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Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora

Mauro Luis Iasi1

“O Nada de qualquer coisa é uma nada determinado”
Hegel (Grande Lógica)

O  capital  cumpriu   sua  tarefa,  mundializou­se,  monopolizou­se,  estendeu  suas   garras


dissolvendo  as  mais  ternas  ilusões  românticas  no  frio  calculo  egoísta,  subordinou  ou  campo  à
cidade,  a  ciência  à  indústria,  a  estética  ao  mercado,  mercantilizou  todas as esferas da vida. Na
sua  forma  madura   e parasitária, bem diversa daquela pela qual os ideólogos liberais projetavam
seus  mitos  futuros,  o  capital  assume  a  forma  de sua negação tornando­se um enorme entrave à
vida humana.
Bom,  então...  “o  invólucro  rompe­se, soa a hora da propriedade capitalista” e... Nada!
Os  expropriadores  continuam  expropriando  e  ideologicamente  se  produz  uma  inversão
fantástica:  é  o  projeto  socialista  e  revolucionário  que  parece  perder  a  atualidade  sendo
apresentado como pura anacronia.
O capital em sua forma madura, parasitária, exige que seu domínio implique em um grau
cada  vez   maior  de  cooptação  e  apassivamento  do  proletariado.  Nas  palavras  de  Gramsci, um
“transformismo”,  ou  seja,  uma  “absorção  gradual  mas  contínua,  e  obtida  com  métodos  de
variada  eficácia,  dos  elementos  ativos  surgidos  dos  grupos  aliados  e  mesmo  dos adversários e
que pareciam irreconciliáveis inimigos” (Gramsci, 2011: 318).
É  certo  que  pelo  centro  do  sistema,  nos  EUA  e  Europa,  os  trabalhadores  andam
agitados  e  indignados,  saindo  as  ruas  e   protestando,  mas  a  ordem  parece  resistir  à  seus  sinais
de  agonia  e  a  esquerda  declama  Saramago  numa  profética  sentença:  “a  juventude  não  sabe  o
que pode e os velhos não podem fazer o que sabem”.

1
  Mauro  Luis  Iasi  é  professor   Adjunto  da  ESS  da  UFRJ,  coordenador  do  NEPEM  (Núcleo   de  Estudos  e
Pesquisas  Marxistas),  do  Núcleo  de  Educação   popular  13  de   Maio  e do CC do PCB. Autor de  O Dilema de  Hamlet, o
ser  e  o  não  ser   da  consciência  (Boitempo/Viramundo,  2002),  Ensaios   sobre   consciência   e  emancipação  (Expressão
Popular, 2007), Metamorfososes da Consciência de Classe (Expressão Popular, 2006), entre outros.
Por  aqui  as  coisas  são  mais  prosaicas.  O  capital  alcança  taxas  de  acumulação
inimagináveis  (a  Petrobrás  lucrou  R$  35.189  bilhões  em  2010,  com  elevação  de  17%  ante   o
ano  anterior;  o  Bradesco  obteve um lucro líquido de R$ 10 bilhões em 2010, resultado 25, 1%
maior  que  o  registrado  em  2009,  a  Vale  triplicou seu lucro chegando a 30,1 bilhões no mesmo
ano)  que  refletem  uma  intensificação  brutal  da  taxa  de  exploração  acompanhada  dos  ajustes
necessários  à  boa  saúde  das  relações  capitalistas,  flexibilizando  direitos  e  impondo  perdas
históricas  aos  trabalhadores.  No  entanto,  diante de tal massacre, estamos no ponto mais  agudo
de  uma  defensiva  da  classe  trabalhadora  que  parece  respaldar  os  rumos  da  ordem  capitalista,
anestesiada, apassivada. Nada!
A  mesma  classe  trabalhadora  que  entre  o  final  da  década  de  1970  e  boa  parte  dos
anos  1990  equilibrou  a correlação de forças e impôs patamares de resistência à acumulação de
capitais,  garantiu  direitos  e  os  inscreveu  na  ordem  constitucional  consagrada  em  1988,  parece
assistir  passiva  ao  desmonte  destas  garantias  e  direitos,  emprestando,  ainda  que  de   forma  não
ativa,  seu  respaldo  à  atual  forma  de  acumulação  que  se  implantou  no  início  do  século  XXI.  A
mesma  classe  que  resistiu  ao  desmonte  do  Estado  e  das  Políticas  Públicas,  alia­se  aos  seus
antigos  adversários  para  desarmar  a  classe  trabalhadora   diante  da  disputa  do  fundo  público
agora  colocado  a  serviço  da  acumulação  privada,  em  nome  de  um  mito  revivido:  o
desenvolvimento.
O  principal  trunfo  do  setor  político   que  se  mantêm  no  poder  é  o  controle  e  o
apassivamento  da  classe   trabalhadora.  O  senhor  Michel  Temer,  então  candidato  à  vice
presidente  na  chapa  de  Dilma  Rousseff,  acalmando  uma  platéia  de  investidores  estrangeiros,
declarou  que  o  pais  estava  pronto  para  receber  investimentos,  uma  vez  se  trata  de  um  pais
“internamente  pacificado”,  no  qual  se  “os  movimentos  sociais  não  estivesses pacificados, se os
setores  políticos  não  estivessem  pacificados  (...)  se  aqueles  mais  pobres  não  estivessem
pacificados  (...)   isto  geraria  uma  insegurança”  (Folha  de  São  Paulo,  27  de   agosto  de  2010,
caderno A, p. 8).
Evidente  que  esse  juízo  geral  não  pode  esconder  a  saudável  e  honrada  resistência  de
vários  setores  da  classe  que  se  negam  ao  amoldamento,  assim  como  as  formas  não  explícitas
de  resistência,  como  por   exemplo  a  apatia  e  a  forma  pouco  séria  com  que  os  trabalhadores,
com  razão  e  prudência,  tratam  as  coisas  da  pequena  política.  No  entanto,  devemos  analisar
aqui o sentido geral que marca o período e esse parece ser o do apassivamento.
Como  já  nos  dizia  Hegel  em sua Grande Lógica, “todo Nada é um nada determinado”,
portanto, o que se nos impõe neste momento é perguntar sobre as determinações deste “nada”.

A critica à estratégia Democrática Nacional: o imperialismo e a luta de classes

Quando  estudamos  o  comportamento  político   da  classe  trabalhadora  precisamos  de


partida  evitar  duas  armadilhas:  compreendê­lo  como  mera  intencionalidade  subjetiva,  ou,
inversamente,  como  simples  determinação  de  uma  objetividade  dada.  No  primeiro  registro  o
amoldamento  da  classe  trabalhadora  à  ordem  que queria enfrentar se explica por um desvio de
direção  que  leva  os  trabalhadores  ao  pântano  do  pacto  social;  no  segundo  as  determinações
objetivas  da  crise,  dos  desenrolar  dos  fatos  históricos  dramáticos  (a  reestruturação  produtiva
do  capital,  a  crise  nos  países  em  transição  socialista,  etc.),  os  momentos  de  crescimento
econômico e as migalhas jogadas aos trabalhadores, explicariam a apatia e o amoldamento.
Acreditamos  que  as  coisas  não  são  tão  simples,  trata­se  de  uma  síntese  de  fatores
subjetivos  e  objetivos,  mas  é  preciso  refletir  sobre  a  objetividade  contida  nos  ditos  fatores
subjetivos,  da  mesma  forma   que  a  maneira  como  a  ação  política  da  classe  e  suas  direções
incide  concretamente  no  desenho  final  da  objetividade  que  determinou  esta  ação.  Por  isso,
quando  falamos  de  um  determinado  comportamento  da  classe  trabalhadora,  devemos
relacioná­lo  à   uma  estratégia  determinante  em  um  certo  período  histórico,  não  como  uma
escolha  arbitrária  de  uma  certa  direção  ou  vanguarda,  mas  como  uma  síntese  que  expressa  a
maneira  como  uma  classe  buscou  compreender  sua  formação  social  e  agir  sobre  ela  na
perspectiva de sua transformação.
  É  assim  que  no  ciclo  histórico  que   marca  a  luta  da  classe trabalhadora brasileira entre
os  meados  da  década  de  1940  até  o  golpe  empresarial  militar  de  1964,  a  estratégia
determinante   foi  a chamada Revolução Democrática Nacional e sua principal expressão política
foi  o  PCB  (Mazzeo,  1999;  Koval,  1982).  Isso  não  significa que apenas o PCB estava preso a
esta  formulação,  ela  consiste  um  universo  programático  fundado  naquilo  que  Caio   Prado  Jr
(1978)  denominou de uma forma  consagrada de compreender a revolução brasileira, “prejuízos
herdados  do  passado  que   se  consolidaram  em  concepções  rígidas,  verdadeiros   dogmas,  que
contando  como  contam  com  tão  longa  tradição,  se  tornam  por  isso  mesmo  altamente
respeitáveis”  (idem:  30).  Tal  concepção  acaba  por  se  impor  a  todos,  mesmo  àqueles  que
empreendem o árduo caminho de criticar a visão “consagrada”.
Em  sua  essência,  esta  maneira  consagrada,  reside  na   certeza  que  a  formação  social
brasileira,  pela  sua   história  colonial  e  sua  inserção  no  moderno  sistema  capitalista  mundial,
assumia  uma  contradição  principal  entre  a  prevalência  de  uma  estrutura  agrária  tradicional  e  o
imperialismo,  por  um  lado,  e  os  vetores  que  apontavam  para  o  desenvolvimento  de  uma
capitalismo  nacional,  por  outro.  Nessa  leitura,  tanto  o  imperialismo  como  o  latifúndio
(expressão  mais  nítida  da  estrutura  agrária  arcaica),  impediam  o  desenvolvimento  do
capitalismo  brasileiro.  Assim,  as  demandas  de  uma  suposta  burguesia  nacional  por  um
desenvolvimento  autônomo  do  capitalismo  brasileiro  a  faria  se  chocar  com  os  interesses  do
imperialismo  e  de  seus  aliados   internos,  as  oligarquias  tradicionais,  abrindo  espaço  para  a
aliança com o proletariado.
Conclui,  então,  Caio  Prado  Jr.:  “A   sua  etapa  revolucionária  seria,  portanto,   sempre
dentro  do  mesmo  esquema  consagrado,  o  da  revolução  “demorático­burguesa”,  segundo  o
modelo  leninista  relativo  à  Rússia  tzarista”  (idem:  36).  No  caso  particular   da  formação  social
brasileira  esta  “etapa”  assumiria  a forma de uma luta “agrária”, “antifeudal” e  “anti­imperialista”.
Ainda  nas  palavras  de  Caio  Prado  Jr.,  agrária  por  se  contrapor  os  supostos  “restos  feudais”
que  se  apresentavam  no  corpo  da estrutura agrária tradicional, anti­imperialista “porque oposta
à dominação das grandes potencias ‘capitalistas’ (idem: 37).
Aqui  cabe  um  parêntesis que nos parece importante. Alem da conhecida critica sobre a
impropriedade  de  se  falar  em  feudalismo  no  Brasil,  há  um  aspecto  que   fica  obscurecido  pela
quase  evidência  desta  primeira  incorreção:  a  forma  como  se  define  imperialismo.  Este
obscurecimento  pode  levar  a  compreensão,  ao  meu  ver  equivocada,  que  a  formulação  da
revolução  democrática  nacional  é  contraditório  porque,  por  um  lado  erra  ao  identificar  a
estrutura  agrária  conservadora  como  feudal,  ainda  que  acerte  na  luta  anti­imperialista.  Nos
parece  que  há  um  erro  também  aqui.  Como  acontece  em  outros  casos,   a  posição
autoproclamada como “leninista” é pouco leniniana.
Lênin,  em  seu  famoso  trabalho  de  divulgação  sobre  o  tema  do  imperialismo,  combate
uma  postura  que  considera  teoricamente  insustentável  e  com  conseqüências  práticas
extremamente nocivas. Resume, citando o autor da formulação equivocada, da seguinte forma:

O  imperialismo  é  um  produto  do  capitalismo  industrial  altamente  desenvolvido.


Consiste  na  tendência  de  toda  nação  capitalista  industrial  a  submeter  ou  anexar,
cada  vez  mais,  regiões agrárias  mais extensas,  qualquer que  seja a  origem étnica
de seus habitantes (Kautsky apud Lênin, 1976: 461).

Ora,  esta  não  é  em  absoluto  a  posição  de  Lênin  sobre  o  imperialismo,  mas  a  de
Kautsky.  Seguindo  o  raciocínio  kautskiano  a  formulação  da  “etapa  democrático  burguesa” faz
sentido. O interesse do imperialismo, que aqui se transforma em uma “tendência”, em um opção
política,  é  de  anexar  áreas  agrárias  em  busca  de  suas  matérias  primas  e de mercado para  seus
produtos.  Nesse  ponto  coincide  com  os interesses dos setores  oligárquicos ligados à produção
de  produtos  primários e daí a aliança sugerida que garantiria o poder  oligárquico, mas impediria
o  desenvolvimento  de  relações  propriamente  capitalistas  nestas  formações  sociais  e,  assim,
ferindo os interesses de uma burguesia nacional.
No  entanto,  a  definição  de  Lênin  é  outra.  Para  ele  “o  imperialismo  é  o  capitalismo  em
sua  fase  de  desenvolvimento   na  qual  toma  corpo  a  dominação  dos  monopólios  e  do  capital
financeiro,  na  qual   adquire  especial  importância  a   exportação  de  capitais”  (Lênin,  1976:  460).
Diante  da  precisão  do  conceito  de  Lênin,  a  definição  de  Kautsky,  nas  palavras  do  líder
bolchevique, “não serve absolutamente para nada”.
O  ponto  mais  problemático  não  é  exatamente  a ênfase à tendência a anexação, de fato
uma  tendência  verificável,  quando  mais  se  considerarmos  o  início  do  século   XX,  momento em
que  Kautsky  escreve.  O  ponto  que  Lênin  destaca,  curiosamente  é  outro.  Diz  Lênin:  “a
particularidade  do  imperialismo  não  é  o  capital  industrial,  mas  sim  o  financeiro”(idem:  462).
Esta  abordagem permite  ao marxista russo relacionar o rápido crescimento do capital financeiro
com  uma  intensificação  da  política  anexacionista  no  final  do  século  XIX. Lembremos que para
Lênin,  seguindo  a  definição  de  Hilferding, capital finaceiro não é o mesmo que  capital bancário,
mas  a  fusão  do  capital  industrial  com  o  capital  bancário,  formando  o  traço  essencial  da  etapa
imperialista: o capital financeiro.
Como  sabemos  o  imperialismo,  assim  entendido,  é  a  expressão  do  capitalismo
monopolista  plenamente  desenvolvido.  O  auge  da  livre concorrência, por volta das décadas de
1860  e  1870,  coincide  com  a  formação,  ainda  embrionária  dos  monopólios,  na  crise  1873  e
seus  desdobramantos  posteriores  eles se tornam mais sólidos, mas é apenas no inicio do século
XX  com  a  crise  de  1900  a  1903  que  os  monopólios  se  consolidam  e  se  tornam  “a  base  de
toda a vida econômica” e o “capitalismo se transforma em imperialismo” (idem: 389).
O  que  nos chama a atenção é que, partindo da definição de Kautsky, o imperialismo se
apresenta  como  um  fator  de  entrave  ao desenvolvimento das relações capitalistas nas áreas em
que  se  impõe;  ao  passo  que  compreendendo  o  fenômeno  a  partir  da  definição  de  Lênin,  o
imperialismo  se  torna  um  fator  de  generalização  das  relações  capitalistas.  Por  este  ângulo
altera­se  substancialmente  o  caráter  da  revolução.  Para  Kautsky  trata­se  da  revolução
nacional, para Lênin da ante­sala da revolução socialista.
O  que  caracterizava  o  “velho  capitalismo”,  continua  Lênin,  o  capitalismo  própria  da
livre  concorrência,  era  a exportação de mercadorias, enquanto o que “caracteriza o capitalismo
moderno,  no  qual  impera  os  monopólios,  é  a exportação de capitais. Talvez  nem mesmo Lênin
tenha  tirado  todas  as  conclusões  possíveis  desta  afirmação.  A  exportações  de  capitais  revela
uma  determinação  mais  profunda  que  é  aquilo  que  Marx  denominou  de  “queda  tendencial  da
taxa  de lucro” (Marx, s/d, livro III, vol. 4: 242) e, mais precisamente, uma das contratendências
para  enfrentá­la.  Em  poucas  palavras  os  fatores  que atuam no sentido de frear a queda na taxa
de  lucro,  causada  em  última  instância  pela  alteração  contínua  da  composição  orgânica  do
capital  em  favor  do  capital  constante,  são  a)  o  aumento  da  exploração  do  trabalho;  b)  a
redução  dos  salários;  c)  o  barateamento  dos  elementos  do capital  constante; d) a formação de
uma  “superpopulação  relativa”;  e)  ampliação  do  mercado  externo;  f)  e  aquilo  que  Marx
denominou  do aumento do capital em ações e que aprofundou no livro seguinte como formação
do capital portador de juros.
Aqui  nos  interessa  dois  aspectos:  primeiro  que com os  elementos que Marx dispunha a
ampliação  dos  mercados  era  vista  pelo  ângulo  do  controle  de  fontes  de  matérias  primas  e
espaço  de  realização  dos  produtos,  ao  passo  que  Lênin  pode ver agora este movimento como
a  partilha  de  áreas  de  influência  para  onde exportar capitais (ou seja, não apenas dinheiro, mas
inclusive  processos  produtivos  inteiros);  segundo   que  a  base  das  contratendências  à  queda  da
taxa  de  lucro  se  fundamentam  na  intensificação  da  exploração,  no  rebaixamento  dos salários e
na  superpopulação   relativa.  Esse  segundo  aspecto  nos  leva  diretamente   à  nossa  questão:  a
intensificação da exploração não levaria ao acirramento da luta de classes?
Essa questão tem que ser respondida levando em conta os dois aspectos indicados, isto
é, a exportação de  capitais e a conseqüente partilha  do  mundo, e a intensificação da exploração
dos  trabalhadores.  O  primeiro  aspecto  permite  ao  capitalismo  monopolista  e  imperialista
intensificar  a  exploração  nas  áreas  de  expansão,  ao  mesmo  tempo  que  negocia  os  termos  de
convivência  com  o  proletariado  no  centro  do  sistema  levando  àquilo  que  Lênin  denominou  de
uma  “aristocracia  operária”.  Diz  o  revolucionário  russo  no  prólogo  à  edição  francesa  de  sua
obra sobre o tema:

É  evidente  que  os  gigantescos  superlucros  (já  que  se  obtêm  sobre  os
lucros  que  os  capitalistas  extraem  de  seus operários  em seu próprio país)
permite  corromper  os  dirigentes  operários  e  a  camada  superior  da
aristocracia  operária.  Os  capitalistas  dos  países  “adiantados”  os
corrompem,  e   o  fazem  de  mil  maneiras,  diretas  e  indiretas,  abertas  e
ocultas (Lênin, 1976:  379).

Uma  leitura  desatenta  nos  levaria  a  acreditar  que  se  trata  de  um  problema  moral,  ou
seja,  de  uma  corrupção  direta  pela  compra das lideranças ou o oferecimento de benesses, mas
logo  adiante  o  autor   oferece  outros  elementos  que  nos  parecem  pistas  importantes.  Na
seqüência  Lênin  caracteriza  este  setor  como  formado  por  “operários  aburguesados”,
inteiramente  “pequenos  burgueses por seu gênero de vida, por seus vencimentos e por  toda sua
concepção   de  mundo”  (Lênin,  idem,  ibidem)  de  maneira  que  na  luta  de  classes acabam por se
colocar ao lado da burguesia através de toda manifestação de reformismo e chovinismo.
Por  esse  ângulo  a  estratégia  Democrática  Nacional  pode  e   deve  ser  criticada  por  um
aspecto  por  vezes secundarizado. Tal estratégica se fundamento numa falácia: o crescimento do
capitalista  que  rompe  com  seus  entraves  não  capitalistas  (sejam  ou  não  identificados  com
resquícios  feudais,  formas   oligárquicas  ou  imposição  “imperialista”)  levaria  ao desenvolvimento
de  um  “capitalismo  autônomo”   que  interessaria  tanto  à  burguesia  “nacional”  como  ao
proletariado.  No  que  cabe  ao  proletariado  parece  indicar  que  o  desenvolvimento das relações
capitalistas  levaria  ao  crescimento  do  proletariado  que  diante   das  contradições  do  sistema  se
colocaria  em  luta  por  seus  objetivos  históricos  socialistas.  Aí  se  encontra  a  falácia,  o
crescimento  das  relações  capitalistas  vem  acompanhado   dos  meios  políticos  próprios  do
capitalismo  desenvolvido,  seja  na  sofisticação  de  seu  Estado  seja  através  dos  meios,  diretos  e
indiretos,  de  amoldamento  da  classe  trabalhadora  à  ordem  do  capital,  levando  ao
“aburguesamento” descrito por Lênin ou ao “transformismo” nas palavras de Gramsci.
A  estratégia  democrática  nacional  encontrará  seu  ponto   crítico  na  própria  dinâmica  da
luta  de  classes,  no  golpe  de  1964.  As  classes  e  setores  de  classe  não  se  posicionaram  como
imaginavam  as  formulações  idealmente impostas em detrimento da análise dor real. A burguesia
brasileira  se  aliou  ao  latifúndio  e  ao  imperialismo  contra  o  proletariado,  naquilo  que  Florestan
Fernandes chamou de uma “contra­revolução preventiva”.

Os germes da concepção democrático popular

Brecht  dizia que a nova carne é comida com os velhos garfos. Isto significa  que a crítica


a  uma  concepção  só  pode  ser  feita com as ferramentas que de uma forma ou de outra compõe
o  universo  cultural  e  teórico  da formulação que é criticada. A lua nova carrega uma noite inteira
a  lua  velha  nos  braços,  dizia  o  mesmo  poeta.  Quando  se  realiza  a  critica  à  concepção
democrática  nacional  se  aponta  para  uma  síntese  que  será  hegemônica  no  período  que  se
abriria.
Destacaremos  aqui  duas  formulações  que  por  sua  importância  e  pertinência  acabam
sendo  representativas  deste  duplo  movimento,  ou  seja,  ao  mesmo  tempo  que  criticam  a
concepção   vigente  apontam,  germinalmente,  para  os  elementos  que  constituirão  a  formulação
que  se  tornará  determinante.  Trabalharemos  aqui  as  contribuições  de Caio Prado Jr. ( 1978) e
Florestan Fernandes ( 1976).
Caio  Prado  Jr.,  após  criticar  os  elementos  daquilo  que  chamou  de  “verdades
consagradas”  e  ponderar  sobre  pressupostos  metodológicos  que  partiam  de  a  priores
abstratos,  afirma  em  sua   obra  que  a  teoria  e  o  programa  de  revolução  brasileira  deve  vir  da
correta  análise  da  conjuntura  presente  e  do  processo  histórico  que  resulta,  pois  é  nisso  que
consiste  o  fundamento  do  método  dialético,  em  suas  palavras,  um “método de interpretação, e
não  receituário   de  fatos,  dogmas,  enquadramento  da  revolução  histórica  dentro  de  esquemas
abstratos preestabelecidos” (Prado Jr., 1978: 19).
Os  esquemas  abstratos  aos  quais  se  refere  Caio  Prado  dizem  respeito  às  formulações
do  VI  Congresso  da  Internacional  Comunista,  em  1928,  que  afirmava  que  a  passagem  para  a
ditadura  do  proletariado  não  seria  Possível  em  países  classificados  como  “como  coloniais  e
semini­coloniais”,  sem  que  fosse  necessário  transitar  por  uma  série  de  “etapas  preparatórias”,
em  outros  termos,  “por  todo  um  período  de  desenvolvimento  da  revolução
democrático­burguesa” (VI Congresso da IC, apud Prado Jr.: 65).
Lembrando  que  não  há  uma  mera  imposição  de  tais formulações, mas  um processo de
absorção  que  leva  em  conta  os  interesses  e  o  próprio  desenvolvimento  das  organizações
políticas  no  Brasil,  é  fato  que   o   PCB  (IV  Congresso,   1954,   apud  Prado  Jr,   op.   cit.  :  67)  iria
sustentar  sua  estratégia   levando  em  conta  esta  “verdade  estabelecida”.  O capitalismo no Brasil
estaria  entravado  pela  permanência  de  relações  “pré­capitalistas”  ou  “semi­feudais”,
materializadas  em  uma  estrutura  agrária  tradicional  fundada  no  latifúndio  e  na  monocultura  e,
por outro lado, pela presença do imperialismo, com a ressalva anteriormente apresentada.
Como  sabemos,  o  autor  criticará  a  pertinência  de  identificar   as  relações  próprias  da
estrutura  agrária  brasileira  como  “feudais”  ou  “semi­feudais”,  apontando  para  aquilo  que
denomina  de  “sentido   da  colonização”  de  maneira  que,  por  meios  variados,  as  relações  aqui
vigentes  deveriam  ser   vistas  não  como  “o  latifundiário  ou  proprietário  senhor  feudal  ou
semifeudal  de  um  lado,  e  o  camponês  do  outro; e sim respectivamente o empresário capitalista
e  o  trabalhador  empregado,  assalariado  ou  assimilável  econômica e  socialmente ao assalariado
(Prado Jr, 1978: 105).
Em  resumo,  o  autor  afirma  que,  considerando  as  relações  de  produção determinantes,
ainda  que  existam   formas  diferenciadas  e  eventuais  que  se  subordinar  as  determinantes,  as
formas  de  propriedade  e  o sentido da produção agropecuária,  só poderíamos concluir pela sua
caracterização como “em essência e fundamentalmente, capitalista” (idem: 107).
Caio  Prado  criticará da mesma forma a relações que se  estabelece entre a permanência
desta  estrutura  agrária  tradicional  e  o  atraso  da  industrialização.  A  produção  industrial
brasileira,  até  por   sua  relação  com  o  capitalismo  imperialista,  apresentou  um  desenvolvimento
de  seu  nível  tecnológico  e  de  sua  capacidade  produtiva,  ainda  que  um  ou  outro  setor  se
apresente  limitado  em  seu  crescimento  por  “interesses  estranhos  ao  país”  (idem:  121).  Ainda
que  isso  ocorra  e  eventualmente  uma  iniciativa  “nacional”  tenha  sido  prejudicada  “pela
concorrência  de  empreendimentos  ligados  ao  imperialismo”,  isso  não  teria  gerado  uma
“oposição  política  de  classe  entre a burguesia brasileira e o imperialismo” (idem: 120), isto pelo
fato  de  que  os  eventuais  problemas  ou  atritos  entre  a  burguesia  brasileira  e  os   setores
imperialistas “podem perfeitamente (se) ajustar dentro do sistema do imperialismo” (idem: 121).
Por tudo isso o autor afirma que:

Em  suma,  embora  a  burguesia  brasileira,  ou  antes,  alguns  de  seus
representantes  possam individualmente  entrar  em conflito  com a poderosa
concorrência  de  empreendimentos  estrangeiros,  e esse conflito se  traduza
eventualmente  em  ressentimentos  contra  o  capital  estrangeiro,  não  se
verificam  na  situação  brasileira  circunstâncias   capazes  de  darem  a  tais
conflitos  um  conteúdo  de  oposição  radical  e  bem  caracterizada,  e  muito
menos  de  natureza  política.  A  “burguesia  nacional”,  tal  como  é
ordinariamente  conceituada,  isto  é,  como  força  essencialmente
antiimperialista  e  por  isso  progressista,  não  tem  realidade no Brasil,  e não
passa  de  mais  um  destes  mitos  criados  para  justificar  teorias
preconcebidas;  quando  não  pior,  ou  seja,  para  trazer,  com  fins  políticos
imediatistas,  a  um  correlato   e  igualmente  mítico  “capitalismo
progressista”,  o  apoio  das  forças   políticas  populares e  de  esquerda (idem,
ibidem).

Além  da  correção  da  análise  e  da  antecipação  dos  equívocos  hoje  em  voga  daqueles
setores  que  ainda  se   abraçam  ao  mito  de  um  “capitalismo  progressista”  ou  um
“desenvolvimento  de   caráter  social”, o fundamento da elaboração alerta para o desdobramento
político de tal concepção, ou seja, a aliança de classes com a suposta “burguesia nacional”.
Neste  ponto,  coerente  com  os  pressupostos  que  assume,  o  autor  sente­se  obrigado  a
definir  um  desenho  do  programa  da  revolução  brasileira  que  se  contraponha  à  formulação
democrática­nacional.  Não  se  trata  apenas  de  afirmá­la  como  socialista,  ainda  que,  destaca  o
autor,  “é  claro  que,  para  um  marxista,  é  no  socialismo  que  irá  desembocar  afinal  a  revolução
brasileira”,  mas  isso  seria   uma  “previsão  histórica  sem  data  marcada  nem  ritmo  de  realização
prefixado”  e,   acrescenta,  “sem  programa  predeterminado”  (idem:  16).  Essa  prudência  se
explica  por  dois  motivos,  um  de  natureza  metodológica,  ou  seja,  não  impor  modelos
preconcebidos  aos  fatos  e  à  dinâmica  real  e  histórica  da  luta  de  classes  em  uma  determinada
formação social dada, outro um pouco mais complexo e problemático.
Caio  Prado  Jr.  acreditava  que  a  implantação  do  socialismo  no  Brasil  na  situação
histórica  em  que  se  encontrava  era  algo  “irrealizável”  por  faltarem  “condições  mínimas  de
consistência  e  estruturação  econômica,  social,  política  e  mesmo  simplesmente  administrativa,
suficientes para a transformação daquele vulto e alcance” (idem: 165).
Vejam,  após  desconstruir  a  lógica  etapista  e  a  transposição  de  modelos  como  a
priores  abstratos  a  serem  impostos à realidade, depois de criticar impiedosamente a alternativa
democrática  nacional  e  sua  aliança  com uma suposta burguesia nacional que levasse ao mito de
um  “capitalismo  progressista”,  o  autor  cai  em  um  aparente  paradoxo:   a revolução democrática
nacional tal como apresentada pelo PCB leva à conciliação de classes e a conseqüência derrota
dos  trabalhadores  (confirmada  em  1964),  mas  a  revolução  socialista,  entendida  classicamente
como  socialização  dos  meios  de  produção  e  formação  de  um  Estado  do  Proletariado  e  seus
aliados,  é  irrealizável  pelos  motivos  apontados.  Isso  o  leva  a  uma  solução  que  nos  interessa
diretamente aqui.
Para  o  autor  o  mito  do  desenvolvimento  capitalista  como  forma  de  enfrentar  as
demandas  reais  que  emergem  das  classes  trabalhadoras  se  explica  por  uma  associação  entre
“desenvolvimento”,   geração  de  lucros  e  daí  recursos  para  enfrentar  estas  demandas.  É  esta
associação  que   será  criticada.  Segundo  Caio  Prado,  se  o  lucro  foi  um  fator   extremamente
fecundo  do  desenvolvimento  nos  países  centrais,  ou  seja,  o  lucro  leva  ao  incremento  do
mercado  que  faz  crescer  a  demanda  e  daí   um  nova  dinâmica  de  desenvolvimento,  a  inserção
real  do  Brasil  no  sistema  imperialista  e  seus  “vícios  orgânicos”  quebra  esta  relação.  Os
monopólios  alcançam  sua  lucratividade  sem  que  precisem  responder   às  demandas  dos  bens
que  constituem  o  fundo  de  consumo   do   trabalho  e  suas  demandas  por  condições  de  vida  e
trabalho,  pelo  contrario,  é  o constante delapidar de tais condições que constituem as chamadas
“vantagens  competitivas”  para  reproduzir  a  acumulação  de  capitais  aqui  nas  condições  do
capitalismo monopolista e imperialista mundial. Por isso conclui:

No  Brasil  e  nas condições atuais,  a questão se  propõe de  forma diferente,


porque  falta  aqui,  por  efeito  precisamente  dos  vícios  orgânicos  de  nossa
estrutura  econômica  e social que apontamos (...), uma demanda suficiente
em  consonância  com  as  necessidades  fundamentais  e gerais,  e capaz por
isso  de   permanentemente  incentivar  uma  atividade  produtiva  que,  em
ação de retorno, viesse ampliá­la ainda mais (Prado Jr., idem: 164).

Qual, então, a solução? É o autor que nos responde:

Há  de  essencialmente  se  atacar  a  reforma  do  sistema  a   fim  de


impulsionar  o  seu funcionamento no sentido  de um desenvolvimento  geral
e  sustentado. É do aumento da demanda solvável, e  sua  articulação com
as  necessidades  gerais e  fundamentais  do  país  e de  sua  população, que  se
há  de  partir  para  o  incentivo  às  atividades  produtivas  que  em   seguida
incentivarão  a  demanda.  Não  é  possível,  repetindo  o  ocorrido  no
desenvolvimento  capitalista  originário,  ir  no  sentido  contrário,  isto  é,  da
produção para o consumo e a demanda (idem: 164) (grifos meus).

Na  conclusão  do autor  deveríamos constatar que “a iniciativa privada, que tem no lucro


e  somente  nele  a  sua   razão  de  ser,  não  é  suficiente  assim  para  assegurar  o  desenvolvimento
adequado”  (idem,  ibidem).  Lembremos  que  segundo  o  juízo  do  autor  uma  transformação
socialista  é  irrealizável,  portanto,  ele  é  levado  a  concluir  que  nas condições da formação social
brasileira  as  atividades  econômicas  devem  ser  “controladas  por  fatores  além  e  acima  da
iniciativa privada” (idem, ibidem). Isso implica que:

Não  se  pretende  com  isso  eliminar  a  iniciativa  privada,  e sim unicamente


a  livre  iniciativa  privada  que,  esta  sim,  não  se  harmoniza   com  os
interesses  gerais  e  fundamentais  do  país  e  da  grande  maioria  de  sua
população,  por  não  lhe  assegurar  suficiente  perspectiva  de  progresso  e
melhoria de condições de vida (idem: 165).

Eis  que  surgem  os  germes  de  uma  formulação  que  seria  determinante  no  ciclo  que  se
abriria  com  a  crise  da  Ditadura  Militar  e  empresarial  inaugurada em 1964. Uma transformação
social  que  tenha  que  se   contrapor  a  um  bloco  conservador  formado  pelo  latifúndio,  pela
burguesia  imperialista/monopolista  e  pela  burguesia  brasileira  que  a  ela  se  associa
subordinadamente,  que  se  sustente  numa  ampla  aliança  dos  trabalhadores  assalariados  da
cidade  e  do  campo   (lembremos  que  para  ele  a  luta  pela  terra  não  se  propunha  de  forma
generalizada  e  “menos  ainda  em  termos  revolucionários”  (idem:  139)),  junto  aos  aliados
formados  pelas  massas  urbanas  que  lutam  por  suas  condições  de  vida,  ou  seja,  um  chamado
campo “popular”.
Para  que  se  complete   a  formulação  é  necessário  responder  a  uma  questão  essencial.
Como  este  bloco  popular  irá  impor   suas  demandas  que  dirigiram  o  desenvolvimento  em  um
sentido  “alem  e   acima  da  iniciativa  privada”?  A  resposta   é  simples:  através  de  uma  correlação
de  forças  que  lhes  permita  chegar  e  controlar  o  Estado.  Os  elementos  essenciais  estão  assim
delineados:  a  negação  da  estratégia  nacional  democrática  e  sua  aliança  com  a   burguesia leva a
afirmação  de  um   desenvolvimento  que  se  sustente  nas  demandas  da  maioria  da  população,
ainda  não  socialista,  mas  não  mais  acreditando  no  mero  desenvolvimento  de  um  capitalismo
nacional  e  a  lógica  do  lucro  e  da  iniciativa  privada  como  vetores  de  um  desenvolvimento  que
enfrente as demandas populares.
Há  uma  ausência  importante  na  formulação  de  Caio  Prado  e  se  trata  exatamente  da
caracterização  deste  elemento  essencial  para  o  desfecho  de  uma  estratégia  popular:  o  Estado.
Será Florestan Fernandes que nos dará as pistas sobre este aspecto fundamental.
As  reflexões  que   constituem  o  livro  A   Revolução Burguesa no Brasil foram produzidos
em  momentos  diferentes  (entre  1966  e 1973) e copilados para a publicação, mas são, de certa
forma,  contemporâneos  aos  estudos  de  Caio  Prado,  não  no  sentido  de  ter  havido  uma
profunda  troca  intelectual  entre  ambos,  mas  que  partilham  do  mesmo  momento e enfrentam os
mesmos dilemas, chegando, por caminhos distintos, a conclusões semelhantes.
Começando  por  questionar  a   propriedade  de  se  falar  de  burguesia  e  revolução
burguesa  no  Brasil,  Florestan  afirma  que  se  pode  afirmar  a  existência  de  uma  burguesia  no
Brasil  e  de  uma  Revolução  Burguesa  desde  que  não  façamos  uma  análise  mecânica  que
transporte  estas  categorias  sem  as  mediações  necessárias   para  nossa  formação  social  e  sua
história. Dito de outra forma:

A  questão  estaria  mal  colocada,  de  fato, se se pretendesse   que a história


do  Brasil  teria  de  ser  uma  repetição  deformada  e  anacrônica  da  história
daqueles  povos  (EUA  e  Europa).  Mas  não  se  trata  disso.  Trata­se,  ao
contrário,  de  determinar  como  se  processou  a  absorção  de  um  padrão
estrutural  e  dinâmico  de  organização  da  economia,  da  sociedade  e  da
cultura.  Sem  a  universalização  do  trabalho  assalariado  e  a  expansão  da
ordem  social  competitiva,  como  iríamos  organizar  uma  economia  de
mercado de bases monetárias e capitalistas? (Fernandes, 1976:20)

Desta  maneira,  em   grande parte partindo de pressupostos weberianos, o autor afirmará


que  o  que  se  dá  no  Brasil  é  que  um   setor  da  aristocracia  somado  a  outros  setores  diversos,
formam  uma  congiérie  social  (literalmente  um  aglomerado  de  setores  diferentes)  que  acabam
por  assumir  um  padrão  de  civilização  burguesa  baseados  no  lucro,  na  empresa  racional  e  no
mercado,  assim  como  a  valorização  do  urbano  sobre  o  rural.  Um  “tipo  de  atitude”  voltada  ao
lucro  e  a  acumulação  de  riqueza,  ligado  à  inovação,   ao  talento  empresarial,  organização  de
grandes empreendimentos econômicos, entre outros aspectos.
Evidente  que  o  setor  da  aristocracia  rural  que  iria  cumprir  este  papel  seria  aquele  que
por  sua  natureza  estabelecia  nexos  com  as  ferrovias,  os  portos,  as  empresas  de  comércio
exterior,  os  bancos  e   daí  com  a  realidade  urbana  e  o  padrão  civilizatório  burguês.  O  autor
destacará   o   setor  dos  cafeicultores  e  setores  da  imigração,  evidente  não aquele que constituirá
parte do proletariado, mas aquele ligado aos primeiros momentos da industrialização.
Esta  origem  e desenvolvimento da burguesia brasileira marcará as formas pelas quais se
implementam  aqui  a  Revolução  Burguesa.  Desde  já  salta  aos  olhos,  no  mesmo  sentido  já
apontado  por  Caio  Prado,  que  a  inserção  do  Brasil  na  moderna  era  do  imperialismo  não  foi
fator  de  atraso,   mas  a  forma  pela  qual  se produziu um tipo de desenvolvimento do capitalismo.
Diz Florestan:

Sob  esse  prisma,  o  neocolonialismo  eregiu­se   em  fator  de  modernização


econômica  real,  engendrando  várias  transformações  simultâneas  da  ordem
econômica  interna  e  suas  articulações  aos  centros  econômicos  hegemônicos  do
exterior.  O  principal   aspecto   da  modernização  econômica  prendia­se,
naturalmente,  ao  aparelhamento  do  país  para  montar  e  expandir  uma  economia
capitalista  dependente,  sob  os  quadros   de  um  Estado  nacional  controlado,
administrativa e politicamente, por ‘elites nativas’”(idem: 93).
Naquilo  que  aqui  nos  interessa,  este  setor  ou  setores  de classe que assumem o padrão
burguês,  encontrará nas  velhas oligarquias e no Estado oligárquico um pólo não de contradição,
mas  uma  aliança  essencial  ao seu desenvolvimento. A unidade deste bloco, segundo o autor, se
dará  não  apenas  pela  intersecção  de seus interesses (oligarquias tradicionais, setores burgueses
e  imperialismo),  como  sua  unidade  política  fundamental  se  encontra  na  confrontação  dos  de
baixo.  Desta  maneira   a  revolução  burguesa  no  Brasil  não  pode  ser   vista  nas  formas  clássicas,
ou  seja,  uma  aliança  da  burguesia  revolucionária  com  o  proletariado  visando  a luta contra uma
nobreza feudal.
O  que  é  característico do estado que desta forma particular de  dominação deriva é que
o  conjunto  das  classes  e  setores  de  classe  que  se  beneficiam  desta  dominação e que precisam
fazer  valer  seus  interesses  constituem  um  segmento  pequeno  no  conjunto  da  população  e  que
encontra  sua  legitimação  internamente  no  interior  deste  pequeno  circulo  de  interesses,  levando
àquilo  que o autor denomina de uma “autocracia”. O domínio burguês não precisou  se enfrentar
com  a  velha  ordem  oligárquica,  pelo  contrario,  encontrou  nesta  forma  os  meios  de  manter  e
legitimar  o  domínio  burguês.  Os  saltos  e  qualidade deste processo, no sentido de consolidação
do  poder  burguês,  como  no  período   getulista  (1930­1954),  chega  ao  seu  ponto  culminante
com o golpe e a consolidação da autocracia burguesa.
Assim  a  Revolução  Burguesa  no  Brasil  assume  a  forma  de  uma  “contra­revolução
preventiva”  (Fernandes,  1976:  217).  A  conseqüência  direta  desta   forma  concreta  de
desenvolvimento  da  revolução  burguesa  brasileira  é  que  dois  elementos   de  sua  constituição
aparecem  aqui  divorciados.  Classicamente,  pelos  motivos  indicados,  a  revolução  burguesa
assume  a  forma  simultânea  de  uma  revolução  nacional  e democrática, mas aqui, em uma forma
não  clássica,  ela   se dá pela aliança da burguesia, na verdade um setor oligárquico aburguesado,
com  a  própria  ordem  arcaica,  ou  seja,  realiza   a  revolução  burguesa,  mas  não  seus  aspectos
nacionais  e democráticos. Nos termos de Florestan trata­se de uma revolução dentro da ordem
e não fora da ordem, ou se preferirem, de cima e não de baixo.
Não  basta  contrapor  um  modelo  clássico  à  chamada  via  prussiana,  nos  termos  de
Lênin,  uma  vez  que  parece  que  estamos  falando  de  uma  via  não  clássica  da  via  não  clássica.
Mais  do  que  uma  revolução  que  implementa  a  ordem  burguesa  e  cria  as   condições  de
desenvolvimento  das  relações  capitalistas  de  produção  a  partir   do   Estado,  trata­se  de  uma
revolução  que  cumpre  este  objetivo  inserida  no  quadro  geral  da  dominação  imperialista  e,
portanto,  não  para  desenvolver  qualquer  tipo  de  capitalismo  autônomo,  mas  para  inserir  a
formação  social  como  área  de  influência  da  dominação  imperialista,  isto  é,  como  área  de
exportação de capitais.
Isso  implicará  que o desenvolvimento da ordem burguesa não ocorra pressionada pelas
demandas  dos  de  baixo,  pelo  contrario,  a  condição  exigida  pelo  padrão  de  acumulação  é  o
sufocar  destas  demandas  diante  das  necessidades  dos  monopólios  e  seus  aliados  internos  e
externos. O resultado é que:

a  massa  dos  que  se  classificam  dentro da  ordem é  pequena  demais para  fazer  da
condição  burguesa  um  elemento  de  estabilidade  econômica,  social  e  política,
enquanto  que  o  volume  dos  que  não  se  classificam  ou  que  só  se  classificam
marginalmente e parcialmente é muito grande”(idem: 330).

Assim  é  que  a  forma  do  Estado  só  pode  ser  a  de  uma  autocracia,  nos  termos  que
define o autor:

Um   poder  que  se  impõe  sem  rebuços de  cima  para  baixo,  recorrendo  a quaisquer
meios  para  prevalecer,  erigindo­se  a  si  mesmo  em  fonte  de  sua  própria
legitimidade  e  convertendo,   por   fim,  o  Estado  nacional  e  democrático  em
instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva (idem: 297).

Abre­se  desta   maneira  um  importante paradoxo para o nosso tema ligado ao  problema


da  legitimação.  A  ordem  burguesa,  nestes  termos  apresentada,  tem  enormes  dificuldades  de
legitimar­se  perante  os  setores  não  burgueses,  fundamente,  àqueles  ligados  à  classe
trabalhadora,  o  que  leva  ao  aspecto  repressivo  como  fundamental  e  que  de  fato  se  confirma
com  a  própria  ditadura  e  o  insubstituível  papel  dos  setores  militares  na  política  brasileira.   Isso
não  significa,  no  entanto,  que  o  Estado  se  restrinja  aos  aspectos  repressivos  e  que  não   opere
elementos  de  formação  de  “consenso”,  mesmo  considerando  a  forma  da  ditadura  aberta  do
capital  como  no  período  militar.  Aspectos  de  cooptação,  de  forte  poder  ideológico  e  mesmo
de  envolvimento  através  de  elementos  de  hegemonia,  nunca  deixaram  de  ser  praticados  e
tiveram  papel   importante  na  sustentação  da  autocracia   burguesa.  Isso  fica  evidente  na  forma
getulista  (nas  leis  trabalhistas,  no  DIP,  na  organização  ideológica  da  cultura,  entre  outros
exemplos),  mas  também  na  Ditadura  empresarial­militar  inaugurada  em  1964,  não apenas pela
intensa  ação  ideológica,  mas  pelos  meios  de  consentimento  criados  pelo  crescimento
econômico acelerado que marcou o período.
No  entanto,  é  evidente  que  o  aspecto  repressivo  se  impõe  levando  os  autores  que
analisam  a  formação  do  estado  no  Brasil  a  considerar  este  aspecto  como  “estrutural”.  Não  é
diferente em Florestan. Ele considera que o fato da formação social brasileira, inserida de forma
dependente  na  ordem  do  capitalismo  tardio,  manifestar  a  contradição  essencial  entre  um  ciclo
restrito  à ordem burguesa que se  auto legitima nas formas da autocracia e uma maioria daqueles
que  se  localizam  fora  desta  ordem  ou  apenas  parcialmente  incluídos, dá um  caráter estrutural à
autocracia como forma do Estado burguês no Brasil.
O  grande  problema   de  legitimação  encontrado  no  caminho  da   consolidação  da  ordem
burguesa  em  nosso  país  é  que  uma  ordem  autocrática,  por  sua  natureza,  é  sempre  uma  saída
temporária,  mas  as  características  estruturais  de  nossa  formação  social  acabam  por  impor  à
autocracia burguesa uma longevidade muito além do que uma forma transitória. Diz o autor:

Os  recursos  de  opressão  e  de  repressão  de  que dispõe a  dominação burguesa  no


Brasil,  mesmo  nas  condições  especialíssimas  seguidas  ao  seu  enrijecimento
político  e  à  militarização  do  Estado,  não  são  suficientes  para  ‘eternizar’  algo  que
é,  por  sua  essência  (em  termos   de  estratégia  da  própria  burguesia  nacional  e
internacional) intrinsecamente transitório” (idem: 321)

Ao  mesmo  tempo  o  desafio  da  ordem  burguesa  na  busca de sua estabilidade, cedo ou


tarde  acabaria  por  exigir  o  esforço  na  direção  de  uma  consolidação  de  sua  hegemonia  o  que
implica  superar  os  limites  de  uma   “autonomia  de  classe  para  dentro”,  no  sentido  de
autoreferenciada  no  restrito  campo  dos  interesses  burgueses,  por  uma  “autonomia  de  classe
para  fora”,  ou  seja,  envolvendo  seus  aliados  (Fernandes  considera  que  nos   termos  da
autocracia  a  burguesia  se  apresenta  intolerante  mesmo  às  manifestações  do  radicalismo
burguês),  assim  como  seus  oponentes  na   luta   de  classe  como  elemento  essencial  da  chamada
“revolução passiva” (Gramsci, 2011: 317­319).
Devemos  considerar  que  o  problema  da  legitimação  não  se  resume  a  um   problema
político  ou  ético.  Como  nos  lembra  José  Paulo  Netto  (2006)  é  na  passagem  para  a  forma
monopólica  que  a  ordem  do  capital  passa  a  exigir  do  Estado  um  conjunto  de  ações,  diretas  e
indiretas,  através  das  quais   a  acumulação  pode  encontrar   as  condições  de  sua  continuidade,
alertando para o fato que:

O  que  se  quer  destacar,   nessa  linha  argumentativa,   é  que  o  capitalismo


monopolista,  pelas  suas  dinâmicas  e  contradições, cria condições tais que
o   Estado  por  ele capturado, ao buscar legitimação política através  do  jogo
democrático,  é   permeável  a  demandas  das  classes  subalternas,   que
podem  incidir  nele  seus  interesses  e suas reivindicações  imediatos.  E  que
este  processo  é  todo  tensionado,  não   apenas  pelas  exigências  da  ordem
monopólica,  mas  pelos  conflitos  que   faz  dinamar  em  toda  a  escala
societária (Netto, 2011: 29).

De  certa  forma,  Fernandes  afirma  que  ao  garantir  as  condições  da  acumulação
capitalista,  a  autocracia,  ao  mesmo tempo, dinamiza suas contradições e tende a reapresentar a
questão  da  legitimação  do  poder  burguês  perante  outros  setores  e  classes  que  compõe  a
sociedade  brasileira.  Neste  ponto  o  autor  abre  duas  possibilidades  para  aquilo  que   chama  de
crise  da  autocracia  burguesa,  lembrando  que  escreve  já  nos  momentos  que  antecedem  a
chamada  abertura  política  e  o  início  da  transição  democrática.  Um  primeiro  cenário  seria  uma
espécie  de  autoreforma  da  autocracia  na  direção  de  incorporar  aqueles  setores   naquele
momento não diretamente envolvidos no restrito círculo do poder burguês; um segundo cenário,
dado  o  caráter  estrutural  das  determinações que se encontram na base da autocracia burguesa,
seria a continuidade e o fortalecimento da autocracia burguesa no Brasil.
Antes  de  mais  nada  é  preciso  considerar  que  Fernandes  não  guarda  nenhuma  ilusão
quanto  a  possibilidade  daquilo  que  chama  de  uma  “revolução  dentro  da  ordem”,  neste  caso
indicando  uma  autoreforma  da  autocracia.  Para  ele  a  burguesia  havia  perdido todo seu caráter
revolucionário.  Estaríamos  em  suas  palavras, entre duas revoluções, uma que vinha do passado
e  chega  neste  momento  sem  maiores  perspectivas  (a  revolução  burguesa)  e  outra  que  “lança
raízes sobre a construção do futuro” (Fernandes, 1976: 295).

Torna­se,  assim,  muito  difícil  deslocá­las  politicamente  através   de


pressões  e  conflitos  mantidos  ‘dentro  da  ordem’;  e  é  quase  impraticável
usar  o  espaço  político,  assegurado   pela   ordem  legal,  para   fazer  explodir
as contradições de classe”(idem : 296).

O  fundamento  desta  descrença  se  encontra  no  fato  já  citado  que  para  ele  as
determinações  estruturais  criam  um  impasse.  A  massa  daqueles  que  são  colocados   fora  do
círculo  do  poder  burguês   apresentam  demandas  que  se  chocam   com  os  interesses  da
continuidade  da  acumulação  de  capitais,  não  por  que  sua  natureza  em  si  coloque  estas
demandas  fora  da  ordem  do  capital,  não  é  o  caso,  mas  pelo  fato  que o poder burguês aqui se
articula  com   a  totalidade  da  acumulação  do  capital  mundial  e  seu  papel  na  lógica  das
contratendências   à  queda  da  taxa  de  lucro  é  operar  como  áreas  de  superexploração  que
sustentam  o  centro  do  sistema,  assim  como  as  classes  dominantes  locais,  tornando  tais
demandas uma ameaça a ordem.
Desta  maneira  Florestan   Fernandes  chega  a  uma  categoria  que  nos  parece
importantíssima  para  compreender  o  momento  atual.  Considerando  que  o  possível  de  ser
ofertado  como  caminho  que  aplainasse  o  apassivamento  dos  trabalhadores  em  uma  ordem
burguesa  desta  natureza,  seria  muito,  muito  pouco,  Fernandes  denomina  este   caminho  de  uma
“democracia  de  cooptação”  (idem:  363).  No  contexto  da  crise  da  autocracia  burguesa
reapareceria  o  velho dilema da revolução burguesa no Brasil e  de como equacionar o problema
político da hegemonia burguesa, agora sob a necessidade de “entrelaçar os mecanismos de uma
democracia  de  cooptação  com a organização  e o funcionamento do Estado autocrático”(idem,
ibidem).
Para  o  autor,  naquele momento  de sua análise, este caminho seria  pouco provável, uma
vez  que  “parece  fora  de  dúvida  que  as  classes  burguesas  mais  conservadoras  e  reacionárias
considerarão  exagerado  o  preço  que  terão  que  pagar  à  sobrevivência  do  capitalismo
dependente, através da democracia de cooptação”(idem: 365), concluindo que:

Até  onde  pudemos  chegar,  por  via  analítica  e  interpretativa,  não  padece
dúvida  de  que  as  contradições  entre  a  aceleração  do  desenvolvimento
econômico  e  a  contra­revolução  preventiva  só  podem  ser  resolvidas,
“dentro  da  ordem”,  não   pela   atenuação,  mas  pelo  recrudecimento  do
despostismo burguês” (idem, ibidem).

De  fato,  se  considerarmos  o  desenvolvimento  imediato  dos  fatos  que  seguiram  à
publicação  do  livro   A  revolução  burguesa  no  Brasil,  a  história  parece  ter  dado  razão  à
Fernandes.  Vivemos  uma  democratização  tutelada,  uma  abertura  sob  controle  na  qual  os
conteúdos  mais  próximos  às  demandas  populares  foram  sempre  adiados,  assim  como  a
permanência  indisfarçável  de  todo  o  aparato  político  e  jurídico  da  ditadura  como  sustentáculo
do  poder  político  burguês  que  se  perpetuou.  No  entanto,  a  história  guardaria,  como  veremos,
uma surpresa.
Sinteticamente  podemos  afirmar  que  a  posição  de  Fernandes  é  que  a  Revolução
Burguesa  se  realizou  no  Brasil,   não  em  sua  forma  clássica,  portanto  divorciada  de  seu  caráter
nacional  e  de  seus  elementos  democráticos,  o  que  leva  a  determinação  da  forma  do  Estado
burguês  como  autocrático  e  sua  revolução  como,  de  fato,  uma  contra­revolução  preventiva
permanente.  Ora  esta  será  a  base  sobre  a  qual  se  erguerá  outra  dimensão  fundamental  da
chamada estratégia democrática popular.
Uma  vez  que  a   ordem  burguesa  é  impermeável  às  pressões  dos  setores  radicalizados
da  burguesia  e  às  demandas  das camadas populares e, assim como para Caio Prado  ainda que
por  outros  motivos2,  Florestan  também  acredita  que  uma  revolução  socialista  seria  naquele
momento  impossível,  a apresentação  das demandas democráticas não realizadas pela burguesia
e  que  coincidissem  com  os   interesses  dos  trabalhadores,  levaria  a  um  impasse  cuja  solução
apontaria para a ruptura socialista.
É  nesta  equação  que  nascerá  a  famosa  formulação  de  Fernandes  sobre  a  necessária
combinação  de  uma  “revolução  dentro  da  ordem”  com  uma  “revolução fora da ordem”3. Ora
esta é, por assim dizer, a alma da formulação democrática popular.

O PT e a estratégia democrática popular

É  bom  dizer  logo  de  início  que  o  PT  enquanto  experiência  histórica  não  nasceu  da
adesão  a  uma  leitura  teórica,  muito menos atribuir a responsabilidade pelos desvios presentes a
este  ou  aquele  formulador  ou  intelectual.  Como  bons  analistas  que  eram,  tanto  Caio  Prado
como  Florestan  captaram  elementos  do  devir,  estavam  inseridos em uma conjuntura histórica e
ao  dar  respostas  às   questões  de  seu  tempo  acabaram  por  indicar  elementos  que  o
desenvolvimento  histórico  confirmaria  como  sendo  determinantes  no  período  que  se  abriu.  O
PT  como  partido  político  e  como  parte  integrante  do  movimento  que  a  classe  trabalhadora
empreendeu  no  final   dos  anos  1970  e  início  dos  anos 1980, expressa este mesmo cenário e  se
tornará  o  protagonista  da   estratégia  democrático  popular  e  seu  ocaso,  assim  como  o PCB em
relação à estratégia democrática nacional.
A  identidade  do  PT  em  seu  início  passava  por  uma  clara  diferenciação  em  relação  ao
PCB,  não  apenas  pela  disputa  própria  do  movimento  sindical,  mas  pela  necessidade  de

2
Fernandes, que parte da afirmação do fim do ciclo histórico da revolução burguesa e que
estamos na era da revolução socialista, destaca a correlação de forças e o fato de que a superação da
autocracia burguesa exigia a constituição do proletariado enquanto um sujeito político, primeiro como
protagonista de um amplo movimento de caráter socialista e para tanto capaz de mobilizar os
trabalhadores e demais setores por demandas imediatas. Ver, por exemplo, Movimento Socialista e
Partidos Políticos (Fernandes, F. , Editora Hucitec: São Paulo, 1980)
3
  É  necessário  notar aqui  que, neste  momento, o autor  já se refere a  dois  momentos  de uma  revolução proletária
e  não  mais  à  característica  própria   da  revolução  burguesa   discutida  na  obra   que  analisamos  e  o  faz  não  na  intenção  de
reapresentar o etapismo, mas de uma revolução permanente.
afirmação  que  inaugurava  um  período  diferente  na  história  brasileira.  É  assim  que  em  seu  V
Encontro (1987) afirmara explicitamente que:

O  PT  rejeita  a  formulação  de  uma alternativa nacional e  democrática que  o PCB


defendeu  durante  décadas,  e  coloca  claramente  a  questão  do  socialismo. Porque
o   uso  do  termo  nacional,  nessa  formulação,  indica  a  participação  da  burguesia
nessa  aliança  de  classes  –  burguesia  que  uma  classe  que   não  tem  nada  a
oferecer  ao  nosso  povo  (Resoluções do V Encontro Nacional –  1987, in Almeida,
J. ; Vieira, M.A.; Canceli, V., 1997:322).

Já  nos  documentos  de  fundação  do  PT  estão  expressas as intenções de independência


de  classe  que  aqui  se  reapresentam. É, entretanto, no V Encontro  que a estratégia democrático
popular ganha sua forma mais acabada e que pode ser vista nesta formulação:

Nas  condições  do  Brasil,  um  governo  capaz  de  realizar  as tarefas democráticas e
populares,  de  caráter  antiimperialista,  antilatifundiário  e  antimonopolista  –   tarefas
não  efetivadas  pela  burguesia  –,  tem  duplo  significado:  em  primeiro  lugar,  é  um
governo  de  forças  sociais  em  choque  com  o  capitalismo  e  a  ordem   burguesa,
portanto  um  governo  hegemonizado  pelo  proletariado,  e  que  só  poderá
viabilizar­se  com  uma  ruptura  revolucionária;  em  segundo  lugar,  a  realização  das
tarefas  a  que  se  propõe  exige  a  adoção  concomitantemente  de  medidas  de
caráter  socialista  em setores essenciais da economia e com  o enfraquecimento da
resistência  capitalista.  Por  essas   condições,  um  governo  dessa  natureza  não
representa  a  formulação  de  uma  nova  teoria  das  etapas,  imaginando  uma  etapa
democrático­popular,  e,  o  que  é  mais  grave,  criando  ilusões,  em  amplos  setores,
na  possibilidade  de  uma  nova  fase  do  capitalismo,   uma  fase  democrática  popular
(V Encontro... op. cit: 322).

Como  se  vê,  neste  momento,  a  estratégia  democrático  popular  é  mais  uma  afirmação
de  independência   do   que  caminho  para  a  conciliação  de  classe.  No  mesmo  encontro,  a
estratégia propriamente dita se delineia de forma ainda mais clara.

Para  extinguir  o  capitalismo  e  iniciar  a  construção  da  sociedade  socialista,  é


necessária,  em  primeiro  lugar,  uma  mudança  política  radical;  os  trabalhadores
precisam  transformar­se  em  classe  hegemônica  e  dominante no poder  de  Estado,
acabando  com  o  domínio  político  exercido  pela  burguesia.  Não  há  qualquer
exemplo  histórico de  uma classe que tenha transformado a sociedade sem colocar
o poder político – Estado – a seu serviço (idem: 312).

A  radicalidade  com se apresentava tal proposição vinha combinada com um esforço de
introduzir  esta  “ruptura”  em  um  longo  processo  de  acúmulo  de  forças,  diferenciando  as
atividades  destinadas   à  tomada  do  poder,  propriamente  dito,  daquelas  que  preparam  as
condições  para   isso,  diferença  na  qual  se  insere a distinção de reforma e revolução, entendidas
pelos  formuladores  não  como  antagônicas.  A  luta  por  reformas  só  seria  um  erro  quando
“acabam  em   si  mesma”,  ressaltando que “quando ela serve para demonstrar às grandes massas
do  povo  que  a  consolidação,  mesmo  das  reformas  conquistadas,  só  é  possível  quando  os
trabalhadores  estabelecem  seu  próprio poder”, então a luta por reformas se combinaria com os
processos de transformação social (idem: 313).
O  que  parece  ficar  evidente  é  que  este  momento  inicial  da  formulação  democrática
popular  parte  de  uma   pressuposto  semelhante  ao  que  foi  expresso  por  Florestan,  isto  é,  a
suposta  impermeabilidade   da  burguesia  brasileira  e  de  seu  Estado  diante   das  demandas
populares  (matéria   prima  da  luta  por  reformas), ou como as formulações e  o  próprio sociólogo
brasileiro  afirmarão,  as  chamadas  “tarefas  democráticas  em  atraso”,  ou  “tarefas não efetivadas
pela  burguesia”.  Desta  maneira  podemos  supor que o essencial à formulação em questão é que
a  apresentação  de  tais  demandas  pelos  trabalhadores  e  a  resistência  do  poder  burguês  em
incorporá­las,  seriam  o  momento  dentro  da  ordem  que  prepararia  a  possibilidade  da  ruptura,
na verdade a legitimaria perante a maioria da população.
Ainda  que  esta  formulação  tenha  cumprido um papel importante na dinâmica da luta de
classes  e  tenha  significado  um  poderoso  instrumento  de  mobilização,  luta  e  organização  dos
trabalhadores  que  refletiu  em  patamares  significativos  na  constituição   de  uma  consciência  de
classe  (aliás,  o  mesmo  pode  ser  dito  da  estratégia  democrático­nacional);  seu  desfecho
produziu algo muito distinto daquilo que se esperava.
Não  é  o  caso  de  apontar  todo  o  processo  pelo  qual  esta  metamorfose  se   processou 4,
mas  apenas  indicar  o  fato  de  que  nesta  transformação  a principal vitima foi a independência de
classe.  Pensada inicialmente como um longo processo de acúmulo de forças  que combinaria um
braço  de  ação  junto  aos  movimentos  sociais  e  sindicais, ligados às lutas da classe trabalhadora
e  outro  que  refletiria  este  crescimento  de  lutas  através  de  patamares  institucionais  (sindicatos,
organizações   da  sociedade  civil  e  espaços  institucionais  conquistados  via  eleitoral  nas
administrações  e  parlamentos),  processo  este  que  deveria  culminar   na  conquista  do  governo
federal  para  que  se  desencadeasse  reformas  de  caráter  “antiimperialista,  antilatifundiário  e
antimonopolista”;  esta  propsta  sofreria  uma  inflexão  significativa  entre   o   VI  e   VII  Encontros
Nacionais do PT.
De  forma  sucinta  podemos  afirmar  que  três  processos  se  combinaram  nesta  inflexão.
Primeiro  que  a  dinâmica  da  luta  de  classes  se  acentuou  no  governo  Sarney  levando  à
possibilidade  concreta  de  que  uma  vitória  eleitoral  ocorrer mais cedo do que se previa (de fato
já  um  ano  depois,  em  1988,  esta  proposta  se  colocou).  No  entanto,  paradoxalmente,
exatamente  neste  momento  outros  dois  fatores  interviriam  para  minar  as  bases  daquele  amplo
movimento  de  caráter  socialista  que  deveria  ser  a  sustentação  de  um  suposto  governo
democrático e popular que realizaria as reformas propostas.
A  reestruturação  produtiva  implantada  entre  o  final  dos  anos  1980  e durante  a década
de  1990,  quebraria   a  força  do  movimento  operário  independente  em   sua  própria  base,  ao
mesmo  tempo  em  que  a  crise  nas  experiências  de transição socialista em curso, notadamente a
URSS,  entravam  em  rápido  colapso.  Estes  vetores  se  combinam  para  gerar  um  resultado
inesperado:  a  possibilidade  de  chegar  ao  governo  federal,  mas  sem  a correlação de forças que
permitiria a implantação das reformas democráticas e populares.
A  solução  encontrada,  ainda  dentro  do  campo  de  uma  estratégia  democrática  e

4
Para  tanto  ver   As   metamorfoses  da  consciência  de  classe:   o   PT   entre  a  negação  e  o  consentimento   (Iasi,
Expressão Popular: São Paulo, 2006)
popular,  é  que  seria  possível  e desejável seguir o acúmulo de forças agora dentro deste espaço
institucional  estratégico,  assim  como já se supunha se realiza nos espaços institucionais menores
conquistados  nesse  processo  (administrações  municipais,  mandatos  parlamentares,  máquinas
sindicais, etc.).
Vejam  que  há  um  raciocino  estranho  aqui.  Não  se  poderia  pensar  em  uma  ruptura
socialista  por  conta   de  uma  certa  correlação  de  forças  insuficiente  acompanhada  de  uma
consciência  de  classe  igualmente  insuficiente.  Por  isso  as  reformas  democráticas  e  populares.
Agora  se  trata  de  uma  correlação  de  forças  ainda  mais  precária  que  impede  até  mesmo  estas
reformas, fazendo com que o programa tenda a um horizonte apenas “democrático”.
No  entanto,  não  se  trata   aqui  de  pura  intencionalidade  que  se  joga  no  vazio,  mas  de
uma  luta  de  classes.  Lembremos  que isso  tudo se dá no momento em que a burguesia sofre seu
próprio  paradoxo  expresso  no  dilema  entre  uma  autoreforma  nos  termos  de  uma  democracia
de  cooptação  ou  um  aprofundamento  da  autocracia,  alternativa  que neste momento se aplica e
que parece alimentar o processo de luta de classes e fortalece seu adversário.
A  metamorfose,  ou  o  transformismo  se  preferem,  se  dá no processo pelo qual acabam
por  se  chocar  dois  interesses  que  até  então  formavam  uma  unidade:  os  interesses  da  classe
trabalhadora  retomando  seu  processo de luta com a crise da autocracia, e os interesses de uma
camada burocrática que se especializou na gestão dos  espaços institucionais ocupados (partido,
sindicatos,  espaços  governativos  ou  parlamentares).  Tal  contradição  se  materializa  na  questão
das  eleições  presidenciais  e  nas  sucessivas  derrotas  de  Lula  (em  1989,  1994  e  1998)  o  que
leva  a  um  setor  do  PT  a  defender  a  tese  segundo  a qual seria necessário ampliar as alianças, o
que implicaria em uma moderação programática, para que fosse possível ganhar as eleições5.
A  vitória  eleitoral  de  2002  que  leva  Lula  à  presidência  consagra  esta  inflexão.  O
encontro  nacional  que  a  antecede  é  esclarecedor  do  caminho inverso percorrido no sentido do
desmonte da independência de classe, em suas resoluções podemos ler:

5
Esta  tese  foi  defendida  já   no   VIII  Encontro  Nacional,   mas  foi  suspensa  com   a  vitória  de   uma  coligação  de
esquerda  que  dirigiria   o   PT   neste  período  e  retomada  no  X   Encontro   (1995)   com  a   vitória  de  José  Dirceu   para  a
presidência do partido.
Um   novo  contrato social,  em defesa das mudanças estruturais  para  o país, exige o
apoio  de  amplas  forças  sociais  que dêem suporte ao Estado­nação.  As mudanças
estruturais  estão  todas  dirigidas  a  promover  uma  ampla inclusão social –  portanto
distribuir  renda,  riqueza,  poder  e  cultura.  Os  grandes  rentistas  e  especuladores
serão  atingidos  diretamente  pelas  políticas  distributivistas  e, nestas  condições,  não
se  beneficiarão  do  novo  contrato  social.  Já  os  empresários  produtivos  de
qualquer  porte   estarão  contemplados  com  a  ampliação  do  mercado de  consumo
de  massas  e  com  a  desarticulação  da  lógica  financeira  e  especulativa  que
caracteriza  o  atual  modelo  econômico.  Crescer  a  partir  do  mercado  interno
significa  dar previsibilidade para o  capital  produtivo (XII  Encontro  Nacional,  2001)
6
.

Eis  que  uma  força  política  própria  da  classe  trabalhadora  passa  ao  campo  moderado,
primeiro  rumo  ao  centro  do  espectro  político  e  depois  com  o  desenvolvimento  dos
compromissos  de  governabilidade,  para  uma  aliança  de  centro  direita.  Este  “transformismo  de
grupos  radicais  inteiros,  que  passam   para  o  campo  moderado”  (Gramsci,  2011:  317)  não
restringe  seu impacto ao próprio grupo ou à direção destes grupos, mas produz um efeito sobre
a classe de onde emergiram inicialmente. Como diz Gramsci:

Neste  sentido  (a  absorção  gradual  mas  contínua  de  adversários  que  pareciam
irreconciliáveis  inimigos),  a  direção  política  se  tornou  um  aspecto  da  função  de
domínio,  uma  vez  que  a  absorção  das  elites  dos   grupos  inimigos  leva  à
decapitação  destes  e  a  sua  aniquilação  por  um  período  frequentemente  muito
longo (idem: 318).

Intencionalidades e luta de classe

Este  é  um  processo  político  complexo  que  passa  por  questões  éticas  mas  não  se

6
Resoluções  do  12.º  Encontro  Nacional  (2001).  Diretório  Nacional  do  Partido   dos  Trabalhadores,  São Paulo,
2001, p. 38.
restringe  a elas. Ainda que possam ter havido pequenas e grandes traições, e de fato houveram,
os  protagonistas  deste  processo  não   necessariamente  agem  como  “terratenentes  da  burguesia
no  movimento  operário”,  na  expressão  de  Lênin,  de  forma  consciente.  Eles  podem  seguir
acreditando  que  estão  executando  um momento tático de sua estratégia, acumulando forças até
que  um  dia  retomem  as  condições  para  a  mítica  ruptura  socialista,  transformada  em  horizonte
que  sempre se afasta quanto  mais dele nos aproximamos. Não se trata de meras intenções, mas
de  interesses  de  classe.  A  burguesia  precisava  resolver  seus  problemas   de  hegemonia  e  para
isso  tinha  que  enfrentar  uma  contradição:  dado  o  caráter  estrutural  da  exploração  na  forma
como  a  acumulação  de  capitais  poderia  chegar  no  máximo  a  uma  democracia  de  cooptação
diante  da  qual  os  trabalhadores  se  negariam  a  receber  tão  pouco  e  a  burguesia  se  recusaria  a
pagar um preço que consideraria muito alto.
O  cenário  se  agrava  na  medida  em  que  a  burguesia  precisa  realizar  isso  no  bojo  de
ajustes  que  apontavam  para  o  desmonte  do  Estado  e das políticas públicas, a intensificação da
mercantização  e  das  privatizações,  uma interação mundial de mercados e fluxos financeiros que
solapam  qualquer  esforço  de  autonomia  nacional,  ou  seja,  era  necessário  retomar  as  bases  de
um  consentimento  da  classe  trabalhadora,  mas  sem  o  retorno  do  Estado  do Bem­estar Social,
que  na  verdade  aqui  nunca  existiu,  mas  que  no  contexto europeu foi o principal instrumento do
amoldamento do movimento operário e socialista.
O  interesse  expresso   na  trajetória  recente  do  PT  e  de  sua  experiência  no  governo
federal  em  um governo de coalizão de classes, numa composição de centro direita, rende­se ao
pragmatismo  político:  vencer,   governar  e  se  reeleger.  O  ex­presidente  do  PT,  José  Genoino,
parece indicar o campo deste pacto social e seu impacto sobre a questão do programa:

O  programa  de  governo  que  a  candidatura  Lula  levou  às  ruas  em   2002   contém
eixos  estratégicos  para  o  Brasil.  Um  projeto  estratégico,  qualquer   que  seja,  é
sempre  a  projeção  ideal  que  um  agente  político  –  no  caso  o  PT  –  formula  em
relação  à  sua  visão  de  futuro.  Projeto  político  não  pode  ser  entendido  como
algo  que  necessariamente  se  realizará.   Trata­se  apenas  de  um  dever­ser,  de
uma  das  possibilidades  em  relação  ao  futuro.  Na  medida  em  que  existem  vários
projetos  interagindo  e  que a ação de  execução de um  projeto interage com a ação
de  outros  sujeitos,  o  resultado  final  da  ação  implementadora  de  um projeto nunca
será  igual  à  intenção  inicial  do  agente.  O  mesmo  ocorre  com  programas  de
governo.  O  que  importa,  na  ação  dos  partidos,  é  que  suas  ações correspondam a
programas  e  projetos.  Resultará  daí  algo  mais  ou  menos  aproximado  da
formulação  inicial,   dependendo  sempre  da  capacidade  de  execução,  das
condicionantes  da  realidade,  das  circunstâncias  e  dos  agentes  interativos
(Genoino, 2003).

Notem  que  a  resultante  expressa  no  governo  é  produzida  pelo  concurso  de  “vários
projetos  interagindo”,   mas  seria  interessante  perguntar  quais.  O  PT  apresentou  às  eleições
“seu”  projeto,  mas  já  vimos  que  ele  já  estava  devidamente  desfigurado por uma inflexão que o
retira  de  um  campo  fora  da  ordem  para  um  campo  que  a   aceita  como limite que não pode ser
superado.  Mas,  vamos  supor  apenas  para  fins  de  exposição,  que  este representa  os interesses
táticos  dos  trabalhadores.  Com  que  outros  projetos  terá  que  interagir?  Certamente  não  são
aqueles  motivados  pela  intensa  participação  popular  e  da  classe  trabalhadora,  uma  vez  que os
mecanismos  de  participação  direta  foram  devidamente  travados,  quando  não  criminalizados.
Em  se  tratando  de  uma  sociedade  de  classe,  trata­se  dos  interesses   muito  bem  organizados
através  dos  loobies  dos  diferentes  setores  da  burguesia  monopolista  e  estes  não  precisam
moderar  suas  demandas  para  parecer  aceitáveis   ou   serem  compreendidos  pela  consciência
comum  da  maioria  da  população.  A  ingenuidade  genuinamente apresentada pelo ex­presidente
do  PT,  ex­deputado  e  ex­socialista,  chega  ao  ponto  de  considerar,  na   perspectiva  dita
republicana  que  ele  hoje  assume,  que  a  interação  entre  estes  “projetos”  é  neutra,
desconsiderando,  por  exemplo,  que  parte  destes  projetos  são  acompanhados  de  vultuosas
contribuições  de  campanha  ou  bancadas  inteiras  que  podem  viabilizar  ou  inviabilizar  a
sustentação de um governo.
Por  fim,  o  pacto  nos  termos  apresentados   de  uma  democracia  de  cooptação,  permite
disciplinar  a  luta  de  classes.  Os  pontos  de  “acordo”,  o  que  resulta  desta  paciente  e
habbermasiana  ampliação  das  esferas  de  consenso,  são  “acidentalmente”  os  interesses
essenciais  da  acumulação  de capital: garantir o crescimento econômico, realizar as reformas e o
ajuste  do  Estado,  garantir  a  “sustentabilidade”  e  evitar  as  políticas  “irresponsáveis”  e
“demagógicas”,  e  finalmente,  oferecer  o  fundo  publico  como   alvo  da  valorização  do  capital
estrangulado por sua crise.
A  condição  política  para  que  este  “ajuste  estrutural”  ocorra  é  o  desarmar  da  classe
trabalhadora,  mas  isso  não  pode  ser  conseguido  pelos  meios  clássicos  da  social  democracia,
pelo  contrario,  será  a  camada  melhor  remunerada  do  proletariado  que  terá  que  pagar  pelo
ajuste.  A  forma  encontrada  é  a  viabilizada  pelo  pacto  com  a  pequena  burguesia  política,
formada  com  base  naquela  burocracia  descrita,  que  negocia  em  nome  da  classe  para
implementar uma política contra seus verdadeiros interesses.
A  base  da  democracia  de  cooptação  é  a  focalização  das  ações  sociais  visando
amenizar  a  pobreza  absoluta  ao  mesmo  tempo  que  oferece  condições  para  o  crescimento
econômico e, portanto da acumulação privada, aumentando a pobreza relativa.
A  democracia  de  cooptação,  genialmente  antecipada  por  Florestan,  mas  por  ele
descartada   como  possibilidade,  não  veio  da autoreforma da autocracia, mas, inesperadamente,
do  desenvolvimento  da  estratégia  democrática  popular madura que desloca para o governo um
setor  que  emerge  da  classe  trabalhadora  e  dela  se  afasta  para  negociar  em  seu  nome  o  pacto
que  acaba   por  resolver  os  problemas  de  hegemonia  que  faltava  à  consolidação  do  poder
burguês  no  Brasil.  Querendo  evitar  os  equívocos  de  um  socialismo  sem  democracia,  o  PT
acaba por implementar o pesadelo de uma burocracia sem socialismo.
Assim  como  na  social  democracia  européia  (Przeworski,  1989),  a  estratégia
democrática  popular  que  havia  sido  pensado  como  uma  caminho  alternativo  para se chegar ao
socialismo, torna­se mais um eficiente meio de evitá­lo.

Referencias Bibliográficas

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