracia internacional e russa? Não, nun-
ca pensará em nada semelhante, porque se mantém firmemente
apegado ao recurso de “fazer-se de morto”. Não fui eu, não tenho
nada com isso. Não somos “economistas”, o Rabotchaia Mysl não
é o “economismo”, nem existe “economismo” na Rússia. Esse é
um recurso muito hábil e “político”, que tem apenas o pequeno
inconveniente de se poder atribuir o apelido de “às suas ordens”
aos órgãos da imprensa que se valem disso.

155
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Rabotcheie Dielo pensa que, em geral, na Rússia, a de-


mocracia burguesa é apenas um “fantasma” (Dois congressos,
p. 32)106. Que gente feliz! Como o avestruz, escondem a cabeça debai-
xo da asa e imaginam que assim tudo que está a sua volta desapareceu.
Uma série de propagandistas liberais que, todos os meses, anunciam
triunfalmente que o marxismo está em decomposição, ou mesmo
desapareceu; uma série de jornais liberais (Sankt-Petersburgskie
Vedomosti 107, Russkie Vedomosti108 e muitos outros), cujas opiniões
voltam-se para o estímulo aos liberais que influenciam os operários
com a concepção brentaniana da luta de classes109 e a concepção
trade-unionista da política; a plêiade de críticos do marxismo, cujas
verdadeiras tendências foram tão bem reveladas pelo Credo e cuja
mercadoria literária é a única que circula pela Rússia sem impostos
nem taxas; a reanimação das tendências revolucionárias não social-
-democratas, sobretudo após os acontecimentos de fevereiro e de

106
Recorre-se aqui mesmo “às condições concretas russas que levam, fatalmente, o mo-
vimento operário para o caminho revolucionário”. Essa gente não quer entender que
o caminho revolucionário do movimento operário pode não ser o caminho social-
-democrata! Toda a burguesia do ocidente europeu, sob o absolutismo, “empurrava”,
empurrava conscientemente os operários para o caminho revolucionário. Porém, nós,
social-democratas, não podemos contentar-nos com isso. E se rebaixamos, de um modo
ou de outro, a política social-democrata ao plano da política espontânea, da política
trade-unionista, fazemos assim justamente o jogo da democracia burguesa.
107
[Notícias de São Petersburgo: jornal editado em Petersburgo desde 1728, como con-
tinuação do primeiro jornal russo, Vedomosti, que começou a circular em 1703. De
1728 a 1874, foi editado pela Academia das Ciências e, desde 1875, pelo Ministério
da Instrução Pública. Saiu até fins de 1917.]
108
[Notícias da Rússia: jornal editado em Moscou, a partir de 1863, pelos intelectuais liberais
moderados. Nos anos 1880 e 1890 colaboraram nele escritores do campo democrático (V.
Korolenko, M. Saltikov-Chtchedrine, G. Uspenski e outros) e foram publicados artigos
dos populistas liberais. A partir de 1905, o jornal foi o órgão da ala direita do partido
democrata-constitucionalista. Lenin assinalou que o jornal combinava de maneira original
“a democracia constitucionalista de direita com um matiz de populismo”. Em 1918, o
periódico foi suspenso juntamente com outros jornais contrarrevolucionários.]
109
[“Brentanismo”: doutrina liberal burguesa que defende a possibilidade de resolver a ques-
tão operária nos marcos do capitalismo, pela via da legislação industrial e da organização
dos operários em sindicatos. Deve a denominação a L. Brentano, um dos principais
representantes da escola do socialismo de cátedra na economia política burguesa.]

156
V. I. Lenin

março. Tudo isso, pelo que se vê, é um fantasma! Tudo isso, em


absoluto, nada tem a ver com a democracia burguesa!
O Rabotcheie Dielo, tal como os autores da carta “economista” do
nº 12 do Iskra, deveria ter “pensado na razão que levou os avanços
da primavera a provocar uma tão considerável reanimação das ten-
dências revolucionárias não social-democratas, em vez de reforçar a
autoridade e o prestígio da social-democracia”. A razão consiste no fato
de não estarmos à altura da nossa missão, de a atividade das massas
operárias ter sido mais elevada que a nossa, de não termos dirigentes
e organizadores revolucionários suficientemente preparados, capazes
de conhecer perfeitamente o estado de espírito de todos os setores
da oposição e de posicionar-se na dianteira do movimento, trans-
formando uma manifestação espontânea em manifestação política,
conferindo-lhe um caráter político mais amplo etc. Nessas condições,
os revolucionários não social-democratas mais dinâmicos e mais enér-
gicos continuarão a se aproveitar, inevitavelmente, do nosso atraso, e
os operários, por maiores que sejam a energia e a abnegação com que
lutam contra a polícia e as tropas, por mais revolucionária que seja sua
ação, não poderão ser mais do que uma força que apoia esses revolu-
cionários, a retaguarda da democracia burguesa e não a vanguarda
social-democrata. Consideremos a social-democracia alemã, da qual
os nossos “economistas” querem imitar apenas suas fraquezas. Por que
não existe nem um único acontecimento político na Alemanha que
não contribua para reforçar cada vez mais a autoridade e o prestígio
da social-democracia? Porque a social-democracia é sempre a primei-
ra a fazer a avaliação mais revolucionária de cada acontecimento, a
apoiar todo o protesto contra a arbitrariedade. Não se ilude com os
argumentos de que a luta econômica levará os operários a pensar na
sua total falta de direitos e de que as condições concretas conduzem
fatalmente o movimento operário para o caminho revolucionário.
Intervém em todos os aspectos e em todos os problemas da vida social
e política: intervém quando Guilherme se recusa a ratificar a nomeação
de um prefeito progressista burguês (os nossos “economistas” ainda

157
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

não tiveram tempo de esclarecer aos alemães que isso constitui, na


verdade, um compromisso com o liberalismo!); intervém quando se
institui uma lei contra as imagens e as obras “imorais”, quando o
governo pressiona para que sejam escolhidos determinados profes-
sores etc. etc. Por toda a parte, a social-democracia está na linha de
frente, estimulando o descontentamento político em todas as classes,
sacudindo os adormecidos, reanimando os atrasados, fornecendo
abundantes materiais para desenvolver a consciência política e a ativi-
dade política do proletariado. Como consequência de tudo isso, até os
inimigos conscientes do socialismo respeitam esse lutador político de
vanguarda, e não é raro que um documento importante, não só das
esferas burguesas, mas também das esferas burocráticas e palacianas,
vá parar, milagrosamente, na sala de redação do Vorwärts.
Aí está a chave da aparente “contradição” que vai além da capa-
cidade de compreensão do Rabotcheie Dielo, a ponto de ele se limitar
a levantar os braços para o céu clamando: “Dissimulação”! De
fato, imaginem vocês: nós, o Rabotcheie Dielo, consideramos como
pedra angular o movimento operário de massas (e o imprimimos em
negrito!), prevenimos a todos e a cada um o risco de minimizar a
relevância do elemento espontâneo; queremos conferir à própria,
à própria luta econômica um caráter político; queremos manter
uma estreita ligação orgânica com a luta proletária! E dizem-nos
que preparamos o terreno para transformar o movimento operário
num instrumento da democracia burguesa. E quem o diz? Gente
que mantém “compromisso” com o liberalismo, imiscuindo-se
em todas as questões “liberais” (que incompreensão da “ligação
orgânica com a luta proletária”!), dedicando enorme atenção aos
estudantes e até (que horror!) aos membros do zemstvo! Gente que,
em geral, quer consagrar uma percentagem maior (em comparação
com os “economistas”) das suas forças à atividade entre as classes
não proletárias da população! Não será isto uma “dissimulação”?
Pobre Rabotcheie Dielo! Chegará alguma vez a desvelar o se-
gredo desse complicado mecanismo?

158
IV

OS MÉTODOS ARTESANAIS DOS


“ECONOMISTAS” E A ORGANIZAÇÃO
DOS REVOLUCIONÁRIOS

As afirmações do Rabotcheie Dielo, já examinadas anterior-


mente, declarando que a luta econômica é o meio mais ampla-
mente aplicável de agitação política, que a nossa tarefa consiste,
hoje, em imprimir à própria luta econômica um caráter político
etc., refletem uma compreensão limitada das nossas tarefas, não
só no terreno político, mas também no de organização. Para “a
luta econômica contra os patrões e o governo” é absolutamente
desnecessária uma organização centralizada para toda a Rússia
(que, por isso mesmo, não pode constituir-se no curso de tal luta),
organização que reúna numa única iniciativa comum todas as
manifestações, quaisquer que sejam, de oposição política, de pro-
testo e de indignação, organização formada por revolucionários
profissionais e dirigida por verdadeiros dirigentes políticos de todo
o povo. Isto é compreensível. Qualquer instituição tem a sua es-
trutura, natural e inevitavelmente, determinada pelo conteúdo da
sua ação. Por isso, pelas afirmações acima analisadas, o Rabotcheie­
Dielo consagra e legitima a estreiteza não apenas da ação política,
como também do trabalho de organização. Nesse caso, como
em todos os outros, a consciência desse órgão de imprensa se
curva diante da espontaneidade. Entretanto, o culto das formas
de organização que surgem espontaneamente, o fato de ignorar
o quanto é estreito e primitivo o nosso trabalho de organização
e até que ponto somos ainda “rudimentares” em relação a esse

159
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

aspecto importante – tudo isso constitui uma verdadeira doença


do nosso movimento. Não uma doença própria da decadência,
mas de crescimento. Porém, precisamente hoje, quando a onda
de indignação espontânea se espraia, por assim dizer, até nós,
dirigentes e organizadores do movimento, é particularmente
necessária uma luta intransigente contra toda forma de defesa
do atraso, contra toda forma de legitimação da estreiteza nesse
campo; é especialmente necessário que se desperte entre todos
aqueles que participam, ou apenas se dispõem a participar do
trabalho prático, o descontentamento em relação aos métodos
artesanais de trabalho que reinam entre nós e a firme vontade de
nos desembaraçarmos deles.

O que é o trabalho artesanal?


Trataremos de responder a essa pergunta traçando, em poucas
palavras, um quadro da atividade de um círculo social-democrata
típico entre os anos 1894 e 1901. Já falamos do entusiasmo geral
pelo marxismo por parte da juventude estudantil daquele período.
Claro que esse entusiasmo correspondia não apenas ao marxismo
como teoria, mas também como resposta à questão: “que fazer?”,
como apelo para se colocar em campanha contra o inimigo. E os
novos combatentes punham-se em marcha com uma preparação
e recursos extraordinariamente primitivos. Em muitíssimos casos,
praticamente não dispunham de recursos e não tinham absoluta-
mente nenhuma preparação. Iam à guerra como camponeses que
tivessem acabado de deixar o arado, simplesmente armados com
um bastão. Sem ligação de qualquer espécie com os círculos de
outras localidades, nem mesmo de outros bairros (ou de outros
centros de ensino) da sua própria cidade, sem qualquer coordena-
ção das diferentes partes do trabalho revolucionário, sem qualquer
plano sistemático de ação para um período mais ou menos pro-
longado, um círculo de estudantes entrava em contacto com os
operários e punha-se a agir. Paulatinamente, o círculo desenvolvia

160
V. I. Lenin

uma propaganda e uma agitação cada vez mais vastas e, através


da sua ação, atraía a simpatia de amplos setores do meio operário,
a simpatia de uma parte da sociedade instruída, que lhe fornecia
dinheiro e colocava à disposição do “Comitê” novos grupos de
jovens. Cresce o prestígio do “Comitê” (ou “União de Luta”), a
envergadura de sua atividade se amplia, estendendo-se de uma
maneira completamente espontânea: as mesmas pessoas que, há
um ano ou alguns meses, intervinham nos círculos estudantis
para responder à questão: “para onde ir?”, que estabeleciam e
mantinham relações com os operários, compunham e lançavam
panfletos, relacionam-se com outros grupos de revolucionários,
publicam, empreendem a edição de um jornal local, começam
a tratar de organizar uma manifestação e, por fim, passam às
operações militares abertas (que podem ser, segundo as circuns-
tâncias, o primeiro panfleto de agitação, o primeiro número de
um jornal, a primeira manifestação). Em geral, essas operações
conduziam ao fracasso imediato e completo, desde o seu início.
Isso porque essas operações militares não eram o resultado de um
plano sistemático, previamente preparado e estabelecido para uma
longa e severa luta, mas simplesmente o crescimento espontâneo
de um trabalho de círculo, realizado tradicionalmente; porque a
polícia, como é natural, conhecia quase sempre todos os principais
militantes do movimento local, que já tinham “dado que falar” nos
bancos da universidade, e, aguardando o momento mais propício
para uma ofensiva, deixava, intencionalmente, o círculo ampliar-se
e estender-se para ter um corpus delicti [corpo de delito – latim]
tangível, e deixando de cada vez, também intencionalmente, al-
guns indivíduos como “semente” (é a expressão técnica empregada,
pelo que sei, tanto pelos nossos quanto pelos da polícia). Não se
pode deixar de comparar essa guerra a uma marcha de bandos
de camponeses armados de bastões contra um exército moderno.
E não se pode deixar de admirar a vitalidade de um movimento
que aumentava, que se estendia e obtinha vitórias, apesar de uma

161
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

ausência completa de preparação entre os combatentes. É verdade


que, do ponto de vista histórico, o caráter primitivo do armamento
era não apenas inevitável em princípio, mas até legítimo, como
uma das condições que permitia atrair grande número de com-
batentes. Mas, desde que começaram as operações militares sérias
(e começaram, efetivamente, com as greves do verão de 1896), as
deficiências da nossa organização militar fizeram-se sentir cada
vez mais. Após um primeiro momento de surpresa, depois de ter
cometido uma série de erros (como dirigir-se à opinião pública
distorcendo as ações dos socialistas ou deportando os operários
das capitais para os centros industriais da província), o governo
não tardou a adaptar-se às novas condições de luta e soube dispor,
em pontos convenientes, os seus destacamentos de provocadores,
de espiões e de policiais, providos de todos os meios modernos. As
investidas policiais tornaram-se tão frequentes, atingiram tantas
pessoas, esvaziaram a tal ponto os círculos locais, que a massa ope-
rária perdeu literalmente todos os seus dirigentes, o movimento se
desestruturou de modo impressionante, impossibilitando qualquer
continuidade e coordenação no trabalho. A extraordinária disper-
são dos militantes locais, a composição aleatória dos círculos, os
erros de preparação e o limite de perspectivas nas questões teóricas,
políticas e de organização constituíram o resultado inevitável das
condições descritas. Em alguns lugares, em face da nossa falta de
firmeza e de organização para conspirar, os operários chegaram
até mesmo a afastar-se dos intelectuais por desconfiança, dizendo
que provocavam as prisões pela sua imprudência! Atualmente,
qualquer militante, mesmo iniciante no movimento, sabe desde
já que esses métodos artesanais foram considerados pelos social-
-democratas sensatos como uma verdadeira doença. No entanto,
para que o leitor não iniciado não julgue que “construímos” arti-
ficialmente uma fase determinada ou uma determinada doença
do movimento, recorreremos a um testemunho já uma vez citado.
Que nos perdoem a extensão da citação.

162
V. I. Lenin

Se a passagem gradual a uma atividade prática mais ampla – escreve B-v110


no nº 6 do Rabotcheie Dielo –, passagem que depende diretamente do
período geral de transição que atravessa o movimento operário russo, é
um traço característico (...) existe no conjunto do mecanismo da revolução
operária russa um outro traço não menos interessante. Referimo-nos à es-
cassez geral de forças revolucionárias aptas para a ação111, que se faz sentir não
apenas em Petersburgo, mas em toda a Rússia. À medida que o movimento
operário se intensifica, que a massa operária se desenvolve, que as greves
se tornam mais frequentes, que a luta de massas dos operários se trava
mais abertamente, o que faz recrudescer as perseguições governamentais,
prisões, os desterros e deportações, essa escassez de forças revolucionárias
de alta qualidade torna-se cada vez mais sensível e, sem dúvida, não deixa
de influir na profundidade e no caráter geral do movimento. Muitas greves
se desenvolvem sem que as organizações revolucionárias exerçam sobre
elas uma influência enérgica e direta (...). Há falta de panfletos de agitação
e de publicações ilegais (...). Os círculos operários ficam sem agitadores
(...). Ao mesmo tempo, verifica-se constantemente a falta de recursos
financeiros. Numa palavra, o crescimento do movimento operário ultra-
passa o crescimento e o desenvolvimento das organizações revolucionárias.
Os efetivos de revolucionários são demasiado insignificantes para poder
influenciar toda a massa operária em efervescência, para atribuir a todos
os distúrbios ao menos uma sombra de direção e de organização (...). Os
círculos e revolucionários dispersos não estão unidos, nem agrupados;
não formam uma organização única, forte e disciplinada, com partes
metodicamente desenvolvidas. (...) E depois de ter feito a reserva de que
o aparecimento imediato de novos círculos em substituição daqueles que
foram destruídos prova apenas a vitalidade do movimento (...), mas não
apresenta ainda a existência de uma quantidade necessária de militantes
revolucionários suficientemente aptos, [o autor conclui:] A falta de prepa-
ração prática dos revolucionários de Petersburgo reflete-se também nos

[B-v: B. V. Savinkov, um dos dirigentes do Partido Social-Revolucionário.]


110

Todos os itálicos são nossos.


111

163
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

resultados do seu trabalho. Os últimos processos, especialmente os dos


grupos Autoemancipação e Luta do trabalho contra o capital112 mostraram
claramente que um jovem agitador não familiarizado perfeitamente com
as condições do trabalho e, por conseguinte, da agitação em determinada
fábrica, desconhecendo os princípios da atividade clandestina e tendo
assimilado [terá mesmo assimilado?] apenas os princípios gerais da social-
-democracia, pode trabalhar uns quatro, cinco, seis meses. Em seguida
vem a prisão, que frequentemente acarreta o desmoronamento de toda a
organização ou ao menos de uma parte. Cabe a pergunta: pode um grupo
trabalhar com proveito e êxito, quando a sua existência está limitada a
uns poucos meses? É evidente que não se pode atribuir todos os defeitos
das organizações existentes ao período de transição (...), é evidente que a
quantidade e sobretudo a qualidade do efetivo das organizações em ativi-
dade desempenham aqui um papel de não pouca importância, e a tarefa
primordial dos nossos social-democratas (...) deve consistir em unificar
efetivamente as organizações, com uma rigorosa seleção dos seus membros.

O trabalho artesanal e o “economismo”


Devemos nos deter agora numa questão que certamente já se
colocou a todos os leitores: pode-se estabelecer uma relação entre
o trabalho artesanal, como doença de crescimento que afeta todo
o movimento, e o “economismo”, como uma das tendências da
social-democracia russa? Pensamos que sim. A falta de preparação
prática e de habilidade no trabalho de organização é, de fato, coisa
comum a todos nós, mesmo entre aqueles que sempre se mantiveram
fiéis ao ponto de vista do marxismo revolucionário. E, certamente,
ninguém poderia culpar os militantes envolvidos na prática por
essa falta de preparação. Mas o conceito de “trabalho artesanal”,

[O Grupo de Operários para a Luta contra o Capital, organizado em Petersburgo na


112

primavera de 1899, foi integrado por alguns operários e intelectuais, mas não manteve
uma ligação estreita com o movimento operário de Petersburgo e pouco depois, após
a prisão de quase todos os seus membros no verão daquele ano, foi liquidado. Suas
perspectivas eram próximas ao “economismo”.]

164
V. I. Lenin

para além da falta de preparação, envolve também outra coisa:


supõe o reduzido alcance do conjunto do trabalho revolucionário,
a incompreensão do fato de que esse tipo de trabalho não permite
que se constitua uma boa organização de revolucionários, enfim
– e isto é o principal – supõe que se encontrem tentativas que
justifiquem essa estreiteza para erigi-la em “teoria” particular, isto
é, envolve o culto da espontaneidade também nesse campo. As
primeiras tentativas nessa direção tornaram evidentes os vínculos
existentes entre os métodos artesanais e o “economismo”, deixando
claro que não nos livraríamos da nossa estreiteza no trabalho de
organização antes de nos livrarmos do “economismo” em geral
(isto é, da concepção estreita tanto da teoria do marxismo quanto
do papel da social-democracia e das suas tarefas políticas). E essas
tentativas foram constatadas em duas direções. Uns começaram
a dizer que a massa operária não havia formulado ainda, ela pró-
pria, tarefas políticas tão amplas e tão combativas como as que
lhe “impunham” os revolucionários, que devem, portanto, ainda
lutar por reivindicações políticas imediatas, travar “uma luta
econômica contra os patrões e o governo”113 (e a essa luta “aces-
sível” ao movimento de massas corresponde naturalmente uma
organização “acessível” mesmo à juventude menos preparada).
Outros, distantes de qualquer “gradualismo”, passaram a dizer
que se podia e se devia “fazer a revolução política”, mas que, para
isso, não havia necessidade de se criar uma forte organização de
revolucionários que educasse o proletariado para uma luta firme e
tenaz, bastando que todos nós tomemos o bordão “acessível” e já
conhecido. Sem alegorias: que organizássemos a greve geral114 ou
estimulássemos o movimento operário “adormecido” através de um
“terrorismo estimulante”115. Essas duas tendências, a oportunista
113
Rab. Myls e Rab. Dielo, em particular a “Resposta” a Plekhanov.
114
“Quem fará a revolução política?”, texto publicado na Rússia, na compilação A luta
proletária, reeditada pelo Comitê de Kiev.
115
Renascimento do revolucionarismo e Svoboda [Cf., infra, a nota 123.]

165
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

e a “revolucionarista”, capitulam diante dos métodos artesanais


dominantes, não creem na possibilidade de se libertar deles, não
compreendem a nossa primeira e mais urgente tarefa prática: criar
uma organização de revolucionários capaz de dar à luta política
energia, firmeza e continuidade.
Acabamos de citar as palavras de B-v: “O crescimento do mo-
vimento operário ultrapassa o crescimento e o desenvolvimento
das organizações revolucionárias”. Essa “valiosa informação de
um observador privilegiado” (opinião emitida pela redação do
Rabotcheie Dielo sobre o artigo de B-v) tem para nós um duplo
valor. Demonstra que tínhamos razão ao considerar que a causa
fundamental da crise que a social-democracia vive atualmen-
te reside no atraso dos dirigentes (“ideólogos”, revolucionários,
social-democratas) em relação ao impulso espontâneo das massas.
Demonstra que todas essas questões levantadas pelos autores
da carta economista (Iskra nº 12), B. Kritchevski e Martinov,
acerca do perigo que existe em minimizar o papel do elemento
espontâneo, da cinzenta luta cotidiana, da tática-processo etc.,
expressam na verdade uma defesa e uma exaltação do trabalho
artesanal. Essa gente, que não pode pronunciar a palavra “teó-
rico” sem um gesto de desprezo, que considera como “senso de
realidade” a sua devoção à falta de preparação para a vida e ao
seu parco desenvolvimento, mostra de fato que não compreende
as nossas tarefas práticas mais imperiosas. Às pessoas que ficaram
para trás, gritam: “Marquem passo! Não se adiantem!”. Àqueles
a quem falta energia e iniciativa no trabalho de organização, a
quem faltam “planos” amplos e ousados para organizar o traba-
lho, falam da “tática-processo”! O nosso pecado capital está em
rebaixar as nossas tarefas políticas e de organização ao plano dos
interesses imediatos, “tangíveis”, “concretos” da luta econômica
cotidiana. E continuam a nos dizer: “deve-se imprimir à própria
luta econômica um caráter político”! Repetimos: isso é literalmen-
te o mesmo “senso de realidade” que possuía uma personagem

166
V. I. Lenin

da epopeia popular que gritava ao cortejo fúnebre que passava:


“Tomara que tenham sempre algo que levar!”.
Recorde-se da incomparável presunção, digna de Narciso, com
a qual esses sábios ensinavam a Plekhanov: “Aos círculos operários
não são acessíveis, em geral [sic!], as tarefas políticas no sentido real,
prático da palavra, isto é, no sentido de uma luta prática, oportuna
e eficaz por reivindicações políticas” (“Resposta da Redação” do
Rab. Dielo, p. 24). Existem círculos e círculos, senhores! A um
círculo que empregue métodos artesanais não são acessíveis as
tarefas políticas enquanto não reconhecer o caráter artesanal do
seu trabalho e dele não se livrar. Mas se, além disso, seus mem-
bros estão enamorados dos seus métodos, se escrevem a palavra
“prático” sempre em itálico e se imaginam que a prática exige o
rebaixamento das tarefas a um plano de compreensão das camadas
mais atrasadas da massa, então, evidentemente, esses membros são
incuráveis e as tarefas políticas são-lhes, em geral, inacessíveis. Mas,
para um círculo de corifeus como Alexeiev e Mychkin, Khalturin
e Zheliabov, são acessíveis as tarefas políticas no sentido mais real,
mais prático do termo, precisamente porque, e na medida em
que, sua propaganda ardente encontre eco na massa, que desperta
espontaneamente e tem a sua fervilhante energia subordinada
e direcionada pela energia da classe revolucionária. Plekhanov
tinha mil vezes razão, não só quando apontou qual era essa classe
revolucionária e demonstrou o caráter inevitável e compulsório
de seu despertar espontâneo, mas também quando indicou para
os “círculos operários” uma grandiosa e elevada tarefa política. E
os senhores invocam o movimento de massas que surgiu desde
então para rebaixar essa tarefa, para reduzir a energia e o alcance
da atividade dos “círculos operários”. O que é isso, senão uma
espécie de teimosa fixação do artesão aos seus próprios métodos?
Vangloriam-se do seu espírito prático, e não percebem o que todo
militante prático russo conhece: as maravilhas que pode fazer, em
matéria revolucionária, a energia não apenas de um círculo, mas

167
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

mesmo a de um único indivíduo. Pensam que não podem existir


corifeus no nosso movimento, como os da década de 1870? Por quê?
Por que estamos pouco preparados? No entanto, preparamo-nos,
continuaremos a nos preparar e estaremos preparados! É verdade
que a “água parada” em torno da “luta econômica contra os patrões
e o governo” acabou por gerar entre nós, infelizmente, lodo. Surgi-
ram pessoas que se ajoelharam em adoração à espontaneidade e que
contemplam religiosamente (segundo a expressão de Plekhanov)
o “traseiro” do proletariado russo. Mas saberemos desembaraçar-
-nos desse lodo. É precisamente agora que o revolucionário russo,
guiado por uma teoria verdadeiramente revolucionária, apoiando-se
numa classe verdadeiramente revolucionária que desperta espon-
taneamente, pode finalmente – finalmente! – levantar-se em toda
a sua estatura e desenvolver todas as suas forças de gigante. Para
isso é necessário que, entre a massa dos militantes práticos e no
interior daquela massa extensa dos que sonham com o trabalho
prático desde os bancos da escola, sejam desprezadas e ridiculari-
zadas quaisquer tentativas de rebaixar as nossas tarefas políticas e
o alcance de nosso trabalho de organização. E não tenham dúvidas
de que o conseguiremos!
No artigo “Por onde começar?” escrevi, contra o Rabotcheie Dielo:
Em 24 horas, é possível modificar a tática da agitação nalgum problema
específico, mudar algum aspecto menor da tática na organização do
partido. No entanto, uma modificação, não diria em 24 horas, mas até
mesmo em 24 meses, das suas concepções sobre se é geralmente necessária,
de modo permanente e absoluta, uma organização de combate e de uma
agitação política nas massas, tal modificação é coisa que só podem fazer
aqueles que não têm quaisquer princípios.116
Rabotcheie Dielo responde:
Essa acusação do Iskra, a única que pretende ter base real, não possui
nenhum fundamento. Os leitores do Rabotcheie Dielo sabem muito bem

[Cf. V. I. Lenin, Obras completas, 4a ed. em russo, t. 5, p. 6.]


116

168
V. I. Lenin

que desde o início não só exortamos à agitação política, sem esperar que
surgisse o Iskra [dizendo, então, que não se deve atribuir nem aos círculos e
“nem ao movimento operário de massa, como primeira tarefa, a derrubada
do absolutismo”, mas tão somente a luta pelas reivindicações políticas ime-
diatas, e que “as reivindicações políticas imediatas só se tornam acessíveis às
massas após uma ou, em todo caso, inúmeras greves”] e também por meio
de nossas publicações editadas no estrangeiro que possibilitaram aos ca-
maradas atuantes na Rússia os únicos materiais de agitação política social-
-democrata [e, apenas com esse material, puseram em prática uma ampla
agitação política no terreno da luta meramente econômica, concluindo,
enfim, que essa agitação limitada pode ser “realizada mais amplamente”.
E os senhores não perceberam que a sua argumentação prova justamente
a necessidade do aparecimento do Iskra – dado o caráter desses materiais
únicos – e a necessidade de o Iskra lutar contra o Rabotcheie Dielo?].
Por outro lado, a nossa atividade editorial preparou efetivamente a unidade
tática do partido [a unidade em conceber que a tática é um processo de
crescimento das tarefas do partido, que crescem ao mesmo tempo que
este? Corajosa unidade!] e, por isso mesmo, tornava possível criar “uma
organização de combate”, para cuja formação a União fez tudo o que era
acessível a uma organização residente no estrangeiro (R. D. nº 10, p. 15).
Vã tentativa para se livrar do embaraço! Não posso negar que
tenham feito tudo o que lhes era acessível. O que afirmei e ainda
afirmo é que os limites do que lhes é “acessível” se estreitam pela
miopia de suas concepções. É ridículo falar de “organização de
combate” para lutar por “reivindicações políticas imediatas” ou
para “a luta econômica contra os patrões e o governo”.
Mas se o leitor quiser ver as pérolas da paixão “economista” pelo
trabalho artesanal terá de ir além do eclético e vacilante Rabotcheie
Dielo para o consequente e decidido Rabotchaia Myls.
Duas palavras agora sobre a chamada intelectualidade revolucionária –
escrevia R. M. no Suplemento especial, p. 13 – provaram, é verdade, e mais
de uma vez, que está disposta a integrar a luta decisiva contra o tsarismo. O
mal reside unicamente no fato de que, perseguida sem tréguas pela polícia

169
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

política, a nossa intelectualidade revolucionária acaba por considerar a luta


contra essa polícia política como uma luta política contra a autocracia.
Por isso, a questão “Onde buscar forças para a luta contra a autocracia?”
ainda não encontrou resposta entre ela.
Não é realmente notável esse majestoso desprezo pela luta
contra a polícia por parte de um admirador (no pior sentido do
termo) do movimento espontâneo? Está disposto a justificar a
nossa inabilidade para o trabalho conspirativo argumentando que,
com o movimento espontâneo de massas, a luta contra a polícia
política, no fundo, não tem importância para nós!!! Pouquíssimos
subscreverão essa conclusão monstruosa, uma vez que as falhas das
nossas organizações revolucionárias são tão dolorosamente senti-
das por todos. Mas se Martinov, por exemplo, não a subscreve, é
unicamente porque não é capaz de ir até o fim com a sua tese, ou
não tem coragem de o fazer. Com efeito, diante de uma “tarefa” na
qual as massas apresentam reivindicações concretas que prometem
resultados tangíveis, pode-se exigir uma preocupação especial com
a criação de uma organização sólida, centralizada, combativa?
Tal “tarefa” seria também realizada por uma massa que, de modo
algum, “luta contra a polícia política”? Mais ainda, seria realizável
essa tarefa se, além de um reduzido número de dirigentes, os operá-
rios que, na sua grande maioria, não são de forma alguma capazes
de “lutar contra a polícia política”, também não se incumbissem
dela? Esses operários, os homens médios da massa, são capazes de
dar provas de uma energia e de uma abnegação gigantescas numa
greve, num combate de rua com a polícia e com a tropa, podendo
(e são os únicos capazes) decidir o resultado de todo o nosso movi-
mento; no entanto, a luta contra a polícia política exige qualidades
especiais, exige revolucionários profissionais. Devemos nos preocu-
par não apenas para que a massa operária “apresente” reivindicações
concretas, mas para que dela se “destaque” um número cada vez
maior desses revolucionários profissionais. Chegamos, assim, à
questão da relação entre a organização dos revolucionários profis-

170
V. I. Lenin

sionais e o movimento puramente operário. A essa questão, pouco


desenvolvida na literatura, dedicamos, nós, os “políticos”, muito
tempo em conversas e discussões com os camaradas que têm mais
ou menos tendência para o “economismo”. Vale a pena que nos
detenhamos nela. Mas, primeiro, terminemos com outra citação
para ilustrar nossa tese sobre a ligação dos métodos artesanais ao
“economismo”.
O grupo “Emancipação do Trabalho” – dizia N. N. na sua “Resposta” –
exige que se lute diretamente contra o governo, sem pensar onde está a
força material necessária para essa luta, sem indicar os caminhos que ela
deve seguir.
E, sublinhando essas últimas palavras, o autor observa a pro-
pósito da palavra “caminhos”:
Essa circunstância não pode ser explicada pelos objetivos de conspiração,
pois que, pelo programa, não se trata de uma conjuração, mas de um mo-
vimento de massas. As massas não podem avançar por caminhos secretos.
Será, por acaso, possível uma greve secreta? Será possível, por acaso, realizar
manifestações ou apresentar petições secretamente? (Vademecum, p. 59).
O autor abordou de perto tanto a “força material” (os orga-
nizadores das greves e das manifestações) quanto os “caminhos”
por meio dos quais a luta deve ser trilhada; porém, demonstrou-se
confuso e perplexo, uma vez que se “curva” diante do movimento
de massas, ou seja, acaba por considerá-lo como uma coisa que
nos exime da nossa atividade (a atividade revolucionária), em vez
de tratá-lo como um elemento encorajador e estimulador dessa
nossa atividade. Uma greve secreta é impossível para seus par-
ticipantes e para aqueles que mantêm com ela relação imediata.
Porém, para a massa dos operários russos, essa greve pode ser (e
em geral é) “secreta”, pois o governo tomará o cuidado de cortar
todas as comunicações com os grevistas, buscará tornar impos-
sível a difusão das notícias em torno da greve. E é precisamente
aqui que se torna necessária a “luta contra a polícia política”, uma
luta especial, que jamais poderá ser travada ativamente por uma

171
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

massa tão ampla como a que participa nas greves. Essa luta deve
ser organizada por pessoas que tenham como profissão a atividade
revolucionária, “segundo todas as regras da arte”. E o fato de as
massas, espontaneamente, terem se integrado ao movimento não
torna menos necessária a organização dessa luta. Ao contrário, a
organização torna-se mais necessária, já que nós, os socialistas, fi-
caríamos em falta com o nosso primeiro dever para com as massas
se não soubéssemos impedir a polícia de tornar secreta (e se, por
vezes, nós mesmos não preparássemos secretamente) uma greve
ou uma manifestação qualquer. E saberemos agir dessa maneira
justamente porque as massas que despertam espontaneamente des-
tacarão também do seu seio um número crescente de “revolucionários
profissionais” (desde que não nos ocorra convidar os operários a
continuar marcando passo).

A organização dos operários e a organização dos


revolucionários
Se, para o social-democrata, o conceito de “luta econômica
contra os patrões e o governo” se identifica ao de luta política, é
natural que se espere que o conceito de “organização de revolucio-
nários” esteja mais ou menos identificado ao de “organização de
operários”. E, na realidade, é o que acontece, de modo que, quando
falamos de organização, falamos línguas absolutamente diferentes.
Lembro-me, por exemplo, como se fosse ontem, de uma conversa
que tive um dia com um “economista” bastante consequente, que
ainda não conhecia117. A conversa girava em torno da brochura
Quem fará a revolução política? Rapidamente concordamos que o
seu principal defeito era não considerar os problemas de organiza-
ção. Pensávamos já estar de acordo, mas... ao continuar a conversa,
percebemos que falávamos de coisas diferentes. Meu interlocutor

[A referência, ao que tudo indica, é a primeira entrevista de V. I. Lenin com A. S.


117

Martinov, em 1901. Em suas memórias, Martinov descreve essa entrevista.]

172
V. I. Lenin

acusava o autor de não levar em consideração os fundos de apoio


às greves, as sociedades de socorro mútuo etc.; pelo meu lado,
pensava na organização de revolucionários indispensável para
“fazer” a revolução política. A partir do momento em que se deu
essa divergência, não me lembro mais de ter estado de acordo com
esse “economista” sobre qualquer questão de princípio!
Em que consistia a razão de nossas divergências? Justamente
no fato de os “economistas” se desviarem constantemente do
“social-democratismo” para o trade-unionismo, tanto no âmbito
das tarefas de organização quanto no das tarefas políticas. A luta
política da social-democracia é muito mais ampla e mais complexa
que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo.
Do mesmo modo (e como consequência), a organização de um
partido social-democrata revolucionário deve inevitavelmente
constituir um gênero diferente da organização dos operários para a
luta econômica. A organização dos operários deve ser, em primei-
ro lugar, sindical; em segundo lugar, o mais ampla possível; em
terceiro lugar, deve ser o menos clandestina possível (aqui e mais
adiante refiro-me, bem entendido, apenas à Rússia autocrática).
Ao contrário, a organização dos revolucionários deve englobar,
antes de tudo e sobretudo, homens cuja profissão seja a atividade
revolucionária (por isso, falo de uma organização de revolucio-
nários, pensando nos revolucionários social-democratas). Diante
dessa característica geral dos membros de tal organização, deve
desaparecer por completo toda distinção entre operários e intelectuais,
que vale, ainda mais, para a distinção entre as diversas profissões
de uns e de outros. Necessariamente, tal organização não deve
ser muito extensa e é preciso que seja o mais clandestina possível.
Detenhamo-nos nesses três pontos específicos.
Nos países que desfrutam de liberdade política, a diferença en-
tre a organização sindical e a organização política é perfeitamente
clara, como também é clara a diferença entre as trade-unions e a
social-democracia. Evidentemente, as relações entre elas variam,

173
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

inevitavelmente, de país a país segundo as condições históricas,


jurídicas etc.; podem ser mais ou menos estreitas, complexas etc.
(devem ser, em nossa opinião, as mais estreitas e as menos complexas
possíveis); mas, nos países livres, nem sequer existe o problema de
se identificar a organização dos sindicatos com a organização do
partido social-democrata. Na Rússia, o jugo da autocracia apaga,
à primeira vista, qualquer distinção entre a organização social-
-democrata e as associações operárias porque todas as associações
operárias e todos os círculos estão proibidos, e a greve – principal
manifestação e arma da luta econômica dos operários – é conside-
rada geralmente um crime de direito penal (por vezes, até mesmo
como um delito político). Assim, a situação da Rússia, de um lado,
“incita” fortemente os operários que lutam no terreno econômico
a se voltar para as questões políticas e, de outro, “incita” os social-
-democratas a confundir o trade-unionismo com a “social-demo-
cracia” (e os nossos Kritchevski, Martinov e companhia, que não
param de falar sobre o “incitamento” do primeiro tipo, não notam
o “incitamento” do segundo tipo). Com efeito, imaginemos pessoas
absorvidas 99% pela luta econômica contra os patrões e o governo.
Para alguns, durante todo o período de sua atividade (de 4 a 6
meses), jamais será posta a questão de se pensar na necessidade de
uma organização mais complexa de revolucionários. Outros, talvez,
poderão “tropeçar” – considerando-se a relativamente ampla difusão
da literatura bernsteiniana –, adquirindo a convicção de que o que
importa essencialmente é a “marcha progressiva da luta cinzenta
e cotidiana”. Outros, enfim, talvez acabarão seduzidos pela ideia
tentadora de dar ao mundo um novo exemplo de “estreita ligação
orgânica com a luta proletária”, de ligação entre o movimento
sindical e o movimento social-democrata. Quanto mais tarde um
país ingressa no capitalismo e, por conseguinte, no movimento
operário – argumentarão essas pessoas –, tanto mais os socialistas
poderão participar do movimento sindical e apoiá-lo, e tanto menos
podem e devem existir sindicatos não social-democratas. Até aqui,

174
V. I. Lenin

esse raciocínio é perfeitamente correto, mas o mal é que vão mais


longe e sonham com a fusão completa entre a “social-democracia”
e o trade-unionismo. Veremos em seguida, através do exemplo dos
“Estatutos da União de Luta de São Petersburgo”, a deletéria influên­
cia desses sonhos sobre nossos planos de organização.
As organizações operárias para a luta econômica devem ser
organizações sindicais. Todo operário social-democrata deve,
no que for possível, apoiar essas organizações e trabalhar ativa-
mente nelas. De acordo. Mas é inteiramente contrária aos nossos
interesses a exigência de que só os social-democratas possam ser
membros das uniões “profissionais”, uma vez que isso reduziria
a nossa influência sobre a massa. Que participe na união profis-
sional todo o operário que compreenda a necessidade de se unir
para lutar contra os patrões e o governo. O próprio objetivo das
uniões profissionais seria irrealizável se elas não agrupassem todos
os operários capazes de compreender essa noção elementar e se
essas uniões profissionais não fossem organizações muito amplas.
E quanto mais amplas forem essas organizações, tanto maior será
a nossa influência sobre elas, influência exercida não somente pelo
desenvolvimento “espontâneo” da luta econômica, mas também
pela ação direta e consciente dos membros socialistas das uniões
sobre os seus camaradas. Mas, numa organização ampla, torna-se
impossível uma clandestinidade rigorosa (pois exige muito mais
preparação do que a necessária para participar da luta econômi-
ca). Como conciliar essa contradição entre a necessidade de se
contar com efetivos numerosos e o regime clandestino rigoroso?
Como fazer com que as organizações profissionais sejam o menos
clandestinas possível? Em geral, há apenas dois caminhos: ou a
legalização das associações profissionais (que em certos países
precedeu a legalização das associações socialistas e políticas)
ou a manutenção da organização secreta, mas tão “livre”, tão
pouco formalizada, tão lose [livre, ampla – inglês], como dizem

175
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

os alemães, que para a massa dos membros o regime clandestino


fique reduzido a quase nada.
A legalização das associações operárias não socialistas e não
políticas já começou na Rússia e não pode haver dúvida de que
cada passo do nosso movimento operário social-democrata, que
cresce em rápida ascensão, multiplicará e encorajará as tentativas
de legalização, promovidas especialmente pelos partidários do
regime vigente, mas, também, pelos operários e pelos intelectuais
liberais. A bandeira da legalização já foi hasteada pelos Vassiliev
e os Zubatov; os senhores Ozerov e os Worms já prometeram e
deram sua contribuição à legalização, e entre os operários também
já se encontram adeptos dessa nova tendência. E nós não podemos
deixar de levá-la em consideração. E a forma de considerá-la entre
os social-democratas não pode ser objeto de dúvida. O nosso dever
é o de desmascarar constantemente toda participação dos Zubatov,
dos Vassiliev, dos policiais e dos padres nessa tendência, revelando
aos operários suas verdadeiras intenções. É nosso dever também
denunciar todo tom conciliador, de “harmonia”, que se manifeste
nos discursos dos liberais nas reuniões operárias públicas, quer se-
jam expressões do sincero desejo de se estabelecer uma colaboração
pacífica de classes, quer tenham a intenção de serem aceitas pelas
autoridades, quer sejam simplesmente inábeis. Devemos, enfim,
colocar os operários vigilantes contra as armadilhas frequente-
mente preparadas pela polícia que, nessas reuniões públicas e nas
sociedades autorizadas, observa os “mais inflamados” e procura
se aproveitar das organizações legais para introduzir provocadores
também nas organizações ilegais.
No entanto, a realização de tudo isso não significa, de modo
algum, esquecer que a legalização do movimento operário, afinal
de contas, beneficiará a nós, e em hipótese alguma aos Zubatov.
Ao contrário, precisamente porque fizemos a nossa campanha
de denúncias, separamos o joio do trigo. Já mostramos qual é o
joio. O trigo consiste em fazer com que setores mais atrasados

176
V. I. Lenin

dos operários (os mais vastos) se interessem pelas questões sociais


e políticas; em nos libertar (nós, os revolucionários) de funções
que, no fundo, são legais (difusão de obras legais, socorro mútuo
etc.) e que, ao se desenvolverem, nos darão, infalivelmente, ma-
teriais cada vez mais abundantes para a agitação. Nesse sentido,
podemos e devemos dizer aos Zubatov e aos Ozerov: trabalhem,
senhores, trabalhem! Enquanto os senhores armam ciladas para os
operários (ou pela provocação direta ou pela corrupção “honesta”
dos operários com o auxílio do “struvismo”118), nós tratamos de
desmascará-los. Quando os senhores derem um passo efetivo à
frente – mesmo que seja sob a forma do mais “tímido zigue-zague”,
mas, ainda assim, um passo à frente –, dir-lhes-emos: Sigam,
sigam! Um passo efetivo à frente constitui um alargamento real,
mesmo que diminuto, do campo de ação dos operários. E todo
alargamento desse gênero acabará por nos beneficiar e apressará
o aparecimento de associações legais, onde não serão os provoca-
dores que pescarão os socialistas, mas os socialistas que pescarão
adeptos para a sua causa. Numa palavra, nossa tarefa imediata é
combater o joio. A nossa tarefa não consiste em semear o trigo em
pequenos vasos. Ao arrancar o joio, limpamos o terreno para que
o trigo cresça. E enquanto os Afanassi Ivanovitch e as Pulkheria
Ivanovna119 se dedicam ao cultivo doméstico do trigo, devemos
preparar ceifeiros que hoje saibam arrancar o joio e amanhã
colher o trigo.120

118
[Expressão do marxismo legal, corrente surgida nos anos de 1890 no seio da intelectua-
lidade liberal burguesa da Rússia que teve Struve como um dos seus representantes (cf.
supra nota 9).]
119
[Afanassi Ivanovitch e Pulkheria Ivanovna: família patriarcal de pequenos proprietários
rurais, descrita na novela Os proprietários de outrora, do escritor russo N. V. Gogol.].
120
A luta do Iskra contra o joio provocou uma resposta indignada por parte do Rab. Dielo:
“Para o Iskra, ao contrário, esses importantes acontecimentos (os da primavera) são menos
expressivos do seu tempo do que as miseráveis tentativas dos agentes de Zubatov no intuito
de “legalizar” o movimento operário. Não percebe que tais fatos falam precisamente
contra si e comprovam que o movimento adquiriu, na ótica do governo, proporções muito
ameaçadoras” (Dois congressos, p. 27). A culpa de tudo isso é do “dogmatismo” desses

177
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Assim, não podemos, por meio da legalização, resolver o


problema da criação de uma organização sindical o menos clan-
destina e a mais ampla possível (mas ficaríamos encantados se
os Zubatov e os Ozerov nos oferecessem a possibilidade, mesmo
parcial, de resolver o problema desse modo – para o qual temos de
combatê-los com a maior energia possível!). Resta-nos o recurso
das organizações sindicais secretas, e devemos prestar todo apoio
aos operários que já seguem por esse caminho (sabemo-lo de fonte
segura). As organizações sindicais podem não só ser extraordi-
nariamente úteis para o desenvolvimento e o fortalecimento da
luta econômica, como podem também servir como um precioso
suporte da agitação política e da organização revolucionária.
Para chegar a esse resultado, para orientar o movimento sindical
nascente no caminho desejado pela social-democracia, é preciso
antes de tudo compreender bem o absurdo do plano de organiza-
ção que os “economistas” de Petersburgo preconizam, já há cinco
anos. Esse plano foi exposto nos “Estatutos do Fundo Operário
de Apoio”, de julho de 1897 (Listok “Rabotnika” nº 9-10, p. 46,
no nº 1 do Rabotchaia Mysl) e nos “Estatutos da Organização
Operária Profissional”, de outubro de 1900 (boletim especial,
impresso em São Petersburgo e mencionado no nº 1 do Iskra).
Esses estatutos têm um defeito essencial: regulamentam em de-
talhes uma vasta organização operária, confundindo-a com uma
organização de revolucionários. Tomemos os segundos estatutos,
melhor elaborados. Apresentam 52 parágrafos: 23 expõem a es-
trutura, o modo de administração e delimitam as competências
dos “círculos operários” que serão organizados em cada fábrica
(“dez homens no máximo”) e elegerão os “grupos centrais” (de
fábrica). O parágrafo 2º reza: “O grupo central observa tudo o que
se passa na fábrica e encarrega-se da crônica dos acontecimentos”.

ortodoxos “surdos às exigências prementes da vida”. Insistem em não enxergar trigo de


um metro de altura para fazer guerra contra o joio de um centímetro!”. Não se trata de
uma “deturpação da visão em relação ao movimento operário russo?” (Ibidem, p. 27).

178
V. I. Lenin

“O grupo central presta contas do estado do fundo, mensalmente,


a todos os contribuintes” (parágrafo 17º) etc.; dez parágrafos são
dedicados à “organização de bairro” e 19 à complicada relação do
“Comitê da Organização Operária” e do “Comitê da União de
Luta de São Petersburgo” (delegados de cada bairro e dos “grupos
executivos” – “grupos de propagandistas para as relações com a
província, para as relações com o exterior, para a administração
dos depósitos, das edições, do fundo”).
A social-democracia equivale aos “grupos executivos”, no que
se refere à luta econômica dos operários! Seria difícil demonstrar
de forma clara como o pensamento do “economista” se desvia da
“social-democracia” para o trade-unionismo; até que ponto lhe é
inteiramente estranha a noção de que o social-democrata deve,
acima de tudo, pensar numa organização de revolucionários ca-
pazes de dirigir toda a luta emancipadora do proletariado. Falar
da “emancipação política da classe operária”, da luta contra a “ar-
bitrariedade tsarista” e redigir semelhantes estatutos implica não
ter a menor ideia de quais sejam as verdadeiras tarefas políticas da
social-democracia. Nem sequer um da meia centena de artigos é
capaz de revelar o mínimo de compreensão, entre os autores, da
necessidade da mais ampla agitação política entre as massas que
lance luzes sobre todos os aspectos do absolutismo russo, bem
como sobre a fisionomia das diferentes classes sociais na Rússia.
Por outro lado, com tais estatutos, tornam-se irrealizáveis tanto
os fins políticos quanto, até mesmo, os fins trade-unionistas do
movimento, já que estes exigem uma organização por profissões,
coisa que sequer é mencionada nos estatutos.
No entanto, o mais característico é, talvez, o assombroso peso
de todo esse “sistema” que trata de vincular cada fábrica ao “co-
mitê” pela via contínua de regulamentos uniformes e minuciosos
até o ridículo, com um sistema eleitoral em três níveis. Limitado
na estreiteza de horizontes do “economismo”, o pensamento se
atormenta em detalhes que cheiram à papelada e à burocracia. Na

179
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

verdade, três quartos desses parágrafo nunca serão aplicados; em


contrapartida, com uma organização tão “clandestina”, com um
grupo central em cada fábrica, facilita-se a realização de prisões
em massa pela polícia. Os companheiros poloneses já passaram por
essa fase do movimento; houve um período em que todos estavam
entusiasmados com a criação de fundos operários por toda a parte,
mas renunciaram a eles em pouco tempo, quando se convenceram
quanto favoreciam a polícia. Se o que se objetiva são amplas orga-
nizações operárias e não amplas prisões, se não queremos agradar
aos policiais, devemos fazê-las de forma que não sejam de modo
algum regulamentadas. Mas como poderão elas, então, funcionar?
Vejamos quais são suas funções: “Observar tudo o que se passa na
fábrica e fazer a crônica dos acontecimentos” (art. 2o dos estatutos).
Será absolutamente necessário regulamentar essa função? Não seria
esse objetivo melhor atingido através das crônicas na imprensa
ilegal, dispensando a criação de grupos especiais para esse fim?
“(...) Dirigir a luta dos operários para melhorar a sua condição
na fábrica” (art. 3o). Também não há aqui nenhuma necessidade
de regulamentação. Para qualquer agitador, basta uma simples
conversa para saber exatamente quais são as reivindicações que os
operários querem apresentar; a partir daí, saberá transmiti-las
a uma organização restrita – e não ampla – de revolucionários,
que editará um panfleto apropriado. “(...) Criar um fundo (...)
com a contribuição de 2 copeques por rublo” (art. 9o) e prestar
contas mensalmente da situação do fundo a todos os contribuintes
(art. 17); excluir os membros que não paguem sua contribuição
(art. 10) etc. Não há melhor paraíso para a polícia que isso, pois
que não há nada mais fácil do que descobrir o trabalho secreto de
um “fundo central da fábrica”, confiscar o dinheiro e encarcerar
todos os seus membros ativos. Não seria mais simples emitir selos
de um ou dois copeques com o carimbo de uma certa organização
(muito restrita e muito secreta), ou ainda, sem qualquer carimbo,
fazer coletas, cujos resultados seriam expostos num jornal ilegal,

180
V. I. Lenin

com uma linguagem convencional? Os mesmos objetivos seriam


atingidos e a polícia teria muito mais trabalho para deslindar os
fios da organização.
Poderia continuar essa análise dos estatutos, mas penso já ter
dito o suficiente. Um pequeno núcleo compacto – composto dos
operários mais firmes, mais experimentados e provados, com de-
legados nos principais bairros e que de modo rigoroso se vincule
clandestinamente à organização dos revolucionários – poderá
perfeitamente, com a mais ampla colaboração da massa e sem
qualquer regulamentação, realizar todas as funções que competem
a uma organização sindical e, além disso, realizá-las exatamente
de acordo com os objetivos da social-democracia. Só assim poderá
se consolidar e se desenvolver, apesar de todos os policiais, o movi-
mento sindical social-democrata.
Seria possível objetar que uma organização tão lose, sem regula-
mentação, sem nenhum membro conhecido e registrado, não poderia
ser qualificada de organização. Pode ser, a mim não me importa a
denominação. Mas essa “organização sem membros” fará tudo o que
for necessário, buscará assegurar desde o princípio uma forte ligação
entre as nossas futuras trade-unions e o socialismo. Os que querem,
sob o absolutismo, uma ampla organização de operários com eleições,
relatórios, sufrágio universal etc., são todos utopistas incuráveis.
Moral da história: simplesmente, se começamos por estabelecer,
de modo sólido, uma forte organização de revolucionários, pode-
remos assegurar a estabilidade do movimento no seu conjunto,
atingindo simultaneamente os objetivos social-democratas e os
objetivos propriamente trade-unionistas. Mas, se começamos por
constituir uma ampla organização operária com o pretexto de
que esta é a mais “acessível” à massa (na realidade, ela é a mais
acessível à polícia e colocará os revolucionários mais ao alcance
da polícia), não atingiremos nenhum desses objetivos, nem nos
livraremos dos nossos métodos artesanais e, ainda, com o nosso

181
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

fracionamento e nossos fracassos contínuos, apenas tornaremos à


massa mais acessíveis as trade-unions do tipo Zubatov ou Ozerov.
Quais deverão ser, propriamente, as funções dessa organização
de revolucionários? Diremos em detalhe. Mas, antes, examinemos
um raciocínio bem típico do nosso terrorista que, novamente (triste
destino o seu!), caminha ao lado do “economismo”. A revista para
operários Svoboda (nº 1) contém um artigo intitulado “A organiza-
ção”, cujo autor busca defender os seus amigos, os “economistas”
operários de Ivanovo-Voznessensk.
É uma coisa nefasta uma multidão silenciosa, inconsciente; é uma coisa
nefasta um movimento que não vem de baixo. Veja o que acontece numa
cidade universitária: quando os estudantes na época de festas ou durante
o verão voltam para as suas casas, o movimento operário paralisa-se. Pode
ser uma força verdadeira um movimento operário estimulado de fora?
De modo algum (...). Ainda não aprendeu a andar com suas próprias
pernas, tem que ser amparado. Isso ocorre em toda parte: os estudantes
se vão e o movimento cessa; prendem os elementos mais capazes, a nata,
e o leite azeda; prende-se o “Comitê” e, enquanto um novo “Comitê”
não se forma, estabelece-se a paralisia. E não se sabe ainda o que será o
novo “Comitê”; talvez não tenha nada a ver com o antigo: enquanto um
afirmava uma coisa, o outro dirá o contrário. O elo entre ontem e hoje
se romperá, a experiência do passado não beneficia o futuro. Tudo isso
porque o movimento não tem raízes profundas na multidão; e não é uma
centena de idiotas que realiza o trabalho, mas uma dezena de homens
inteligentes. Uma dezena de homens cai facilmente na boca do lobo; mas
quando a organização engloba a multidão, quando tudo vem da multidão,
é impossível destruir a causa (p. 63).
Os fatos estão relatados corretamente. Temos aí um bom
exemplo do nosso trabalho artesanal. No entanto, as conclusões
são bem ao estilo do Rabotchaia Mysl, dada a sua falta de lógica e
de tato político. É o cúmulo da falta de lógica, pois o autor con-
funde a questão filosófica, histórica e social das “raízes profundas”
do movimento com a questão técnica da organização de uma luta

182
V. I. Lenin

mais eficaz contra a polícia. É o cúmulo da falta de tato político,


porque, em lugar de apelar aos bons dirigentes contra os maus
dirigentes, o autor apela para a “multidão” contra os dirigentes em
geral. Resulta daí uma forma de nos fazer retroceder no que diz
respeito à organização, do mesmo modo que a ideia de substituir
a agitação política pelo “terror estimulante” nos faz retroceder
politicamente. No fundo, encontro-me diante de um verdadeiro
embarras de richesses [dificuldade por abundância – francês], sem
saber por onde começar a análise da confusão que nos é oferecida
pela Svoboda. Para ser mais claro, começarei por um exemplo: o
dos alemães. Espero que ninguém negue que, entre eles, a orga-
nização abrange a multidão, que tudo vem da multidão, que o
movimento operário aprendeu a andar com suas próprias pernas.
Contudo, como essa multidão de vários milhões de homens sabe
apreciar a sua “dezena” de dirigentes políticos experimentados e
adere a eles! Mais de uma vez, no Parlamento, os deputados dos
partidos adversários têm buscado provocar os socialistas dizendo:
Que belos democratas são vocês! O movimento da classe operária existe
entre vocês apenas em palavras; na realidade, é sempre o mesmo grupo
de dirigentes que aparece. Durante anos, há dezenas de anos, são sempre
o mesmo Bebel e o mesmo Liebknecht! Seus delegados, pretensamente
eleitos pelos operários, são mais inamovíveis que os funcionários nomeados
pelo imperador!
Mas os alemães sempre acolheram com um sorriso de desprezo
essas tentativas demagógicas de opor a “multidão” aos “dirigen-
tes”, de despertar nela os maus instintos de vaidade e de privar o
movimento de solidez e estabilidade, minando a confiança que
a massa tem nessa “dezena de homens inteligentes”. Os alemães
já obtiveram suficiente desenvolvimento político, têm suficiente
experiência política para compreender que, sem uma “dezena”
de dirigentes talentosos (e os talentos não surgem às centenas),
experimentados, profissionalmente preparados e instruídos por
uma longa aprendizagem, perfeitamente unidos entre si, não é

183
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

possível na sociedade contemporânea conduzir a luta resoluta de


qualquer classe. Os alemães também tiveram os seus demagogos,
que adulavam as “centenas de idiotas” colocando-os acima das
“dezenas de homens inteligentes”; que bajulavam o “punho forte”
da massa, empurravam (como Most ou Hasselmann) essa massa
a ações “revolucionárias” irrefletidas e semeavam a desconfiança
em relação aos dirigentes firmes e seguros. E foi unicamente
graças a uma luta obstinada e intransigente contra os elementos
demagógicos de toda espécie inseridos no seu seio que o socialismo
alemão cresceu e se fortaleceu. E nesse período no qual toda a crise
da social-democracia russa se explica pelo fato de as massas, des-
pertadas espontaneamente, não terem dirigentes suficientemente
preparados, inteligentes e experimentados, os nossos sabichões
dizem-nos com a ingenuidade típica de um Gribouille:121 “Má
coisa é quando um movimento não vem da base!”.
“Um comitê formado por estudantes não nos convém porque
é instável.” Perfeitamente correto! Mas a conclusão que se deve
tirar é que é necessário um comitê de revolucionários profissionais,
tanto faz se são operários ou estudantes os capazes de se educar
como revolucionários profissionais. Em contrapartida, a conclusão
que os senhores tiram é que não é necessário estimular o movi-
mento operário de fora! Na sua ingenuidade política, nem sequer
percebem que acabam fazendo o jogo dos nossos “economistas”
e do nosso trabalho artesanal. Permitam-me uma questão: como
até agora os nossos estudantes “estimularam” os nossos operários?
Unicamente levando-lhes os fragmentos de conhecimentos políti-
cos que tinham, os fragmentos de ideias socialistas que puderam
reunir (pois o principal alimento espiritual do estudante de nossos
dias, o marxismo legal, não lhe pode oferecer mais que iniciações,

121
[Personagem popular de que derivou a expressão “política de Gribouille”, que denota
uma ação que acaba resultando justamente naquilo que se quer evitar. Da obra La soeur
de Gribouille, de Sophie Feodorovna Rostopchin (Condessa de Ségur), escritora russa
de literatura infantil (1799/São Petersburgo – 1874/Paris).]

184
V. I. Lenin

mais que fragmentos). E esse “estímulo de fora” não foi significa-


tivo, foi, ao contrário, insignificante, gritantemente insignificante
para o nosso movimento. Porque, até aqui, não fizemos mais do
que nos cozinharmos demasiadamente no nosso próprio molho,
curvando-nos servilmente diante da elementar “luta econômica
dos operários contra os patrões e o governo”. Nós, revolucionários
de profissão, devemos nos ocupar cem vezes mais desse tipo de
“estímulo”, e efetivamente o faremos. Mas justamente porque os
senhores escolheram essa odiosa expressão “estímulo de fora” – que,
inevitavelmente, provoca no operário (pelo menos no operário tão
pouco desenvolvido como os senhores) a desconfiança em relação
a todos aqueles que lhe trazem de fora os conhecimentos políticos
e a experiência revolucionária, e que desperta nele o desejo instin-
tivo de repelir todas as pessoas desse tipo –, os senhores acabam
agindo como demagogos; e os demagogos são os piores inimigos
da classe operária.
Sim, sim! E não se apressem em gritar contra os “procedimen-
tos” polêmicos “sem espírito de companheirismo”! Não tenho
dúvidas da pureza de suas intenções. Já disse que basta a inge-
nuidade política para tornar qualquer pessoa um demagogo. Mas
demonstrei que os senhores se rebaixaram à demagogia e nunca
me cansarei de repetir que os demagogos são os piores inimigos
da classe operária. São os piores porque excitam os maus instintos
da multidão, e porque é impossível aos operários mais atrasados
reconhecer esses inimigos, pois que se apresentam, e às vezes sin-
ceramente, como seus amigos. Os piores porque, nesse período de
dispersão e de hesitação, quando o nosso movimento ainda está
ganhando forma, nada mais fácil do que arrastar demagogicamente
a multidão, que só a partir das experiências mais amargas poderá,
depois, convencer-se do erro em que incorreu. Por isso é que a
palavra de ordem do momento para os social-democratas russos
deve ser a de combater resolutamente tanto o Svoboda quanto o

185
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Rabotcheie Dielo, uma vez que ambos os periódicos se rebaixam à


demagogia (voltaremos a isso com mais detalhes122).
“É mais fácil caçar uma dezena de homens inteligentes do que
uma centena de idiotas”. Essa verdade absoluta (que sempre dará
aos senhores os aplausos da centena de idiotas) parece evidente
unicamente porque, no curso de seu raciocínio, os senhores salta-
ram de uma questão a outra. Começaram e continuam a falar da
captura do “Comitê” e da “organização”, e agora passaram a uma
outra questão: a captura das “raízes profundas”. Naturalmente,
nosso movimento é indestrutível porque tem centenas e centenas
de milhões de raízes profundas, mas não é isso, de modo algum,
o que está em questão. Nem mesmo agora, apesar do nosso tra-
balho artesanal, é possível capturar as nossas “raízes profundas”
e, todavia, todos deploramos, e não podemos deixar de deplorar,
a captura das “organizações”, o que destrói toda a continuidade no
movimento. Ora, se os senhores levantam o problema da captura
das organizações e insistem em discuti-lo, devo dizer-lhes que é
muito mais difícil caçar uma dezena de homens inteligentes do
que uma centena de idiotas, e continuarei a defender esse ponto de
vista, independentemente dos esforços que mobilizam para atiçar
a multidão contra meu “espírito antidemocrático” etc. Entende-
-se por “homens inteligentes”, em matéria de organização, como
apontei em várias ocasiões, apenas os revolucionários profissionais,
não importando se estudantes ou operários os que se constituam
como tais. Pois bem, eu afirmo: 1º) que não pode haver movimento
revolucionário sólido sem uma organização estável de dirigentes,
que assegure a continuidade; 2º) que quanto maior for a massa
espontaneamente integrada à luta, massa que constitui a base do

122
Somente assinalamos aqui que tudo o que dissemos em relação ao “estímulo de fora” e a
todos os demais raciocínios de Svoboda sobre a organização se refere inteiramente a todos
os “economistas”, incluindo os partidários do Rabotcheie Dielo, porque preconizaram e
apoiaram ativamente esses mesmos pontos de vista acerca dos problemas de organização
ou porque se desviaram na sua direção.

186
V. I. Lenin

movimento e nele participa, mais imperiosa será a necessidade de


se ter tal organização, e mais sólida ela deverá ser (uma vez que
será mais fácil para os demagogos arrastar as camadas atrasadas
da massa); 3º) que tal organização deve ser composta, princi-
palmente, de homens voltados profissionalmente às atividades
revolucionárias; 4º) que, num país autocrático, quanto mais
restrita for a aceitação de membros na organização – ao ponto
de só participar dela aqueles que se dediquem profissionalmente
às atividades revolucionárias e que já tenham preparação na arte
de lutar contra a polícia política –, mais difícil será “capturar” tal
organização e 5º) maior será o número de pessoas, tanto da classe
operária quanto das demais classes sociais, que poderão participar
do movimento e colaborar ativamente nele.
Convido os nossos “economistas”, os nossos “terroristas” e os
nossos “economistas-terroristas”123 a refutar essas teses, dentre as
quais, neste momento, desenvolverei apenas as duas últimas. A
questão de saber se é mais fácil pescar uma “dezena de homens
inteligentes” ou uma “centena de idiotas” limita-se à questão que
analisei mais acima, isto é, de saber se uma organização de massa
é compatível com um modelo estritamente clandestino. Jamais
poderemos elevar uma organização ampla ao plano da clandesti-
nidade, sem a qual nem sequer se poderia almejar uma luta firme e
continuada contra o governo. A concentração de todas as funções
clandestinas nas mãos do menor número possível de revolucionários

Essa expressão seria talvez mais correta que a anterior, no que se refere ao Svoboda, porque
123

em O renascimento do revolucionarismo defende-se o terrorismo e, no artigo em questão,


o “economismo”. “Estão verdes, não prestam (...)” pode ser dito, em geral, do Svoboda.
O Svoboda tem excelentes aptidões e as melhores intenções e, mesmo assim, não obteve
outro resultado além da confusão, fundamentalmente porque, ao defender a continui-
dade da organização, não se preocupa em nada com a continuidade do pensamento
revolucionário e da teoria social-democrata. Arvorar-se por ressuscitar o revolucionário
profissional (O renascimento do revolucionarismo) e, para tanto, propor primeiro o terror
estimulante e, em seguida, a “organização dos operários médios” (Svoboda nº 1, p. 66
e seguintes), minimamente “estimulados de fora” – trata-se, na verdade, de demolir a
própria casa para ter lenha para aquecê-la.

187
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

profissionais não significa absolutamente que esses “pensarão por


todos”, que a multidão não tomará parte ativa no movimento. Ao
contrário, a multidão fará surgir de seu interior um número cada
vez maior de revolucionários profissionais, já que saberá desde en-
tão que não basta que alguns estudantes e operários que lutam no
terreno econômico reúnam-se para constituir um “comitê”, mas
que é necessário, ao longo dos anos, que elevem sua educação como
revolucionários profissionais; e a multidão não “pensará” unica-
mente no trabalho artesanal, mas precisamente nessa educação. A
centralização das funções clandestinas da organização não implica,
de modo algum, a centralização de todas as funções do movimento.
A colaboração ativa das mais amplas massas na literatura ilegal,
longe de diminuir, decuplicará, quando uma “dezena” de revolu-
cionários profissionais centralizar as funções clandestinas dessa
atividade. Assim, e somente assim, conseguiremos que a leitura,
que a colaboração na elaboração e que, até certo ponto, a difusão
dessa literatura ilegal deixem quase de ser um trabalho clandestino,
já que a polícia logo compreenderá o quão são absurdas e vãs as
perseguições judiciais e administrativas contra cada possuidor ou
divulgador de publicações distribuídas aos milhares. E isso é válido
não somente para a imprensa, mas também para todas as funções
do movimento, incluindo as manifestações. A participação não
será prejudicada, ao contrário, terá mais chances de êxito se uma
“dezena” de revolucionários profissionais experimentados, bem
preparados, pelo menos tão bem como a polícia, centralizar todos
os aspectos clandestinos: edição de panfletos, elaboração do plano
aproximativo, nomeação de um grupo de dirigentes para cada
bairro da cidade, cada zona fabril, cada estabelecimento de ensino
etc. (desde já, sei que minhas concepções “não são democráticas”,
mas responderei a tal objeção, nada inteligente, mais adiante, e
detalhadamente). A centralização das funções mais clandestinas
pela organização dos revolucionários não enfraquecerá, antes
reforçará, a amplitude e o conteúdo da atividade de um enorme

188
V. I. Lenin

número de outras organizações voltadas ao grande público que,


por sua natureza, também são o menos regulamentadas e o menos
clandestinas possível: sindicatos operários, círculos operários de
formação e de leitura de publicações ilegais, círculos socialistas,
círculos democráticos para todas as outras camadas da população
etc. etc. Esses círculos, sindicatos e organizações são necessários
por toda a parte; que sejam mais numerosos e suas funções as mais
variadas possível; no entanto, é um absurdo e é prejudicial confun-
di-los com a organização de revolucionários, apagar as fronteiras
que existem entre eles, extinguir na massa a consciência, já em si
incrivelmente obscurecida, de que para “servir” um movimento
de massa necessita-se de homens que se ocupem especial e total-
mente da atividade social-democrata, tornando-se revolucionários
profissionais, paciente e tenazmente.
Sim, essa consciência está incrivelmente obscurecida. Com
nosso trabalho artesanal, nosso erro fatal em matéria de organiza-
ção, comprometemos o prestígio dos revolucionários na Rússia.
Um revolucionário frouxo, hesitante nos problemas teóricos, com
horizontes limitados, justificando a sua inércia com a espontanei-
dade das massas, mais parecido com um secretário de trade-union
que com um tribuno popular, sem apresentar um plano amplo e
audacioso que imponha respeito aos adversários, inexperiente e
inábil na sua arte profissional – a luta contra a polícia política – não
pode ser um revolucionário, mas um pobre artesão!
Que nenhum militante dedicado ao trabalho prático se ofenda
com esse duro epíteto, pois, no que se refere à falta de preparação,
aplico-o a mim mesmo em primeiro lugar. Trabalhei num círculo124
que atribuía a si próprio tarefas muito amplas e múltiplas, e todos
nós, membros do círculo, sofríamos ao perceber que não éramos
mais que artesãos num momento histórico em que se poderia
124
[V. I. Lenin está se referindo ao círculo dos social-democratas de Petersburgo (“os
velhos”) encabeçado por ele. Foi com base nesse círculo que se fundou, em 1895, a
União de Luta pela Emancipação da Classe Operária.]

189
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

dizer, parafraseando a velha máxima: deem-nos uma organização


de revolucionários e revolucionaremos a Rússia! E quanto mais
vezes me recordo desse agudo sentimento de vergonha que então
experimentei, mais sinto aumentar em mim a amargura contra
esses pseudossocial-democratas, cuja propaganda “desonra o título
de revolucionário”, e que não compreendem que a nossa tarefa não
consiste em defender o rebaixamento do revolucionário ao plano
dos artesãos, mas em elevar os artesãos ao plano do revolucionário.

Relevância do trabalho de organização


Como vimos, B-v fala da “escassez de forças revolucionárias
aptas para a ação, escassez que se faz sentir não só em Petersburgo,
mas em toda a Rússia”. Não creio que haja alguém que possa pôr
em dúvida esse fato. Mas o problema consiste em como explicá-
-lo. B-v escreve:
Não vamos procurar esclarecer as razões históricas desse fenômeno; di-
remos somente que, desmoralizada por uma reação política prolongada
e desarticulada por mudanças econômicas que se processaram e ainda
se processam, a sociedade proporciona um número extremamente redu-
zido de pessoas aptas para o trabalho revolucionário; que a classe operária,
fornecendo revolucionários operários, completa em parte as fileiras das
organizações clandestinas, mas que o número desses revolucionários não
responde às exigências da época. Tanto mais que o operário, ocupado 11
horas e meia por dia na fábrica, não pode, pela sua situação, desempenhar,
fundamentalmente, mais que a função de agitador, enquanto a propaganda
e a organização, a distribuição e reprodução de literatura clandestina, a
publicação de proclamações etc., cabem, em grande parte, inevitavelmente,
às reduzidíssimas forças intelectuais (R. Dielo nº 6, p. 38-39).
Não estamos de acordo em muitos pontos com essa opinião
de B-v; e, em particular, não estamos de acordo com a passagem
que destacamos em itálico, que mostra, com singular relevo, que,
depois de muito sofrer (como todo militante prático que pense
um pouco) por causa de nosso trabalho artesanal, B-v não pôde

190
V. I. Lenin

encontrar, de tão subordinado que está ao “economismo”, uma


saída para essa situação intolerável. Não, a sociedade fornece um
número extremamente grande de pessoas aptas para a “causa”, mas
nós não sabemos como utilizá-las. Nesse sentido, o estado crítico,
o estado de transição do nosso movimento, pode ser formulado
assim: não há homens e há uma infinidade de homens. Há uma in-
finidade de homens porque tanto a classe operária quanto setores
cada vez mais variados da sociedade fornecem, todos os anos, um
número sempre maior de descontentes, que querem protestar, que
estão dispostos a cooperar naquilo que puderem na luta contra o
absolutismo, cujo caráter insuportável, se ainda não é notado por
todos, já é sentido por massas cada vez mais extensas e cada vez
mais acentuadamente. Mas, ao mesmo tempo, não há homens,
porque não há dirigentes, não há lideranças políticas, não há
talentos organizadores capazes de articular um trabalho simul-
taneamente amplo e unificado, coordenado, que permita utilizar
todas as forças, mesmo as mais insignificantes. “O crescimento e
o desenvolvimento das organizações revolucionárias” estão atra-
sados, não só em relação ao crescimento do movimento operário,
como o reconhece também B-v, mas também em relação ao cres-
cimento do movimento democrático geral em todos os setores do
povo (aliás, é provável que, hoje, isso fosse reconhecido por B-v,
como complemento da sua conclusão). O alcance do trabalho
revolucionário é demasiado reduzido quando comparado à ampla
base espontânea do movimento, está demasiado limitado pela
pobre teoria da “luta econômica contra os patrões e o governo”.
Porém, hoje, não são apenas os agitadores políticos, mas também
os organizadores social-democratas que devem “ir a todas as clas-
ses da população”.125 Os social-democratas poderão perfeitamente

Entre os militares, por exemplo, tem se observado recentemente uma indiscutível revi-
125

talização do espírito democrático, em parte como consequência dos combates de rua,


cada vez mais frequentes, contra “inimigos” como os operários e os estudantes. E, desde
que as nossas forças o permitam, não devemos deixar de prestar a mais séria atenção

191
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

partilhar as variadas funções fragmentárias do trabalho de orga-


nização entre os representantes das mais diversas classes: nenhum
militante dedicado à prática, creio eu, duvidará disso. A falta de
especialização, lamentada com amargura (e com tanta razão) por
B-v, constitui um dos maiores limites dos nossos procedimentos
técnicos. Quanto menores forem as diferentes “operações” da
atividade comum, tanto maior será o número de pessoas com ca-
pacidade de executá-las que poderão ser identificadas (e, na maior
parte dos casos, completamente incapazes de se tornarem revolu-
cionários profissionais); quanto mais dificultoso for para a polícia
“marcar” todos esses “militantes especializados”, mais ainda será
montar, com o delito insignificante de um indivíduo, um “caso”
de importância que justifique os recursos despendidos pelo Estado
com a “segurança”. Quanto ao número de pessoas prontas a nos
fornecer cooperação, já assinalamos no capítulo anterior a enorme
mudança que se desenvolveu a esse respeito, apenas nos últimos
cinco anos. Mas, por outro lado, para agrupar todas essas mínimas
frações num só todo e para não fragmentar o próprio movimento
juntamente com as funções, para inspirar naquele que executa as
pequenas funções a convicção na necessidade e no valor de seu
trabalho, sem a qual jamais atuará126, para tudo isso é preciso ter

à propaganda e à agitação entre os soldados e os oficiais, à criação de “organizações


militares” filiadas a nosso partido.
126
Lembro-me de como um camarada me contou de uma ocasião em que um inspetor de
fábrica, que ajudava a social-democracia e queria continuar a fazê-lo, reclamava amarga-
mente, dizendo que não sabia se as suas “informações” chegavam de fato até um centro
revolucionário, não sabia em que medida sua colaboração era necessária, nem até que
ponto era possível utilizar os seus pequenos e módicos serviços. Todo militante prático
poderia citar, naturalmente, muitos casos como esse, em que nosso trabalho artesanal
nos fez perder aliados. E os empregados e os funcionários poderiam prestar-nos, e de
fato prestariam, “pequenos” serviços que no conjunto teriam um valor inestimável, não
só nas fábricas, mas também nos correios, nas ferrovias, nas alfândegas, entre a nobreza,
o clero e em todas as outras instituições, mesmo na polícia e até mesmo na corte! Se
já contássemos com um verdadeiro partido, com uma organização verdadeiramente
combativa de revolucionários, não nos precipitaríamos a expor todos esses “auxiliares”,
não nos apressaríamos em levá-los sempre e necessariamente para o coração de uma

192
V. I. Lenin

uma forte organização de revolucionários experimentados. Com


tal organização, a convicção na força do partido será fortalecida e
se elevará de forma cada vez mais intensa quanto mais essa organi-
zação for clandestina; ora, na guerra, todos sabemos que importa,
acima de tudo, não apenas transmitir ao exército a confiança nas
suas próprias forças, mas também impô-la ao inimigo e a todos os
elementos neutros; por vezes, uma neutralidade benevolente pode
decidir a vitória. Em uma organização de bases teóricas tão firmes
e que dispõe de um órgão social-democrata, não haverá nada a
temer em relação ao fato de o movimento poder ser desviado pelos
diversos elementos de “fora” que a ele tenham aderido (ao contrá-
rio, justamente agora, com o trabalho artesanal que predomina
entre nós, constatamos que numerosos social-democratas lançam
o movimento em direção ao Credo, pretendendo serem os únicos
social-democratas). Numa palavra, a especialização pressupõe
necessariamente a centralização, exigindo-a incondicionalmente.
Mas o próprio B-v, que tão bem demonstrou toda a neces-
sidade da especialização, não avalia suficientemente o seu valor,
conforme nos parece, na segunda parte do raciocínio citado. Para
ele, o número de revolucionários oriundos dos meios operários é
insuficiente. Essa observação é perfeitamente correta, e mais uma
vez sublinhamos que a “valiosa informação de um observador
direto” confirma inteiramente a nossa opinião sobre as causas da
crise atual da social-democracia e, portanto, sobre as maneiras de
remediá-la. Não são apenas os revolucionários que, em geral, estão
atrasados em relação à ascensão espontânea das massas operárias
– inclusive os operários revolucionários estão atrasados em relação
a isso. E este fato confirma de modo evidente, mesmo do ponto

ação “clandestina”; iríamos tratá-los com muito cuidado e, ao contrário, prepararíamos


efetivamente pessoas para essas funções, recordando que muitos estudantes poderiam ser
muito mais úteis ao partido como funcionários “auxiliares” do que como revolucionários
“de curto prazo”. Mas volto a repetir: só uma organização já inteiramente sólida – para
a qual não faltam forças ativas – pode aplicar essa tática.

193
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

de vista “prático”, não apenas o absurdo, mas também o caráter


político reacionário da “pedagogia” com que somos obsequiados
frequentemente a propósito dos nossos deveres em relação aos
operários. Prova que a nossa primeira e imperiosa obrigação é
contribuir para formar revolucionários operários que, do ponto
da vista de sua atividade no partido, estejam no mesmo nível dos
revolucionários intelectuais. (Salientamos “do ponto de vista de sua
atividade no partido”, pois, em relação aos outros aspectos, atingir
esse mesmo nível constitui, para os operários, algo muito menos
fácil e muito menos urgente, embora necessário). Por isso, nossa
atenção deve estar voltada principalmente para elevar os operários
ao nível dos revolucionários e não para descermos, nós próprios, ao
nível da “massa operária” como desejam os “economistas”, ao nível
do “operário médio” como quer o Svoboda (que, sob esse aspecto,
eleva ao quadrado a “pedagogia” economista). Longe de mim negar
a necessidade de uma literatura popular para os operários, e de
uma outra especialmente popular (mas não uma literatura de má
qualidade) para os operários mais atrasados. Mas o que me indigna
é essa recorrente mistura da pedagogia com as questões políticas,
com as questões de organização. Porque, afinal, os Senhores que
se arvoram em defensores do “operário médio” insultam, antes de
tudo, esse operário, sempre que manifestam o desejo de se inclina-
rem na sua direção, em vez de lhe falarem de política operária ou
de organização operária. Corrijam-se, portanto, e falem de coisas
sérias, deixando a pedagogia aos pedagogos, e não aos políticos
e aos organizadores! Não existem também entre os intelectuais
elementos avançados, elementos “médios” e uma “massa”? Não
é reconhecida por todos a necessidade de uma literatura popular
para os intelectuais? E não se escreve essa literatura? Mas imaginem
que, num artigo sobre a organização de estudantes universitários
ou secundaristas, o autor, em tom de quem faz uma revelação, fica
insistindo inutilmente em que, antes de mais nada, é preciso uma
organização de “estudantes médios”. Tal autor seria, com toda a

194
V. I. Lenin

certeza e justificadamente, ridicularizado. Mas poderão dizer-lhe:


dê-nos algumas ideias sobre a organização, mínimas que sejam, se
é que as tem, e identificaremos entre nós os elementos médios, os
superiores ou os inferiores; se não tiver, porém, ideias próprias sobre
a organização, todos os seus discursos sobre “a massa” e sobre os ele-
mentos “médios” serão simplesmente enfadonhos. Compreenda-se,
definitivamente, que as questões de “política” e de “organização”
são em si mesmas tão sérias que exigem ser tratadas com extrema
seriedade: pode-se e deve-se preparar os operários (e também os
estudantes universitários e secundaristas) de modo a que se possa
abordar diante deles essas questões, mas, uma vez abordadas, deem-
-lhes respostas verdadeiras, não recuem em direção aos “médios”
ou à “massa”, não tergiversem com frases ou anedotas.127
O preparo integral para essa tarefa exige que o operário re-
volucionário torne-se também um revolucionário profissional.
Por isso, B-v não tem razão quando diz que o fato de o operário
estar ocupado 11 horas e meia na fábrica torna as outras funções
revolucionárias (salvo a agitação) “necessariamente, uma incum-
bência, de um número reduzidíssimo de intelectuais”. De forma
alguma isso acontece “necessariamente”, mas sim em consequência
de nosso atraso – porque não compreendemos que o nosso dever
é ajudar todo operário que se distinga pelas suas capacidades a
tornar-se agitador, organizador, propagandista, divulgador etc.,
etc. profissional. Em relação a esse aspecto, subestimamos ver-
gonhosamente as nossas forças, pois não sabemos cuidar do que
precisa ser cultivado e desenvolvido com especial atenção. Vejam

127
Svoboda nº 1, artigo “A organização” (p. 66): “A massa operária apoiará com todo o seu
peso todas as reivindicações que forem formuladas em nome do Trabalho na Rússia.”
(Não podia deixar de ser! Trabalho com maiúscula!). E o mesmo autor exclama: “Não
sinto nenhuma hostilidade pelos intelectuais, mas” [...] [é este o mas que Chtchedrine
traduziu pelo ditado: as orelhas não crescem mais alto do que a testa!] [...] “mas fico
terrivelmente furioso quando uma pessoa me vem dizer uma série de coisas muito boas
e muito bonitas, e exige que as aceite pela sua [dele!] beleza e outros méritos” (p. 62).
Sim, também eu “fico terrivelmente furioso”...

195
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

os alemães: têm cem vezes mais forças que nós, mas compreendem
perfeitamente que os operários “médios” não fornecem com muita
frequência agitadores verdadeiramente capazes etc. Por isso, tratam
de colocar imediatamente todo operário capaz em condições que
lhe permitam desenvolver a fundo e aplicar plenamente as suas
aptidões; fazem dele um agitador profissional, encorajam-no a
alargar o seu campo de ação, a estendê-lo de uma única fábrica
a toda a profissão, de uma única localidade a todo o país. Assim,
adquire a experiência e a habilidade na sua profissão; alarga os
seus horizontes e os seus conhecimentos, observa de perto os
dirigentes políticos eminentes de outras localidades e de outros
partidos; esforça-se por elevar-se ao plano de tais dirigentes e
aliar o conhecimento do meio operário e o vigor das convicções
socialistas à competência profissional, sem a qual o proletariado
não pode travar uma luta tenaz contra um inimigo perfeitamente
treinado. É assim, e só assim, que surgem os Bebel e os Auer128
da massa operária. Mas o que num país politicamente livre se faz
em grande parte por si só, entre nós deve ser realizado sistemati-
camente pelas nossas organizações. Todo agitador operário que
tenha algum talento e que seja uma “promessa”, não deve trabalhar
11 horas na fábrica. Devemos cuidar para que viva por conta do
partido e possa, no momento preciso, passar à ação clandestina,
mudar de localidade, pois de outro modo não adquirirá grande
experiência, não alargará os seus horizontes, não se poderá man-
ter sequer por alguns anos na luta contra a polícia. Quanto mais
ampla e profunda se tornar a ascensão espontânea das massas
operárias, mais se destacarão não só os agitadores com talento,
como também os organizadores e propagandistas e militantes
“práticos” mais dotados; “práticos” no melhor sentido da palavra
(que são tão escassos entre os nossos intelectuais, em sua maioria
apáticos e desatentos à maneira russa). Quando tivermos desta-

128
[Auer, Ignaz (1846-1907): importante personalidade da social-democracia alemã.]

196
V. I. Lenin

camentos de operários revolucionários especialmente preparados


(e, bem entendido, revolucionários de “todas as armas”) por uma
longa aprendizagem, nenhuma polícia política do mundo poderá
destruí-los, porque tais destacamentos de homens consagrados de
corpo e alma à revolução gozarão da confiança ilimitada das mais
amplas massas operárias. E é uma grande falta nossa não “em-
purrar” bastante os operários para esse caminho, comum tanto a
eles quanto aos “intelectuais”, para a aprendizagem revolucionária
profissional, lançando-os com muita frequência para a retaguarda
com os nossos discursos estúpidos sobre o que é “acessível” à massa
operária, aos “operários médios” etc.
Sob esse aspecto, como nos demais, o reduzido alcance do
trabalho de organização está inegável e intimamente relacionado
(embora a imensa maioria dos “economistas” e dos militantes no-
vatos não o reconheçam) com os nossos limites teóricos e o nosso
atraso nas tarefas políticas. O culto da espontaneidade leva, de
certa forma, ao medo de nos afastarmos, nem que seja um só passo,
daquilo que é “acessível” às massas, de nos elevarmos muito acima
da simples satisfação das suas necessidades diretas e imediatas.
Não tenham medo, senhores! Lembrem-se de que em matéria de
organização estamos num nível tão baixo que é até absurda a ideia
de podermos subir demasiado alto!

A organização “conspirativa” e o “democratismo”


E é precisamente isso que temem, acima de tudo, aqueles de
extremo “senso de realidade”, e que acusam os que partilham das
opiniões aqui expostas de se apegar às ideias de Narodnaia Volia
[A vontade do povo], de não compreender o “democratismo” etc.
Devemos nos deter nessas acusações, que o Rabotcheie Dielo natu-
ralmente também apoiou. O autor destas linhas sabe muito bem
que os “economistas” de Petersburgo já acusavam o Rabotchaia
Gazeta de partilhar as ideias da Narodnaia Volia (o que é com-
preensível se a comparam ao Rabotchaia Mysl). Por isso, absoluta-

197
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

mente não nos surpreendemos ao saber através de um camarada


que os social-democratas da cidade X classificavam o Iskra, pouco
depois do seu nascimento, como um órgão que partilha das ideias
de Narodnaia Volia. Tal acusação, evidentemente, constituiu para
nós um elogio, pois qual é o social-democrata digno desse nome a
que os “economistas” não tenham feito tal acusação?
Essas acusações são originadas por duplo mal-entendido. Em
primeiro lugar, a história do movimento revolucionário é tão
precariamente conhecida entre nós que é qualificada como afei-
çoada a Narodnaia Volia toda ideia referente a uma organização
de combate centralizada e que declare resolutamente a guerra
contra o tsarismo. Mas a magnífica organização revolucionária
da década de 1870, que deveria servir de modelo a todos nós, não
foi criada pelos partidários de Narodnaia Volia, mas pelos adeptos
de Zemlia i Volia [Terra e Liberdade]129, que em seguida se cindi-
ram em partidários de Tcherny Perediel [A Partilha Negra] e em
seguidores de Narodnaia Volia. Portanto, ver numa organização
revolucionária de combate uma herança específica dos adeptos de
Narodnaia Volia constitui um absurdo lógico e histórico, porque
toda tendência revolucionária, ainda que vise pouco seriamente
a luta, não poderia prescindir de uma organização desse gênero.

129
[Organização secreta dos populistas revolucionários, fundada em Petersburgo no
outono de 1876. Os Zemlevoltsi (membros da “Terra e Liberdade”), considerando os
camponeses a força revolucionária fundamental da Rússia, procuraram sublevá-los
contra o tsarismo; realizaram um trabalho revolucionário em diversas províncias da
Rússia: Tambov, Voronej e outras. Devido ao fracasso do trabalho revolucionário entre
os camponeses e à violência da repressão governamental, surgiu, em 1879, no seio da
Zemlia i Volia, uma facção de terroristas que renunciaram à propaganda revolucionária
entre os camponeses e consideraram que o principal meio de luta contra o tsarismo era
o terror contra os membros do governo. No congresso realizado naquele ano, em Voro-
nej, a Zemlia i Volia dividiu-se em duas organizações: Narodnaia Volia, que se lançou
na via do terror, e Tcherny Perediel, que permaneceu nas posições da Zemlia i Volia.
Mais tarde, uma parte dos partidários dessa última – Plekhanov, Axelrod, Zassulitch,
Deutsch, Ignatov – passaram às posições do marxismo e, em 1883, no exterior, criaram
a primeira organização russa marxista, o grupo Osvobojdenie Truda (Emancipação do
Trabalho).]

198
V. I. Lenin

O erro dos partidários de Narodnaia Volia não foi o de procurar


integrar todos os descontentes na organização e orientá-la para
uma luta decidida contra a autocracia. Ao contrário, isso consti-
tui o seu grande mérito histórico. O seu erro consistiu em terem
se apoiado sobre uma teoria que, no fundo, não era de forma
alguma revolucionária, e em não terem sabido, ou podido, ligar
indissoluvelmente o seu movimento à luta de classes no seio da
sociedade capitalista em desenvolvimento. E só a mais grosseira
incompreensão do marxismo (ou uma “compreensão” à maneira do
“struvismo”) poderia conduzir à crença de que o nascimento de um
movimento operário de massa espontâneo nos livra da obrigação
de criar uma organização revolucionária tão boa, ou incompara-
velmente melhor, do que a da Zemlia i Volia. Ao contrário, é esse
movimento que nos impõe precisamente essa obrigação, pois a luta
espontânea do proletariado não se transformará numa verdadeira
luta de classes do proletariado enquanto não for dirigida por uma
forte organização de revolucionários.
Em segundo lugar, há muitos – e, ao que parece, também B.
Kritchevski (Rab. Dielo nº 10, p. 18) – que interpretam errada-
mente a polêmica sobre a posição dos social-democratas contra
a concepção da luta política como “conspiração”. Protestamos e
protestaremos sempre, evidentemente, contra a redução da luta
política às dimensões de uma conspiração130, mas isso não significa
absolutamente, como se pensa, que neguemos a necessidade de uma
organização revolucionária forte. Assim, na brochura mencionada
na nota anterior, encontra-se, ao lado da polêmica contra aqueles
que desejariam restaurar a luta política como uma conspiração,
o esboço de uma organização (a ideal para os social-democratas)
bastante forte para poder “recorrer à insurreição” e a qualquer

Cf. As tarefas dos social-democratas russos, p. 21, a polêmica com P. L. Lavrov [Cf. V. I.
130

Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 2, p. 316-317].

199
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

“outra forma de ataque”,131 “a fim de dar um golpe decisivo no


absolutismo”. Considerando apenas sua forma, essa organização
revolucionária num país autocrático pode ser qualificada como
organização “conspirativa”, tornando o caráter secreto uma con-
dição absolutamente necessária e indispensável, a ponto de todas
as outras qualidades (número e processo de escolha dos membros,
funções etc.) deverem ajustar-se a isso. Seríamos, portanto, muito
ingênuos se nós, social-democratas, receássemos ser acusados de
criar uma organização conspirativa. Semelhante acusação deve
orgulhar qualquer inimigo do “economismo”, tal como a acusação
de seguir as ideias de Narodnaia Volia.
Poder-se-ia objetar que uma organização tão poderosa e tão
estritamente secreta, concentrando nas suas mãos todos os fios da
ação clandestina, organização necessariamente centralizada, pode
se lançar com demasiada facilidade num ataque prematuro e pode
estimular de forma inconsequente o movimento, antes que aquele
se torne possível e necessário pelo avanço do descontentamento
político, pela força da efervescência e da indignação da classe
operária etc. A isso responderemos: falando de maneira abstrata, é
evidente que não se pode negar que uma organização de combate
pode se lançar numa batalha impensada, que pode terminar em
derrota, que não seria absolutamente inevitável noutras condições.
Mas, no caso, é impossível limitar a argumentação a ponderações
abstratas, pois todo o combate implica possibilidades abstratas
de derrota, e não há outro meio de diminuir essa possibilidade

131
Cf. As tarefas dos social-democratas russos, p. 23 [Cf. V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed.
em russo, t. 2, p. 318]. Eis aqui mais um exemplo de que Rab. Dielo ou não compreende
o que diz ou muda o que diz conforme a “direção dos ventos”. No nº 1 de Rab. Dielo
diz-se, em itálico: “A essência da brochura que acabamos de expor coincide plenamente com
o programa da redação de Rab. Dielo” (p. 142). Será verdade? A ideia de que não se pode
pôr como primeira tarefa ao movimento de massas a derrubada da autocracia coincide
com As tarefas? A teoria da “luta econômica contra os patrões e o governo” também
coincide? E a teoria dos estágios, também? Que o leitor julgue a firmeza de princípios
de um órgão que compreende a “coincidência” tão originalmente.

200
V. I. Lenin

do que preparar organizadamente o combate. E se a questão é


colocada no âmbito da situação concreta russa de hoje, chega-se
à conclusão positiva de que uma organização revolucionária forte
é absolutamente necessária justamente para dar estabilidade ao
movimento e preservá-lo da possibilidade de ataques impensados.
Precisamente agora, quando nos falta uma organização desse
tipo e quando o movimento revolucionário cresce de maneira
espontânea e acelerada, observam-se dois extremos (que, como é
lógico, “tocam-se”) surgirem: um “economismo” completamente
inconsistente, acompanhado de sermões de moderação, ou um
“terrorismo estimulante” não menos inconsistente, buscando
“provocar artificialmente, no movimento que se desenvolve e se
consolida, mas que ainda está mais próximo do seu princípio que
do seu desfecho, os sintomas do seu fim” (V. Zassulitch, Zaria nº
2-3, p. 353). O exemplo do Rabotcheie Dielo mostra que já existem
social-democratas que cedem diante desses dois extremos. Isso nada
tem de surpreendente, pois, abstraindo as outras circunstâncias, “a
luta econômica contra os patrões e o governo” nunca satisfará um
revolucionário, e os extremos opostos sempre aparecerão, aqui ou
ali. Apenas uma organização de combate centralizada que pratique
com firmeza a política social-democrata e, por assim dizer, que
satisfaça a todos os instintos e aspirações revolucionárias está em
condições de preservar o movimento contra um ataque impensado
e preparar outro que prometa o êxito.
Em seguida, colocar-se-á a objeção de que nosso ponto de
vista sobre a organização está em contradição com o “princípio
democrático”. Da mesma forma que a acusação precedente apre-
senta uma origem especificamente russa, esta apresenta um caráter
especificamente estrangeiro. Apenas uma organização sediada no
estrangeiro (a “União dos Social-Democratas Russos”) podia dar
à luz, entre outras, a seguinte instrução:
Princípio de organização. No interesse do bom desenvolvimento da união
da social-democracia, é conveniente sublinhar, desenvolver, lutar por um

201
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

amplo princípio democrático na organização do partido, o que se tornou


particularmente necessário pelas tendências antidemocráticas que surgiram
nas fileiras de nosso partido (Dois congressos, p. 18).
Veremos no capítulo seguinte como, precisamente, o Rabotcheie
Dielo luta contra as “tendências antidemocráticas” do Iskra. No
momento, examinaremos mais de perto esse “princípio” colocado
pelos “economistas”. O “amplo princípio democrático”, como todos
provavelmente concordarão, implica duas condições expressas: em
primeiro lugar, a publicização completa e, em segundo, a eleição
para todas as funções. Seria ridículo falar de “democratismo” sem
uma publicização que não se limitasse aos membros da organiza-
ção. Chamaremos ao partido socialista alemão uma organização
democrática, pois tudo aí se faz abertamente, até as sessões do
congresso do partido; mas ninguém qualificará de democrática
uma organização encoberta pelo véu do segredo para todos aqueles
que não são membros. Então, que sentido tem propor um “amplo
princípio democrático”, quando a condição essencial desse princípio
é irrealizável numa organização secreta? Esse “amplo princípio”,
nada mais é que uma frase sonora, porém vazia. E ainda mais.
Essa frase atesta uma incompreensão total das tarefas urgentes em
matéria de organização. Todos sabem que, entre nós, na “grande”
massa dos revolucionários está disseminada a falta de secretismo.
Vimos como B-v se queixa amargamente, exigindo com toda razão
uma “seleção criteriosa dos membros” (Rab. Dielo nº 6, p. 42). E
eis que imediatamente surgem aquelas pessoas que se vangloriam
do seu “senso de realidade” e que vêm sublinhar, numa situação
dessas, não a necessidade de um rigoroso secretismo e de uma
seleção severa (portanto, mais restrita) dos membros, mas de um
“amplo princípio democrático”! É o que se chama dar na ferradura
em vez de dar no cravo.
As coisas não são melhores em relação ao segundo critério do
“democratismo”, o princípio eletivo. Nos países que desfrutam
de liberdade política, essa condição é subjacente. “São consi-

202
V. I. Lenin

derados membros do partido todos aqueles que reconhecem os


princípios do seu programa e apoiam o partido na medida de
suas forças”, atesta o primeiro parágrafo dos estatutos do partido
social-democrata alemão. Sendo a arena política visível a todos,
como o palco de um teatro para os espectadores, todos sabem
pelos jornais e assembleias públicas se as pessoas reconhecem ou
não esses princípios, apoiam o partido ou a ele se opõem. Pode-
-se saber da trajetória de um determinado militante político,
da sua origem e da sua evolução, que num momento específico
da sua vida se comportou de determinada maneira diante de
uma dificuldade qualquer, que se distingue por estas ou aquelas
qualidades; ademais, todos os membros do partido podem, com
conhecimento de causa, eleger ou não esse militante para algum
posto do partido. O controle geral (no sentido literal do termo)
de cada passo dado por um membro do partido na sua trajetória
política cria um mecanismo automático, que resulta naquilo que
em biologia se denomina a “sobrevivência do mais apto”. Tal “se-
leção natural”, resultado de uma ampla publicização, do caráter
eletivo e do controle geral, faz com que cada militante se ocupe
“do seu lugar”, assuma a tarefa mais apropriada às suas forças e
aptidões, arque ele próprio com todas as consequências dos seus
erros e demonstre diante de todos sua capacidade para tomar
consciência das suas faltas e de como evitá-las.
Tentem encaixar esse quadro na moldura de nossa autocracia!
Seria concebível, entre nós, que todos aqueles “que reconhecem os
princípios do programa do partido e o sustentam na medida das
suas forças” possam controlar cada passo dado pelos revolucionários
clandestinos? Que todos elejam uma ou outra pessoa entre esses
últimos, quando o revolucionário é obrigado, no interesse do seu
trabalho, a esconder a sua identidade de nove entre dez pessoas? Se
refletíssemos, por um momento, acerca do verdadeiro sentido das
frases de efeito lançadas pelo Rabotcheie Dielo, veríamos que uma
“ampla democracia” da organização do partido, nas trevas da auto-

203
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

cracia e sob um regime em que é a polícia que seleciona, não é mais


que um jogo inútil e prejudicial, pois, de fato, nenhuma organização
revolucionária jamais aplicou, nem poderá aplicar, por mais que
deseje, uma ampla “democracia”. É uma brincadeira prejudicial,
pois as tentativas para se aplicar de fato o “princípio de uma ampla
democracia” apenas facilitam o grande número de detenções que a
polícia realiza, perpetuam o persistente trabalho artesanal e desviam
o pensamento dos militantes práticos da sua séria e imperiosa tarefa
que consiste em sua preparação como revolucionários profissionais
para a redação de detalhados estatutos “burocráticos” sobre siste-
mas eleitorais. Apenas no exterior, onde frequentemente se reúnem
homens que não têm possibilidade de encontrar um trabalho real
e verdadeiro, é que se pôde desenvolver essa mania de “brincar de
democracia”, sobretudo em alguns pequenos grupos.
Para mostrar ao leitor como é indigna a maneira de proceder
do Rabotcheie Dielo, que preconiza esse “princípio” tão nobre que
é o “democratismo” no trabalho revolucionário, mais uma vez
recorreremos a uma testemunha. Essa testemunha, E. Serebriakov,
diretor da revista Nakanounie, de Londres, revela nitidamente uma
inclinação pelo Rabotcheie Dielo e uma aversão acentuada por
Plekhanov e os “plekhanovianos”; nos seus artigos sobre a cisão
da “União dos Democratas Russos no estrangeiro”, Nakanounie
tomou resolutamente o partido do Rabotcheie Dielo e lançou uma
verdadeira nuvem de palavras lamentáveis contra Plekhanov. Por
isso é que o seu testemunho sobre essa questão nos é tão pre-
cioso. No artigo intitulado “A propósito do apelo do Grupo de
Autoemancipação Operária” (Nakanounie nº 7, julho de 1899),
E. Serebriakov dizia que era “indecoroso” levantar a questão “de
prestígio e de primazia no chamado areópago de um movimento
revolucionário sério”; escrevia, entre outras coisas:
Mychkin, Rogatchev, Zheliabov, Mikhailov, Perovskaia, Figner e outros
nunca se consideraram dirigentes. Ninguém os elegeu ou nomeou, embo-
ra o fossem na realidade, pois, tanto em período de propaganda quanto

204
V. I. Lenin

em período de luta contra o governo, assumiam o trabalho mais difícil,


iam aos lugares mais expostos e a sua atividade era a mais proveitosa. E
essa primazia não era o resultado dos seus desejos, mas da confiança dos
camaradas que os rodeavam na sua inteligência, na sua energia e na sua
lealdade. E temer um areópago, qualquer que seja [e se ele não for temido,
por que falar nisso?], que pode dirigir autoritariamente o movimento, é
pura ingenuidade. Quem lhe obedeceria?
Perguntamos ao leitor: qual a diferença entre um “areópago” e
as “tendências antidemocráticas”? Não é evidente que o “plausível”
princípio de organização do Rabotcheie Dielo é tão ingênuo quanto
indecente? Ingênuo, simplesmente porque ninguém obedecerá a
um “areópago” ou a pessoas com “tendências antidemocráticas”,
desde o momento em que “os camaradas que os rodeiam não
tiverem confiança na sua inteligência, na sua energia e na sua
lealdade”. Indecente, como mecanismo demagógico em que se
especula com a vaidade de alguns e a ignorância de outros no que
se refere ao verdadeiro estado de nosso movimento, da falta de pre-
paração e, ainda, do desconhecimento da história do movimento
revolucionário. O único princípio sério em matéria de organização
ao qual devem se subordinar os militantes do nosso movimento
diz respeito ao mais severo secretismo, à mais rigorosa seleção
dos membros e à preparação de revolucionários profissionais. Ao
se reunirem tais qualidades, podemos ter uma coisa mais impor-
tante do que “democratismo”: uma plena e fraternal confiança
mútua entre revolucionários. Esse algo a mais é fundamental,
pois, entre nós, na Rússia, não seria possível substituí-lo pelo
controle democrático geral. E seria um grande erro acreditar que
a impossibilidade de um controle verdadeiramente “democrático”
torne os membros da organização revolucionária incontroláveis:
de fato, os membros da organização não têm tempo de pensar nas
formas ingênuas de “democratismo” (“democratismo” no âmbi-
to de um grupo restrito de camaradas entre os quais reina uma
plena confiança), mas sentem ativamente a sua responsabilidade e,

205
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

ademais, sabem, pela própria experiência, que uma organização


de verdadeiros revolucionários não recuará diante de qualquer
meio para se livrar de um membro indigno. Além disso, está
bastante difundida entre nós, nos meios revolucionários russos (e
internacionais), uma opinião pública que tem uma longa história
e que castiga com rigor implacável qualquer falta aos deveres de
camaradagem (e a “democracia”, a verdadeira e não a ingênua,
é parte constitutiva dessa noção de camaradagem!). Considerem
tudo isso e compreenderão que esses falatórios e resoluções sobre
as “tendências antidemocráticas” exalam o repugnante cheiro a
jogo no exterior, a brincadeiras ao generalato!
É interessante observar que a outra fonte desses falatórios,
isto é, a ingenuidade, alimenta-se da ideia confusa que se faz da
democracia. No livro do casal Webb sobre as trade-unions há um
capítulo curioso: “A democracia primitiva”. Os autores mostram
como os operários ingleses, no primeiro período de existência dos
seus sindicatos, consideravam como condição imprescindível da
democracia a participação dos membros em todos os espaços da
direção dos sindicatos – não só todas as questões eram resolvidas
pelo voto de todos os membros, mas também os cargos eram
exercidos por todos os membros, sucessivamente. Foi preciso uma
longa experiência histórica para que os operários compreendessem
o absurdo de tal concepção da democracia e percebessem, por um
lado, a necessidade de instituições representativas e, por outro, a de
funcionários profissionais. Foi necessária a ocorrência de inúmeras
falências de caixas sindicais para fazer com que os operários com­
preendessem que a questão da relação proporcional entre as cotiza-
ções pagas e os subsídios recebidos não podia ser decidida apenas
pelo voto democrático, e que tal questão também exigia o parecer
de um especialista em seguros. Tome-se o livro de Kaustsky sobre
o parlamentarismo e a legislação popular, para se constatar que as
conclusões desse teórico marxista convergem com os ensinamentos
advindos da longa prática dos operários “espontaneamente” uni-

206
V. I. Lenin

dos. Kautsky volta-se resolutamente contra a concepção primitiva


da democracia de Rittinghausen, ridiculariza as pessoas prontas a
reivindicar, em nome dessa democracia, que “os jornais populares
sejam redigidos pelo próprio povo”, mostra a necessidade de jorna-
listas, de parlamentares, de profissionais etc. para dirigir de forma
social-democrata a luta de classe do proletariado, “ataca o socialismo
dos anarquistas e dos literatos” que, “buscando visibilidade”, pre-
conizam a legislatura direta por todo o povo e não compreendem
que a sua aplicação é muito relativa na sociedade atual.
Todo aquele que tenha trabalhado na prática do nosso mo-
vimento sabe como a concepção “primitiva” da democracia se
encontra amplamente espalhada entre a juventude estudantil e os
operários. Não é de se estranhar que essa concepção tenha pene-
trado tanto nos estatutos quanto na literatura. Os “economistas”
do tipo bernsteiniano escreviam nos seus estatutos: Ҥ 10o. Todos
os assuntos que afetam os interesses de toda a organização sindical
serão decididos por maioria dos votos de todos os seus membros”.
Os “economistas” do tipo terrorista repetem atrás deles: “É im-
prescindível que as decisões dos comitês tenham passado por todos
os círculos antes de se tornarem decisões efetivas” (Svoboda nº 1,
p. 67). Notem que essa exigência de aplicação ampla do referendo
é colocada para além daquela que exige que toda a organização
seja construída sobre o princípio eletivo! Muito longe de nós, que
fique claro, censurar por isso os militantes práticos que tiveram tão
pouca possibilidade de conhecer a teoria e a prática de organizações
verdadeiramente democráticas. Mas quando o Rabotcheie Dielo,
que pretende ter um papel de dirigente, se limita, numa situação
como essa, a uma resolução sobre o amplo princípio democrático,
não seria isso uma mera busca de “visibilidade”?

O trabalho em escala local e nacional


Se as objeções ao plano de organização exposto aqui, conde-
nado por sua falta de democracia e pelo seu caráter conspirativo,

207
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

carecem de qualquer fundamento, resta ainda uma questão que


frequentemente é levantada e que merece uma análise detalhada.
Trata-se da questão que envolve a relação entre o trabalho local e
o trabalho em escala nacional. Há o temor de que a formação de
uma organização centralizada leve ao deslocamento do centro de
gravidade do primeiro em direção ao segundo. Isso não prejudicará
o movimento, não enfraquecerá nossa sólida ligação com a massa
operária e, de maneira geral, nossa estabilidade no âmbito da
agitação local? Responderemos que, nesses últimos anos, o nosso
movimento tem sofrido justamente com o excessivo trabalho local
que absorve seus militantes; que, por essa razão, é absolutamente
necessário que se desloque um pouco o centro de gravidade para
a direção do trabalho em escala nacional; que esse deslocamento,
longe de enfraquecer, solidificará nossos vínculos com as massas e
dará maior estabilidade à nossa agitação local. Tome-se a questão
do órgão central e dos órgãos locais – pedimos ao leitor que não se
esqueça que o assunto da imprensa, para nós, é apenas um exemplo
ilustrativo do trabalho revolucionário em geral, infinitamente mais
amplo e diverso.
Durante o primeiro período do movimento de massa (1896-
1898), os militantes locais fizeram uma tentativa de criar um
órgão destinado a toda a Rússia: o Rabotchaia Gazeta; no período
seguinte (1898-1900), se o movimento deu um gigantesco passo
à frente, os órgãos locais absorviam inteiramente os dirigentes. Se
todos esses órgãos locais fossem levados em conta, verificar-se-ia132
que, em números redondos, se publicava um número por mês.
Tal ilustração não é representativa do fato de o nosso trabalho ser
artesanal? Isso não demonstra, de forma evidente, o atraso da nossa
Cf. o Relatório ao Congresso de Paris (p. 14): “Dessa época (1897) até a primavera de 1900,
132

foram publicados 30 números de jornais variados em diversos lugares (...). Em média,


publicou-se mais de um número por mês”. [O Relatório ao Congresso de Paris é o folheto
Relatório sobre o Movimento Social-Democrata Russo ao Congresso Socialista Internacional
de Paris (1900), editado pela “União dos Socialistas-Democratas Russos”, Genebra,
1901. Foi escrito pela redação de Rabotcheie Dielo, por incumbência da “União”.]

208
V. I. Lenin

organização revolucionária em relação à ascensão espontânea do


movimento? Se a mesma quantidade de números de jornais tivesse
sido publicada não por grupos locais dispersos, mas por uma única
organização, não somente teríamos economizado uma enormidade
de forças como, também, teríamos assegurado ao nosso trabalho
muito mais estabilidade e continuidade. Essa singela constatação
é esquecida, com demasiada frequência, pelos militantes da prática
que trabalham ativamente, de modo quase exclusivo, nos órgãos
locais (infelizmente, na imensa maioria dos casos, isso continua
ocorrendo) e pelos propagandistas que demonstram um espan-
toso quixotismo em relação a essa questão. O militante prático
contenta-se normalmente com o argumento de quão “é difícil”133
aos militantes locais a tarefa de criar um jornal para toda a Rússia
e de que é melhor ter jornais locais do que não ter nenhum. Claro
que isso é perfeitamente correto, e não precisamos de nenhum
militante prático para nos fazer reconhecer a enorme importân-
cia e utilidade dos órgãos locais em geral. Mas não é disso que se
trata e sim de saber se é possível superar essa fragmentação, esse
trabalho artesanal, cristalinamente verificado nos 30 números
de jornais locais de todo o país, nesses dois anos e meio. Não se
contentem com um princípio inquestionável, porém demasiado
abstrato, sobre a utilidade dos jornais locais em geral; tenham
a coragem de reconhecer com franqueza os aspectos negativos
revelados pela experiência de dois anos e meio. Essa experiência
atesta que, nas condições em que estamos, os jornais locais, na
maioria dos casos, são instáveis do ponto de vista dos princípios,
não têm relevância política, são extremamente custosos no que
diz respeito ao dispêndio de energias revolucionárias e totalmente
insatisfatórios do ponto de vista técnico (não me refiro, é claro, à
técnica tipográfica, mas à frequência e regularidade da publicação).

A dificuldade é só aparente. Na verdade, não há círculo local que não seja capaz de operar
133

ativamente qualquer uma das funções do trabalho em escala nacional. “Não diga que
não pode, mas sim que não quer”.

209
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

E todos os defeitos indicados não constituem obra do acaso, mas


são o resultado inevitável dessa fragmentação que, de um lado,
explica a predominância dos jornais locais no período examinado
e, de outro, encontra uma sustentação nessa predominância. Uma
organização local, por si mesma, não está efetivamente em condições
de assegurar a estabilidade de princípios do seu jornal e de elevá-lo
ao plano de um órgão político; não está em condições de reunir e
utilizar material suficiente para abarcar toda a nossa vida política.
Quanto ao argumento ao qual geralmente se recorre nos países
livres para justificar a necessidade de numerosos jornais locais –
o fato de serem baratos, uma vez que impressos pelos operários
locais, e de apresentarem velocidade e qualidade de informações à
população –, esse argumento, conforme o demonstra a experiência
no nosso país, volta-se contra os jornais locais. Esses últimos cus-
tam exageradamente caros em relação às energias revolucionárias e
aparecem em intervalos muito espaçados pela simples razão de que
um jornal ilegal, por menor que seja, exige uma enorme estrutura
clandestina que só pode ser montado num grande centro fabril, o
que é inviável numa oficina de artesão. O caráter rudimentar da
estrutura clandestina leva, como ocorre com regularidade (qualquer
militante conhece inúmeros exemplos desse gênero), à realização
de prisões em massa pela polícia, que se aproveita do lançamento
e da divulgação de um ou dois números, destruindo as coisas de
tal maneira que se faz necessário começar tudo de novo. Uma
boa estrutura clandestina exige uma boa preparação profissional
dos revolucionários e a mais consequente divisão do trabalho,
condições absolutamente inviáveis para uma organização local
isolada, por mais forte que seja num determinado momento. Sem
falar dos interesses gerais de todo o nosso movimento (educação
socialista e uma política operária firmada em sólidos princípios).
Interesses especificamente locais são mais atendidos por órgãos não
locais. Apenas à primeira vista isso poderia parecer um paradoxo,
mas, na realidade, a experiência dos dois anos e meio confirma o

210
V. I. Lenin

que já falamos. Todos concordarão que, se todas as forças locais


que publicaram 30 números de jornais locais tivessem trabalhado
para um único jornal, chegaríamos facilmente a 60 ou até cem
números publicados sem dificuldades e, por conseguinte, refleti-
riam de forma mais completa todas as particularidades puramente
locais do movimento. Indiscutivelmente, não será fácil atingir esse
nível de coordenação, mas também é preciso que tomemos cons-
ciência dessa necessidade; que cada círculo local pense e trabalhe
ativamente nesse sentido, sem esperar um empurrão de fora, sem
se deixar seduzir pela facilidade de acesso, pela proximidade de um
órgão local, proximidade que é em grande parte ilusória, como o
prova a nossa experiência revolucionária.
Os propagandistas, que se consideram próximos dos militantes
práticos, acabam prestando um mau serviço ao não perceberem
esse caráter ilusório, esquivando-se com argumentos extraordi-
nariamente frágeis e vazios sobre a falta que fazem jornais locais,
jornais regionais, jornais para toda a Rússia. Em termos gerais, é
evidente que tudo isso faz falta, como também faz falta pensar nas
condições do meio e do momento quando se aborda um proble-
ma concreto de organização. Será que não estaríamos diante de
um caso de quixotismo quando Svoboda (nº 1, p. 68), detendo-se
especialmente “sobre a questão do jornal”, diz: “pensamos que
onde houver uma concentração algo significativa de operários deve
haver um jornal local. Um jornal próprio, não trazido de fora”. Se
esse propagandista não quer refletir acerca do significado das suas
palavras, que o leitor ao menos o faça por ele: existem dezenas ou
centenas “de concentrações operárias algo significativas” na Rússia,
o nosso trabalho artesanal seria perpetuado se cada organização
local começasse realmente a editar o seu próprio jornal! Como
essa fragmentação facilitaria o trabalho da polícia: prender, sem
qualquer esforço “considerável”, os militantes locais no início da
sua atividade, antes que tivessem tempo de se transformarem em
verdadeiros revolucionários! Num jornal para toda a Rússia, con-

211
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

tinua o autor, tornar-se-iam desinteressantes as narrativas acerca


dos problemas dos fabricantes e “os pequenos fatos da vida fabril
noutras cidades que não a do leitor”, mas “o habitante de Oriol não
se aborrecerá ao ler o que se passa em Oriol; pode reconhecer aque-
les com os quais ‘manteve contato’, os que ‘fizeram por merecer’ e
pode pôr a sua alma no que lê” (p. 69). Sim, sim, o habitante de
Oriol põe a sua alma, mas o nosso propagandista “põe” também
demasiada imaginação. Deveria-se refletir sobre a necessidade de
defender tal mesquinharia de esforços? Reconhecemos mais que
ninguém a necessidade de denunciar os abusos cometidos nas
fábricas, mas é preciso lembrar que chegamos a uma situação em
que os habitantes de Petersburgo se aborrecem com as correspon-
dências locais do periódico petersburguês Rabotchaia Mysl. Para
as denúncias do que ocorre nas fábricas sempre tivemos e sempre
deveremos ter as folhas volantes, mas, quanto ao conteúdo do nosso
jornal, devemos elevá-lo e não rebaixá-lo ao plano das folhas de
fábrica. Para um “jornal”, necessitamos de denúncias, além dos
“pequenos fatos”, dos principais problemas típicos da vida fabril,
denúncias baseadas em exemplos relevantes e que, por conseguinte,
possam interessar a todos os operários e dirigentes do movimento,
enriquecendo efetivamente os seus conhecimentos, alargando os
seus horizontes, iniciando o despertar de uma nova região, de uma
nova categoria profissional de operários.
Ademais, no jornal local pode-se apanhar, ainda frescos, os abusos da
administração da fábrica ou de outras autoridades. Ao contrário, com um
jornal geral afastado, a notícia demoraria a chegar, e quando o jornal saísse
teriam esquecido do acontecimento: “Quando aconteceu isso? – quem se
lembra! (Ibid.).
Quem é que se lembra! Segundo a mesma fonte, os 30 números
publicados em dois anos e meio correspondem a seis cidades. Isso dá a
cada cidade, em média, um número a cada meio ano! Supondo mesmo
que nosso propagandista, em sua hipótese, triplica o rendimento do
trabalho local (o que seria indubitavelmente uma falsidade em relação

212
V. I. Lenin

a uma cidade média, pois no âmbito do trabalho artesanal não é


possível um aumento considerável do rendimento), conseguiríamos
apenas um número a cada dois meses; ou seja, um quadro muito
distante do “apanhar, ainda frescas, as notícias”. Porém, bastaria que
dez organizações locais se unissem e delegassem aos seus represen-
tantes a função ativa de organizar um jornal comum para que fosse
possível “recolher” por toda a Rússia não os pequenos fatos, mas os
abusos mais impactantes e comuns, e isso a cada 15 dias. Aqueles
que conhecem a situação nas nossas organizações não podem du-
vidar disso. Quanto a surpreender o inimigo em flagrante delito,
se quisermos levar isso a sério e não como uma frase de efeito, um
jornal clandestino não pode, em geral, sequer pensar nisso: isso só é
viável às folhas volantes, porque o prazo máximo para surpreender
assim o inimigo não passa, na maioria dos casos, de um ou dois dias
(considere-se, por exemplo, o caso de uma greve comum e curta, de
um confronto numa fábrica ou de uma manifestação).
“O operário não vive na fábrica, vive também na cidade”
prossegue o nosso autor, passando do particular ao geral com
uma consequência tão rigorosa que honraria o próprio Bóris
Kritchevski­. E aponta os problemas das Dumas urbanas, dos
hospitais urbanos, das escolas urbanas, exigindo que o jornal
operário não silencie em relação aos assuntos da cidade em ge-
ral. A exigência é, em si, magnífica, mas mostra com particular
evidência o caráter abstrato e vazio que, com tanta frequência,
marca o palavreado de jornais locais. Em primeiro lugar, se em
“toda concentração operária algo significativa” fossem publicados
de fato jornais com uma seção municipal tão detalhada como
quer o Svoboda, isso levaria a uma inevitável degeneração – dadas
as nossas condições russas –, a um verdadeiro amesquinhamen-
to, enfraqueceria a consciência da importância de um ímpeto
revolucionário de toda a Rússia contra a autocracia, reforçaria
os germes que persistem vivos – mais ocultos ou reprimidos
do que extirpados – da tendência tornada célebre pela famosa

213
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

frase134 sobre os revolucionários que falam muito do Parlamento


inexistente e pouco das Dumas urbanas existentes. Dissemos
“inevitável”, enfatizando assim que não é isso que o Svoboda­
quer, mas o contrário. Porém, não bastam as boas intenções.
Para que o processo de esclarecimento dos assuntos urbanos seja
encaminhado de acordo com a orientação de todo nosso trabalho,
é preciso, inicialmente, que essa orientação se encontre perfeita-
mente planejada, firmemente definida, não apenas por simples
raciocínios, mas também por inúmeros exemplos, de modo que
adquira a solidez da tradição. Ainda estamos longe disso, e é isso,
portanto, o que se precisa fazer para começar, antes que se possa
pensar em uma extensa imprensa local, ou mesmo dela falar.
Em segundo lugar, para escrever corretamente e de forma
interessante sobre os assuntos da cidade, é preciso conhecê-los
bem, e não apenas através dos livros. Porém, em toda a Rússia,
praticamente não há social-democratas que detenham tal conhe-
cimento. Para escrever num jornal (e não em brochuras populares)
sobre os assuntos da cidade ou do Estado, é necessário que se
disponha de uma documentação atualizada, variada, coletada e
preparada por pessoas capacitadas. Ora, para coletar e preparar
tal documentação não basta a “democracia primitiva” de um
círculo primitivo, onde todos fazem de tudo e se divertem com
referendos. Para isso, é preciso um estado-maior de escritores
especializados, de correspondentes experientes, de um exército
de repórteres social-democratas que estabeleçam relações por
todo lado, que saibam penetrar em todos os “segredos de Esta-
do” (dos quais o funcionário russo tanto se gaba e com tamanha
facilidade os entrega), que percorram todos os “bastidores”, um
exército de homens obrigados “pelas suas funções” à onipresença
e onisciência. Quanto a nós, partido de luta contra toda opressão

[Lenin se refere à polêmica observação presente em R. M. – no artigo “A nossa atuali-


134

dade”, publicado no Suplemento Especial do Rabotchaia Mysl (setembro de 1899).]

214
V. I. Lenin

econômica, política, social, nacional, podemos e devemos en-


contrar, reunir, formar, mobilizar e pôr em marcha esse exército
de homens oniscientes. Porém, isso ainda precisa ser feito! Ora,
em grande parte das localidades nenhum passo foi dado nesse
sentido, e, frequentemente, nem mesmo há a consciência dessa
necessidade. Procurem na nossa imprensa social-democrata arti-
gos vivos e interessantes, notícias que revelem os nossos assuntos
(inclusive os irrelevantes) diplomáticos, militares, eclesiásticos,
municipais, financeiros etc. etc.: encontrarão muito pouco ou
quase nada.135 Por isso, “fico terrivelmente irritado quando alguém
me vem dizer uma série de coisas muito simpáticas e bonitas”
sobre a necessidade de jornais onde houver “uma concentração
algo significativa de operários”, jornais que denunciem as arbi-
trariedades ocorridas nas fábricas, na administração municipal
e no Estado!
A predominância da imprensa local sobre a central ou é uma
expressão de penúria ou então de luxo. De penúria, quando
o movimento ainda não dispõe de forças suficientes para um
trabalho amplo, quando ainda vegeta nos métodos artesanais e
está quase imerso nos “pequenos fatos da vida de fábrica”. De
luxo, quando o movimento já controla por completo a tarefa de
realizar todo tipo de denúncias e de fazer agitação em todos os

Por isso é que o exemplo de excepcionais órgãos locais confirma inteiramente o nosso
135

ponto de vista. Veja-se o Iujni Robotchi, excelente jornal que não pode ser acusado de
instabilidade de princípios. Porém, como sai raramente, torna-se alvo frequente de ações
policiais, não conseguindo dar tudo o que pretende ao movimento local. O que está
na ordem do dia para o Partido – colocar, inicialmente, os problemas fundamentais do
movimento e desenvolver agitações políticas em todos os sentidos – é superior às forças
de um órgão local. E o que de melhor trouxe – como os artigos sobre o Congresso dos
industriais mineiros, sobre o desemprego etc. –, não eram materiais de natureza estrita-
mente local, mas necessários para toda a Rússia, e não só para o Sul. Em toda a imprensa
social-democrata não aparecem artigos como esses. [Iujni Rabotchi (O Operário do
Sul): jornal social-democrata, editado clandestinamente pelo grupo do mesmo nome,
de janeiro de 1900 a abril de 1903; foram publicados 12 números. O Iujni Rabotchi
manifestou-se contra o “economismo” e o terrorismo e defendeu a necessidade do
desenvolvimento do movimento revolucionário de massas.]

215
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

campos, de tal forma que passam a ser necessários, para além do


órgão central, numerosos órgãos locais. Quanto ao significado
da preponderância dos órgãos locais, entre nós, no momento
atual, deixo a cada um a preocupação de decidir. Que cada um
defenda com seus próprios argumentos o que entre nós prova a
predominância atual dos jornais locais. Quanto a mim, para que
não haja qualquer confusão, formularei de forma precisa a minha
conclusão. Até agora, a maioria das nossas organizações locais
pensa quase que exclusivamente nos órgãos locais, voltando-se
ativa e quase que exclusivamente para eles. Isso não é normal. Ao
contrário, é preciso que a maioria das organizações locais pense
principalmente na criação de um órgão para toda a Rússia, tra-
balhando prioritariamente por ele. Enquanto não for assim, não
poderemos publicar nem um único jornal que seja, pelo menos,
capaz de oferecer ao movimento um efetivo trabalho de agitação
em todos os sentidos por meio da imprensa. E quando isso ocorrer,
ficarão estabelecidas por si próprias as relações normais entre o
órgão central indispensável e os indispensáveis órgãos locais.

***

À primeira vista pode parecer que a clareza acerca da necessidade


de deslocar o centro de gravidade, do trabalho local para o trabalho
em escala nacional, não é indicada no terreno da luta econômica
pura. Aqui, o inimigo direto dos operários é representado pelos
patrões isolados ou grupos de patrões não ligados entre si por uma
organização que se pareça, mesmo que de longe, com uma organi-
zação puramente militar, rigorosamente centralizada, dirigida nos
menores detalhes por uma vontade única, como é a organização
do governo russo, nosso inimigo direto na luta política.
Mas não é assim. A luta econômica – já o dissemos numerosas
vezes – é uma luta sindical, e por isso exige o agrupamento dos
operários por profissões, e não unicamente por local de trabalho. E

216
V. I. Lenin

essa organização sindical por profissões é tanto mais urgente quanto


maior for a rapidez com que avança a organização dos empregadores
em todo tipo de associações e sindicatos patronais. A nossa frag-
mentação e o nosso trabalho artesanal obstaculizam diretamente
aquele agrupamento, que necessita de uma única organização de
revolucionários capaz de assumir a direção dos sindicatos operários
extensivos a toda a Rússia. Já expusemos anteriormente o tipo de
organização necessária, e acrescentaremos a seguir algumas pala-
vras apenas em relação à questão da nossa imprensa.
Não imagino que alguém duvide de que todo jornal social-
-democrata deva ter uma seção dedicada à luta sindical (econô-
mica). Mas o crescimento do movimento sindical obriga-nos a
pensar também numa imprensa sindical. No entanto, parece-nos
que na Rússia, salvo raras exceções, ainda não seja possível falar
de jornais sindicais; seria um luxo para nós que, frequentemente,
sentimos a falta do pão de cada dia. Entre nós, em matéria de
imprensa sindical, desde já imprescindíveis, as brochuras sindicais
deveriam ser a forma mais adequada às condições do trabalho
clandestino. Nelas deveriam ser recolhidos e agrupados siste-
maticamente os materiais legais136 e ilegais sobre a questão das

Os materiais legais têm, nesse sentido, destacada importância, e estamos especialmente


136

atrasados no que se refere ao seu recolhimento e à sua utilização sistemática. Pode-se


dizer, sem exageros, que é relativamente possível fazer-se um jornal sindical apenas se
valendo de materiais legais, enquanto é impossível fazê-lo só com materiais ilegais.
Recolhendo entre os operários materiais ilegais sobre problemas como os que têm sido
tratados por Rab. Myls, desperdiçamos inutilmente uma quantidade enorme de forças
de um revolucionário (que nesse trabalho poderia ser facilmente substituído por um
militante legal) e, ainda assim, nunca se conseguem bons materiais porque os operários
– que, em geral, conhecem apenas um setor da grande fábrica e na maior parte dos casos
sabem apenas dos resultados econômicos e desconhecem as condições e as regras gerais
de seu trabalho – não podem adquirir os conhecimentos que normalmente possuem
os empregados da fábrica (inspetores, médicos etc.) e que em enorme quantidade se
encontram dispersos em artigos de jornais e publicações especiais de natureza industrial,
sanitária, dos zemstvos etc.
Recordo-me, como se fosse hoje, da minha “primeira experiência”, que não me traz
nenhuma vontade de repeti-la. Ao longo de muitas semanas, dediquei-me com paixão
a fazer perguntas a um operário que vinha à minha casa acerca de detalhes da vida na

217
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

condições de trabalho em cada profissão, sobre como elas se dão


nas diferentes regiões da Rússia, sobre as principais reivindicações
dos operários de uma dada categoria, as limitações da legislação a
que ela se refere; sobre os casos mais relevantes da luta econômica
dos operários dessa categoria, sobre o início, a situação atual e as
necessidades da sua organização sindical etc. Em primeiro lugar,
essas brochuras tornariam dispensáveis à nossa imprensa social-
-democrata os detalhes sindicais que só interessam aos operários
de uma determinada profissão; em segundo lugar, demarcariam
os resultados da nossa experiência na luta sindical, conservariam
os materiais coletados que hoje se perdem literalmente no imenso
volume de folhas e crônicas desarticuladas, sistematizando-os.
Em terceiro lugar, poderiam servir, de alguma forma, como
guia para os agitadores, uma vez que as condições de trabalho
variam com relativa lentidão e as reivindicações fundamentais
dos operários de uma determinada profissão são bastante estáveis
(comparem as reivindicações dos tecelões da região de Moscou,
em 1885137, e as da região de Petersburgo, em 1896). O resumo

grande fábrica em que trabalhava. O fato é que, com grande dificuldade, consegui mais
ou menos compor a descrição (de apenas uma fábrica!). Mas ocorria que, por vezes, o
operário, limpando o suor, sorria e dizia ao fim: “É-me mais fácil trabalhar por longas
jornadas do que responder às suas perguntas!”.
Quanto maior for a vitalidade do desenvolvimento da nossa luta revolucionária, mais o
governo será obrigado a legalizar parte do trabalho “sindical”, reduzindo assim o peso
que recai sobre nós.
[Nesta nota, Lenin se refere ao documento “Questionário sobre a situação da classe
operária na Rússia” (1898) e à brochura “Questionário para reunir dados sobre a situa­
ção da classe operária na Rússia” (1899), publicados por Rabotchaia Mysl. O primeiro
continha 17 perguntas e o segundo 158 sobre as condições de trabalho e de vida dos
operários.]
137
[O movimento grevista de 1885 atingiu muitas empresas da indústria têxtil das provín-
cias de Vladimir, Moscou, Tver e outras do centro industrial da Rússia. A mais famosa
foi a greve dos operários da Nikolskaia Manufatura, de Savva Morozov, realizada em
Orekhovo-Zuieco, em janeiro de 1885. As reivindicações principais incidiam sobre
redução das multas, regulamentação das condições de contratação do trabalho assala-
riado etc. Dirigiram a greve os operários avançados P. A. Moisseienko, L. Ivanov e V. S.
Volkov. A greve na fábrica de Morozov, em que participaram cerca de 8 mil operários,
foi reprimida pela tropa. Trinta e três grevistas foram entregues aos tribunais e mais

218
V. I. Lenin

dessas reivindicações e necessidades poderia funcionar, durante


anos inteiros, como um excelente manual para a agitação econô-
mica nas localidades atrasadas ou entre os segmentos atrasados
dos operários; exemplos de greves vitoriosas de uma dada região,
dados que ilustram um nível de vida mais elevado, as melhores
condições de trabalho numa determinada localidade, estimula-
riam os operários de outras regiões a novas e novas lutas. Enfim,
tomando a iniciativa de sistematizar a luta sindical e reforçando,
assim, os vínculos do movimento sindical russo com o socialis-
mo, a social-democracia atuaria simultaneamente no sentido de
fazer com que o nosso trade-unionismo ocupasse um lugar nem
muito grande nem muito reduzido no conjunto do nosso trabalho
social-democrata. É muito difícil, por vezes até quase impossível,
para uma organização local, isolada das organizações de outras
cidades, conseguir manter uma adequada proporção nesse aspecto
(e o exemplo de Rabotchaia Mysl demonstra o caráter terrivel-
mente exagerado de trade-unionismo a que se pode chegar). Mas
uma organização de revolucionários para toda a Rússia, que se
mantenha com firmeza na ótica do marxismo, que dirija toda a
luta na ótica do marxismo, que dirija toda a luta política e que
disponha de um estado-maior de agitadores profissionais, jamais
terá dificuldades para determinar adequadamente essa proporção.

de 600 operários foram desterrados. Sob a influência do movimento grevista de 1885-


1886, o governo tsarista viu-se obrigado a promulgar a lei de 3 (15) de junho de 1886
(a chamada “lei das multas”).].

219
V

“PLANO” DE UM JORNAL POLÍTICO


PARA TODA A RÚSSIA

“O maior erro do Iskra nesse aspecto” – escreve B. Kritchevski


(Rab. Dielo nº 10, p. 30), imputando-nos a tendência de “isolar a
teoria da prática, transformando-a numa doutrina morta” –, “é o
seu ‘plano’ de uma organização de todo o partido” (isto é, o artigo
“Por onde começar?”).138 E Martinov faz coro e declara que “a ten-
dência do Iskra em diminuir a importância da marcha progressiva
da cinzenta luta cotidiana em comparação à propaganda de ideias
brilhantes e acabadas (...) foi coroada pelo plano de organização do
partido, proposto no artigo ‘Por onde começar?’, publicado no nº
4 desse jornal” (Ibid., p. 61). Finalmente, há pouco, L. Nadejdine
juntou-se àqueles que se indignaram contra esse “plano” (as aspas
exprimem a ironia quanto a isso) e, num folheto que acabamos
de receber – “Às vésperas da revolução” (editado pelo “grupo re-
volucionário socialista” Svoboda, que já conhecemos) –, declara
que “falar nesse momento de uma organização cujos fios nasçam
de um jornal para toda a Rússia é produzir ideias e trabalho de
gabinete” (p. 126), é dar provas de “literatice” etc.
Não nos pode surpreender a convergência do nosso terrorista
com os defensores da “marcha progressiva da cinzenta luta cotidia-
na”; já vimos as raízes dessa afinidade nos capítulos sobre a política
e a organização. Mas, desde já, devemos observar que L. Nadejdine,

[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4a ed. em russo, t. 5, p. 1-13.]


138

221
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

e somente ele, tentou honradamente penetrar na linha do artigo


que lhe desagradou; buscou responder em profundidade, enquanto
o Rab. Dielo nada disse de essencial e apenas procurou confundir
a questão através de um monte de indignas saídas demagógicas. E,
por mais desagradável que seja, é preciso perder tempo limpando
previamente os estábulos de Augias.

Quem se ofendeu com o artigo “Por onde começar”?139


Pode-se confeccionar um rosário com as expressões e as excla-
mações que Rabotcheie Dielo lançou contra nós. “Não é um jornal
que pode criar a organização do partido, mas justamente o contrá-
rio”... “Um jornal colocado acima do partido, fora do seu controle e
independente dele graças à sua própria rede de agentes”... “Por obra
de que milagre o Iskra esqueceu as organizações social-democratas
já existentes de fato no Partido ao qual ele próprio pertence?”... “Os
que possuem firmes princípios e um plano adequado são também
os supremos reguladores da luta real do partido, ao qual ditam a
execução do seu plano”... “O plano relega as nossas organizações,
reais e fundamentais, ao reino das trevas, e quer animar uma rede
fantástica de agentes”... “Se o plano do Iskra fosse posto em prática,
terminaria apagando por completo os traços do Partido Operário
Social-Democrata da Rússia que vem se formando no nosso país”...
“O órgão de propaganda torna-se arbitrário, funcionando como
um legislador supremo de toda a luta revolucionária prática”... “O
que deve fazer o nosso partido ante a submissão absoluta a uma
redação autônoma” etc. etc.
Como o leitor pode ver, a partir do conteúdo e do tom dessas
citações, o Rabotcheie Dielo se ofendeu. Entretanto, ofendeu-se não
[Na compilação “Em doze anos”, Lenin suprimiu o item“a” do Capítulo V, inserindo a
139

seguinte nota: “Na presente edição suprime-se o item ‘a’ Quem se ofendeu com o artigo ‘Por
onde começar?’, uma vez que contém unicamente uma polêmica com Rab. Dielo e o Bund
sobre das tentativas do Iskra para ‘mandar’ etc. Nesse item, entre outras coisas, afirmava-
-se que o próprio Bund havia convidado (em 1898-1899) os membros do Iskra a retomar
a publicação do Órgão Central do partido e organizar um ‘laboratório de literatura’.”]

222
V. I. Lenin

por si próprio, mas pelas organizações e comitês do nosso partido


que o Iskra presunçosamente relega ao reino das trevas, até que se
apaguem suas marcas. Que horror, imaginem vocês! No entanto,
há uma coisa estranha. O artigo “Por onde começar?” apareceu
em maio de 1901; os artigos do Rabotcheie Dielo, em setembro de
1901; agora estamos já em meados de janeiro de 1902. Durante esse
período de cinco meses (tanto antes quanto depois de setembro)
nem um só comitê, nem uma só organização foi capaz de protestar
formalmente contra essa coisa monstruosa que relega os comitês
e organizações ao reino das trevas! E deve-se ter em conta que,
durante esse tempo, o Iskra e numerosas outras outras publicações,
locais e não locais, publicaram dezenas e centenas de comunicações
oriundas de todos os cantos da Rússia. Como pôde acontecer que
as organizações que se quer relegar para o reino das trevas não se
tenham apercebido disso e nem se ofendido, mas que, por outro
lado, tenha sido uma terceira pessoa a se ofender?
Isso ocorreu porque os comitês e as outras organizações, ocupa-
das que estão com o trabalho efetivo, não brincam de “democracia”.
Os comitês leram o artigo “Por onde começar?” e perceberam que
configurava uma tentativa de “poder iniciar em todos os lados o plano
da organização” e, como sabiam e compreendiam perfeitamente
que nenhum “desses lados” pensava em “empreender a construção”
antes de se convencer da sua necessidade e da justeza do plano
arquitetônico, naturalmente nem mesmo pensaram em “ofender-
-se” com a terrível audácia dos homens que declararam no Iskra
o seguinte: “Dada a urgência e a importância dessa questão, deci-
dimos, da nossa parte, submeter à consideração dos camaradas o
esboço de um plano que desenvolveremos de forma mais detalhada
numa brochura já em preparação”. Seria plausível, se se considera
tal questão com honestidade, que não se compreenda que, se os
camaradas aceitassem o plano que lhes era oferecido, iriam pô-lo em
prática não por “subordinação”, mas porque estavam convencidos
da sua necessidade para o nosso trabalho comum, e que, se não o

223
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

aceitassem, o “esboço” (que palavra pretensiosa, não é?) não passaria


de um simples esboço? Não seria demagogia o fato de se opor a
um esboço de plano, não apenas “demolindo-o” e aconselhando os
camaradas a rejeitá-lo, mas também provocando os homens menos
experimentados no trabalho revolucionário contra os autores do
esboço, pelo simples fato de estes ousarem “legislar”, agindo como
“reguladores supremos”, isto é, por se atreverem a esboçar um plano?
Será que o nosso partido pode desenvolver-se e avançar quando
uma tentativa de elevar os militantes locais para para que apreen-
dam concepções, tarefas, planos etc., esbarra não só nas objeções
de que essas concepções são equivocadas, mas também porque se
fica “ofendido” pela fato de “querer” “elevar” esses militantes locais?
L. Nadejdine, por exemplo, também “demoliu” o nosso plano,
mas não se rebaixou a semelhante demagogia, que não poderia ser
explicada a não ser pela ingenuidade ou pelo caráter primitivo das
concepções políticas; desde o início repudiou deliberadamente a
acusação de “fiscalizar o partido” para esse fim. Por isso, podemos
e devemos responder em profundidade à crítica do plano feita por
Nadejdine, e responder ao Rabotcheie Dielo apenas com desprezo.
Mas o desprezo pelo escritor que se rebaixa ao ponto de bradar
contra a “autocracia” e a “subordinação” não nos dispensa da obri-
gação de desfazer a confusão que essas pessoas criam no leitor. Aqui
podemos demonstrar claramente a todos qual o valor das frases
correntes sobre a “ampla democracia”. Acusam-nos de esquecer
os comitês, de querer ou tentar relegá-los ao reino das trevas etc.
Como responder a essas acusações quando, por fatores ligados à
clandestinidade, não podemos relatar ao leitor praticamente nada
de concreto acerca das nossas relações efetivas com os comitês? As
pessoas que lançam ousadas acusações, que provocam a multidão,
levam vantagem com a sua encenação e pela irresponsabilidade que
demonstram pelos deveres do revolucionário, que ocultam cuida-
dosamente dos olhares de todos as relações e vínculos que mantêm,
estabelecem ou procuram estabelecer. Eis por que abdicamos de

224
V. I. Lenin

uma vez por todas a competir com gente desse naipe no campo da
“democracia”. Quanto ao leitor não iniciado em todos os assuntos
do partido, o único meio de cumprir o nosso dever é contar não
o que existe ou o que se encontra im Werden [em processo de for-
mação, de surgimento – alemão], mas uma pequena parte do que
se passou, sobre a qual já se pode falar porque é passado.
O Bund alude à nossa “impostura”140; a “União” no exterior
acusa-nos de querer apagar as marcas do Partido. Calma, senhores!
Terão plena satisfação quando expusermos ao público quatro fatos
extraídos do passado.
Primeiro fato141. Os integrantes de uma das “Uniões de luta”, que
tiveram participação direta na formação do nosso Partido e no envio
de um delegado ao congresso que fundou o Partido, entenderam-se
com um dos integrantes do grupo Iskra para criar uma biblioteca
operária especial, com o objetivo de atender às necessidades de todo
o movimento. Não se consegue criar uma biblioteca operária e as
brochuras escritas para ela, “As Tarefas dos Social-democratas Rus-
sos” e “A Nova Lei das Fábricas”,142 vão parar no exterior por meios
indiretos e através de terceiros, onde foram publicadas.
Segundo fato. Os integrantes do Comitê Central do Bund
propõem a um dos integrantes do grupo Iskra a montagem do que
o Bund denominou “laboratório de literatura”, sinalizando que se
o projeto não fosse executado o nosso movimento poderia sofrer
um recuo considerável. A brochura intitulada “A causa operária
na Rússia”143 foi o resultado dessas negociações.

140
Iskra nº 8, resposta do Comitê Central da União Geral dos Operários Judaicos da Rússia
e da Polônia ao nosso artigo sobre a questão nacional.
141
Deliberadamente, os fatos não serão aqui apresentados pela ordem cronológica de seus
acontecimentos. [Lenin faz esta nota com a finalidade de confundir a repressão. Os fatos
mencionados seguem precisamente a mesma ordem em que tiveram lugar na realidade.]
142
[Ver Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 2, p. 299-326.]
143
O autor dessa brochura, diga-se de passagem, pediu-me tornar público que, tal como se
deu com suas brochuras anteriores, esta também foi enviada para a “União”, supondo
que o grupo “Emancipação do Trabalho” faria as suas publicações (circunstâncias

225
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Terceiro fato. O Comitê Central do Bund, por intermédio de


uma pequena cidade de província, volta-se a um dos integrantes
do Iskra e propõe que assuma a direção de Rabotchaia Gazeta que
deveria ser reativado, o que for aceito de imediato. Mais tarde,
modifica-se a proposta: trata-se apenas de colaboração, numa nova
combinação na redação. De novo, a proposta foi aceita. Enviam-se
artigos (que se conseguiu conservar): “O nosso programa” – com
um protesto direto contra a “bernsteiniada” e contra a mudança
que se deu na literatura legal e no Rabotchaia Mysl; “A nossa tarefa
imediata” (“a organização de um órgão do partido que apareça
regularmente e esteja estreitamente ligado a todos os grupos lo-
cais”, os problemas do “trabalho artesanal” predominante); “Uma
questão vital” (análise da objeção segundo a qual se deveria, em
primeiro lugar, desenvolver a atividade dos grupos locais antes de se
dar início à atividade de um órgão comum; insiste na importância
primordial da “organização revolucionária”, sobre a necessidade
de “qualificar a organização, a disciplina e a técnica do trabalho
clandestino à mais elevada perfeição”)144. A proposta de reativar o
Rabotchaia Gazeta não se realizou e os artigos ficaram por publicar.
Quarto fato. Um integrante do comitê que organizou o II Con-
gresso ordinário do nosso partido comunicou a um dos integrantes

especiais não lhe permitiram conhecer, a essa época, ou seja, em fevereiro de 1899,
a mudança da redação). A brochura será reeditada em breve pela Liga. [Trata-se da
“Liga da Social-Democracia Revolucionária Russa no Exterior”, fundada por V. I.
Lenin em outubro de 1901. A Liga era formada pela seção estrangeira da organização
do Iskra, e pela organização revolucionária Sotsial-Demokrat, da qual fazia parte o
grupo “Emancipação do Trabalho”. A tarefa da Liga consistia em difundir as ideias
da social-democracia revolucionária e contribuir para a fundação de uma organização
social-democrata de combate. A Liga (de acordo com os seus Estatutos) representava
a seção da organização do Iskra no estrangeiro. A partir do II Congresso do POSDR,
os mencheviques passaram a disputar espaços na Liga e empreenderam a luta contra
Lenin e contra o bolchevismo. No II Congresso da Liga, em outubro de 1903, apro-
varam os seus novos estatutos dirigidos contra os estatutos do Partido adotados pelo
II Congresso do POSDR. A partir daquela data, a Liga passou a ser o baluarte do
menchevismo. Existiu até 1905.]
144
[Ver Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 4, p. 190-194, 195-200 e 201-206.]

226
V. I. Lenin

do grupo Iskra o programa do congresso e propôs a candidatura


desse grupo para a redação de Rabotchaia Gazeta a ser reativado.
Tal encaminhamento, por assim dizer preliminar, foi em seguida
sancionado tanto pelo comitê ao qual pertencia quanto pelo Co-
mitê Central do Bund; o grupo Iskra foi informado do lugar e da
data do congresso (mas não assegurou, por razões específicas, o
envio de um delegado) e, também, redigiu um relatório voltado
especialmente para o congresso. O relatório sustenta que a eleição
do Comitê Central, em si, não resolveria o problema da unidade
naquele período de fragmentação, mas que a grande tese de se
fundar um partido é que corria riscos no caso de ocorrerem novas
ondas de prisões, o que é mais do que provável que aconteça, uma
vez que reina a falta de secretismo; sustenta também que, por isso,
era preciso começar a convidar todos os comitês e todas as outras
organizações para apoiar o órgão comum quando se retomassem
as publicações, órgão que, por sua vez, vincularia de fato todos os
comitês através de uma ligação efetiva e prepararia realmente um
grupo de dirigentes de todo o movimento; os comitês e o partido
poderiam, então, transformar facilmente esse grupo criado pelos
comitês num Comitê Central a partir do momento em que ele ti-
vesse se fortalecido e se desenvolvido. O congresso, entretanto, não
pôde se realizar por causa de uma série de detenções, e o relatório
foi destruído por questões de secretismo, após ter sido lido apenas
por alguns camaradas, entre eles os delegados de um comitê.
O próprio leitor deve fazer o seu juízo acerca dos métodos
usados nas acusações, como no caso da alusão à impostura, por
parte do Bund, ou no caso do argumento do Rabotcheie Dielo, que
sustenta termos sido nós a propor relegar os comitês ao reino das
trevas e “substituir” a organização do partido pela organização da
difusão das ideias através de um único jornal. Sim, foi precisamente
diante desses comitês, após inúmeros convites que eles fizeram, que
apresentamos relatórios sobre a necessidade de se instituir um deter-
minado plano de trabalho comum. E elaboramos, justamente para

227
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

a organização do partido, esse plano nos nossos artigos destinados


ao Rabotchaia Gazeta e num relatório para o congresso do parti-
do, e isso após o convite feito por aqueles que ocupavam posição
tão influente no partido, tanto que assumiam a iniciativa da sua
reconstituição (prática). E foi após o fracasso definitivo de duas
tentativas de retomar oficialmente a publicação do órgão central
do partido – tentativas realizadas conosco – que julgamos ser nosso
primeiro dever lançar um órgão não oficial a fim de que, na terceira
tentativa, os nossos camaradas pudessem ter diante deles certos
resultados advindos da experiência, e não apenas de conjecturas.
Agora todos já podem conhecer certos resultados dessa experiência
que se encontram diante dos nossos olhos, e todos os camaradas
podem julgar se compreendemos com justeza o nosso dever, como
também a opinião daqueles que buscam induzir ao erro as pessoas
que ignoram o passado recente, a despeito de termos mostrado a
uns a sua inconsequência em relação à questão “nacional” e, a ou-
tros, a inadmissibilidade das vacilações desprovidas de princípios.

Um jornal pode ser um organizador coletivo?


O aspecto central do artigo “Por onde começar?” reside na
colocação precisa dessa questão e na sua resolução pela resposta
afirmativa. A única pessoa, pelo que sabemos, que tentou analisar
a questão a fundo e buscou provar a necessidade de resolvê-la de
modo negativo foi L. Nadejdine, cujos argumentos reproduzimos
na íntegra:
[...] Tivemos grande satisfação ao ver o Iskra colocar a questão da necessidade
de um jornal para toda a Rússia, mas não podemos de forma alguma concordar
que essa maneira de pôr o problema corresponda ao título do artigo, “Por onde
começar?”. Trata-se, indubitavelmente, de uma das questões mais relevantes,
mas não é com isso, nem com toda uma série de panfletos populares, nem
com uma montanha de proclamações que se podem criar os fundamentos de
uma organização de combate para um momento revolucionário. É indispen-
sável iniciar a criação de fortes organizações políticas locais. Não as temos:

228
V. I. Lenin

nosso trabalho deu-se, sobretudo, entre os operários instruídos, uma vez que
as massas se empenharam quase que exclusivamente na luta econômica. Se
as fortes organizações políticas locais não forem bem educadas, que valor teria
um jornal para toda a Rússia, mesmo que fosse perfeitamente organizado? Um
arbusto em chamas que arde sem se consumir, mas que não transmite seu
fogo a ninguém! Crê o Iskra que ao redor desse jornal e na dedicação a ele
o povo se concentrará e se organizará. No entanto, é muito mais fácil que a
concentração e a organização se dê em torno de um trabalho mais concreto!
Tal trabalho pode e deve se constituir na criação de jornais locais em grande
escala, na preparação imediata das forças operárias para manifestações; as
organizações locais devem efetuar uma ação constante entre desempregados
(difundir incessantemente entre eles folhas volantes e panfletos, convocando-
-os para reuniões, exortando-os à resistência ao governo etc.) É preciso iniciar
localmente um trabalho político vivo e, quando surgir a necessidade da união
nessa base real, a união não será artificial e não ficará no papel. Não será com
jornais que se conseguirá essa unificação do trabalho local em um trabalho
comum para toda a Rússia! (“Às vésperas da revolução”, p. 54).
Destacamos nessa passagem eloquente os trechos que permitem
melhor apreciar tanto a opinião equivocada que o autor tem do
nosso plano quanto, em geral, o falso ponto de vista que ele opõe
ao Iskra. Se não se educam as fortes organizações políticas locais, de
nada serviria à Rússia o melhor jornal que pudesse ser feito. Isso é
inteiramente correto. De fato, não há outro meio para educar pessoas
para formar organizações políticas fortes senão um jornal para toda
a Rússia. O autor não notou a declaração mais relevante do Iskra,
feita antes de passar à exposição do seu “plano”, de que seria necessário
[...] apelar à construção de uma organização revolucionária capaz de reu-
nir todas as forças e de dirigir o movimento, não apenas de uma maneira
nominal, capaz também de ser uma organização sempre disposta a apoiar
cada protesto e cada explosão, aproveitando-os para aumentar e fortalecer
as forças de combate prontas para a batalha decisiva.
Após os acontecimentos de fevereiro e de março, continua o Iskra,
todos, em princípio, estarão de acordo com isso; o que necessitamos

229
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

não é resolver o problema em princípios, mas sim na prática. É preciso


formular imediatamente um plano adequado de construção para que
todos possam, de imediato e por todos os lados, iniciá-la. E eis que,
da solução prática do problema, querem arrastar-nos novamente
para trás, no sentido de verdades, em princípio justas, grandiosas,
incontestáveis, mas absolutamente insuficientes e incompreensíveis
para as grandes massas trabalhadoras: “para a educação de fortes
organizações políticas”! Mas não é disso que se trata, respeitável
autor, mas de como, efetivamente, pode-se educar, e com êxito!
Não é verdade, como escreveu Nadejdine, que “nosso trabalho
deu-se, sobretudo, entre os operários instruídos, uma vez que as
massas se empenharam quase que exclusivamente na luta econô-
mica”. Sob essa forma, a tese desvia-se para a tendência, comum no
Svoboda, de opor os operários instruídos à “massa”. Durante esses
últimos anos, entre nós, os próprios operários instruídos também
se empenharam “quase que exclusivamente na luta econômica”.
Isso, por um lado. Por outro, as massas nunca aprenderão a travar
a luta política se não ajudarmos na formação de dirigentes para
essa luta, oriundos tanto dos operários instruídos quanto dos
intelectuais; tais dirigentes podem ser formados, exclusivamente,
quando iniciados na apreciação sistemática e cotidiana de todos os
aspectos da nossa vida política, de todas as tentativas de protesto
e de luta das diferentes classes e por diferentes motivos. Por isso,
falar de “educação de organizações políticas” e, ao mesmo tempo,
opor “o trabalho no papel” de um jornal político ao “trabalho
político vivo na base” é simplesmente ridículo! Mas, no entanto,
o Iskra procura ajustar o “plano” do seu jornal ao “plano” de criar
uma “preparação combativa” que permita apoiar ao mesmo tempo
o movimento dos desempregados, um levante de camponeses, o
descontentamento dos zemstvos, “a revolta da população contra
os arrogantes bachibuzuks145 tsaristas” etc. Além disso, qualquer

145
[Tropas irregulares turcas conhecidas especialmente pela sua brutalidade.]

230
V. I. Lenin

pessoa familiarizada com o movimento sabe muito bem que a


grande maioria das organizações locais nem sequer pensa nisso;
que muitas das perspectivas aqui traçadas de “um trabalho político
vivo” não foram postas em prática nem uma só vez, por nenhuma
organização; que, por exemplo, a tentativa de chamar a atenção para
o recrudescimento do descontentamento e dos protestos entre os
intelectuais dos zemstvos, confunde e causa perplexidade tanto em
Nadejdine (“Meu Deus! Esse órgão não está voltado para os mem-
bros dos zemstvos?”, em “Às vésperas da revolução”, p. 129) quanto
nos “economistas” (carta no nº 12 do Iskra), como também em
muitos militantes práticos. Nessas condições, pode-se unicamente
“começar” por incitar as pessoas a pensar em tudo isso, a resumir
e sintetizar todos os indícios de efervescência e de luta ativa. Num
momento em que a importância das tarefas da social-democracia é
rebaixada, o “trabalho político vivo” só pode começar exclusivamente
através de uma agitação política viva, impossível de se realizar sem
um jornal para toda a Rússia, que apareça frequentemente e se
difunda de forma regular.
Aqueles que veem no “plano” do Iskra apenas uma expressão
de “literatice” não o compreenderam na sua essência; tomaram
como fim o que se propõe como o meio mais adequado para o
momento. Essa gente não se deu ao trabalho de refletir sobre as
duas comparações que ilustram claramente o plano. A elaboração
de um jornal político para toda a Rússia – escrevia-se no Iskra
– deve ser o fio fundamental; seguindo-o, poderemos permanen-
temente desenvolver, aprofundar e alargar a organização (isto
é, a organização revolucionária sempre disposta a apoiar todo
protesto e toda explosão). Façam o favor de nos dizer: será um
trabalho “no papel” quando os pedreiros colocam em diferentes
pontos as pedras de um enorme e incomparável edifício, quando
esticam um fio de prumo que os ajuda a encontrar o lugar justo
para as pedras, que lhes indica a finalidade de toda a obra, que
lhes permite colocar não apenas cada pedra, mas até mesmo cada

231
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

bloco de pedras que, somados aos precedentes e aos subsequentes,


formará a obra acabada e total? E hoje não atravessamos no nosso
partido um período típico dessa situação, quando, possuindo as
pedras e os pedreiros, nos falta exatamente o fio de prumo, visível
a todos e com o qual cada um possa se orientar? Não devemos
nos importar com aqueles que bradam que, quando esticamos
o fio de prumo, queremos é mandar: se assim fosse, senhores,
colocaríamos Rabotchaia Gazeta nº 3 em vez de Iskra nº 1, como
nos foi proposto por alguns camaradas e como teríamos pleno
direito de fazer após os acontecimentos relatados anteriormente.
Mas não o fizemos. Queríamos ter as mãos livres para combater
intransigentemente todos os pseudossocial-democratas; quería­
mos que o nosso fio, se estivesse esticado com justeza, fosse
respeitado pela sua própria correção, e não por ter sido esticado
por um órgão oficial.
A questão da unificação da atividade local nos órgãos centrais se move
num círculo vicioso [diz sentenciosamente L. Nadejdine]. A unificação
exige homogeneidade de elementos; tal homogeneidade apenas se realiza
por meio de um fator aglutinador que, por sua vez, só pode surgir como
produto de organizações locais fortes que, no momento presente, não se
distinguem exatamente pelo caráter homogêneo.
Verdade tão respeitável e tão incontestável como a que susten-
ta a necessidade da educação de organizações políticas fortes. E
não menos estéril. Toda a questão “se move num círculo vicioso”,
pois toda a vida política é uma cadeia sem fim, composta de uma
sequência infinita de elos. A arte de um político consiste preci-
samente em encontrar e agarrar-se com forças ao elozinho que
menos possa escapar das suas mãos, o mais importante naquele
momento, e que mais lhe garanta o controle de toda a cadeia146. Se

146
Camarada Kritchevski e camarada Martinov! Chamo a vossa atenção para esta escanda-
losa manifestação de “absolutismo”, de “autoridade sem controle”, de “regulamentação
suprema” etc. Olhai: quer se apropriar de toda a cadeia! Apressai-vos a apresentar a
queixa. Já tendes um tema para dois artigos de fundo no nº 12 de Rabotcheie Dielo.

232
V. I. Lenin

tivéssemos uma equipe de pedreiros experientes, que trabalhasse


de modo tão harmonioso que, mesmo sem o fio de prumo, fosse
capaz de colocar as pedras onde é necessário (falando de forma
abstrata, isto não é totalmente impossível), poderíamos talvez
agarrar-nos também a um outro elo. Mas a infelicidade consiste
precisamente em dependermos ainda da existência desses pedreiros
experientes e que trabalham harmoniosamente, ou no fato de as
pedras serem colocadas frequentemente ao acaso, sem qualquer
alinhamento por um fio comum, a tal ponto desordenadas que
basta ao inimigo um sopro para dispersá-las, como se fossem grãos
de areia e não pedras.
Outra comparação:
O jornal não é apenas um propagandista e um agitador coletivo; é também
um organizador coletivo. Como tal, pode ser comparado aos andaimes que,
erguidos em torno de um edifício em construção, demarcam seus contornos
e facilitam as relações entre os diferentes construtores, auxiliando-os na
distribuição do trabalho e no acompanhamento dos resultados obtidos
pelo trabalho organizado147.
Isso pode sugerir – não é verdade? – que se trata de um literato,
de um homem de gabinete, superdimensionando a importância do
seu papel? Os andaimes não são imprescindíveis à própria casa; são
feitos com material de qualidade inferior; são utilizados durante um
curto período de tempo e atirados ao fogo quando se concluem as
estruturas principais da obra. No que diz respeito à construção de
organizações revolucionárias, a experiência confirma que, por vezes,
é possível construí-las sem andaimes (recorde-se a década de 1870).
Mas, neste momento, não podemos sequer imaginar a possibilidade
de construir sem andaimes o edifício que nos é necessário.
Nadejdine não está de acordo com isso e diz:

147
Martinov, ao inserir em Rab. Dielo a primeira frase desta citação (nº 10, p. 62), omite
justamente a segunda, evidenciando assim que não queria abordar a essência da questão
ou que era incapaz de compreendê-la.

233
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Para o Iskra, o povo se concentrará e se organizará para a ação em torno


desse jornal, em sua realização. Mas, para o povo, é muito mais fácil se
organizar e se concentrar em torno de um trabalho mais concreto!
Claro, claro: “mais fácil se organizar e se concentrar em torno
de um trabalho mais concreto”... O provérbio russo diz: “Não
cuspa no poço, pois da sua água terás de beber”. Mas há quem
não se importe de beber a água de um poço em que já se cuspiu.
Em nome desse “mais concreto”, quantas infâmias não disseram
e escreveram os nossos notáveis “críticos” legais “do marxismo”
e os admiradores ilegais de Rabotchaia Mysl! Eis até que ponto
está o nosso movimento sufocado pela nossa visão estreita, falta
de iniciativa e timidez, justificadas por argumentos tradicionais:
“Muito mais fácil (...) em torno de um trabalho mais concreto!”
E Nadejdine, que pensa ser dotado de um especial “senso de
realidade”, que condena com singular severidade os homens “de
gabinete”, que debita ao Iskra (com pretensões de sagacidade) a
fraqueza de ver por toda a parte o “economismo”, que imagina
estar muito acima dessa divisão entre ortodoxos e críticos, não
percebe que, com os seus argumentos, reforça a visão estreita que
o indigna e bebe nos poços onde mais se cuspiu! Sim, não basta a
indignação mais sincera contra a estreiteza, o desejo mais ardente
de elevar aqueles que a ela se curvam, se as pessoas que se indignam
andam à deriva, sem velas e sem leme, e se, tão “espontaneamente”,
continuam a se agarrar instintivamente, tal como os revolucioná-
rios da década de 1870, ao “terrorismo excitante”, ao “terrorismo
agrário”, ao “toque dos sinos” etc. Vejamos, agora, em que consiste
esse algo “mais concreto” em torno do qual, pensa o autor, “será
muito mais fácil” organizar-se e concentrar-se: 1º) jornais locais;
2º) preparação de manifestações; 3º) trabalho entre os desempre-
gados. À primeira vista, vê-se que todas essas coisas são tomadas
completamente ao acaso, unicamente para se dizer alguma coisa,
pois, qualquer que seja a forma com que sejam consideradas, seria
uma total incoerência encontrar nelas algo especialmente capaz

234
V. I. Lenin

de se chegar à “organização e concentração”. O próprio Nadejdine


diz, páginas à frente:
Já é hora de deixar claro um fato: na base o trabalho é mísero, os comitês
não fazem um décimo do que poderiam (...) os centros de unificação que
possuímos atualmente são uma ficção, burocracia revolucionária, promo-
ção recíproca a general, e assim será enquanto não se desenvolverem fortes
organizações locais.
Essas palavras, ainda que exageradas, encerram muitas e
amargas verdades; será que Nadejdine não vê relação entre o mí-
sero trabalho na base e a estreiteza de horizontes dos militantes,
o reduzido alcance de suas atividades, coisas inevitáveis diante
da insuficiente preparação de militantes confinados nos limites
das organizações locais? Será que Nadejdine teria esquecido, tal
como o autor do artigo sobre organização publicado no Svoboda,
que a passagem a uma ampla imprensa local (a partir de 1898) foi
acompanhada por uma intensificação especial do “economismo”
e do “trabalho artesanal”? Ademais, mesmo considerando a pos-
sibilidade de se organizar satisfatoriamente “uma ampla imprensa
local” (e já vimos que, salvo casos muito excepcionais, trata-se de
algo impossível), mesmo assim as organizações locais não poderiam
“organizar e concentrar” todas as forças de revolucionários para uma
ofensiva geral contra a autocracia, no sentido de dirigir uma luta
comum. Não se esqueçam que, aqui, se trata unicamente do alcance
“concentrador”, organizador do jornal, e que poderíamos fazer a
Nadejdine, defensor da fragmentação, a mesma pergunta irônica
que ele nos coloca: “Teríamos herdado 200 mil organizadores
revolucionários?” Prossigamos. Não é contrapor “a preparação de
manifestações” ao plano do Iskra, simplesmente porque esse plano
prevê precisamente que as manifestações mais amplas compõem um
dos seus fins; e o que se considera aqui é a escolha do meio prático.
Mais uma vez, vemos que Nadejdine tergiversou quando não nota
que apenas um exército já “organizado e concentrado” pode “pre-
parar” manifestações (que até agora, na grande maioria dos casos,

235
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

têm se expressado espontaneamente); e o que não sabemos fazer é


justamente o trabalho de organização e de concentração. “Traba-
lho entre os desempregados”. Sempre a mesma confusão, uma vez
que se trata também de uma das atividades militares próprias de
um exército já mobilizado e não de um plano para mobilizar esse
exército. Com o exemplo seguinte, poderemos ver até que ponto
Nadejdine subestima, também nesse sentido, o prejuízo que nos
causa a fragmentação, a ausência entre nós de uma força de “200
mil organizadores”.
Muitos (entre eles Nadejdine) condenaram o Iskra pela precarie-
dade de informações acerca do desemprego e pelo caráter fortuito
atribuído às crônicas sobre as ocorrências mais comuns da vida
rural. A condenação é merecida; no entanto, o Iskra é “culpado
sem ter culpa”. Buscamos também nas aldeias “esticar um fio de
prumo”, mas no campo quase não há pedreiros e deve-se obriga-
toriamente encorajar a todos que nos comuniquem até mesmo os
fatos mais corriqueiros na expectativa de que isso multiplique o
número de nossos colaboradores nesse terreno, e que nos ensine a
todos a selecionar finalmente os fatos verdadeiramente relevantes.
Mas o material para o aprendizado é tão escasso que, se não o sin-
tetizamos para toda a Rússia, não haverá nada que aprender. Sem
dúvidas, um homem que possua – mesmo que aproximadamente
– a capacidade de agitador e que conheça a vida dos vagabundos,
como se observa em Nadejdine, poderia, através da agitação entre
os desempregados, prestar serviços inestimáveis ao movimento;
porém, um homem como esse sacrificaria o seu talento se não
cuidasse de dar a conhecer a todos os camaradas russos cada passo
da sua atuação, a fim de servir de ensinamento e de exemplo às
pessoas que, na sua imensa maioria, nem mesmo sabem ainda
iniciar esse novo trabalho.
Hoje, sem exceção, todos falam da importância da unificação,
da necessidade de “organizar e concentrar”; mas, na maior parte das
vezes, não sabem por onde começar e como realizar essa unificação.

236
V. I. Lenin

Todos estariam certamente de acordo que se “unificássemos” os


círculos isolados – por exemplo, círculos de bairro – de uma cidade,
demandar-se-ia a existência de organismos comuns, isto é, não ape-
nas o termo comum, “união”, mas um trabalho verdadeiramente
comum, uma troca de materiais, de experiências, de forças, uma
distribuição de funções, com vistas às especificidades do trabalho
urbano, não somente por bairros. Todos hão de concordar que um
sólido aparelho clandestino não conseguirá cobrir seus gastos (se
for válido empregar essa expressão comercial) com os “recursos”
(subentendidos aqui tanto os materiais quanto os humanos) de um
único bairro, e que o talento de um especialista não poderá ser
desenvolvido num campo de ação tão restrito. O mesmo ocorre em
relação à união das variadas cidades, pois, como já nos comprovou a
história do nosso movimento social-democrata, até mesmo o campo
de ação de uma localidade isolada acaba por se mostrar, tendo já
se mostrado, extremamente estreito: isso já foi provado anterior-
mente, de forma detalhada, pelo exemplo da agitação política e
do trabalho de organização. É necessário – incondicionalmente
necessário –, antes de tudo, alargar esse campo de ação, criar uma
ligação efetiva de união entre as cidades na base de um trabalho
regular e comum, pois a fragmentação limita as capacidades dos
que estão com a cabeça “enfiada num buraco” (expressão do autor
de uma carta ao Iskra), desconhecendo o que se passa no mundo,
com quem podem aprender, como adquirir experiência de modo
a satisfazer a sua vontade de uma extensa atividade. E insisto em
que apenas se pode começar a criar essa ligação efetiva de união a
partir de um jornal comum, para toda a Rússia, empreitada úni-
ca e regular de caráter nacional voltada para realizar a síntese de
todas as atividades, as mais variadas, de modo a incitar as pessoas
a avançar constantemente por todos os numerosos caminhos que
levam à revolução, como todos os caminhos levam à Roma. Se nós
queremos a unificação, não apenas em palavras, faz-se necessário
que cada círculo local empenhe imediatamente, digamos, um quarto

237
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

das suas forças para o trabalho ativo voltado ao objetivo comum.


E o jornal lhe mostrará imediatamente148 os contornos gerais, as
proporções e o caráter desse objetivo; as lacunas mais evidentes
na atividade geral em toda a Rússia; os lugares onde inexiste a
agitação, onde são débeis as ligações; as engrenagens do enorme
maquinismo geral que um ou outro círculo poderia reparar ou
substituir por outras melhores. Um círculo que ainda não tenha
trabalhado, mas que busca fazê-lo, poderia começar desde já não
como um artesão isoladamente na sua pequena oficina, que não
conhece nem a evolução anterior da “indústria”, nem o estado
geral de determinadas formas de produção industrial, mas como
o colaborador de uma vasta empreitada que reflete todo o impulso
revolucionário geral contra a autocracia. E quanto mais perfeita for
a preparação de cada engrenagem isolada, mais numerosos serão
os trabalhadores isolados a participar do trabalho comum, mais
articulada será a nossa rede e menores serão os problemas causados
pelas inevitáveis prisões em nossas fileiras.
A ligação efetiva já começaria ser criada na própria tarefa de
difusão do jornal (se ele de fato merecer tal título, isto é, se sair
regularmente, umas quatro vezes por mês, e não só uma vez, como
as volumosas revistas). Hoje são raríssimos, e em todo o caso uma
exceção, os intercâmbios de assuntos revolucionários entre as
cidades; converter-se-iam, então, numa regra e assegurariam não
apenas a difusão do jornal, mas também (o que é mais importante)
a troca de experiências, materiais, forças e recursos. Imediatamente
o trabalho de organização alcançaria uma amplitude muito maior
e o êxito obtido numa localidade encorajaria constantemente o
aperfeiçoamento do trabalho e o aproveitamento da experiência

148
Com uma reserva: desde que simpatize com a linha desse jornal e que considere útil à
causa colaborar com ele, compreendendo aí não só a colaboração literária, mas também
a revolucionária em geral. Nota para Rabotcheie Dielo: essa reserva subentende-se para
os revolucionários que apreciam o trabalho e não a brincadeira de democracia, em que
não se separam as “simpatias” da participação mais ativa e verdadeira.

238
V. I. Lenin

já adquirida por um camarada que atua noutro extremo do país.


O trabalho local se tornaria muito mais rico e variado do que é na
atualidade; as denúncias políticas e econômicas recolhidas em toda
a Rússia alimentariam intelectualmente os operários de todas as
profissões e de todos os graus de desenvolvimento, fornecendo dados
e propiciando debates e leituras sobre os mais variados problemas,
suscitados, ademais, pelas alusões da imprensa legal, pelas conversas
em sociedade e pelos “tímidos” comunicados do governo. Cada
explosão e cada manifestação seriam apreciadas e discutidas em
todos os seus aspectos e em todos os confins da Rússia, fazendo
despertar o desejo de não se ficar para trás, de fazer melhor que os
outros (nós, socialistas, não excluímos de modo algum qualquer
forma de emulação e “concorrência”, em geral!), de preparar cons-
cientemente o que de início se tinha feito de forma espontânea,
de aproveitar as circunstâncias favoráveis de uma determinada
localidade ou de uma determinada conjuntura para modificar o
plano de ataque etc. Ao mesmo tempo, essa reanimação do tra-
balho local não levaria a uma desesperada tensão “agonizante” de
todas as forças, nem a uma mobilização de todos os homens, como
frequentemente ocorre hoje quando da preparação de uma manifes-
tação ou da publicação de um número de um jornal local: de um
lado, a polícia teria muito mais dificuldade para alcançar a “raiz”,
uma vez que não saberia em que localidade encontrá-la; de outro,
a regularidade do trabalho comum ensinaria os homens a ajustar,
em cada caso concreto, a envergadura de uma ofensiva ao estado das
forças deste ou daquele destacamento do exército comum (hoje, em
parte alguma, quase ninguém pensa nessa coordenação, uma vez
que nove décimos das ofensivas se engendram espontaneamente)
e facilitaria o “transporte” de um lugar ao outro não apenas das
publicações, como também das forças revolucionárias.
No momento, em grande parte dos casos, essas forças sangram
na estreiteza do trabalho local; então, haveria possibilidade e
oportunidade permanentes de transferir de um extremo ao outro

239
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

do país um agitador ou um organizador mais ou menos capaz.


Ao se iniciar com uma pequena viagem para tratar de assuntos
do partido, custeada pelo partido, os militantes acabariam se
habituando a viver inteiramente por conta do partido, tornando-
-se revolucionários profissionais, formados como verdadeiros
dirigentes políticos.
E se realmente conseguíssemos que todos, ou uma maioria
considerável dos grupos, comitês e círculos locais se dedicassem
ativamente ao trabalho comum, poderíamos num futuro próximo
reunir condições para publicar um semanário que saísse regular-
mente, difundindo-se em dezenas de milhares de exemplares por
toda a Rússia. Tal jornal seria parte de um gigantesco fole de uma
forja que atiçaria cada centelha da luta de classes e da indignação
popular, transformando-a num grande incêndio. Em torno desse
trabalho, em si muito inofensivo e muito pequeno, mas regular e
comum no pleno sentido da palavra, teríamos, de modo sistemático,
concentração sistemática e instrução do exército permanente de
lutadores experimentados. Pelos andaimes desse trabalho comum
de organização logo veríamos ascender e se destacar, dentre nos-
sos revolucionários os Jeliabov social-democratas – dentre nossos
operários, os Bebel russos, que se colocariam na vanguarda do
exército mobilizado e levantariam todo o povo para acabar com a
infâmia e a maldição da Rússia.
É com isso que se deve sonhar!

* * *

“É preciso sonhar!” Escrevi essas palavras e assustei-me.


Imaginei-me sentado no “congresso da unificação”, tendo à minha
frente os redatores e colaboradores do Rabotcheie Dielo. E eis que
se levanta o camarada Martinov e, em tom ameaçador, dirige-se a
mim: “Permita-me uma pergunta! Uma redação autônoma ainda
tem o direito de sonhar sem o prévio referendo dos comitês do

240
V. I. Lenin

Partido?” Depois dele, o camarada Kritchevski volta-se para mim e


(aprofundando filosoficamente o camarada Martinov, que há muito
tempo já havia aprofundado o camarada Plekhanov), continua num
tom ainda mais ameaçador: “Vou ainda mais longe e pergunto se
um marxista tem, em geral, o direito de sonhar, se não esqueceu
que, segundo Marx, a humanidade sempre se coloca tarefas que
pode resolver e que a tática é um processo de crescimento das
tarefas do partido, que crescem junto com ele?”.
Basta-me lembrar destas perguntas ameaçadoras que sinto
calafrios, e não penso senão numa coisa: onde vou me esconder.
Tentarei me esconder atrás de Pissarev.
Há desacordos e desacordos – escrevia Pissarev sobre o desacordo entre o
sonho e a realidade. Os meus sonhos podem ultrapassar o curso natural dos
acontecimentos ou podem desviar-se para um ponto que o curso natural
dos acontecimentos jamais pode alcançar. No primeiro caso, os sonhos
não produzem nenhum mal e podem até apoiar e reforçar a energia do
trabalhador (...) Em sonhos desse tipo, não há nada que possa deformar ou
paralisar a força do trabalho. Ao contrário. Se o homem fosse completa-
mente destituído da capacidade de sonhar assim, se não pudesse, de vez em
quando, antecipar-se e contemplar em imaginação o quadro inteiramente
acabado da obra que apenas se esboça entre suas mãos, eu não poderia, de
modo algum, compreender o que mobilizaria o homem a iniciar e edifi-
car vastos e sofridos projetos nas artes, nas ciências e na vida prática (...)
O desacordo entre os sonhos e a realidade nada tem de nocivo sempre que
aquele que sonha acredite seriamente no seu sonho, observe atentamente
a vida, compare as suas observações com os seus castelos no ar e, de uma
maneira geral, trabalhe conscientemente para a realização dos seus sonhos.
Quando existe ligação entre o sonho e a vida, tudo vai bem.149
Sonhos dessa natureza são, infelizmente, muito raros no nosso
movimento. E a culpa é sobretudo dos nossos representantes da

149
[V. I. Lenin cita o artigo de D. I. Pissarev “Erros de um pensamento imaturo”.]

241
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

crítica legal e do “seguidismo” ilegal, que se gabam de sua ponde-


ração, de sua “proximidade” do “concreto”.

De que tipo de organização necessitamos?


Pelo que se disse antes, o leitor pode notar que a nossa “tática-
-plano” consiste em recusar o apelo imediato ao assalto, em exigir
a organização de um “assédio permanente à fortaleza inimiga”, ou,
noutras palavras: em exigir que todos os nossos esforços objetivem
reunir, organizar e mobilizar um exército regular. Quando ridicu-
larizamos Rabotcheie Dielo por abandonar o “economismo” para se
lançar aos gritos na necessidade do assalto (gritos que irromperam
veementemente em abril de 1901, no nº 6 do Listok do Rabotcheie
Dielo)150, esse jornal naturalmente nos atacou, acusando-nos de
“doutrinarismo”, dizendo que não compreendíamos o dever revo-
lucionário, de que apelamos à prudência etc. Evidentemente que
não foi, em absoluto, surpresa, para nós, ver surgirem tais acusações
na boca dessa gente que, desprovida de princípios estáveis, oculta-
-se sob a profunda “tática-processo”; da mesma maneira, também
não nos surpreendemos que esta acusação tenha sido reiterada por
Nadejdine que, em geral, expressa um monumental desprezo pela
firmeza dos princípios programáticos e táticos.
Diz-se que a história não se repete. Nadejdine empenha-se com
todas as suas forças em repeti-la, espelhando-se cuidadosamente
em Tkatchev, denegrindo “o trabalho cultural revolucionário”, bra-
dando pelo “toque dos sinos de vetche151”, preconizando um “ponto
de vista especial” de “vésperas da revolução” etc. Ao que parece,
Nadejdine esquece a conhecida frase que diz: se o original de um
acontecimento histórico é uma tragédia, a sua cópia nada mais é

150
[Listok Rabotchego Diela (Folha de A Causa Operária): suplemento não periódico do
Rabotcheie Dielo, editado em Genebra de junho de 1990 a julho de 1991. Foram publi-
cados oito números.]
151
[Vetche: assembleia popular na antiga Rússia, convocada pelo toque dos sinos.]

242
V. I. Lenin

que uma farsa152. A tentativa de tomada do poder – preparada pela


propaganda de Tkatchev e realizada pelo terror “de intimidação”
e que realmente intimidava nessa época – era majestosa, enquan-
to, ao contrário, o terrorismo “excitante” do pequeno Tkatchev é
simplesmente ridículo, sobretudo quando se complementa com o
seu projeto de organização dos operários médios.
Se o Iskra – escreve Nadejdine – saísse da sua esfera de literatice, notaria
que isso (fatos como a carta de um operário publicada no nº 7 do Iskra
etc.) são sintomas que mostram que o “assalto” virá em breve, muito bre-
vemente, e que falar agora (sic) de uma organização cujos fios se originam
num jornal para toda a Rússia é estimular ideias e trabalho de gabinete.
Atente-se um pouco sobre essa confusão extraordinária: de um
lado, terrorismo excitante e “a organização dos operários médios”,
junto ao argumento de que seria “mais fácil” concentrar-se em torno
de algo “mais concreto”, por exemplo, em torno de jornais locais;
de outro, argumenta-se que defender “agora” uma organização
para toda a Rússia é estimular ideias de gabinete, isto é (numa
linguagem mais direta e simples), que “agora” já é tarde! E para
a “extensa organização de jornais locais” também não será tarde,
respeitabilíssimo L. Nadejdine? Em contraponto a isso, compare-
-se a perspectiva e a tática do Iskra: o terrorismo excitante é um
engano; falar de uma organização específica dos operários médios
numa ampla organização de jornais locais resulta num escancarar
de portas ao “economismo”. É preciso falar de uma única organi-
zação de revolucionários para toda a Rússia, e não será tarde para
falar dela até mesmo no momento em que começar efetivamente
o verdadeiro assalto, e não um assalto no papel.

[Lenin alude à seguinte passagem da obra de K. Marx – “O 18 de Brumário de Luis


152

Bonaparte” –: “Hegel afirmara que todos os grandes acontecimentos e personagens


da história universal se manifestam, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se, porém,
de acrescentar: uma vez como tragédia e outra como farsa”. O texto de Marx pode
ser consultado em Marx, K. A revolução antes da revolução, v. II, São Paulo: Expressão
Popular; 2008; p. 199-285.]

243
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

Sim – continua Nadejdine –, nossa situação está longe de ser brilhante


no tocante à organização; sim, o Iskra tem toda a razão em dizer que
o grosso das nossas forças de combate é constituído de voluntários e
insurgentos (...) Com certeza têm uma lúcida avaliação da situação das
nossas forças. No entanto, por que se esquecem que a multidão não é
nossa de nenhum modo e que, portanto, não nos perguntará quando deverá
iniciar as hostilidades e lançar-se no “motim”? (...) Quando a própria
multidão começar a pôr em ação a sua avassaladora força espontânea,
poderá então ultrapassar e desestruturar o “exército regular”, que se
pensava extraordinariamente organizado, mas que não o é por que não
houve tempo (os itálicos são nossos).
Estranha lógica! Precisamente porque “a multidão não é nossa”,
é insensato e indecoroso bradar pelo “assalto” imediato, uma vez
que o assalto é o ataque de um exército regular e não a irrupção
espontânea de uma multidão. Precisamente porque a multidão
pode ultrapassar e desestruturar o exército regular é que se faz
absolutamente necessário que o nosso trabalho de “organização
extraordinariamente sistemático” no exército regular se desenvol-
va no mesmo passo do ascenso espontâneo, pois que, se isso for
obtido, será maior a probabilidade de o exército regular não ser
ultrapassado pela multidão, marchando à sua frente, na sua van-
guarda. Nadejdine se confunde porque imagina que esse exército
sistematicamente organizado se ocupa de algo que o afasta da
multidão, enquanto que, na realidade, volta-se exclusivamente
para a agitação política diversificada e abrangente, isto é, de um
trabalho que tende precisamente a aproximar e fundir num todo a
avassaladora força espontânea da multidão e a avassaladora força
consciente da organização dos revolucionários. A verdade é que
os senhores jogam para os outros as vossas próprias faltas, pois
precisamente o grupo Svoboda, ao introduzir o terrorismo no pro-
grama, acaba por exortar assim à criação de uma organização de
terroristas, e uma tal organização impediria, na verdade, o nosso
exército de se aproximar da multidão que, infelizmente, ainda não

244
V. I. Lenin

é nossa e também não nos pergunta, ou raramente nos pergunta


ainda, como e quando deve iniciar as hostilidades.
“Deixaremos de notar a própria revolução – continua Nadejdi-
ne, assustando o Iskra –, tal como se deu com os acontecimentos
atuais, que nos apanharam de surpresa”. Essa frase, mais as que já
citamos, demonstra-nos claramente o absurdo do “ponto de vista”
especial das “vésperas da revolução”, produzido por Svoboda153. Esse
“ponto de vista” especial reduz-se a que “agora” é muito tarde para
deliberar e nos prepararmos. Mas, nesse caso, oh! respeitabilíssimo
inimigo da “literatice”!, para que escrever 132 páginas impressas
sobre “questões de teoria154 e de tática”? Será que não se percebe
que, do “ponto de vista de vésperas da revolução”, não seria mais
apropriado editar 132 mil panfletos com um breve apelo: “Contra
o inimigo!”?
Aquele que, como o Iskra, coloca num lugar de destaque do
seu programa – da sua tática e do seu trabalho de organização – a
agitação política voltada para todo o povo, corre menos riscos de
deixar a revolução passar sem percebê-la. Às pessoas que, em toda
a Rússia, estão ocupadas em tecer os fios da organização, ligados
a um jornal para todo o país, tornou-se possível prever os aconte-
cimentos da primavera, ficando muito longe de deixá-los passar
desapercebidos. Também não deixaram passar desapercebidas as

“Às vésperas da revolução”, p. 62.


153

L. Nadejdine, diga-se de passagem, na sua “revista de questões teóricas”, não diz quase
154

nada acerca das questões teóricas, à exceção do seguinte trecho, muito curioso do
“ponto de vista de vésperas de revolução”: “a bernsteiniada como um todo perde nesse
momento seu rigor, tanto faz que o sr. Adamovitch demonstre que o sr. Struve deve pedir
demissão ou que, ao contrário, o segundo desminta o primeiro e não acate a demissão.
É indiferente para nós porque soou a hora decisiva da revolução” (p. 110). Seria im-
possível descrever com maior clareza a desconsideração infinita que L. Nadejdine sente
pela teoria. Como proclamamos que estamos em “vésperas de revolução”, “tanto faz”,
por isso, que os ortodoxos consigam ou não afastar definitivamente os críticos das suas
posições!! E o nosso sábio não nota que precisamente durante a revolução sentiremos
falta dos resultados da luta teórica contra os críticos para lutar decididamente contra as
suas posições práticas!

245
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

manifestações descritas nos nos 13 e 14 do Iskra155; ao contrário,


participaram delas por compreender o seu dever de secundar o
entusiasmo espontâneo da multidão e, ao mesmo tempo, contri-
buíram através do seu jornal para que todos os camaradas russos
conhecessem tais manifestações como forma de aproveitá-las
como experiência. E se continuarem vivos também não deixarão
de perceber a revolução que exigirá de nós, antes e acima de tudo,
experiência em matéria de agitação, conhecimento para apoiar
(apoiar na direção da social-democracia) todos os protestos e
orientar o movimento espontâneo, preservando-o dos erros dos
amigos e das ciladas dos inimigos!
E eis que chegamos à última razão que nos força a insistir par-
ticularmente no plano de uma organização em torno de um jornal
para toda a Rússia, através do trabalho coletivo para esse jornal
comum. Apenas essa organização poderá assegurar à organização
de combate social-democrata a flexibilidade indispensável, isto é,
a capacidade
de, por um lado, evitar a batalha em campo aberto com um inimigo cujas
forças são esmagadoramente superiores e concentradas num único ponto
e, por outro, a capacidade de aproveitar a morosidade das movimentações
do inimigo, como forma de atacar no momento e no local em que menos
esperaria ser atacado156.

155
[Em novembro e dezembro de 1901, a Rússia foi sacudida por uma onda de manifes-
tações estudantis apoiadas pelos operários. Informações sobre as manifestações em
Nijni-Novgorod (acerca da proibição de uma visita de M. Gorki), em Moscou (para
protestar contra a proibição de uma sessão em memória de N. Dobroliubov), em Eka-
terinoslav, e sobre as reuniões e movimentações estudantis em Kiev, Kharkov, Moscou,
Petersburgo foram publicadas no Iskra nº 13, de 20 de dezembro de 1901, e no nº 14,
de 1º de janeiro de 1902, na seção “Nossa vida social”; os artigos de Lenin, “O começo
das manifestações” (Iskra nº 13), e de G. Plekhanov, “Sobre as manifestações” (Iskra
nº 14), também foram dedicados a esses eventos.]
156
Iskra nº 4: “Por onde começar?”. “Um trabalho prolongado não assusta os educadores
revolucionários que não partilham o ponto de vista de vésperas de revolução”, diz Na-
dejdine (p. 62). A pretexto disso, fazemos a seguinte observação: se não formos capazes
de preparar uma tática política e um plano de organização infalivelmente orientado para
um trabalho extremamente prolongado e que garantam, ao mesmo tempo, pelo próprio

246
V. I. Lenin

Seria um gravíssimo erro estruturar a organização do partido


contando apenas com explosões e combates de rua ou só com “a
marcha progressiva da cinzenta luta cotidiana”. Devemos desen-
volver sempre o nosso trabalho cotidiano e estar a todo momento
dispostos a tudo, porque muitas vezes é quase impossível antever
como se alternarão os períodos de explosão e os de calmaria e,
mesmo quando se pode prevê-los, não se pode aproveitar disso para
reconstruir a organização, uma vez que num país autocrático essas
alternâncias se dão com assombrosa rapidez, muitas vezes como
consequências das incursões noturnas dos janízaros tsaristas157. E
a própria revolução não pode ser imaginada como um ato único
(como parece imaginar Nadejdine), mas como uma sucessão rá-
pida de explosões mais ou menos violentas, alternadas com fases
de calmaria mais ou menos profunda. Por isso, o conteúdo central
das atividades de organização do nosso partido, o seu foco, deve
consistir num trabalho possível de se realizar e necessário tanto
nos períodos de mais violenta explosão quanto nos da calmaria
mais completa, a saber: um trabalho de agitação política unificada
em toda a Rússia, que lance luzes sobre todos os aspectos da vida
e se dirija às mais amplas massas. Tal trabalho é inconcebível na
Rússia atual sem um jornal para todo o país e que saia com muita
frequência. A organização a ser constituída por si mesma em torno
desse jornal, a organização dos seus colaboradores (no sentido lato
do termo, isto é, de todos aqueles que trabalham para ele) estará
precisamente disposta a tudo, desde salvar a honra, o prestígio e

desenvolvimento desse trabalho, a preparação do nosso partido para ocupar seu espaço e
cumprir o seu dever em quaisquer circunstâncias imprevistas, por mais que se precipi-
tem os acontecimentos, simplesmente não passaremos de uns miseráveis aventureiros
políticos. Só Nadejdine, que desde ontem passou a se intitular social-democrata, pode
esquecer que a social-democracia tem como objetivo a transformação radical das condi-
ções de vida de toda a humanidade e, por isso, é imperdoável que um social-democrata
se “assuste” com o trabalho prolongado.
157
[Janízaros: infantaria regular na Turquia dos sultões, criada no século XIV. Era a prin-
cipal força policial do regime dos sultões e distinguia-se pela sua grande crueldade.]

247
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

a continuidade do partido nos momentos de maior “depressão”


revolucionária, até a preparar, a determinar e a pôr em ação a
insurreição armada de todo o povo.
Suponhamos, o que é muito comum entre nós, uma onda de
prisões, numa ou em várias localidades. Como não há em todas as
organizações locais um trabalho comum e regular, segue-se a essa
onda de prisões, frequentemente, de uma interrupção do trabalho
por vários meses. Ao contrário, se todas trabalhassem com objetivos
comuns, mesmo se fossem muitas as prisões, bastariam algumas
semanas de trabalho de duas ou três pessoas enérgicas para resta-
belecer o contato dos novos círculos de jovens com o organismo
central, que como se sabe, mesmo agora, brotam muito rapida-
mente; e quando esse trabalho comum, que sente as consequên­cias
das prisões, é conhecido de todos, surgem e se estabelecem ligações
com esse órgão central ainda muito mais rapidamente.
Imaginemos, por outro lado, uma insurreição popular. Pro-
vavelmente, todos hoje concordarão que devemos pensar nela e
prepararmo-nos para ela. Mas como nos preparar? Terá um Co-
mitê Central que designar agentes em todas as localidades para
preparar a insurreição? Mesmo que tivéssemos um Comitê Central
que tomasse essa medida, não conseguiria absolutamente nada nas
condições atuais da Rússia. Ao contrário, uma rede de agentes158 que
se formasse por si própria no trabalho de organização e de difusão
de um jornal comum não ficaria “esperando de braços cruzados”

Ora, ora, escapou-me uma vez mais a terrível palavra “agente”, que tanto fere os ou-
158

vidos democráticos dos Martinov! É estranho que não tenha incomodado os corifeus
da década de 1870 e que, ao contrário, incomode os artesãos da década de 1890. Essa
palavra me agrada porque demonstra de modo claro e preciso a causa comum a que todos
os agentes subordinam-se, seus pensamentos e seus atos, e ,se houvesse a necessidade de
substituí-la por outra, só escolheria a palavra “colaborador”, se ela não sugerisse certo
sabor literato e vago. Pois o que necessitamos é de uma organização militar de agentes.
Digamos, de passagem, que os numerosos Martinov (sobretudo no exterior), que gostam
de “se promoverem reciprocamente a general”, poderiam dizer em lugar de “agente do
serviço de passaportes”, “comandante chefe da unidade especial destinada a fornecer
passaportes aos revolucionários” etc.

248
V. I. Lenin

a palavra de ordem de insurreição, mas trataria de realizar preci-


samente um trabalho regular que lhe garantiria maiores chances
de êxito em caso de insurreição. É justamente esse trabalho que
reforçaria os laços com as mais amplas massas operárias e com todos
os setores descontentes com a autocracia, o que é tão importante
para a insurreição. Com esse trabalho reuniríamos condições para
avaliar corretamente a situação política geral e, por conseguinte,
para identificar o momento favorável à insurreição. É precisamente
esse tipo de atividade que habituaria todas as organizações locais
a repercutirem entre elas, simultaneamente, todos os problemas,
os incidentes ou os acontecimentos políticos que apaixonam toda
a Rússia, respondendo a esses “acontecimentos” da forma mais
enérgica, mais uniforme e mais adequada possível. Pois, no fundo,
a insurreição é a “resposta” mais enérgica, mais uniforme e mais
adequada de todo o povo ao governo. Tal atividade acabaria tam-
bém por habituar todas as organizações revolucionárias, em todos
os pontos da Rússia, a manter entre si relações mais constantes e,
ao mesmo tempo, mais conspirativas, que resultariam na unidade
efetiva do Partido, e sem as quais não é possível discutir coletiva-
mente o plano de insurreição e nem adotar, às vésperas dela, as
medidas preparatórias indispensáveis, que devem ser mantidas no
mais rigoroso segredo.
Numa palavra, o “plano de um jornal político para toda a
Rússia”, longe de ser fruto de um trabalho de gabinete de pessoas
contaminadas pelo doutrinarismo e pela “literatice” (como pare-
ceu a pessoas que pouco refletiram sobre ele), é, ao contrário, o
plano mais prático para iniciar, imediatamente e por toda parte,
a preparação para a insurreição, e, ao mesmo tempo, sem deixar
de lado, por nem um instante, o trabalho normal de todos os dias.

249
CONCLUSÃO

A história da social-democracia russa divide-se claramente em


três períodos.
O primeiro abrange, aproximadamente, uma dezena de anos,
de 1884 a 1894. Foi o período do nascimento e consolidação da
teoria e do programa da social-democracia. O número de parti-
dários da nova tendência na Rússia contava-se por unidades. A
social-democracia existia sem movimento operário e vivenciava,
como partido político, um período de gestação. O segundo período
abarca três ou quatro anos, de 1894 a 1898. A social-democracia
surgia como movimento social, como expressão do ascenso das
massas populares, como partido político. É o período da infância
e da adolescência. Com a rapidez de uma epidemia, propaga-se
entre os intelectuais uma paixão generalizada pela luta contra o
populismo e por uma tendência de ir até os operários, bem como
se difunde uma paixão também generalizada dos operários pelas
greves. O movimento experimenta significativos progressos. A
maioria dos dirigentes é constituída por jovens que ainda estavam
longe “dos 35 anos”, que o senhor N. Mikhailovski considerava
como uma espécie de limite natural. Com sua juventude, não
se encontravam preparados para o trabalho prático e saem de
cena com muita rapidez. No entanto, na maioria dos casos, o
seu trabalho apresentava enorme alcance. Muitos deles tinham
começado a pensar como revolucionários, como partidários de

251
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

“A vontade do povo”. Quase todos, em sua mocidade, cultuavam


entusiasticamente o heroísmo do terror. E lhes foi muito custoso
libertar-se dessa sedução da tradição heroica; tiveram de romper
com pessoas que queriam a qualquer custo permanecer fiéis a “A
vontade do povo”, pessoas muito estimadas pelos jovens social-
-democratas. A luta impunha o estudo, a leitura de obras ilegais
de todas as tendências, ocupar-se intensamente com os problemas
do populismo legal. Formados nessa luta, os social-democratas
voltavam-se para o movimento operário, sem deixar de lado por
“um instante” nem a teoria marxista que os iluminou com uma
luz brilhante, nem a tarefa de derrubar a autocracia. A formação
do partido, na primavera de 1898, foi o ato mais significativo e
ao mesmo tempo o último dos social-democratas desse período.
O terceiro período germina, como vimos, em 1897 e substitui
em definitivo o segundo período em 1898 (1898-?). É um período­
de dispersão, de desagregação, de vacilação. Tal como ocorre
entre os adolescentes que alteram a entonação da voz, também
a social-democracia russa desse período começou a mudar a sua,
começou a entoar notas falsas – de um lado, nas obras dos senho-
res Struve e Prokopovitch, Bulgakov e Berdiaiev; e por outro, nas
de V. I. e R. M., entre B. Kritchevski e Martinov. Mas apenas os
dirigentes iam cada um para o seu lado e retrocediam: o próprio
movimento continuava a crescer e realizava enormes progressos.
A luta proletária ganhava novas camadas operárias e propagava-se
por toda a Rússia, contribuindo ao mesmo tempo, indiretamente,
para reanimar o espírito democrático entre os estudantes e os
outros setores da população. Mas a consciência dos dirigentes
cedeu diante da grandeza e força do ascenso espontâneo; entre os
social-democratas predominava já um outro momento, marcado
por militantes formados quase que exclusivamente no espírito da
literatura marxista “legal”, formação que se mostrava insuficiente
diante do alto grau de consciência que a espontaneidade das mas-
sas exigia. Os dirigentes não apenas são ultrapassados, tanto no

252
V. I. Lenin

sentido teórico (“liberdade de crítica”), quanto no plano prático


(“trabalho artesanal”), mas também buscam justificar o seu atraso
com toda espécie de argumentos estrondosos. A social-democracia
era rebaixada ao nível do trade-unionismo, tanto pelos brentanistas
da literatura legal quanto pelos seguidistas da literatura ilegal. O
programa do Credo começa a ser levado à prática, principalmente
quando o “trabalho artesanal” dos social-democratas reaviva as
tendências revolucionárias não social-democratas.
E se o leitor me censurar por ter me ocupado demasiadamente
de uma publicação como Rabotcheie Dielo, responderei: Rabotcheie
Dielo assumiu importância “histórica”, porque traduziu mais
significativamente o “espírito” desse terceiro período159. Não era o
consequente R. M., mas especificamente Kritchevsky e Martinov,
que giram como cata-ventos, que podiam exprimir autenticamen-
te a dispersão e as vacilações, a disposição de fazer concessões à
“crítica”, ao “economismo” e ao terrorismo. O que peculiariza esse
período não é o monumental desprezo pela prática por parte de um
admirador qualquer do “absoluto”, mas precisamente a conjunção
de um praticismo mesquinho com a mais completa despreocupação
em relação à teoria. Os heróis desse período, mais do que negar
declaradamente “as grandes frases”, empobrecem-nas: o socialismo
científico deixou de ser uma teoria revolucionária integral e tornou-
-se uma mistura, à qual se acrescentava “livremente” o conteúdo de
qualquer novo manual alemão; a palavra de ordem “luta de clas-
ses” não conduzia a uma atividade cada vez mais ampla, cada vez
mais enérgica – funcionando como um arrefecedor, uma vez que
“a luta econômica está intimamente ligada à luta política”; a ideia
do partido não incitava à criação de uma organização de combate

Poderia responder usando um provérbio alemão: Den Sack schlägt man, den Esel meint
159

man (bate-se na albarda a pensar no burro). Não só Rab. Dielo, mas a grande massa dos
militantes práticos e dos teóricos entusiasmavam-se com a “crítica” em voga, enredavam-se
na questão da espontaneidade, desviavam-se da concepção social-democrata das nossas
tarefas políticas e de organização para a concepção trade-unionista.

253
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

de revolucionários, mas justificava uma espécie de “burocratismo


revolucionário” e uma tendência pueril em brincar com as formas
“democráticas”.
Ignoramos quando terminará o terceiro período e começará o
quarto (que já se anuncia, em todo caso, por numerosos sintomas).
Do domínio da história, passamos para o domínio do presente e,
em parte, do futuro. Mas temos a firme convicção de que o quarto
período conduzirá à consolidação do marxismo militante, de que a
social-democracia russa sairá da crise mais forte e vigorosa, de que
a retaguarda dos oportunistas será “rendida” por um verdadeiro
destacamento de vanguarda da mais revolucionária das classes.
Como forma de exortação a essa “rendição” e resumindo o que
expusemos anteriormente, podemos dar à pergunta “que fazer?”
a breve resposta:
Liquidar o terceiro período.

254
SUPLEMENTO

Tentativa de fundir o Iskra com o “Rabotcheie Dielo”


Resta-nos tratar da tática adotada e consequentemente apli-
cada pelo Iskra nas suas relações de organização com Rabotcheie
Dielo. No artigo “A cisão na União dos Social-democratas Russos
no Exterior”160 (Iskra nº 1) tal tática já foi plenamente exposta.
Defendemos em seguida a posição de que a verdadeira “União
dos Social-democratas Russos no Exterior”, reconhecida no I
Congresso como a legítima representante no exterior do nosso
partido, havia se dividido em duas organizações; de que a questão
da representação do partido continuava em aberto, uma vez que,
apenas provisória e condicionalmente, o Congresso Internacional
em Paris a tinha resolvido por meio da eleição de dois membros
como representantes da Rússia para o Bureau Socialista Inter-
nacional161 permanente, um para cada segmento da “União”
cindida. Afirmamos que, no fundo, Rab. Dielo não tinha razão.
Por princípio, estivemos do lado do grupo “Emancipação do
Trabalho”, mas nos recusamos, ao mesmo tempo, a entrar em

160
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, em russo, t. 4, p. 384-385.]
161
BSI: Órgão permanente, informativo e executivo, da II Internacional Socialista. No
Congresso de Paris da II Internacional (setembro de 1900) decidiu-se por sua criação,
constituído por representantes de partidos socialistas de todos os países. Plekhanov e
Kritchevski foram escolhidos para representar os social-democratas russos. A partir de
1905, o representante do POSDR no BSI foi Lenin. [Dissolveu-se em 1914.]

255
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

detalhes acerca da cisão e destacamos o mérito da “União” em


relação à atividade exclusivamente prática162.
Assim, a posição era, em certa medida, de expectativa: cedía-
mos ao critério reinante entre os social-democratas russos que con-
siderava possível a particiapação dos inimigos mais determinados
do “economismo” ao lado da “União”, já que a organização havia
declarado algumas vezes que, por princípio, estava de acordo com o
grupo “Emancipação do Trabalho”, e que não pretendia posicionar-
-se de modo independente em relação aos aspectos fundamentais
da teoria e da prática. O acerto de nossa posição se confirmou no
seguinte fato: quase que simultaneamente ao surgimento do pri-
meiro número do Iskra, em dezembro de 1900, três membros da
“União” separaram-se dela para formar o “Grupo de Iniciadores”,
que se propôs como mediador das negociações de conciliação
entre os diferentes grupos: 1) a seção do exterior da organização
do Iskra; 2) a organização revolucionária Sotsial-demokrat163; 3) a
“União”. As duas primeiras organizações aceitaram imediatamen-
te, enquanto que a terceira recusou. Diante de tais fatos, expostos
por um orador no congresso de “unificação”, realizado no ano
passado, um dos membros da administração da “União” tratou
de explicar que a recusa se devia exclusivamente à composição do
“Grupo de Iniciadores”, que não agradava à “União”. Ainda que
seja meu dever apresentar essa explicação, não posso me furtar em
considerar, de minha parte, que a avalio insuficiente: a “União”,
conhecedora do acordo existente entre as duas organizações para
iniciar diálogos, poderia dirigir-se a elas por meio de outro me-
diador ou diretamente.
162
Tal avaliação acerca da cisão não se fundava apenas no conhecimento da literatura, mas também
em informações recolhidas fora do país por membros da nossa organização no exterior.
163
[Criada em maio de 1900 pelos membros do grupo “Emancipação do Trabalho” e seus
partidários, após a cisão da “União dos Social-democratas Russos no Exterior” durante
o seu II Congresso. Em outubro de 1901, por proposta de Lenin, integrou-se, junta-
mente com a seção estrangeira da organização do Iskra, na “Liga da Social-democracia
Revolucionária Russa no Exterior”.]

256
V. I. Lenin

Na primavera de 1901 tanto a Zaria (nº 1, abril) quanto o Iskra


(nº 4, maio)164 iniciaram uma polêmica contra o Rabotcheie Dielo.
Iskra atacou, sobretudo, a “mudança histórica” de R. Dielo, que na
sua edição de abril, ou seja, após os acontecimentos de primavera,
deu mostras de pouca firmeza no que se refere à paixão pelo terror
e pelos apelos “sanguinários”. Mesmo diante de tal polêmica, a
“União” respondeu que estava disposta a retomar as negociações de
conciliação por intermédio de um novo grupo de “conciliadores”165.
A conferência preliminar de representantes das três organizações
realizou-se em junho, elaborando um projeto de pacto, bastante
detalhado e fundado em “acordos de princípios”, publicado pela
“União” na brochura Dois congressos e pela Liga em Documentos
do Congresso “Unificação”.
O conteúdo desse acordo de princípios (mais conhecido como
resoluções da conferência de junho) demonstra com clareza retilí-
nea que nós exigíamos, como condição indispensável à unificação,
que se repudiasse do modo mais decidido toda manifestação de
oportunismo em geral e de oportunismo russo em particular.
Recusamos – diz o primeiro parágrafo – todas as tentativas de introduzir
o oportunismo na luta de classe do proletariado, traduzidas no chamado
“economismo”, bernsteinianismo, millerandismo etc. (...) A esfera da
atividade da social-democracia envolve (...) a luta ideológica contra todos
os adversários do marxismo revolucionário (4, c). (...) Em todos os níveis
do trabalho de agitação e de organização, a social-democracia não deve

164
[Ver V. I. Lenin, Obras completas, 4ª ed. em russo, t. 5, p. 1-12.]
165
[Lenin refere-se ao grupo social-democrata no exterior Borba (A Luta), surgido no
verão de 1900, em Paris, conhecido a partir de maio de 1901 como “Grupo Borba”.
O grupo buscou reconciliar os revolucionários e os oportunistas da social-democracia
russa, tomando a iniciativa de convocar a Conferência de Genebra (junho de 1901) dos
representantes das organizações social-democratas no exterior – as redações do Iskra
e da Zaria, a Sotsial-Demokrat, o Bund e a União dos Social-democratas russos. Teve
participação nos trabalhos dos congressos “de unificação” (outubro de 1901). Não
foi admitido no II Congresso do POSDR por seu afastamento da orientação social-
-democrata, por suas ações desagregadoras e pela falta de relações com as organizações
social-democratas da Rússia, dissolvendo-se nessa ocasião.]

257
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

esquecer em nenhum instante da tarefa imediata do proletariado russo:


derrubar a autocracia (5, a); (...) a agitação, não apenas no campo da luta
cotidiana do trabalho assalariado contra o capital (5, b); (...) não reconhe-
cendo (...) a fase de luta puramente econômica e de luta por reivindicações
políticas parciais (5, c); (...) consideramos importante para o movimento
que se faça a crítica das correntes que elevam a princípios (...) o caráter
elementar (...) e a estreiteza das formas inferiores do movimento (5, d).
Mesmo aquele que se encontra inteiramente alheio, após ler
de modo mais ou menos atento essas resoluções, perceberá que se
dirigem contra os que eram oportunistas e “economistas”, contra
os que esqueceram, mesmo que momentaneamente, a tarefa de
derrubar a autocracia, os que cederam à teoria das fases, os que
elevaram a visão estreita a princípio etc. E aquele que conhece
mais ou menos a polêmica que envolve o grupo “Emancipação do
Trabalho”, a Zaria e o Iskra contra o Rab. Dielo não terá dúvidas,
nem por um instante, de que essas resoluções rechaçaram justa-
mente, ponto por ponto, as aberrações em que caíra R. Dielo. Por
isso, quando um dos membros da “União” afirmou no congresso
de “unificação” que os artigos publicados no número 10 do R.
D. não tinham relação alguma com a nova “mudança histórica”
da “União”, mas com o espírito demasiadamente abstrato166 das
resoluções, um dos oradores o ridicularizou com toda a razão. As
resoluções, retrucou, longe de serem abstratas, são extremamente
concretas: um simples olhar é suficiente para ver que “se queria
pegar alguém”.
Essa expressão propiciou um episódio peculiar no congresso.
De um lado, B. Kritchevski agarrou-se à palavra “pegar”, dizendo
que se tratava de um lapso que denunciava má intenção nossa
(“armar uma cilada”) e exclamou em tom patético: “A quem se
queria pegar?”. “Sim, de fato, quem?”, perguntou Plekhanov com
ironia. “Vou ajudar o camarada Plekhanov em sua perplexida-

166
Essa afirmação foi retomada em Dois congressos, p. 25.

258
V. I. Lenin

de – respondeu B. Kritchevski – explicando-lhe que ‘quem se


queria pegar’ era a redação do Rabotcheie Dielo (riso geral). Mas
não nos deixamos pegar!” (Exclamações da esquerda: “Pior para
vocês!”). De outro lado, um integrante do grupo Borba (grupo de
conciliadores), contestando as emendas da “União” às resoluções
e querendo defender o nosso orador, afirmou que a expressão “se
queria pegar” havia passado, sem dúvida, involuntariamente no
calor da polêmica.
No que a mim se refere, penso que essa “defesa” não deixará
completamente satisfeito o orador que empregou a expressão. Creio
que as palavras “se queria pegar alguém” foram “ditas em tom
hilariante, mas pensadas seriamente”: sempre acusamos o Rab.
Dielo de falta de firmeza, de vacilações, razão pela qual devíamos,
naturalmente, tratar de pegá-lo para que no futuro se tornem im-
possíveis as vacilações. Não se podia falar aqui de má intenção,
porque se tratava de falta de firmeza de princípios. E soubemos
“pegar” a “União” como camaradas, a tal ponto167 que as resoluções
de junho foram assinadas pelo próprio B. Kritchevski e por um
integrante da administração da “União”.
Os artigos publicados no nº 10 de Rab. Dielo (que nossos
camaradas conheceram só depois de chegar ao congresso, poucos
dias antes do início de suas sessões) demonstram claramente que,
do verão ao outono, engendrou-se na “União” uma nova mudança:

167
Qual seja: na introdução às resoluções de junho dissemos que a social-democracia russa
em seu conjunto manteve sempre a linha de princípios do grupo “Emancipação do Tra-
balho” e que o mérito da “União” situava-se, sobretudo, no seu trabalho no campo das
publicações e da organização. Em outros termos, dissemos que estávamos inteiramente
dispostos a esquecer o passado e a reconhecer que a dedicação de nossos camaradas da
“União” era útil à causa, com a condição de acabarem por completo com as vacilações,
justamente o que perseguíamos com a “caça”. Qualquer pessoa “imparcial” que for ler
as resoluções de junho só poderá compreendê-las nesse sentido. No entanto, se agora a
“União”, depois de ter provocado ela mesma a ruptura, com sua nova mudança para o
“economismo” (nos artigos do nº 10 e nas emendas), acusa-nos solenemente de faltar à
verdade (Dois congressos, p. 30) por essas palavras sobre os seus méritos, essa acusação
não pode provocar outra coisa senão um sorriso.

259
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

mais uma vez os economistas obtiveram supremacia, e a redação,


moldável a cada nova “corrente”, pôs-se novamente a defender os
“mais declarados bernsteinianos” e a “liberdade de crítica”, advo-
gando pela “espontaneidade” e sustentando pela boca de Martinov
a “teoria de restringir” a nossa esfera de ação política (pretendendo
que assim a tornaria mais completa). Mais uma vez, confirmou-se a
precisa observação de Parvus de que é difícil caçar um oportunista
com uma fórmula simples, porque facilmente acatará toda fórmula
e com a mesma facilidade a renegará, uma vez que o oportunismo
consiste justamente na falta de princípios mais ou menos definidos e
firmes. Hoje os oportunistas rechaçam toda tentativa de introduzir
o oportunismo, rejeitam toda restrição, prometem solenemente
“não esquecer por um instante a derrubada da autocracia”, fazer
a “agitação não somente no campo da luta cotidiana do trabalho
assalariado contra o capital” etc. etc. E amanhã mudarão de tom
e retornarão ao velho caminho sob o pretexto de defender a espon-
taneidade, a marcha progressiva da luta cotidiana e cinzenta e de
exaltar as reivindicações que prometem resultados tangíveis etc.
Ao continuar afirmando que nos artigos do nº 10 a “‘União’ não
enxergou e nem enxerga nenhuma abjuração herética dos princípios
gerais do projeto da conferência” (Dois congressos, p. 26), a “União”
só revela com isso que é completamente incapaz ou que não quer
compreender o que está no fundo das divergências.
Depois do nº 10 de Rab. Dielo, restava-nos apenas uma ten-
tativa: dar início a uma discussão geral para nos convencermos se
toda a “União” se solidarizava com esses artigos e com sua redação.
A “União” está, sobretudo, descontente conosco por esse fato,
acusando-nos de querer semear a discórdia no seu interior, de que
nos imiscuímos nas coisas alheias etc. Acusações claramente infun-
dadas, porque, com uma redação designada por eleição e que “vira”
ao mais passageiro sopro de vento, tudo depende precisamente da
direção do vento, e nós definimos essa orientação em sessões de
portas fechadas, assistidas somente por integrantes de organizações

260
V. I. Lenin

que vinham para se unificar. As emendas, que, por iniciativa da


“União”, foram introduzidas nas resoluções de junho, nos tiraram a
última sombra de esperança de chegar a um acordo. Elas são a prova
documental da última mudança para o “economismo” e da solida-
riedade da maioria da “União” com o nº 10 de Rab. Dielo. Excluía-
-se das manifestações de oportunismo o “chamado economismo”
(devido ao suposto “sentido indeterminado” dessas palavras, o que
mostra a necessidade de definir com maior exatidão a essência
de uma aberração amplamente difundida); também se excluía o
“millerandismo” (se bem que K. Kritchevski o defendia em R. D.
nº 2-3, p. 83-84, e, de modo ainda mais aberto, em Vorwärts168).
Apesar de as resoluções de junho indicarem terminantemente que
a tarefa da social-democracia consistia em “dirigir todas as mani-
festações de luta do proletariado contra todas a formas de opressão
política, econômica e social”, exigindo com isso que se introduzisse
método e unidade em todas as manifestações de luta, a “União”
acrescentava frases completamente supérfluas, dizendo que “a luta
econômica é um poderoso estímulo para o movimento de mas-
sas” (essas palavras, em si, são indiscutíveis; no entanto, existindo
um economismo estreito, forçosamente levariam a interpretações
falsas). Mais ainda: chegou-se até a restringir descaradamente a
“política” nas resoluções de junho, quer eliminando as palavras
“por um instante” (quanto a não esquecer o objetivo de derrubar a
autocracia), quer excluindo as palavras “a luta econômica é o meio
mais amplamente aplicável para incorporar as massas à luta política
ativa”. É natural que, depois de introduzidas essas emendas, todos
os oradores que intervieram a nosso favor renunciaram, um atrás
do outro, à palavra, por entender que era inteiramente inútil seguir

168
No Vorwärts se iniciou uma polêmica a esse respeito entre sua redação atual, Kautsky e
Zaria. Não deixaremos de torná-la conhecida aos leitores russos. [No nº 18 do Iskra (10
de março de 1902), na seção “Do Partido”, foi publicada a nota “A polêmica da ‘Zaria’
com a redação do ‘Vorwärts’”, onde se expôs o ponto de vista da redação do Iskra e da
Zaria sobre essa polêmica.]

261
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

as negociações com gente que se move para o economismo e que


se reserva a liberdade de vacilar.
Precisamente o que a “União” considerou como condição sine qua non para
a solidez do futuro acordo, isto é, a manutenção da fisionomia própria do
Rab. Dielo e de sua autonomia, justamente isso é o que Iskra considerava
como obstáculo para o acordo (Dois congressos, p. 25).
Isso está muito longe de ser verdade. Nunca atentamos169
contra a autonomia de Rab. Dielo. Efetivamente, rechaçamos
categoricamente sua fisionomia própria, se se entende por tal a
“fisionomia própria” nos problemas de princípio da teoria e da
tática: as resoluções de junho contêm precisamente a negação
categórica dessa fisionomia própria, porque na prática sempre
significou, repetimos, todo tipo de vacilações e o apoio, por conta
dessas vacilações, à dispersão reinante em nosso meio, insupor-
tável do ponto de vista do partido. Com seus artigos do nº 10 e
com as “emendas”, Rab. Dielo manifestou claramente seu desejo
de manter justamente essa fisionomia própria e semelhante desejo
conduziu, natural e inevitavelmente, à ruptura e à declaração
de guerra. Porém, todos nós estávamos dispostos a reconhecer a
“fisionomia própria” de R. D., no sentido de que deve concentrar-
-se em determinadas funções literárias. A distribuição acertada
dessas funções se impõe por si mesma: 1) revista científica; 2)
periódico político; 3) compilações populares e brochuras popu-
lares. Só acatando essa distribuição o Rab. Dielo demonstraria
um sincero desejo de acabar de uma vez para sempre com as
aberrações contra as quais se dirigiam as resoluções de junho;
somente essa distribuição eliminaria qualquer possibilidade de
atritos e asseguraria efetivamente a firmeza do acordo, servindo
também de base para um novo auge e para novos êxitos de nosso
movimento.
169
Se não considerarmos como restrição da autonomia as deliberações das redações, rela-
cionadas com a formação de um conselho supremo comum das organizações unidas,
coisa que Rab. Dielo aceitou também em junho.

262
V. I. Lenin

Agora, nenhum social-democrata russo pode pôr em dúvida


que a ruptura definitiva da tendência revolucionária com a opor-
tunista não se originou por circunstâncias “de organização”, mas,
precisamente, pelo desejo dos oportunistas de garantir a fisionomia
própria do oportunismo e de seguir ofuscando as mentes com os
raciocínios dos Kritchevski e dos Martinov.

263
EMENDA A QUE FAZER?

O “Grupo de Iniciadores”, ao qual me referi em Que Fazer? (p.


141 ), solicitou-me a seguinte emenda à parte que expõe sua par-
170

ticipação no intuito de conciliar as organizações social-democratas


no exterior:
Dos três integrantes desse grupo, só um se retirou da ‘União’
em fins de 1900; os outros não se retiraram até 1901, quando
se convenceram de que era impossível conseguir que a ‘União’
aceitasse celebrar uma conferência com a organização do Iskra no
exterior e com a ‘organização revolucionária Sotsial-demokrat, no
que consistia a proposta do Grupo de Iniciadores’. A administração
da ‘União’ rechaçou, de início, essa proposição, justificando sua in-
disponibilidade de participar na Conferência pela ‘incompetência’
das pessoas que integravam o ‘Grupo de Iniciadores’, mas expres-
sando o desejo de mediar as relações diretas com a organização
do Iskra no exterior. Contudo, pouco depois, a administração da
‘União’ informou ao ‘Grupo de Iniciadores’ que, após o surgi-
mento do primeiro número do Iskra, no qual se publicava a nota
sobre a cisão da ‘União’, mudara de opinião e não se dispunha a
contatar o Iskra. Como explicar, após isso, a declaração de um
integrante da administração da ‘União’ de que sua indisponibili-
dade de participar da Conferência se devia exclusivamente a seu

[cf. supra, nota 165.]


170

265
Que fazer ? Problemas candentes do nosso movimento

descontentamento com a composição do ‘Grupo de Iniciadores’?


Certamente, tampouco se compreende porque a administração da
‘União’ consentiu em participar na Conferência de junho do ano
passado: a nota que surgiu no primeiro número do Iskra frente
à ‘União’ mantinha a posição, sublinhada com maior relevo no
primeiro volume de Zaria e no quarto número do Iskra, lançados
antes da Conferência de junho.

Lenin,
Iskra nº 19, 1 de abril de 1902.

266
ANEXO
APRESENTAÇÃO *

A publicação de Que fazer? no Brasil constitui um aconte-


cimento de grande significação política, malgrado as presentes
condições nas quais vivemos e a debilidade crônica do nosso
movimento socialista. Está fora de dúvida que essa não é a maior
obra de Lenin. Contudo, ela caracteriza o momento no qual o
leninismo se revela em seus componentes essenciais: em nove anos
de experiência, de lutas constantes, de perseguições e de enorme
fermentação criadora, um jovem “publicista” da ala esquerda da
social-democracia russa punha-se à frente da vanguarda teórica
desse partido. Apenas nove anos? O que se pode realizar quando a
história se move para a frente e o pensamento revolucionário é ex-
posto a todas as tensões de forças contrárias, da mais odiosa opressão
de um regime autocrático cruel e de sua terrível repressão policial
às inquietações da intelligentsia, dos estudantes, dos radicais de
uma burguesia impotente e, em particular, das pressões crescentes
das massas populares, do campo e da cidade! Em suma, quando
o pensamento revolucionário aceita suas tarefas, as enfrenta com
tenacidade, esclarecimento e coragem, procurando avançar sempre
para a frente, relacionando meios e fins que podem transformar a
“oportunidade histórica” em história real.

Texto originalmente escrito como apresentação ao livro Que fazer?, Editora Hucitec,
*

1978. Agradecemos aos familiares de Florestan Fernandes, que gentilmente autorizaram


a publicação deste texto.

269
Apresentação

Haveria muito que debater sobre este pequeno livro e seu signi-
ficado no movimento socialista revolucionário. Não obstante, seria
fora de propósito ornamentar Que fazer? com qualquer pretenso co-
mentário erudito. Os seus leitores podem ressentir-se da precisão de
Marx, por exemplo, nos comentários rigorosos à “Crítica do Programa
de Gotha”. No entanto, Que fazer? introduz no marxismo uma nova
dimensão política. Na verdade, ele é uma resultante de um acidentado,
heroico e construtivo labor coletivo: o que várias tendências do popu-
lismo, do radicalismo e do socialismo criaram na Rússia dos mea­dos
do século XIX à sua última década. Uma experiência filtrada por
Lenin e amadurecida por sua penetrante acuidade à contribuição do
movimento socialista europeu, especialmente na Alemanha, França
e Inglaterra. Não se pode ignorar figuras como Plekhanov, Axerold
e Zasulitich (além de outros companheiros do Iskra e da ala esquerda
do POSDR), cuja produção teórica e visão dos problemas práticos
do marxismo na Rússia alimentaram a aprendizagem e os primeiros
tirocínios de Lenin. Todavia, ele os suplanta com uma rapidez incrível.
Que fazer? marca uma nova etapa, que deixa tudo para trás. De sua
edição em diante, a Rússia não seria o cenário da transmutação pura
e simples do marxismo em movimento revolucionário triunfante.
Nascia o marxismo-leninismo como teoria revolucionária e como
prática revolucionária organizada. A própria Europa ficava para trás,
apesar da importância da Segunda Internacional e dos seus grandes
teóricos, e da densidade do movimento operário europeu.
Neste breve comentário, gostaria de concentrar-me em três
questões mais importantes para os leitores brasileiros no momento
atual. A primeira diz respeito ao próprio Lenin: porque ele já estava
politicamente qualificado para escrever uma obra tão simples mas
de consequências tão profundas e permanentes? A segunda impõe-
-se como decorrência: o que representa a concepção do marxismo
que Que fazer? propõe? A terceira vincula-se ao aqui e ao agora: o
que um livro como este testemunha quanto à nossa própria ima-
turidade e impotência políticas no Brasil e na América Latina?

270
Florestan Fernandes

Quanto ao primeiro tema, se Lenin era um “cérebro político”


privilegiado (descrito por Trotsky como o único estrategista da
revolução bolchevique), ele também recebe uma herança política
privilegiada e viveu em um momento histórico privilegiado. Não
penso em simplificar as coisas, para chegar a uma redução determi-
nista do papel do herói na História. Isso seria indigno de qualquer
comentário mais ou menos lúcido do significado de Que fazer?; e,
em particular, entraria em conflito com o modo pelo qual Lenin
se via como um “publicista de partido”. Um livro escrito entre o
outono de 1901 e fevereiro de 1902, publicado em março de 1902
– mas que se propunha os problemas centrais da teoria e da prática
revolucionárias na Rússia e na Europa – transcende a uma datação
localizada. Ele responde a muitas questões contraditórias e a grandeza
criadora de Lenin aparece na propriedade das perguntas que formula,
e na qualidade das respostas (ou das soluções) que apresenta (numa
linguagem que é sempre simples, direta, embora marcadamente
irônica e mordaz: Lenin não se propunha uma “leitura” de Marx – o
que ele queria era descobrir os meios mais eficazes de converter uma
revolução potencial, bastante forte para deixar a vanguarda teórica
deslocada pelas exigências e alguns avanços das massas populares,
no ponto de partida da desagregação do regime tsarista e de uma
revolução permanente na qual o marxismo se impusesse como uma
cunha irremovível, capaz de suplantar o liberalismo e o radicalismo
burgueses, o populismo, o socialismo moderado ou reformista, o
terrorismo etc., e de gerar uma revolução proletária vitoriosa). Quan-
tos revolucionários afirmaram (ou afirmam) que precisam sonhar
e exigem a liberdade de sonhar? O importante é que o sonho não
estava longe da realidade. Ao contrário, respondia diretamente ao que
era preciso fazer para passar-se de um “sonho” à sua concretização.
Ora, aí temos uma complexa situação histórica. A simplificação e o
reducionismo determinista existiriam se se ignorasse a convergência
de várias condições e de diversos fatores, imediatos ou remotos, e a
função catalisadora de uma personalidade invulgar.

271
Apresentação

Ao iniciar a redação deste livro, Lenin já era uma figura de


relevo no marxismo russo. Ainda não rompera com os principais
teóricos contemporâneos e mal começara a experimentar suas li-
mitações no campo da ação revolucionária. De outro lado, através
da Segunda Internacional, de sua participação interna e externa na
reelaboração da teoria socialista e na crítica do reformismo ou do
oportunismo, infundira à sua própria posição uma intransigência
marcante, um radicalismo maduro e um espírito prático à toda a
prova. Não era um “publicista”, apenas, era um político experiente e
um revolucionário que sonhava com a revolução procurando como
encravá-la no seio de um regime odiado e destrutivo. Como ativista,
já tinha demonstrado seu potencial como agitador e sua firmeza
diante da repressão (uma repressão desconhecida na Europa, mes-
mo nas piores circunstâncias). Como teórico, já havia comprovado
que ultrapassara o período da aprendizagem: O desenvolvimento
do capitalismo na Rússia (publicado em 1899) dissocia a teoria da
análise, mas atesta, por isso mesmo, o quanto Lenin dominava as
doutrinas econômicas de Marx e o quanto, por sua vez, era capaz
de interpretar, segundo critérios marxistas rigorosos, uma realidade
histórica diferente, de modo original, independente e construtivo.
Na verdade, ele irradiara o seu talento crítico na direção dos múlti-
plos temas do debate político socialista, imperante dentro da Rússia,
e evidenciara um avanço teórico relativo comparável ao nível que
prevalecia no exterior, no movimento socialista mundial. No sentido
em que os franceses usam a expressão, ele era uma “personalidade
política” reconhecida e impunha-se como uma influência pessoal
com a qual se devia contar – e que deveria crescer. A criação da
revista Iskra, destinada à discussão política e científica, e do jornal
operário Zaria, que se voltava para toda a Rússia, sugere que essa
personalidade marcante encontrara um quadro histórico e outros
companheiros – em suma, que o movimento socialista na Rússia,
apesar das aparências, estava saltando acima do movimento socia-
lista na Europa, especialmente na esfera da ação política direta,

272
Florestan Fernandes

de levar a revolução socialista do plano das ideias e das aspirações


para o plano prático.
As reflexões contidas em Que fazer? correspondiam às, “exi-
gências da situação histórica”, não eram fruto de uma especulação
“genial” e tampouco uma ousadia “isolada”. Lenin abordara antes
os mesmos temas, em especial ao elaborar uma versão do programa
da social-democracia russa, ao redigir o projeto de declaração da
Iskra e do Zaria, e de maneira mais concentrada no artigo “Por
onde começar?” (de maio de 1901). Naquele projeto já se colocara
contra “o praticismo estreito”, a dispersão e o caráter artesanal do
movimento socialista, batendo-se por uma forma superior, mais
unificada e melhor organizada de luta política. No artigo, por sua
vez, antecipa a substância do livro. Pretende um sistema e um plano
de atividade prática, o que o coloca contra o economismo (o sindica-
lismo reformista estreito), que desemboca na impotência política,
e contra o terror, que não condena em princípio, mas caracteriza
como “uma arma inoportuna, inoperante, que afasta os comba-
tentes mais ativos de sua verdadeira tarefa” e que “desorganiza não
as forças governamentais, mas as forças revolucionárias”. Temos aí
toda uma equação política revolucionária, que não foi inventada
por Lenin. Ela nascia de uma situação histórica “madura”, na qual
os problemas de agitação, propaganda e organização impunham a
reestruturação do movimento socialista. O fato de Lenin se defron-
tar sem nenhuma timidez com essa equação e soltar suas pontas,
decifrando o caminho a seguir, diz por si mesmo o quanto ele
era a personalidade para desempenhar tal papel. Um “produto da
história” que era, também, um fator humano de sua transformação.
Quanto ao segundo tema, está na moda uma visão crítica
negativista do “leninismo”. O leitor verá que uma boa parte desse
ataque grosseiro (como certa parte das condenações refinadas),
eclodiu contemporaneamente: Que fazer? aparece como uma
necessidade de desvencilhar o socialismo revolucionário desse
terrível cipoal, continuamente reconstituído por tantas forças

273
Apresentação

contraditórias. Não pretendo travar um combate de cavaleiro an-


dante contra a falta de imaginação. Contudo, convém que o leitor
fique atento e compare: como Lenin ridiculariza seus críticos (e os
críticos do marxismo); e como ele refuta ou afasta tantas suspeitas
com referência à “profissionalização” da atividade revolucionária
e à organização do movimento socialista revolucionário. De um
lado, temos forças contrarrevolucionárias ou conservadoras não só
organizadas econômica e socialmente – contando também com a
centralização política, proveniente da existência e do controle do
Estado. De outro, a “antiordem” desordenada, fiel a fórmulas ideais
e abstratas que não são bastante fortes, por si mesmas, para levar de
vencida o tsarismo. Se avançarmos diretamente na linha profunda
do pensamento de Lenin: ele propõe nada mais nada menos que a
alternativa do antiestado, a organização de um Estado dentro de
outro Estado, ou seja, a organização da revolução. De um golpe, ele
supera as várias soluções do radicalismo burguês e do socialismo
reformista e os imponderáveis do terrorismo. Para muitos, aí não
haveria novidade. A novidade, estaria apenas na russificação do
marxismo, na “bolchevização”, que eliminaria do marxismo a sua
vinculação espontânea com as massas e seu teor democrático. Ora,
chegar a essas conclusões por efeito da propaganda conservadora
e contrarrevolucionária é explicável. Mantê-las, depois de ler Que
fazer?, significa uma obliteração da razão socialista (se esta existe,
de fato). O que Lenin faz com o marxismo só pode ser definido de
uma maneira: ele converte o marxismo em processo revolucionário
real. Se o faz tendo em vista as condições políticas do tsarismo e
da sociedade russa, disso ele não se poderia livrar...
Portanto, Lenin inaugura uma concepção do marxismo: a que
rompe frontalmente com o elemento burguês em todos os sentidos,
ainda dentro e contra a sociedade capitalista. Os grande teóricos
do socialismo revolucionário europeu esperavam a vitória da revo-
lução para extirpar a condição burguesa que impregnasse a todos os
revolucionários, dos militantes de base ao tope da vanguarda, o que

274
Florestan Fernandes

significa que a massa de seguidores poderia oscilar livremente, das


opções socialistas às opções democrático-burguesas. O combate dos
“métodos artesanais” significa acabar com isso na medida do possível.
O que fica de “entranhadamente burguês” em um militante subme-
tido a um treinamento profissional e para atuar clandestinamente?
Depois que um partido revolucionário aceita tal evolução, ele tem
condições para dar uma volta atrás, procedendo como os socialistas
alemães, franceses ou ingleses que traíram o socialismo para não
traírem seus governos nacionais? De outro lado, um partido revolu-
cionário que organiza a revolução deixa de vincular-se à oscilação das
massas populares, de aproveitar produtivamente sua espontaneidade?
Ele perde, por isso, seu caráter democrático? De onde vem a estrutura
revolucionária e democrática de um partido socialista e da revolução
socialista: da ordem que ambos combatem e devem destruir ou dos
princípios fundamentais do socialismo? Por aí se verifica que Lenin
converteu o marxismo em uma realidade política antes mesmo que o
regime tsarista se desagregasse e ocorresse a revolução proletária. Os
que se apegaram demais às condições “democráticas” da ordem exis-
tente e pretendiam avançar suavemente, cultivando o oportunismo, o
reformismo, o gradualismo, o obreirismo, o populismo ou, no outro
extremo, a violência episódica sem uma estrutura e continuidade
políticas não podiam entender a sua linguagem. Pareciam-lhes que
a passagem para o socialismo perdia, desse modo, todo o encanto
pequeno-burguês e toda a atração heróica. Uma revolução que se
organiza politicamente, que centraliza suas forças, surge, como um
antiestado, sob a aparência de uma “militarização”, de um despo-
tismo dissimulado sob o centralismo democrático.
Essa “leitura” de Lenin é a de todos os que se identificam com
o socialismo como uma fonte de compensação psicológica ou
moral. Depois que a burguesia se converteu em classe dominante
reacionária ou contrarrevolucionária, na Europa e nos Estados
Unidos, que utilizou exemplarmente o que Engels descreveu como
o “terrorismo burguês”, não existia outro caminho para chegar não

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Apresentação

“ao poder”, mas à construção de uma sociedade socialista. O que


dizer da Rússia? Lenin aponta com sagacidade as diferenças: o que
um regime ultraopressivo deixa como espaço político “democráti-
co” para as reivindicações do povo, das classes trabalhadoras, dos
movimentos radical-democráticos ou socialistas. Um espaço zero.
O teórico socialista se defronta com a necessidade de partir desse
espaço zero: criar a revolução a partir de dentro da contrarrevolução.
Ou seja, o combate organizado à contrarrevolução institucionalizada
e estabilizada politicamente deve ser, desde o inicio, um processo
revolucionário. Daí as frases famosas deste livro: “Sem teoria revolu-
cionária, não existe movimento revolucionário”; “toda a vida política
é uma cadeia sem fim composta de um número infinito de elos”;
“é preciso sonhar” etc. A contraparte dessas frases famosas: sem
organização não se mede a força de um movimento revolucionário
e sem movimento revolucionário não se testa a teoria revolucionária.
Lenin completa o marxismo. Introduz a dialética na esfera da ação
política direta e do movimento de massas pelo socialismo.
Quanto ao terceiro ponto, Que fazer? é um divisor de águas.
Escrito e publicado no alvor do século XX, ele sintetiza os avanços
do socialismo e do marxismo na Rússia no século anterior e assinala
as promessas revolucionárias realmente fundadas. O livro todo cons-
titui uma polêmica com o passado, com os contemporâneos, com
os que se voltavam para a construção de uma Rússia democrática
ou socialista. Onde se escreve um livro como esse, no momento em
que um livro como esse pode ser publicado, a partir do combate
ou da aceitação das ideias contidas em um livro como esse, pode-
-se constatar a existência de um movimento revolucionário denso,
inquieto, maduro e indomável. A vitalidade do movimento socialista
não nasce de si mesmo, apenas, nasce da sociedade em que se cons-
titui e na qual se expande. O requisito histórico e o patamar de um
movimento dessa envergadura é a existência de uma sociedade que
caminha inexoravelmente, pelas pressões de baixo para cima, pela
insatisfação das massas e pelo inconformismo das classes trabalha-

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Florestan Fernandes

doras, na direção da desagregação da ordem existente e da revolução


social. Nesses quadros históricos há um socialismo potencial (diria,
mesmo, um socialismo revolucionário potencial). O marxismo como
teoria e como práxis pode ser facilmente irradiado nas várias direções
da sociedade: as tarefas dos militantes, dos “teóricos” e “publicistas”
nem por isso é mais fácil. Porque essa potencialidade traz consigo
uma repressão feroz, uma autodefesa cega e impiedosa. Contudo, a
violência institucional da contrarrevolução não consolida a si própria.
Ela fortalece as forças antagônicas, os inimigos da opressão e da
contrarrevolução, ou seja, em um primeiro momento, a revolução
democrática de base popular, em outro momento seguinte, o con-
trole do Estado pelas forças da revolução democrática, e a transição
para o socialismo. Em resumo, se não existissem peixes nos rios e
no mar seria impossível pescar. O movimento socialista exige um
mínimo de condições “objetivas” e “subjetivas” (e o mesmo se pode
dizer da revolução socialista).
Dadas certas essas condições, o que depende dos próprios socia-
listas para que o seu movimento se consolide, se irradie e, através das
massas populares e das classes trabalhadoras, se converta em força
política revolucionária? Excluindo-se Cuba, a experiência chilena
e algumas manifestações verdadeiramente políticas da guerrilha, a
América Latina foi o paraíso da contrarrevolução (da contrarrevo-
lução mais elementar e odiosa, a que impede até a implantação de
uma democracia-burguesa autêntica). Hoje, mais do que nunca, ela
continua a ser o paraíso da contrarrevolução, só que, agora, conju-
gando o “terrorismo burguês interno” com o “terrorismo burguês
externo”. Os partidos que deveriam ser revolucionários (anarquistas,
socialistas ou comunistas) devotaram-se à causa da consolidação da
ordem, na esperança de que, dado o primeiro passo democrático,
ter-se-ia uma situação histórica distinta. Em suma, bateram-se pela
democracia burguesa, como se fossem os campeões da liberdade.
Trata-se de uma avaliação dura? Quanto tempo as burguesias na-
cionais ter-se-iam aguentado no poder se fossem atacadas de modo

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Apresentação

direto, organizado e eficiente? Ou estamos sujeitos a uma “fatalidade


histórica”, que prolonga o período colonial e a tirania colonizadora
depois da independência e da expansão do Estado nacional? O
diagnóstico correto, embora terrível para todos nós, é que nunca
fizemos o que deveríamos ter feito. Os “revolucionários” quiseram
manter seus privilégios, ou os seus meio-privilégios, sintonizando-se
com as elites no poder e com as classes dominantes. Formaram a
sua ala radical, sempre pronta a esclarecer os donos do poder sobre
o que certas reformas implicariam, para evitar uma aceleração da
desagregação da ordem e os seus efeitos imprevisíveis...
Não estou inventando. Voltamos as costas à organização da
revolução e auxiliamos a contrarrevolução, uns mais outros menos,
uns conscientemente, outros sem ter consciência disso. E a “massa”
da esquerda tem os olhos fitos no desfrute das vantagens do status
de classe média. O que ameaça esse status entra em conflito com
o socialismo democrático...
Todas essas reflexões pungentes precisam ser feitas e refeitas.
Que fazer? desvenda essa realidade incômoda. Não fomos fascinados
pelo “espontaneísmo” das massas: estas exerceram pouca atração
sobre o pensamento político propriamente revolucionário, sempre
preso a fórmulas importadas de fora, com frequência fórmulas
com alta infeção burguesa (para usar outra expressão de Lenin).
Fomos paralisados pela ideia do gradualismo democrático-burguês
e pelo poder de coação da ordem. O que quer dizer que, na era da
polivalência no “campo socialista”, ainda não sabemos quais são
os caminhos que nos levarão à desagregação do nosso capitalismo
selvagem e a soluções socialistas apropriadas à presente situação
histórica. Um atraso monumental. O que Lenin fez, por exemplo,
em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia só tentamos no plano
da erudição. Por conseguinte, fora de Cuba não se criou um pensa-
mento socialista revolucionário original. A principal tarefa, teórica
foi negligenciada até hoje, porque líderes, vanguardas e partidos da
esquerda ou vivem a sua integridade socialista com extremo purismo

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Florestan Fernandes

ascético – e bem longe da atividade prática concreta – ou se con-


centram no “economismo” e, pior que isso, em táticas imediatistas,
de composição dentro da ordem, como se o socialismo pudesse ser
o último estágio, a quinta-essência da “democracia” burguesa. O
reformismo pequeno-burguês como estilo de prática política. Ora,
tudo isso está ocorrendo numa época em que a transição para o
socialismo ficou mais difícil. Depois das grandes revoluções – da
Rússia, da China, do Vietnã, da Iugoslávia e de Cuba – o cerco
capitalista ao socialismo se aperta a partir de dentro e a partir de
fora. A contrarrevolução deixa de ser o produto de uma autocracia
secular: a autocracia é organizada deliberadamente, como a bar-
reira, o bastião de defesa e a base política de contra-ataque militar
e policial do chamado “capitalismo tardio”. De outro lado, essa
contrarrevolução corrompe tudo, pelos meios de educação, comu-
nicação de massa, consumo de massa, cooptação etc. Depois de 76
anos, Que fazer? continua válido. Todavia, a teoria revolucionária e a
organização do movimento revolucionário precisam ser adaptadas a
uma situação política muito diversa. Os que esperam que o “campo
socialista” resolverá todos os problemas e dificuldades cometem um
equívoco. A cooperação e o auxílio efetivo só poderão amparar os
movimentos revolucionários viáveis, que comprovarem sua vitali-
dade e a sua eficácia. Em outras palavras, é urgente superar a nossa
circularidade e a nossa fraqueza inventiva. Os que são socialistas
precisam devotar-se à tarefa de construir a teoria revolucionária
exigida pela situação atual da América Latina.
Essas ponderações podem parecer exageradas. A partir do Brasil?
O país que ficou no maior atraso dentro do movimento sindical, so-
cialista e revolucionário na América Latina? Na época em que Lenin
escreveu e publicou Que fazer?, quem pensaria que a Rússia, e não
alguma nação avançada da Europa, se colocaria na vanguarda da
história? Não penso que poderemos “queimar etapas”. O avanço real
só pode ser conquistado graças e através das massas populares e das
classes trabalhadoras. A nossa tarefa urgente consiste em propagar o

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Apresentação

socialismo revolucionário nesses setores da sociedade e, com o ama-


durecimento da sua experiência política, tentar-se o equacionamento
de “por onde começar?” Nem uma coisa nem outra será possível se
se mantiver a tática “economista”, o falso obreirismo e o populismo
das classes dominantes, a submissão a burguesias pró-imperialistas
e entranhadamente antidemocráticas e contrarrevolucionárias.
Parece claro que voltamos, no momento que corre, a erros crônicos
do passado, lançando as forças vivas de uma revolução democrática
na maior confusão, abandono e impotência. Oitenta e nove anos
de “regime republicano” já nos ensinaram o bastante. Não serão as
classes possuidoras, especialmente os seus setores privilegiados na-
cionais e estrangeiros, que irão favorecer e levar a cabo a revolução
democrática. E esta não pode ser pensada, por um socialista, como
um desdobramento de etapas. Onde as massas populares e as classes
trabalhadoras se afirmam como as únicas alavancas da revolução
democrática, esta só poderá conter uma transição burguesa extrema-
mente curta. Cabe aos socialistas dinamizar a “revolução dentro da
revolução”. Hoje, mais que no passado, a civilização de consumo de
massas constitui um ópio do povo. As massas populares e as classes
trabalhadoras só podem ser educadas para o socialismo através de um
forte movimento socialista, dentro do qual elas forneçam as bases,
os quadros e as vanguardas, e através do qual elas disputem o poder
das classes dominantes, deslocando-as do controle do Estado e do
sistema de opressão institucional “democrático”. O que assinala que,
se os caminhos são diversos, várias lições de Que fazer? preservam
toda a atualidade, sob a condição de que a opção pelo socialismo
seja tomada para valer.

São Paulo, 19-20 de março de 1978


Florestan Fernandes

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