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Regina Celi Mendes PEREIRA

Betânia Passos MEDRADO


Carla Lynn REICHMANN
(Orgs.)

Letramentos e práticas formativas:


pesquisas tecidas nas entrelinhas do ISD

2015
Letramentos e práticas formativas: pesquisas tecidas nas entrelinhas do ISD

SUMÁRIO

Prefácio
Eulália Leurquin

Tecendo a trama: diálogos por entre fios discursivos


Regina Celi Mendes Pereira, Betânia Passos Medrado, Carla Lynn Reichmann
Ciência: uma atividade de linguagem em constante (re)construção
Poliana Dayse Vasconcelos Leitão

Desenvolvimento e figuras de ação no quadro do ISD: reflexões a partir da teoria


vygotskiana
Francieli Freudenberger Martiny

Conto de fadas e subjetividade: caminhos transdisciplinares entre linguística e psicanálise


Renata de Lourdes Costa de Menezes

As contribuições do Pibic para a formação de professores/pesquisadores: uma análise dos


artigos de iniciação científica
Alexandra Pereira Dias
Regina Celi Mendes Pereira

Contrato de financiamento de veículo: uma análise sociossubjetiva dos parâmetros de


produção do gênero
Monique Galdino Queiroz

Formação profissional de uma professora de inglês: um tornado da (des)construção dos


saberes docentes
Liane Velloso Leitão

Prescrições, ações e reflexões: professoras de língua inglesa no ensino médio e seu metier
Gerthrudes Hellena Cavalcante de Araújo

Conflitos e desenvolvimento no ensino a alunos com deficiência visual


Rosycléa Dantas

A construção da identidade profissional de graduandos em diários de leituras


Fabiana Ramos

A formação inicial do professor de língua inglesa: a análise das práticas como ação
formativa
Mariana Pérez

Entrevista com Jean-Paul Bronckart


Rivadávia Porto Cavalcante
PREFÁCIO

Foi com muita satisfação que recebi o convite para escrever o Prefácio deste livro.
Não apenas pela amizade que me une à Regina Pereira, Betânia Medrado e Carla Reichmann,
mas, e muito fortemente, por conhecer e acompanhar de perto o trabalho desenvolvido pelo
grupo de pesquisa Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (GELIT), da Universidade
Federal da Paraíba. Sem nenhuma dúvida, esse grupo registra de forma eficiente o seu espaço
dentro do contexto de discussão sobre as contribuições do Interacionsmo Sociodiscursivo
(doravante, ISD) para o ensino e aprendizagem e para a formação do professor.
O ISD chegou ao Brasil por intermédio de Anna Raquel, no lançamento do livro
Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo, de autoria de Jean-Paul
Bronckart, em 1999. Desde então, constatamos no nosso país um crescente número de
pesquisas e de publicações de estudos realizados. Nesse contexto, duas vertentes se
configuram: as contribuições do referido quadro teórico no tocante à análise dos gêneros
textuais e as contribuições do ISD no âmbito da Didática de Línguas, em particular
focalizando questões sobre o ensino e aprendizagem com base em gêneros orais e escritos,
com os estudos de Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz (2004). Mas, não podemos nem
devemos deixar de citar os estudos desenvolvidos por Ecaterina Bulea-Bronckart, no tocante
à Didática do ensino da gramática (2015), sob pena de minimizar o alcance desse quadro
teórico e seguramente desconsiderar os estudos desenvolvidos por esta pesquisadora no
âmbito do ISD.
Esse quadro teórico e metodológico, de acordo com dados apresentados na Mesa
redonda de abertura do VIII Simpósio Internacional de Gêneros Textuais (SIGET),
realizado na Universidade de São Paulo (USP), em setembro de 2015, está presente nas
quatro das cinco regiões brasileiras na forma de grupos de pesquisas com referência teórica
assentada na escola genebrina. Neste texto atualizo a informação, acrescentando as pesquisas
desenvolvidas na Universidade Federal do Pará, onde tive a oportunidade de participar de
defesas de dissertação respaldadas nesse aporte teórico. Tais dados por si sós mostram o
alcance e a contribuição da escola genebrina em universidades de todas as regiões do Brasil.
O foco dado é o ensino e aprendizagem e a formação de professor, temas tão caros para nós.
O GELIT registra seu espaço no mapa desenhado no referido evento ao trazer
para a comunidade o livro Letramentos e práticas formativas: pesquisas tecidas nas
entrelinhas do ISD. Neste espaço, as organizadoras não apenas apresentam resultados de
trabalhos realizados no seio do grupo de pesquisa em questão, como também dão elementos
que podem contribuir para uma discussão tão importante, que neste momento se amplia na
academia brasileira, a discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular.
Situadas na problemática do ensino e aprendizagem e da formação do professor,
provavelmente uma das primeiras opções feitas pelas organizadoras foi com relação ao
posicionamento a tomar sobre o tratamento dado às questões relacionadas a esses temas.
Então, elas se ancoraram na relação possível entre a Linguística Aplicada e o ISD como uma
opção para analisar o texto proveniente das diversas interações, e em particular da interação
didática (CICUREL, 2011) realizada na sala de aula de línguas ou da interação estabelecida
entre professor e pesquisador no momento da geração dos dados.
Trata-se de uma abordagem cada vez mais assumida por pesquisadores brasileiros,
de não apenas gerar dados, mas também compreendê-los, uma abordagem discursiva da
formação de professores articuladas aos estudos desenvolvidos no contexto teórico da
Ergonomia do Trabalho e da Clínica da Atividade assumida por Yves Clot e Daniel Faïta.
A pluralidade da sala de aula permitiu e quase que exigiu o diálogo com essas e
demais teorias, a depender dos objetivos traçados para a pesquisa. A reflexão sobre o ensino
e aprendizagem da língua, o papel da linguagem nas interações e o desenvolvimento do
humano e do profissional exigiram um olhar mais crítico com relação ao próprio dispositivo
de geração de dados. Foi necessário fazer opções, pois parece muito evidente a necessidade
de se repensar o perfil de professor que estamos formando. Como fazer isso e também
contemplar a realidade contemporânea e as necessidades do profissional e do estudante
tendo em vista um ensino e aprendizagem significativo e uma formação de professor com
isso articulada?
Ora, qualquer mudança hoje que envolva o ensino e aprendizagem e a formação
do professor exige que o profissional assuma o seu papel de ator. Ao assumir tal postura e
ao verbalizar cenas não observáveis, oportunizando o pesquisador a ter acesso a tais cenas,
o professor verbaliza intenções e motivos, deixando pistas de modalizações do agir do
professor (LEURQUIN, 2013) que revelam impedimentos no seu agir.
Ao se posicionarem dessa maneira, elas reuniram os capítulos de forma que o
leitor possa ter acesso a pesquisas que dão voz ao profissional e que o leitor possa melhor
compreender a dinâmica da sala de aula, uma vez que temos acesso a dados não observáveis.
Essa obra se representa como um texto plural em vários sentidos. Há uma polifonia
orquestrada em seus onze capítulos que se reúne em torno de questões relacionadas ao
letramento e a práticas formativa no contexto de ensino e aprendizagem e de formação inicial
e continuada do professor, em sua predominância. Para além disso, o livro põe em evidência
o espaço do dispositivo de geração de dados, pontuando seu papel e sinalizando o
desdobramento dele para a compreensão dos fatos e avanços das questões levantadas nas
pesquisas no domínio da Linguística Aplicada.
A trajetória das organizadoras nesse projeto ganhou fôlego na participação de cada
autor (a), acentuando as possibilidades de compreender os temas trazidos nesta obra através
da análise do agir do professor semiotizado em seu texto. Unindo-se à proposta das
organizadoras, os autores convidam os leitores/as leitoras a uma reflexão descendente cujo
ponto de partida é a própria Ciência, quando ela é posta em evidência e questionada. Passa
por um repensar o dispositivo utilizado na pesquisa científica e chega aos procedimentos de
análise dos dados cujo assento se encontra no ISD. A discussão gira em torno da Formação
inicial e continuada do professor, em sua essência e traz em evidência questões pouco
tratadas, isto é, o ensino e aprendizagem no contexto que envolve o aluno com necessidades
especiais.
As duas últimas contribuições retomam, de certa forma, o ponto de partida da
obra. Uma trata da identidade do professor em formação e a outra de um “repensar” ou
“reatualizar” questões teóricas importantes, através de uma entrevista realizada com o
próprio mentor do ISD, o professor Jean-Paul Bronckart.
Desejo aos leitores um encontro proveitoso com os autores, seguindo as pistas
dadas pelas organizadoras!

Eulália Leurquin

Referências Bibliográficas
BRONCKART, Jean- Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um
interacionismo sociodiscursivo. Trad. de MACHADO, A. R.; CUNHA, P. 2.ed., 2.reimpr.
São Paulo: EDUC, 1999.
BULEA, Ecaterina. Linguagem e efeitos desenvolvimentais da interpretação da
atividade. trad. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin e Lena Lúcia Espíndola Rodrigues
Figueiredo. Campinas: Mercado das Letras, 2010.
CICUREL, Francine. Les interactions dans l´enseignement des langues : agir
professoral et pratiques de classe. Paris: Didider, 2011.
LEURQUIN Eulália Vera Lúcia Fraga. Que dizem os professores sobre o seu agir
professoral? ANPOLL. Campinas: Pontes, 2013.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização
Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2004.

TECENDO A TRAMA: DIÁLOGOS POR ENTRE FIOS DISCURSIVOS


Regina Celi Mendes Pereira
Betânia Passos Medrado
Carla Lynn Reichmann

Introduzindo o nosso contexto sociointeracional

O projeto deste livro começou já há algum tempo e não só a duas, quatro ou seis mãos,
foi sendo tecido por muitas mãos, mentes e, por que não dizer também, corações. O Grupo
de estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (GELIT) foi criado oficialmente em 2011,
mas podemos dizer que já nos constituíamos enquanto grupo de pesquisa desde 2008 quando
começaram a ser defendidas as primeiras dissertações, teses e finalizados os relatórios de
projetos de Iniciação Científica sob a orientação teórico-metodológica do Interacionismo
Sociodiscursivo (ISD), vinculados à linha de pesquisa Linguística Aplicada (LA) no Programa
de Pós-graduação em Linguística (PROLING) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
De lá pra cá, muita coisa aconteceu e o grupo ganhou novos membros, hoje somos 34
participantes ativos, aumentaram as participações em eventos e publicações em inúmeros
periódicos da área. Os nossos encontros ganharam periodicidade quinzenal inabalável, típica
de semestre letivo, com direito a férias, obviamente. A leitura e discussão do livro Bakhtin
Desmascarado (BRONCKART e BOTA, 2011) provocou o interesse por diferentes leituras
e discussões atraindo outros debatedores, tanto bronckartianos como bakhtinianos. A
polêmica estava lançada e nos fez refletir sobre questões mais amplas que perpassavam,
inclusive, aspectos teóricos referentes ao quadro conceitual do ISD. Desse caminho em
diante, a decisão no grupo seguiu na direção de retomar a leitura e discussão das bases
teóricas do ISD tendo em vista o papel e a contribuição de cada uma na composição do seu
quadro teórico epistemológico e procurando situá-las no nosso próprio campo de pesquisa.
Também foram de extrema relevância para as reflexões que fazíamos os diálogos e
interlocuções com os professores Jean Paul Bronckart e Ecaterina Bulea incrementados
durante o estágio sanduíche dos doutorandos Francieli Freudenberger Martiny e Rivadávia
Porto Cavalcante na Universidade de Genebra. Envolvidos como estávamos em reflexões,
foi um momento ímpar para registrarmos nossos questionamentos, em forma de uma
entrevista a ser concedida posteriormente por Bronckart.
Diríamos que um dos questionamentos centrais relacionava-se ao nosso lugar social
como Linguistas Aplicados no contexto brasileiro de ensino e pesquisa. Não vamos entrar,
nesse momento, no mérito da discussão ontológica sobre o que significa ser um Linguista
Aplicado. Aqui nos alinhamos com as reflexões já bem desenvolvidas sobre esse tema em
Kleiman (1990), Celani (1992), Moita Lopes (2006, 2013), Cavalcanti (2006), dentre outros
ilustres pesquisadores da área que escreveram sobre a temática. O que se impunha para nós
era analisar até que ponto concebíamos e nos situávamos em uma LA mais contemporânea
e, por conseguinte, menos disciplinar em nossas próprias pesquisas, ao mesmo tempo em
que abraçávamos a base conceitual do ISD com toda sua amplitude inerente que reúne
filósofos, psicólogos e linguistas numa admirável trama dialética que inclui desde Spinoza a
Saussure.
Logicamente, tínhamos como “álibi” o caráter trans e indisciplinar da LA que permitiu
a entrada do ISD no Brasil, favorecendo esse diálogo com diferentes teorias “orquestradas”
em torno dos princípios de uma “ciência do humano” (BRONCKART, 2006) e que, por isso
mesmo, admite uma abordagem complexa (MORIN, 2001) tecida com base em vários “fios”
e de diferentes pontos de vista. Assim, na esteira da discussão sobre quem somos e o que
fazemos, sentimos necessidade de consolidar conceitos no quadro de ISD, como os de texto
e de ciência, por exemplo, e compartilhar nossas inquietações a respeito dos possíveis
desdobramentos que o quadro permite, ainda que não venham sendo desenvolvidos nas
pesquisas em Genebra.
Os capítulos aqui reunidos exemplificam essa diversidade de objetos de investigação e
a entrevista com Bronckart, realizada por Rivadávia Porto Cavalcante, com base nos
questionamentos levantados pelo grupo, trouxe à tona, dentre outras reflexões, que os nossos
conhecimentos são sempre imperfeitos. Essa imperfeição, segundo Bronckart (2006), com
base na visão monista spinozana seria decorrente da tentativa de discretizar algo que, em
essência, é contínuo, daí o caráter sempre imperfeito de nosso conhecimento devido a sua
incompletude. Em outras palavras, significa dizer que há muito ainda a ser investigado e
estudado, e que o fato de alguns desdobramentos não terem sido contemplados,
necessariamente não os desqualifica.
Assim, tentando nos apaziguar com nossos conflitos tanto identitários quanto teórico-
metodológicos, temos reconhecido a viabilidade e coerência nas articulações entre o nosso
modo de fazer pesquisa em LA nas entrelinhas do ISD e de outras bases teóricas que
compartilhem de seus fundamentos basilares. No contexto brasileiro, o ISD ganha outros
contornos que não o descaracterizam, pelo contrário, o singularizam. Ora, as representações
habermasianas dos mundos bem justificam o caráter singular ou a natureza idiossincrática
dos seres na dimensão constitutiva dos mundos da qual também fazem parte o objetivo e o
social.
Defendemos uma preocupação com o social que desponte do conhecimento de
problemas de um mundo real vivido por cada um dos pesquisadores do grupo. Esse é um
dos compromissos da LA ao qual não nos furtamos e que está presente em nossa agenda
investigativa. Reconhecemos, no entanto, que, diante do volume expressivo de pesquisas em
LA no cenário brasileiro, nem sempre esse caráter tem sido contemplado. Segundo Silva
(2015), a ausência dessa preocupação com problemas sociais tem caracterizado o que
denomina como um dos quatro truísmos da LA. Para o autor, a ênfase em disciplinas e não
em problemas é uma característica decorrente de ideologias brasileiras de trabalho em
ciências humanas. Ainda a respeito desse “legado”, o autor acrescenta que

uma boa evidência (dentre tantas outras) da atenção exacerbada aos


limites disciplinares e o mútuo desinteresse de pesquisas linguísticas
por explicações densas de aspectos sociais motivando fenômenos
linguísticos e de pesquisas sociais por problemas linguísticos
afetando fenômenos sociais (SILVA, 2015, p. 365).

As nossas problematizações partem de um contexto bem mais amplo do que, a


princípio, pode ser percebido por nós e pelos pares. Entendemos que há e deve haver,
sempre em nossas pesquisas, um questionamento geral no qual estejam implicados elementos
do entorno sócio-histórico que dialogue diretamente com a nossa capacidade de pensar o
mundo criticamente que vá além do caráter linguístico-discursivo de análise. E se algum de
nós não perceber isso nas motivações que geram nossas perguntas iniciais, tratemos de
identificá-lo e elegê-lo à condição de invólucro social que nos caracteriza e nos distingue das
demais perspectivas da linguística teórica.
Sim, analisamos práticas linguageiras situadas sem perder de vista os impactos políticos
subjacentes e decorrentes de pesquisas que priorizam eventos de mediação formativa em
toda sua complexidade. Quando examinamos processos de formação docente nos cursos de
Licenciatura em Letras, nas modalidades presencial e virtual, em seus múltiplos aspectos, que
vão dos documentos prescritivos às abordagens inclusivas; ou as práticas de Letramento em
diferentes contextos (desde aqueles marginalizados, como os de presidiários, passando por
comunidades ribeirinhas, indígenas até chegar ao acadêmico), fazemos muito mais do que
gerar dados e sobre eles nos debruçarmos teórico-metodologicamente. Parafraseando
Marilda Cavalcanti (2006), avaliamos que temos conseguido no âmbito do GELIT lançar
esse olhar meta teórico e meta metodológico sobre nossas pesquisas e procurado contribuir
ética e politicamente, cada um a sua maneira, em maior ou menor intensidade, com propostas
e ações voltadas para esses contextos investigados e para a comunidade acadêmica em geral.
Até prova em contrário, é possível conciliar rigor metodológico e analítico (nossa base
conceitual do ISD) com princípios de cidadania e responsabilidade científica. Isso é ser
Linguista Aplicado (Gelitiano).

1. Por uma identidade (ou identidades?)

Nessa direção, ou seja, tematizando questões que nos delineassem enquanto grupo,
incluímos nas reflexões um texto em que Joaquim Dolz discute a criação de uma escola
brasileira do ISD ao avaliar que “as inovações, a originalidade das propostas e a produtividade
dos trabalhos brasileiros superam, em muitos casos, os estudos realizados nesta outra parte
do Atlântico” (DOLZ, 2009, p. 166). Entendemos que essa escola brasileira, à qual o
pesquisador se refere, tem uma característica peculiar, que é de ter iniciado suas pesquisas no
Brasil no âmbito da LA. Essa entrada, certamente, fez toda a diferença, principalmente se
pensarmos que ela aconteceu em um momento político e econômico em que se discutia a
parametrização curricular da Educação Básica e a formação dos professores em nosso país.
Estamos falando do final da década de 90 do século passado em que as pesquisas
precisavam, não apenas realocar o papel do professor nos processos educativos, mas,
sobretudo, perseguir uma valorização profissional já há muito posta à margem. Segundo
Machado e Guimarães (2009, p. 24) apontam, esse era um “quadro de intensa transformação
e, no campo educacional, especificamente no ensino de línguas, a convivência de várias
teorias isoladas, sem um quadro unificador e coerente”. O cenário vai ser vital para que as
pesquisas realizadas em nosso país começassem a apresentar características que diferem dos
estudos já conhecidos em outros países como Portugal, Argentina ou a própria Suíça, berço
do ISD.
Assim, a adoção do quadro teórico-epistemológico por muitos pesquisadores brasileiros
assumiu, inevitavelmente, outras demandas. A escola brasileira, além de continuar
desenvolvendo pesquisas no campo da didática de línguas e dos gêneros orais e escritos como
objeto de ensino e unidade de trabalho do professor – eixo de pesquisa iniciado pelos
pesquisadores genebrinos-, ampliou o escopo para a formação de professores e para o papel
da linguagem em situações de trabalho. Portanto, as escolhas dos objetos, dos diversos corpora
e dos contextos de investigação têm determinado que muitas pesquisas no Brasil associem a
epistemologia do ISD a outras vertentes teóricas como é o caso de pesquisas já realizadas na
USP, UNISINOS, UFSM, UEL, UFCG, UFC. No GELIT, igualmente, as pesquisas têm
enveredado pelos campos da Psicanálise, dos Estudos do Letramento, das Políticas
Linguísticas, ou ainda, das Ciências do Trabalho, provocando, ao longo dos últimos anos,
um volume razoável de trabalhos publicados, entre dissertações e teses defendidas no
PROLING-UFPB.
É nesse sentido que, ao fazer uma análise sobre algumas pesquisas que dialogam com
as Ciências do Trabalho, Bronckart (2009, p. 170) ressalta que

não há nenhuma incompatibilidade entre o engajamento militante e o


engajamento propriamente científico; assim, parece-nos ao mesmo
tempo pertinente e feliz que a dinâmica de pesquisa que já foi iniciada
continue a ser colocada a serviço da defesa do “métier” do professor.

É justamente o engajamento político-científico e a responsabilidade social que têm


se configurado como preocupações constantes em nossa forma de pensar a produção de
conhecimento em nossa região e, mais amplamente, no Brasil. Inquietação que é
constantemente aguçada pela consciência de que a LA e a forma de pensar o humano no
quadro do ISD nos orientam para uma maneira bem específica de problematizar o social. E
é nesse esteio de investigação que temos buscado compreender os matizes da nossa
identidade no grupo (na troca constante sobre como estamos nos apropriando dos princípios
e categorias do ISD) e fora dele (em nível mais macro, no contato com aqueles que também
são interacionistas sociodiscursivos).
Dessa forma, a nossa identidade - múltipla, plural e metamorfoseada - também reflete
a ampliação dos estudos do ISD no Brasil, demonstrando uma heterogeneidade tão
característica da realidade brasileira, do nosso lugar. Contudo, compreendemos que, ao
mesmo tempo em que há um tipo de fazer científico que nos filia ao ISD, mantendo-nos em
relação quase orgânica, e nos oferecendo certo sentimento de pertencimento, há algo que
nos diferencia também no interior do grupo: os objetos de pesquisa, os diálogos teóricos que
queremos convocar para o nosso trabalho, a maneira única e singular de compreender nosso
contexto de pesquisa etc. Ou seja, temos a convicção de que nossa identidade no GELIT é
constituída e transformada, todo o tempo, no respeito à pluralidade em uma unidade.
Usando a metáfora dos fios no tear, diríamos que esses fios de diferentes cores vão
se unindo e tecendo os elementos conjuntamente. Como consequência, a variedade
resultante dessas complexas tessituras é benéfica e necessária.

2. A trama da obra

Como a imagem da capa sugere, tecemos pesquisas nas entrelinhas do ISD, levando
em conta a complexa trama posta em cena por práticas letradas e formativas. Apresentamos,
a seguir, os onze textos que constituem o presente livro, resultado de pesquisas de iniciação
científica, mestrado e doutorado realizadas no âmbito do GELIT, que buscam evidenciar
teórica e analiticamente as reflexões introduzidas nas seções anteriores e que nos
singularizam enquanto grupo.
O primeiro capítulo deste volume, de Poliana Dayse Vasconcelos Leitão, retoma a
discussão sobre concepções de ciência e os diferentes modos de construir conhecimentos,
situando essas reflexões no quadro do ISD, uma vez que uma das máximas defendidas por
Bronckart (1999) é a rejeição a todo e qualquer reducionismo. A autora discute a
responsabilidade ética sobre o que enunciamos, sem perder de vista o compromisso social
do pesquisador. É um recorte de sua pesquisa de doutorado e resgata, com pequenas
mudanças, o segundo capítulo da tese intitulada “A apreensão apreciativa do discurso de
outrem: autoria no processo de construção do conhecimento científico por professores
concluintes de Letras”. O estudo integra as pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no
âmbito do Projeto de Pesquisa Ateliê de Textos Acadêmicos (ATA/UFPB), que tem como
um dos eixos de atuação o foco na didatização da escrita em contexto universitário e no
compartilhamento de saberes.
O capítulo a seguir, de Francieli Freudenberger Martiny, decorre de sua tese de
doutorado e é fruto de inquietações que emergiram da sua experiência como formadora e
professora de estágio supervisionado em um Curso de Letras Estrangeiras. A autora propõe
uma discussão inédita sobre o conceito de desenvolvimento, haja vista utilizar-se de textos
que não foram, ainda, traduzidos para a língua portuguesa. Em sua reflexão são elencados os
principais sentidos atribuídos a esse conceito nas diferentes fases do trabalho realizado por
Vygotsky (1985; 1999; 2009). Para fins de compreensão do processo de desenvolvimento de
adultos, a noção das Figuras de Ação (BULEA, 2009a) mostra-se essencial, uma vez que
evidencia o trabalho interpretativo e as ressignificações pelas quais passam as representações
dos trabalhadores em situação de análise da sua atividade.
Construindo uma interface entre linguística e psicanálise, que ilustra o nosso enfoque
(in)disciplinar na dinâmica da investigação de problemas de pesquisa, Renata de Lourdes
Costa de Menezes, a partir do recorte de sua dissertação e de sua vivência como Psicóloga
Clínica, tem como objetivo identificar os aspectos subjetivos materializados na escrita de um
conto de fadas produzido por uma criança no setting psicanalítico. Os resultados apontam
que há uma riqueza subjetiva (consciente e inconsciente) subjacente à infraestrutura textual
do conto de fadas produzido no decurso de um processo psicoterapêutico, haja vista que, no
âmbito da relação paciente-terapeuta, a criança mobiliza um conjunto de capacidades de
linguagem que se tornam cenário de projeções psico-afetivas, capazes de revelar a
subjetividade de seu agente produtor.
O próximo capítulo, de Alexandra Pereira Dias e Regina Celi Mendes Pereira, objetiva
investigar as contribuições do PIBIC na formação de professores-pesquisadores,
especificamente, no que refere ao processo de letramento acadêmico evidenciado na
textualização dos artigos de iniciação científica. Para análise, foram coletados quatro artigos
produzidos no âmbito do PIBIC nas vigências de 2012 e 2013. Os resultados apontam que
a inserção dos discentes nesses projetos tem proporcionado aos graduandos mudanças
significativas tanto em seus textos escritos, como na prática de pesquisa e no processo de
formação como pesquisadores. Esses resultados, no entanto, longe de se constituírem como
visões de pesquisadores externos ao processo, configuram-se como avaliações dos próprios
atores de iniciação científica, nos papéis de orientando e orientador, avaliando o impacto
dessas práticas na formação do graduando.
O objetivo do capítulo de Monique Galdino Queiroz, resultado de sua dissertação de
mestrado, é analisar os parâmetros de produção do gênero contrato de financiamento de
veículo, determinando suas características linguístico-discursivas. Configurando-se como um
exemplar de texto pouco analisado no contexto acadêmico, o contrato é um gênero bastante
utilizado nas interações comerciais e jurídicas do dia a dia das pessoas e o desconhecimento
de seus elementos linguístico-discursivos caraterísticos pode ter desdobramentos sérios na
vida dos cidadãos. O corpus da pesquisa é composto por quatro exemplares do gênero,
oriundos de instituições credoras distintas. A fim de desvendar a trama complexa da
organização textual, a autora fundamenta-se na metáfora do folhado textual (BRONCKART,
1999), segundo a qual, os textos são organizados em camadas superpostas: a infraestrutura,
os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos.
O capítulo de Liane Velloso Leitão estabelece uma relação entre a formação
profissional de professores de cursos de idiomas – questão, ainda, pouco explorada nas
pesquisas em LA – e os saberes docentes explicitados nos textos de uma professora de língua
inglesa. A partir do uso de dois instrumentos distintos de geração de dados, um questionário
e entrevistas pré e pós-tarefa, a autora problematiza o fato de o contexto investigado não
valorizar a formação superior em Letras como critério de contratação dos profissionais que
atuam como professores, e demonstra, a partir da análise dos dados, a importância do papel
dos pares na ressignificação da prática docente da professora colaboradora da pesquisa. É
um trabalho que provoca, sobretudo, uma reflexão sobre a valorização e a absorção, pelo
mercado de trabalho, do aluno egresso dos Cursos de Letras.
Buscando as representações das prescrições no discurso de professoras de língua
inglesa no Ensino Médio em escolas federais na Paraíba, o capítulo de Gerthrudes Hellena
Cavalcante de Araújo, fruto de sua pesquisa de mestrado, investiga de que forma a
colaboração mútua contribui para a construção da definição e compreensão do agir do
coletivo do qual as docentes fazem parte. Tomando textos orais produzidos em sessões
reflexivas como corpus para sua análise, a discussão aponta para o fato de que a postura
reflexiva das professoras participantes da presente investigação contribuiu não apenas para
evidenciar suas representações sobre o seu fazer, mas também para a sua própria formação
continuada e para o fortalecimento do coletivo de trabalho. Ao olhar para o seu próprio
espaço de trabalho, a autora faz uma discussão sobre prática docente e textos de prescrição
em um contexto que tem se expandido significativamente. Nesse sentido, existe uma
demanda premente de se investigar como os professores que atuam em escolas federais estão
se constituindo como docentes em um campo de atuação que tem tido um impacto
considerável na formação básica, técnico-profissionalizante e superior.
Rosycléa Dantas, em seu capítulo, investiga o trabalho do professor de inglês com
alunos com deficiência visual, analisando o agir dos professores por meio dos seus próprios
textos. A partir de entrevistas e autoconfrontações com quatro professores da escola pública
regular, a autora objetiva, mais especificamente, avaliar como esses docentes se percebem. O
tratamento que dá ao tema – de incontestável valor social – permite à autora discutir de que
forma esses professores atribuem sentidos à sua prática que se revela, a partir dos dados,
como permeada de conflitos.
O capítulo de Fabiana Ramos é fruto de sua pesquisa de doutorado, com foco na
construção identitária acadêmico-profissional no curso de pedagogia da UFCG, sob um olhar
da Linguística Aplicada. Instigada ao constatar as necessidades das graduandas no seu
contexto profissional, relativas a letramento literário infantil, a referida pesquisadora se vê
com o duplo desafio, a saber, simultaneamente formar leitoras e formar formadoras. Para
tanto, constituindo um recorte de sua tese, pelo viés dos estudos de letramento e do ISD, o
capítulo analisa os diários de leitura produzidos por duas graduandas, discutindo a
responsabilização enunciativa que emerge desses textos e a tematização dos elementos
constitutivos do trabalho docente.
O penúltimo capítulo, de Mariana Pérez, constitui-se como um recorte de sua tese de
doutorado, que objetivou utilizar o procedimento de Instrução ao Sósia (CLOT, 2007, 2008)
com alunos de Letras-Inglês em Estágio Supervisionado na UFPB e professores de inglês
em serviço, visando oportunizar uma experiência com a análise das práticas na graduação,
buscando problematizar a multidimensionalidade constitutiva desse trabalho e oportunizar
um espaço para o redimensionamento e (re)construção de representações sobre o trabalho
docente. Na pesquisa, trabalhou-se com textos escritos por quatro graduandos de Letras
Inglês, participantes de três entrevistas. Neste capítulo, além da descrição do instrumento de
Instrução ao Sósia, são apresentadas atividades desenhadas a partir da didatização que a
autora propõe para esse procedimento, na condição de professora que atua em disciplinas de
estágio e tendo em vista demandas surgidas em sua experiência de sala de aula.
O último texto é uma entrevista realizada por Rivadávia Porto Cavalcante, por ocasião
de seu doutorado sanduíche em Genebra, realizado em 2014. As perguntas emergiram das
discussões realizadas no âmbito do GELIT, advindas, em grande parte, das inquietações de
pesquisa dos mestrandos e doutorandos. Ou seja, são questões oriundas e concebidas no
seio das práticas investigativas e, por isso mesmo, tiveram alcances tão variados, que
perpassam tematizações referentes a gestos didáticos, o lugar da psicanálise no quadro do
ISD, a dimensão dos textos não verbais no quadro de análise, dentre outros aspectos
abordados.
São esses, em suma, trabalhos recentes do GELIT que dialogam com um dos
questionamentos centrais: o nosso lugar social como Linguistas Aplicados no contexto
brasileiro de ensino e pesquisa.
Por fim, queremos fazer um agradecimento especial a Jean- Paul Bronckart e
Ecaterina Bulea pela disponibilidade e envolvimmento com que acolheram a proposta da
entrevista, discutindo temas tão variados e concedendo ao grupo a oportunidade de publicar
a entrevista em primeira mão. Esse diálogo, a nosso ver, agrega outros fios e textos à nossa
trama.

Referências Bibliográficas

BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo:


Educ, 1999.
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