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Do uso prático da teoria

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E m seu c o m e n t á r i o a o t r a t a d o de Aristóteles " S o b r e a a l m a " , T o m á s d e
A q u i n o escreveu o seguinte:

Q u e t o d a ciência é b o a , é evidente; pois b o m é para cada coisa


aquilo e m c o n f o r m i d a d e c o m o que ela possui sua perfeição [= seu
ser perfeito], e a isto t e n d e m e b u s c a m t o d a s as coisas. Mas c o m o
a ciência constitui u m a perfeição do ser h u m a n o c o m o ser h u m a -
n o , a ciência é u m b e m h u m a n o . Mas dentre os bens, alguns são
valiosos, isto é, aqueles que são úteis e m vista de a l g u m f i m - nós
a p r e c i a m o s u m b o m cavalo p o r q u e ele corre b e m ; m a s outros,
a l é m disto, são honrosos, a saber, aqueles que subsistem por causa
deles m e s m o s : pois d e v e m o s honrar os fins. Dentre as ciências,
p o r é m , a l g u m a s são práticas e outras teóricas (especulativas), e a
diferença entre elas é que as práticas e x i s t e m p o r causa de u m a
o b r a a ser e x e c u t a d a , e as teóricas p o r causa delas m e s m a s . Por
conseguinte, dentre as ciências, as teóricas são t a n t o boas c o m o
t a m b é m h o n r o s a s , m a s as práticas são apenas valiosas .

Cerca de três séculos e m e i o m a i s tarde, Francis B a c o n , e m " A g r a n -


de r e n o v a ç ã o " , escreveu o seguinte:

U m a advertência geral eu dirijo a t o d o s : que c o n s i d e r e m quais os


verdadeiros fins da ciência, e que não a b u s q u e m para o prazer do
espírito o u para a discussão ou para a superioridade sobre os o u -
tros... m a s s i m para v a n t a g e m e proveito da v i d a ; e que a aperfei-
ç o e m e a a d m i n i s t r e m no a m o r ao p r ó x i m o . . . [ D o c a s a m e n t o do
espírito c o m o universo] p o d e m surgir auxílio para o ser h u m a n o e
u m a descendência de invenções, que de a l g u m a f o r m a p o d e m su-
perar as necessidades e misérias da h u m a n i d a d e . . . Pois a tarefa à
nossa frente não é a mera felicidade da e s p e c u l a ç ã o , m a s s i m o
verdadeiro n e g ó c i o e b e m do gênero h u m a n o e t o d o o poder da

l.Sancti Thomae Aquinatis in Aristotelis Librum de Anima Commentarius, Lectio 1,3.


212 O princípio vida

ação... E assim aqueles fins g e m i n a d o s , ciência humana e poder


humano, na realidade r e s u l t a m e m u m a coisa s ó . 2

A q u i se e n c o n t r a m d u a s a f i r m a ç õ e s o p o s t a s s o b r e o f i m , e m e s m o s o -
bre o s e n t i d o p r i m á r i o d a c i ê n c i a , e p o r c o n s e g u i n t e sobre sua relação
c o m o p o s s í v e l u s o , o u c o m as " o b r a s " . S o b r e este v e l h o t e m a q u e r e m o s
t e c e r a l g u m a s c o n s i d e r a ç õ e s q u e se e n c o n t r a v a m d i s t a n t e s a i n d a d o s p a r -
t i d o s o r i g i n a i s q u e se c o m b a t i a m , m a s q u e n o s e s t ã o p r ó x i m o s à luz d a s
novas "necessidades e misérias" da humanidade, que hoje nos o p r i m e m
p r e c i s a m e n t e na esteira deste u s o da ciência q u e B a c o n p r e c o n i z o u c o m o
r e m é d i o p a r a as a n t i g a s n e c e s s i d a d e s e m i s é r i a s d a h u m a n i d a d e .

E v i d e n t e m e n t e , T o m á s de A q u i n o e B a c o n f a l a m de d u a s coisas dife-
r e n t e s . A o a t r i b u í r e m à c i ê n c i a d i f e r e n t e s f i n s , n a r e a l i d a d e eles e s t ã o f a -
l a n d o de diferentes espécies de ciência, q u e t a m b é m t ê m c o m o o b j e t o
coisas diferentes. C o n s i d e r a n d o p r i m e i r a m e n t e T o m á s de A q u i n o , que
n a t u r a l m e n t e f a l a e m f a v o r d e A r i s t ó t e l e s , as c i ê n c i a s " t e ó r i c a s " ( e s p e c u -
l a t i v a s ) d e q u e ele f a l a t ê m q u e v e r c o m c o i s a s i m u t á v e i s e e t e r n a s - o s
p r i m e i r o s p r i n c í p i o s e as f o r m a s i n t e l i g í v e i s d o s e r - , q u e p r e c i s a m e n t e
p o r s u a i m u t a b i l i d a d e s ó podem ser c o n t e m p l a d a s , e n ã o s u b m e t i d a s a
u m a ação: delas só existe ôecopía n o estrito sentido aristotélico. A s "ciên-
cias práticas", por outro lado, não são "teoria" e sim "arte" - o conhecer
e planejar a m o d i f i c a ç ã o d o m u t á v e l . Este c o n h e c e r surge d a experiên-
cia, e não da teoria o u razão especulativa. A f u n ç ã o diretiva que a teoria
pode a s s u m i r n o t o c a n t e às a r t e s n ã o c o n s i s t e n o f a v o r e c e r a i n v e n ç ã o e
a criação m e n t a l de seus m é t o d o s , m a s s i m e m iluminar seu usuário (na
m e d i d a e m q u e ele p a r t i c i p a d a v i d a t e ó r i c a ) n o u s a r a q u e l a s a r t e s c o m
s a b e d o r i a , i s t o é, n a r e t a m e d i d a e p a r a o s r e t o s f i n s . I s t o p o d e s e r c h a -
m a d o d e u t i l i d a d e p r á t i c a d a t e o r i a , g r a ç a s a o e f e i t o i l u m i n a d o r q u e ela
exerce p a r a a l é m de sua a t u a l i d a d e direta sobre a p e s s o a de seus discí-
p u l o s . M a s e s t a u t i l i d a d e n ã o é d a e s p é c i e d e u m " u s o " q u e se faz d a t e o -
ria, e e m c a d a caso o c u p a a p e n a s o s e g u n d o lugar e m resposta à neces-
sidade h u m a n a : o primeiro lugar cabe à constante atividade d o próprio
p e n s a m e n t o , o n d e o ser h u m a n o p o s s u i m a i s liberdade.

A t é a q u i A r i s t ó t e l e s e T o m á s . N o e s q u e m a d e B a c o n , s ã o as " n e c e s -
sidades h u m a n a s " q u e o c u p a m o primeiro lugar: e c o m o arte é a m a n e i -
ra h u m a n a de e n f r e n t a r e d o m i n a r a n e c e s s i d a d e , m a s q u e até a g o r a n ã o
desfrutou da ajuda da razão especulativa (por culpa p r i n c i p a l m e n t e des-

2 . D o p r e f á c i o a " T h e Great I n s t a u r a t i o n " . A s frases citadas e n c o n t r a m - s e e m B a c o n nes-


ta o r d e m , m a s e m d i s t â n c i a s m a i o r e s . Para dar u m a idéia da crítica direta de B a c o n à teo-
ria clássica, a c r e s c e n t o m a i s esta c i t a ç ã o : " N o t o c a n t e a o seu valor e utilidade, deve-se di-
zer q u e a q u e l a s a b e d o r i a q u e nós r e c e b e m o s s o b r e t u d o dos g r e g o s representa a p e n a s a
m e n i n i c e d o c o n h e c i m e n t o e p o s s u i a p r o p r i e d a d e típica d o m e n i n o : p o d e falar, m a s não
t e s t e m u n h a r , p o i s é f e c u n d a e m d i s p u t a s m a s árida e m o b r a s . "
10. Do uso prático da teoria 213

t a ú l t i m a ) , B a c o n i n s i s t e e m q u e as d u a s s e j a m c o l o c a d a s e m u m a n o v a
r e l a ç ã o , e m q u e s u a s e p a r a ç ã o a n t e r i o r seja s u p e r a d a . Isto e x i g e u m a r e -
visão de a m b a s , m a s na o r d e m c a u s a l p r i m e i r a m e n t e u m a revisão da
ciência especulativa, q u e p o r t a n t o t e m p o foi "estéril e m o b r a s " . A essên-
cia da teoria d e v e ser de tal f o r m a m o d i f i c a d a q u e resulte e m " e s b o ç o s e
i n s t r u ç õ e s " para obras, o u m e s m o q u e a " i n v e n ç ã o de artes" passe a ser
seu verdadeiro f i m , e c o m isto ela p r ó p r i a u m a arte da i n v e n ç ã o . C o n t i -
n u a , n ã o o b s t a n t e , a ser t e o r i a , p o r ser a d e s c o b e r t a e a e x p l i c a ç ã o racio-
n a l d a s p r i m e i r a s c a u s a s e leis g e r a i s ( f o r m a s ) . P o r c o n s e g u i n t e , ela c o i n -
cide c o m a teoria clássica no fato de ter c o m o objeto a natureza das coi-
sas e o t o d o da n a t u r e z a . M a s é esta c i ê n c i a d a s razões e leis, o u é u m a
ciência destas razões e leis, p o r c o n f e r i r a p o s s i b i l i d a d e de " o r d e n a r à
n a t u r e z a e m s u a a ç ã o " (to command nature in action). Ela confere
e s t a p o s s i b i l i d a d e , p o r q u e d e s d e o i n í c i o o l h a a n a t u r e z a como ativa,
c o m i s t o a l c a n ç a n d o u m c o n h e c i m e n t o d a s leis d e s u a a ç ã o , d e m o d o
q u e e n g a j a a p r ó p r i a n a t u r e z a p e l o a g i r - i s t o é, p e l o e x p e r i m e n t o , e p o r
c o n s e g u i n t e sob c o n d i ç õ e s d e t e r m i n a d a s pelo p r ó p r i o ser h u m a n o . A
teoria fornece instruções para obras, porque antes surpreendeu a natu-
reza " e m a ç ã o " .

A ciência da "natureza e m a ç ã o " é u m a m e c â n i c a o u d i n â m i c a da na-


t u r e z a . Para t a l c i ê n c i a , G a l i l e u e D e s c a r t e s f o r n e c e r a m as c o n d i ç õ e s e s p e -
culativas e o m é t o d o da análise e síntese. A o criarem u m a teoria c o m po-
t e n c i a l t e c n o l ó g i c o i m a n e n t e , e f e t i v a m e n t e eles p u s e r a m em marcha
a q u e l a f u s ã o de teoria e prática c o m q u e B a c o n s o n h a v a . A n t e s d e dizer
a l g o m a i s s o b r e a e s p é c i e d e t e o r i a q u e se p r e s t a à a p l i c a ç ã o t é c n i c a , o u
m e s m o q u e está i n t i m a m e n t e o r i e n t a d a para esta espécie de uso, é neces-
s á r i o se dizer a l g u m a c o i s a s o b r e o u s o .

II

P a r a q u e se u s a a l g u m a c o i s a ? O f i m ú l t i m o d e t o d o u s o é o m e s m o
q u e o f i m de t o d a atividade, q u e é d u p l o : para c o n s e r v a r a v i d a , e para
m e l h o r a r a v i d a , i s t o é, p a r a p r o m o v e r a v i d a q u e se c o n s i d e r a b o a . F o r -
m u l a n d o isto n e g a t i v a m e n t e , c o m o o sugere o par de c o n c e i t o s "necessi-
dades e misérias", de B a c o n , o d u p l o f i m é evitar a destruição e s u p e r a r a
miséria. O b s e r v a m o s o caráter de necessidade conferido p o r B a c o n ao
e s f o r ç o h u m a n o , e c o m ele a o c o n h e c i m e n t o , c o m o p a r t e d e s t e e s f o r ç o .
Ele fala da e l i m i n a ç ã o o u m o d e r a ç ã o de u m a situação adversa o u opres-
sora, e n q u a n t o T o m á s de A q u i n o , c o m Aristóteles, fala p o s i t i v a m e n t e d a
" p l e n i t u d e d o ser", o u da perfeição. O a c e n t o n e g a t i v o de B a c o n encarre-
ga o c o n h e c i m e n t o c o m u m a espécie de u r g ê n c i a física e m o r a l , inteira-
m e n t e estranha e nova na história da "teoria", m a s que desde então pas-
s o u a ser c a d a vez m a i s c o m u m .
214 O princípio vida

A d i f e r e n ç a d e a c e n t o p e r m i t e , n o e n t a n t o , q u e se p e r c e b a u m t e r r e -
n o c o m u m : c a s o se p o s s a c o n s i d e r a r c o m o g a r a n t i d a a m e r a c o n s e r v a -
ç ã o ( q u e e m a m b o s os casos t e m a preferência), então sofrimento ou mi-
séria significa a n e g a ç ã o da b o a v i d a , e a e l i m i n a ç ã o d o s o f r i m e n t o o u
miséria significa u m a melhora, e desta f o r m a , de acordo c o m o pensa-
m e n t o de a m b o s , Aristóteles e B a c o n , o f i m ú l t i m o de t o d o agir, a l é m d o
m í n i m o necessário para a c o n s e r v a ç ã o da "boa vida", é a felicidade do
ser h u m a n o . Se a p e s a r de t o d a a m b i g ü i d a d e q u e a p a l a v r a n ã o p o d e dei-
xar de ter, m a n t i v e r m o s o t e r m o "felicidade", então n o terreno c o m u m a
B a c o n e Aristóteles p o d e r e m o s c o n s t a t a r q u e o " p a r a q u ê " de t o d o uso,
incluído o d o conhecimento, é a felicidade.

F e l i c i d a d e d e q u e m ? Se, c o m o p e n s a B a c o n , o c o n h e c i m e n t o d e v e re-
m o v e r os s o f r i m e n t o s da h u m a n i d a d e , e n t ã o a b u s c a d o saber t e m c o m o
f i m a f e l i c i d a d e d a h u m a n i d a d e . S e , c o m o p e n s a A r i s t ó t e l e s , o ser h u m a n o
a l c a n ç a a p l e n i t u d e d o ser p e l o c o n h e c i m e n t o , o u m e l h o r , n o c o n h e c i m e n -
t o , e n t ã o o q u e se realiza n a b u s c a d o c o n h e c i m e n t o é a f e l i c i d a d e d a q u e l e
q u e c o n h e c e . E m a m b o s os c a s o s e x i s t e , e n t ã o , u m " b e n e f í c i o " s u p r e m o
d o c o n h e c i m e n t o t e ó r i c o . Para A r i s t ó t e l e s e s t e * c o n s i s t e n o b e m q u e o c o -
n h e c i m e n t o p r o d u z n a a l m a d e q u e m c o n h e c e , i s t o é, n o p r ó p r i o e s t a d o
d o c o n h e c i m e n t o , c o m o perfeição d o ser d a q u e l e q u e c o n h e c e .

S ó t e m s e n t i d o u s a r este e f e i t o e n o b r e c e d o r p a r a o c o n h e c i m e n t o se
a t e o r i a f o r o c o n h e c i m e n t o d o s o b j e t o s m a i s n o b r e s , i s t o é, m a i s p e r f e i -
tos. Efetivamente, a condição para q u e exista u m a "teoria", no sentido
clássico d a p a l a v r a , é q u e tais o b j e t o s e x i s t a m , e vice-versa; na falta des-
tes o b j e t o s o ideal da filosofia clássica d e i x a de ter sentido - passa literal-
m e n t e a " n ã o t e r o b j e t o " . S e se a d m i t i r a c o n d i ç ã o p o s i t i v a c o m o d a d a ,
então ocorre não apenas que a "teoria", c o m o c o m u n h ã o intelectual
c o m a q u e l e s o b j e t o s , favorece a felicidade, c o m isto m o d i f i c a n d o o pró-
prio estado d o sujeito, m a s q u e ela t a m b é m a constitui: u m a felicidade
q u e é c h a m a d a " d i v i n a " , e p o r i s s o n a v i d a d e c a d a ser h u m a n o m o r t a l s ó
p o d e ser d e s f r u t a d a p o r p o u c o t e m p o . D e a c o r d o c o m isto, posse e bene-
f í c i o ( " u s o " ) d a t e o r i a s ã o , n e s t e c a s o , u m a e a m e s m a c o i s a . Se p o s s u i
a l g u m benefício para a l é m de sua p r ó p r i a realidade - c o m isto c o n t r i b u -
indo para u m a felicidade mais " h u m a n a " ( e m oposição à "divina") - en-
t ã o ela c o n s i s t e , c o m o j á f o i d i t o , n a s a b e d o r i a q u e c o n f e r e à p e s s o a p a r a
a o r i e n t a ç ã o geral de sua vida, c o m o t a m b é m na c o m p r e e n s ã o que a
p a r t i r d o c u m e d a e s p e c u l a ç ã o i m p r e g n a s u a c o n c e p ç ã o d e t o d a s as c o i -
sas, inclusive das coisas c o m u n s . Mas e m b o r a , por m e i o da sabedoria, a
teoria possa libertar aquele q u e a possui d o fascínio das coisas c o m u n s ,
e c o m isto a u m e n t a r a liberdade m o r a l e m relação ao fascínio das coisas
c o m u n s , n o e n t a n t o ela n ã o a u m e n t a s e u p o d e r f í s i c o s o b r e e l a s , n e m o
s e u u s o ( e s t e ú l t i m o ela t e n d e a n t e s a r e s t r i n g i r ) , d e i x a n d o s e m a l t e r a ç ã o
1Q. Do uso prático da teoria 215

o reino da própria necessidade. A partir dos t e m p o s de B a c o n o terreno é


d o m i n a d o pela o u t r a a l t e r n a t i v a . Para ele, e p a r a os q u e v i e r a m d e p o i s
d e l e , a u t i l i d a d e d o c o n h e c i m e n t o c o n s i s t e n o s " f r u t o s " q u e ele p r o d u z
e m n o s s o c o n v í v i o c o m as c o i s a s c o m u n s o u o r d i n á r i a s . P a r a q u e p o s s a
p r o d u z i r este f r u t o , o p r ó p r i o c o n h e c i m e n t o d e v e ser u m conhecimento
das coisas c o m u n s - n ã o de f o r m a derivada, c o m o o era na teoria clássi-
c a , m a s s i m d e f o r m a p r i m á r i a , e a i n d a a n t e s d e t o r n a r - s e p r á t i c o ; este é o
caso, efetivamente: a teoria, que assim precisa produzir frutos, é o conhe-
c i m e n t o d e u m u n i v e r s o q u e , n a a u s ê n c i a d e u m a h i e r a r q u i a d o ser, c o n -
siste i n t e i r a m e n t e d e c o i s a s c o m u n s . C o m o , e n t ã o , a l i b e r d a d e n ã o p o d e
ser m a i s p r o c u r a d a n a r e l a ç ã o d e c o n h e c i m e n t o c o m o s " o b j e t o s m a i s n o -
bres", o c o n h e c i m e n t o só p o d e r á libertar o ser h u m a n o d o j u g o da necessi-
dade indo ao seu e n c o n t r o sobre seu p r ó p r i o c h ã o , e só produz liberdade
p e l o f a t o d e e n t r e g a r as c o i s a s a o s e u p o d e r . U m a n o v a v i s ã o d a n a t u r e z a ,
n ã o a p e n a s d o c o n h e c i m e n t o , está n a i n s i s t ê n c i a d e B a c o n d e q u e " o espí-
rito e x e r c e a a u t o r i d a d e q u e lhe c o m p e t e s o b r e a n a t u r e z a d a s c o i s a s " . E m
si, p a r a a n a t u r e z a d a s c o i s a s j á n ã o r e s t o u m a i s d i g n i d a d e a l g u m a . T o d a
3

d i g n i d a d e p e r t e n c e a o ser h u m a n o : o q u e n ã o i m p õ e r e s p e i t o , d i s t o se
p o d e d i s p o r , e t o d a s as c o i s a s s ã o p a r a s e r u s a d a s . S e r s e n h o r s o b r e a n a -
tureza é direito d o ser h u m a n o , c o m o ú n i c o p o s s u i d o r do espírito, e o co-
n h e c i m e n t o , q u a n d o o c o l o c a na c o n d i ç ã o de exercitar este direito, final-
m e n t e leva o ser h u m a n o à posse das coisas. Esta p r o p r i e d a d e é " o reino
d o ser h u m a n o " , e c o n s i s t e n o u s o s o b e r a n o d a s c o i s a s . Ciso s o b e r a n o
significa m a i s uso - m a i s , n ã o apenas p o t e n c i a l m e n t e , m a s sim atual-
m e n t e - e, e s t r a n h o d e dizer-se, u s o f o r ç o s o . O p o d e r , a o t o r n a r d i s p o n í -
veis s e m p r e m a i s coisas para m a i s espécies de u s o , e n v o l v e o usuário
e m u m a dependência sempre maior dos objetos exteriores. O poder não
p o d e ser e x e r c i d o de o u t r a m a n e i r a s e n ã o fazendo-se d i s p o n í v e l p a r a o
uso das coisas, na m e d i d a e m q u e estas t o r n a m - s e disponíveis. Q u a n d o
se r e n u n c i a a o u s o , o p o d e r d i m i n u i , m a s p a r a a u m e n t a r u m e o u t r o n ã o
existe q u a l q u e r limite. É t r o c a r u m m e s t r e p o r o u t r o m e s t r e .

3. "Pois c o m o t o d a o b r a m o s t r a o p o d e r e arte d o seu m e s t r e , m a s n ã o sua i m a g e m , o mes-


m o se dá c o m as obras de D e u s , q u e m o s t r a m o p o d e r e a s a b e d o r i a d o criador m a s n ã o
sua i m a g e m : e nisto a o p i n i ã o p a g ã distingue-se d o q u e diz a v e r d a d e s a g r a d a ; pois aqueles
a c h a v a m q u e o m u n d o é u m a i m g e m de Deus e o h o m e m u m a c ó p i a o u i m a g e m r e s u m i d a
d o m u n d o , m a s a Escritura n u n c a confere ao m u n d o esta h o n r a , o u seja, de chamá-lo i m a -
g e m de D e u s , m a s s o m e n t e a obra de suas mãos; n e m ela fala j a m a i s de o u t r a i m a g e m de
Deus a n ã o ser o h o m e m " ( B a c o n . The Aduancement of Learning, livro 1 1 ) . Leo Strauss
cita esta p a s s a g e m c o m o p r o v a para a tese de q u e "a divisão da filosofia e m filosofia da na-
tureza e filosofia d o h o m e m se baseia e m u m a distinção s i s t e m á t i c a entre h o m e m e m u n -
do, feita por B a c o n , e m direto c o n f l i t o c o m a filosofia a n t i g a " (The Politicai Philosophy of
Hobbes, its Basis and its Gênesis. O x f o r d , 1936, p. 9 1 , A . 1).
216 O princípio vida

M e s m o a t o m a d a i n i c i a l d o p o d e r n ã o é a s s i m t ã o livre c o m o o faz p a -
r e c e r o a p e l o à l e g í t i m a a u t o r i d a d e d o ser h u m a n o . Pois n ã o a p e n a s a rela-
ç ã o d o ser h u m a n o c o m a natureza é u m a relação de p o d e r , m a s a própria
natureza é e n t e n d i d a c o m o u m s i s t e m a de p o d e r . Por isso a q u e s t ã o está
e n t r e o d o m i n a r e o s e r d o m i n a d o , e ser d o m i n a d o p o r u m a n a t u r e z a q u e
não é n e m nobre, n e m semelhante, n e m sábia, significa escravidão, e por
c o n s e g u i n t e m i s é r i a . P o r t a n t o o e x e r c í c i o d o d i r e i t o i n a t o a o ser h u m a n o é
ao m e s m o t e m p o a resposta a u m a situação de elementar e continuada
necessidade: a necessidade de u m a guerra de defesa, c o n d i c i o n a d a pela
situação h u m a n a . C o m o o ataque pelo c o n h e c i m e n t o é u m a defesa con-
t r a a n e c e s s i d a d e , ele p r ó p r i o é u m a f u n ç ã o d a n e c e s s i d a d e , e m a n t é m
este a s p e c t o a o l o n g o d e t o d a s u a t r a j e t ó r i a , q u e é u m a c o n s t a n t e r e s p o s t a
às n o v a s n e c e s s i d a d e s c r i a d a s e x a t a m e n t e p e l o s e u p r o g r e s s o .

III

Para q u e seja b e n é f i c o p a r a a c o n d i ç ã o h u m a n a , o conhecimento


p r e c i s a ser " c r i a d o e d i r i g i d o p a r a o a m o r a o p r ó x i m o " . Q u e r d i z e r : q u e m
q u e r q u e a d m i n i s t r e o c u r s o e o u s o d a t e o r i a , t e m q u e t o m a r a p e i t o as
necessidades e os s o f r i m e n t o s da h u m a n i d a d e . As b ê n ç ã o s d o conheci-
m e n t o não r e c a e m e m primeira linha sobre aquele que conhece, mas
s i m s o b r e s e u s s e m e l h a n t e s q u e n ã o c o n h e c e m - e, p a r a e l e p r ó p r i o ,
apenas na m e d i d a e m q u e é u m deles. D i f e r e n t e m e n t e d o m a g o , o pes-
quisador da natureza não adquire e m sua própria pessoa o poder nasci-
d o d e s u a a r t e . O c o n h e c i m e n t o ele q u a s e q u e n ã o o a d q u i r e n a p r ó p r i a
p e s s o a , e d e c e r t o n ã o o p o s s u i c o m o u m a p r o p r i e d a d e p r i v a d a : c o m o se
trata de u m e m p r e e n d i m e n t o , sua parcela de c o n t r i b u i ç ã o vai para o ca-
pital c o m u m , de q u e a c o m u n i d a d e científica é depositária, d e v e n d o a
s o c i e d a d e c o m o u m t o d o ser o beneficiário. E n t r e os b e n e f í c i o s q u e o co-
n h e c i m e n t o c o n f e r e a t r a v é s d o p o d e r s o b r e as c o i s a s e n c o n t r a - s e a r e d u -
ç ã o d a c a r g a d e t r a b a l h o ; p o r t a n t o o lazer - p o r é m n ã o o d o p r ó p r i o c i e n -
tista - é a q u i u m fruto d o c o n h e c i m e n t o . O e s q u e m a clássico era o o p o s -
t o : o lazer e r a u m a c o n d i ç ã o p a r a a t e o r i a , e l e f o i c r i a d o p r e d o m i n a n t e -
m e n t e p a r a f a z e r c o m q u e a t e o r i a se t o r n a s s e p o s s í v e l , e n ã o a l g o a t r a -
v é s d o q u a l a teoria devesse p r i m e i r a m e n t e ser c r i a d a . A m o d e r n a ativi-
d a d e t e ó r i c a , l o n g e d e s e r u m u s o d o lazer, é ela p r ó p r i a u m e s f o r ç o e
u m a parte da t r i b u l a ç ã o d a h u m a n i d a d e , p o r m a i s q u e seja capaz t a m -
b é m d e p r o p o r c i o n a r p r a z e r à q u e l e q u e se e s f o r ç a . B a s t a i s t o p a r a p r o -
var que, sob o aspecto h u m a n o , a teoria m o d e r n a não o c u p a o lugar que
o c u p a na teoria clássica.

Depois, a necessidade para o a m o r ao p r ó x i m o , ou a benevolência


no uso da teoria, procede do fato de que o poder, por sua própria nature-
10. Do uso prático da teoria 217

za, é u m p o d e r t a n t o p a r a o m a l c o m o para o b e m . M a s o a m o r ao p r ó x i -
m o n ã o é ele m e s m o u m d o s f r u t o s d a t e o r i a n o s e n t i d o m o d e r n o . C o m o
c o n d i ç ã o q u e q u a l i f i c a o s e u u s o - d e q u e u s o se t r a t a , a t e o r i a n ã o e s p e -
c i f i c a , n e m m u i t o m e n o s o g a r a n t e - , ele t e m q u e n a s c e r d e u m a f o n t e
que ultrapassa o c o n h e c i m e n t o g a r a n t i d o pela teoria.

A q u i é i n s t r u t i v o se f a z e r u m a c o m p a r a ç ã o c o m o c a s o c l á s s i c o .
E m b o r a Platão n ã o a d e n o m i n e p o r este n o m e , a r e s p o n s a b i l i d a d e , q u e
f o r ç a o f i l ó s o f o a v o l t a r a o " i n f e r n o " e a j u d a r s e u s e m e l h a n t e q u e aí f i c o u
p r e s o , é u m a n á l o g o à caritas de B a c o n , o u à c o m p a i x ã o . Mais u m a vez,
p o r é m - c o m o é diferente! E m primeiro lugar, c o m o na teoria, e m senti-
do platônico, tanto a atividade q u a n t o o objeto são nobres, ela m e s m a há
de ser p a r a seus a d e p t o s u m a f o n t e de b e n e v o l ê n c i a n o t o c a n t e a t o d a
participação eventual de sua parte na vida ativa, ü m agir q u e n ã o fosse
b e n e v o l e n t e e s t a r i a e m c o n t r a d i ç ã o c o m a luz d e q u e e l e p a r t i c i p a a t r a -
v é s d o s e u m a i s e l e v a d o c o n h e c i m e n t o . E n t r e as v i s õ e s d a c i ê n c i a n a t u -
ral e s e u p o s s í v e l e m p r e g o n ã o - b e n e v o l e n t e , e s t a c o n t r a d i ç ã o n ã o e x i s t e .
S e g u n d o , e m b o r a no e s q u e m a de Platão a " d e s c i d a " à vida ativa não
a c o n t e ç a p o r inclinação m a s s i m por dever, e o c u m p r i m e n t o deste de-
v e r seja e m p r i m e i r a i n s t â n c i a e x i g i d o p e l o E s t a d o , s u a s u p r e m a s a n ç ã o ,
n ã o o b s t a n t e , p a r t e d o p r ó p r i o o b j e t o d a c o n t e m p l a ç ã o , i s t o é, " d o b e m " ,
q u e n ã o é invejoso, e q u e i m p e l e à c o m u n i c a ç ã o de si: n e n h u m p r i n c í p i o
adicional e heterogêneo que forneça a razão para a responsabilidade é
e x i g i d o . P o r ú l t i m o , "o a g i r d o f i l ó s o f o q u e v o l t a a o i n f e r n o o c u p a - s e n ã o
c o m o administrar coisas, m a s sim c o m a o r d e m da vida h u m a n a ; n o u -
t r a s p a l a v r a s , ele n ã o é t é c n i c o m a s p o l í t i c o , i n f o r m a d o p e l a v i s ã o d a or-
d e m n o m u n d o i n t e l i g í v e l . É, p o r t a n t o , u m a " a p l i c a ç ã o " q u e d e r i v a s e u
m o t i v o , seu m o d e l o e seu p a d r ã o d o q u e é benevolente, da teoria ú n i c a
q u e se b a s t a a si m e s m a . C i m a t a l " a p l i c a ç ã o " s ó p o d e s e r e x e r c i d a p e s -
s o a l m e n t e p e l o s a u t ê n t i c o s a d e p t o s d a t e o r i a ; ela n ã o p o d e s e r d e l e g a d a ,
c o m o o p o d e e deve a a p l i c a ç ã o d o c o n h e c i m e n t o (o c o n h e c i m e n t o pro-
cessual) da ciência técnica.

E m o p o s i ç ã o a isto, a m o d e r n a t e o r i a n ã o se b a s t a a si m e s m a c o m o
fonte da qualidade h u m a n a q u e a t o r n a benéfica. O fato de seus resultados
p o d e r e m ser s e p a r a d o s d e l a e p a s s a d o s a d i a n t e a o s q u e n ã o p a r t i c i p a r a m
d o p r ó p r i o p r o c e s s o t e ó r i c o c o n s t i t u i a p e n a s u m a s p e c t o d a q u e s t ã o . Por
s u a c i ê n c i a , o p r ó p r i o c i e n t i s t a n ã o está m e l h o r q u a l i f i c a d o d o q u e o s o u t r o s
p a r a r e c o n h e c e r o b e m d a h u m a n i d a d e , n e m m a i s i n c l i n a d o a c o m ele p r e o -
c u p a r - s e . B e n e v o l ê n c i a e r e s p o n s a b i l i d a d e t ê m q u e ser t r a z i d a s d e f o r a p a r a
completar o c o n h e c i m e n t o devido à teoria. Não resultam da própria teoria.

P o r q u e i s t o se d á ? A r e s p o s t a g e r a l m e n t e é e x p r e s s a d i z e n d o - s e q u e a
ciência é "isenta de valores", acrescentando-se que os valores não são o b -
218 O principio vida

j e t o da ciência, o u pelo m e n o s n ã o são objetos de " c o n h e c i m e n t o científi-


c o " . Mas, por que a ciência distanciou-se d o valor, e por que o valor é visto
c o m o irracional? Poderá ser p o r q u e a v a l i d a d e do valor exige u m a trans-
c e n d ê n c i a , d e o n d e ele d e v a ser d e r i v a d o ? D e a c o r d o c o m s u a s r e g r a s d e
e v i d ê n c i a , o referir-se a u m a t r a n s c e n d ê n c i a o b j e t i v a e n c o n t r a - s e h o j e f o r a
d a teoria, ao passo que antes isto constituía a própria vida da teoria.

" T r a n s c e n d ê n c i a " (o q u e q u e r q u e esta expressão possa a b r a n g e r )


i m p l i c a o b j e t o s q u e estão a c i m a d o ser h u m a n o , e é c o m estes o b j e t o s
q u e a t e o r i a c l á s s i c a se o c u p a . A t e o r i a m o d e r n a t r a t a d e o b j e t o s q u e es-
t ã o a b a i x o d o ser h u m a n o . M e s m o o s astros, p o r s e r e m coisas c o m u n s ,
e s t ã o a b a i x o d o ser h u m a n o . D e s t e s o b j e t o s n ã o p o d e ser extraída ne-
n h u m a o r i e n t a ç ã o relativa aos fins. A e x p r e s s ã o " a b a i x o d o ser h u m a -
n o " , que c o n t é m u m juízo de valor, parece contradizer a "isenção de valo-
res" d a c i ê n c i a . M a s esta l i b e r d a d e significa u m a n e u t r a l i d a d e , t a n t o da
parte dos objetos c o m o da parte da ciência: da parte dos objetos, sua in-
d i f e r e n ç a e m r e l a ç ã o a t o d o v a l o r q u e lhes possa ser " d a d o " . M a s a q u i l o
a q u e p o r si m e s m o f a l t a v a l o r i n t e r i o r e s t á s u b m e t i d o à q u e l e q u e é o ú n i -
c o e m r e l a ç ã o ao q u a l isto p o d e a l c a n ç a r valor, e este é o ser h u m a n o e a
vida h u m a n a , a única fonte e lugar de referência do valor e m si.

M a s c o m o f i c a m e n t ã o as c i ê n c i a s d o s e r h u m a n o , a p s i c o l o g i a e s o -
c i o l o g i a ? Pois d e l a s c e r t a m e n t e n ã o se p o d e d i z e r q u e o s o b j e t o s d a c i ê n -
cia e s t e j a m a b a i x o do ser h u m a n o . S e u o b j e t o é o ser h u m a n o . Seria e n -
t ã o c o m elas que o valor haveria de r e e n c o n t r a r a entrada p a r a o univer-
so da ciência? E o c u p a n d o - s e c o m a f o n t e e a referência de t o d o s os valo-
r e s , n ã o p o d e m elas s e r v i r d e p o n t o d e p a r t i d a p a r a u m a t e o r i a v á l i d a d o s
valores? Mas aqui nós precisamos distinguir: valores c o m o u m fato da
c o n d u t a h u m a n a são efetivamente r e c o n h e c i d o s nas ciências h u m a n a s
- m a s valores e m si, n ã o . E p o r m a i s q u e p o s s a parecer b r i n c a d e i r a , na
m e d i d a e m q u e elas s ã o ciências, t a m b é m s e u objeto encontra-se "abai-
x o d o s e r h u m a n o " . C o m o a s s i m ? P a r a q u e seja p o s s í v e l u m a t e o r i a a
seu r e s p e i t o , o ser h u m a n o , i n c l u i n d o seus h á b i t o s de v a l o r i z a ç ã o , t e m
q u e s e r d e t e r m i n a d o p o r leis c a u s a i s - s e r c o n s i d e r a d o c o m o u m f a t o e
c o m o u m a parte da natureza. É assim que o cientista o considera - m a s
n ã o a si p r ó p r i o , n a m e d i d a e m q u e r e c l a m a e c o n f i r m a s u a l i b e r d a d e d e
pesquisa e sua abertura para as razões, para a evidência e a verdade.
A s s i m o ser h u m a n o c o m o - a q u e l e - q u e - c o n h e c e a p r e e n d e o ser h u m a n o
como-estando-abaixo-de-si, assim c o m o t o d a teoria científica é conheci-
m e n t o de coisas que estão a b a i x o d o ser h u m a n o s u j e i t o d o c o n h e c i -
m e n t o . S ó s o b e s t a c o n d i ç ã o é q u e e l e s p o d e m ser s u b m e t i d o s à t e o -
ria, p o r c o n s e g u i n t e ao c o n t r o l e , p o r c o n s e g u i n t e ao u s o . E n t ã o o ser h u -
mano-que-está-abaixo-do-ser h u m a n o , c o m o é explicado pelas ciências
10. Do uso prático da teoria 219

h u m a n a s - o ser h u m a n o t r a n s f o r m a d o e m c o i s a - , p o d e , s e g u n d o as i n s -
truções destas ciências, ser c o n t r o l a d o , o u m e s m o m a n i p u l a d o , e desta
forma usado.

Por isso o b e m - q u e r e r , e m e s m o o a m o r a o p r ó x i m o ( c o m o a m o r à
h u m a n i d a d e , e m vez de a m o r à p e s s o a ) , q u a n d o t e n t a m t r a n s f o r m a r tal
u s o e m u m u s o ú t i l o u b e n e f i c e n t e , n ã o c o r r i g e m o status de estar m a i s
abaixo, m a s pelo contrário confirmam-no. E c o m o o uso daquilo que
está a b a i x o d o ser h u m a n o só p o d e ser p a r a o q u e é m a i s b a i x o , e n ã o
p a r a o q u e é m a i s e l e v a d o n o p r ó p r i o u s u á r i o , n e s t e u s o - q u a n d o ele se
t o r n a o n i a b r a n g e n t e - o q u e s a b e e o q u e u s a p a s s a a s e r ele m e s m o
m a i s b a i x o d o q u e o ser h u m a n o . M a s o u s o torna-se oniabrangente
q u a n d o se e s t e n d e s o b r e o s e r d o s e m e l h a n t e e e n g o l e o s e r - i l h a d a p e s -
s o a . I n e v i t a v e l m e n t e o m a n i p u l a d o r c h e g a a v e r - s e n a m e s m a luz q u e
aqueles que sua teoria t o r n o u manipuláveis; e na auto-inclusiva solidarie-
dade c o m a miséria h u m a n a universal e m m e i o ao esplendor do poder
h u m a n o , seu a m o r ao p r ó x i m o não passa de a u t o c o m p a i x ã o , e aquela
tolerância q u e nasce d o a u t o d e s p r e z o : t o d o s n ó s n ã o p a s s a m o s de p o -
bres m a r i o n e t e s , e n ã o p o d e m o s ser o u t r a c o i s a senão a q u i l o q u e so-
mos. Benevolência, então, degenera e m leniência e transigência.

M e s m o q u a n d o é de u m a espécie m a i s p u r a e m e n o s a m b í g u a , a be-
nevolência ( b o a v o n t a d e ) sozinha é insuficiente para garantir u m uso be-
neficente da ciência.. C o m o i n c l i n a ç ã o h a b i t u a l p a r a abster-se de p r e j u d i -
car - portanto c o m o bondade universal - , a benevolência é naturalmente
t ã o i n d i s p e n s á v e l q u a n t o t o d a s as d e m a i s r e l a ç õ e s h u m a n a s . M a s , d o
l a d o p o s i t i v o , b o a v o n t a d e é q u e r e r o b e m , e p o r i s s o ela p r e c i s a ser i n f o r -
m a d a p o r u m c o n c e i t o do q u e é o b e m . D e o n d e este c o n c e i t o p o d e ser ti-
r a d o , e se ele p o d e s e r e r g u i d o a o e s t á g i o d o " s a b e r " , é u m a q u e s t ã o q u e
n ã o p o d e r á s e r r e s o l v i d a a q u i . S e j a c o m o f o r , se e x i s t i r a l g u m c o n h e c i -
m e n t o disto, n ã o há de ser a ciência q u e o irá f o r n e c e r . A m e r a b e n e v o -
l ê n c i a n ã o p o d e s u b s t i t u í - l o - n e m m e s m o o a m o r , se f o r u m a m o r s e m
r e s p e i t o : e d e o n d e p o d e r á v i r o r e s p e i t o a n ã o s e r q u e se s a i b a o q u e é
respeitável? P o r é m , m e s m o que tivéssemos à nossa disposição u m c o -
n h e c i m e n t o d o b e m q u e p u d e s s e o r i e n t a r - n o s , i s t o é, u m a v e r d a d e i r a f i l o -
sofia, esta p r o v a v e l m e n t e perceberia q u e seu c o n s e l h o é i m p o t e n t e fren-
t e à a u t o - a l i m e n t a d a d i n â m i c a d a c i ê n c i a t r a n s f o r m a d a e m u s o , i s t o é, d a
t e c n o l o g i a . A este t e m a v o l t a r e m o s a i n d a n o final. A g o r a é necessário
q u e se d i g a m a i s a l g u m a c o i s a s o b r e a r e l a ç ã o e s p e c i f i c a m e n t e m o d e r n a
entre práxis e teoria, e sobre a maneira c o m o isto funciona, i n d e p e n d e n -
temente do objetivo para o qual trabalha.
220 " O princípio vida

IV

N ó s f a l a m o s d e usar q u a n d o e m p r e g a m o s u m meio para a l g u m fim.


C o m o o f i m é diferente d o m e i o , assim t a m b é m o m e i o é diferente do uso
q u e f a z e m o s d e l e . Isto s i g n i f i c a q u e o m e i o p o s s u i e m si u m a e x i s t ê n c i a
p r é v i a , e q u e ele p e r m a n e c e r i a o q u e é m e s m o q u e n u n c a f o s s e e m p r e g a -
d o . P o d e - s e p ô r e m d ú v i d a se i s t o é t o t a l m e n t e v á l i d o t a m b é m p a r a a t e o -
r i a , o u p a r a t o d a t e o r i a , e m r e l a ç ã o a s e u p o s s í v e l e m p r e g o . M a s se f a l a -
m o s do uso da teoria, nós estamos admitindo que a teoria, c o m o quer que
v e n h a a ser u s a d a , é u m a coisa e m si.

S e r a l g u m a c o i s a e m si n ã o s i g n i f i c a n e c e s s a r i a m e n t e s e r n e u t r o e m
relação a seu p o s s í v e l uso. Para u m a c o i s a q u e p o d e ser e m p r e g a d a
c o m o m e i o , o e m p r e g o p o d e ser essencial o u a c i d e n t a l . M u i t a s coisas,
m e s m o p o s s u i n d o u m ser- p r ó p r i o s u b s t a n c i a l , q u a n d o e x i s t e m , e x i s t e m
d e s d e o p r i n c í p i o como meio. ü m instrumento, por e x e m p l o , deve sua
existência p u r a m e n t e ao f i m , fora dele m e s m o , p a r a o q u a l foi p r o j e t a d o
e p r o d u z i d o . Q u a n d o n ã o utilizado para este f i m , ele p e r d e sua razão de
ser. P a r a o u t r a s c o i s a s o e m p r e g o é, p o r a s s i m d i z e r , a c r e s c e n t a d o p o r
parte d o u s u á r i o : p a r a estas o e m p r e g o é a c i d e n t a l e exterior ao ser q u e
possuem segundo sua própria autonomia. Pertencem à primeira catego-
ria s o b r e t u d o c o i s a s a r t i f i c i a i s , c o m o m a r t e l o s o u c a d e i r a s , e à s e g u n d a
coisas naturais, c o m o cavalos o u rios. A teoria é c e r t a m e n t e u m a coisa
a r t i f i c i a l f e i t a p e l o s e r h u m a n o , e t e m a p l i c a ç õ e s , m a s se a a p l i c a ç ã o é
p a r a ela e s s e n c i a l o u a c i d e n t a l , i s t o p o d e d e p e n d e r d a e s p é c i e e m q u e s -
t ã o da t e o r i a , c o m o t a m b é m da espécie d o e m p r e g o . A m a t e m á t i c a , p o r
e x e m p l o , é s o b este a s p e c t o diferente da física. M i n h a tese é q u e , para a
teoria m o d e r n a , a aplicação prática não é acidental e s i m essencial, o u
q u e a ciência natural é essencialmente tecnológica.

ü m uso é prático q u a n d o inclui ação exterior que p r o v o q u e ou que


i m p e ç a u m a m o d i f i c a ç ã o no m u n d o ambiente. (Portanto, a aplicação da
m a t e m á t i c a na física n ã o é prática, m a s s i m teórica.) A a ç ã o exterior exi-
ge o e m p r e g o de m e i o s físicos exteriores, a l é m de u m a certa quantidade
de c o n h e c i m e n t o , q u e é u m a coisa interior, não-física. Mas t o d a ação que
n ã o seja e s t r i t a m e n t e r o t i n a , o u q u e n ã o seja p u r a m e n t e intuitiva, exige
m a i s d o q u e i s t o , i s t o é, e x i g e r e f l e x ã o , e e s t a p o d e r e f e r i r - s e a o s m e i o s e
a o s f i n s : a o s f i n s , p o r e x e m p l o , se eles s ã o d e s e j á v e i s , o u e m g e r a l se s ã o
p o s s í v e i s ; a o s m e i o s , p o r e x e m p l o , q u a i s os q u e s ã o a p r o p r i a d o s , e q u a i s
os q u e s ã o disponíveis a q u i e a g o r a . S o b t o d o s estes a s p e c t o s , o c o n h e c i -
m e n t o , e m b o r a n ã o n e c e s s a r i a m e n t e o c o n h e c i m e n t o t e ó r i c o , faz p a r t e
das condições e da execução da ação, e nela e n c o n t r a aplicação.

O b v i a m e n t e , existe u m a e s p é c i e de c o n h e c i m e n t o r e l a c i o n a d a c o m
o f a t o d e u m f i m s e r o u n ã o s e r d e s e j á v e l , e o u t r a q u e se o c u p a c o m a v i a -
10. Do uso prático da teoria 221

bilidade, os m e i o s e a e x e c u ç ã o . Dentro da s e g u n d a espécie, m a i s u m a


vez o c o n h e c i m e n t o q u e j u l g a s o b r e a p o s s i b i l i d a d e b á s i c a é diferente d o
conhecimento que - s e m p r e p e r m a n e c e n d o no terreno abstrato - plane-
ja possíveis c a m i n h o s de realização, e estes, m a i s u m a vez, são diferen-
tes d o distinguir o c u r s o m a i s p r á t i c o da a ç ã o nestas c i r c u n s t â n c i a s . T e -
m o s aqui u m a escala q u e desce do geral para o particular, do simples
para o c o m p o s t o , e ao m e s m o t e m p o da teoria para a prática, esta última
personificando o ser-composto. O conhecimento da possibilidade repou-
sa s o b r e o s p r i n c í p i o s u n i v e r s a i s d a á r e a , as leis q u e a c o n s t i t u e m (os
p o n t o s finais d a q u i l o q u e Galileu c h a m o u de " m é t o d o r e s o l u t i v o " ) ; o co-
nhecimento dos c a m i n h o s típicos da realização, e m f o r m a s causais m a i s
c o m p l e x a s e específicas, o n d e estão incorporados os primeiros princí-
p i o s , e q u e p o d e m s e r v i r d e m o d e l o s p a r a r e g r a s d e p r o d u ç ã o , i s t o é, d o
agir ("método c o m p o s i t i v o " ) ; por último, o c o n h e c i m e n t o daquilo que
d e v e ser f e i t o agora é inteiramente particular, porque coloca a tarefa
dentro do contexto da situação inteiramente concreta. Os dois primeiros
p a s s o s p e r m a n e c e m d e n t r o d a t e o r i a , o u m e l h o r , c a d a u m d e l e s pode ter
sua teoria desenvolvida. A teoria, no primeiro caso, nós p o d e m o s cha-
m a r de ciência n o sentido p r ó p r i o , c o m o p o r e x e m p l o a física teórica; a
teoria n o s e g u n d o c a s o , l o g i c a m e n t e (se b e m q u e n e m s e m p r e efetiva-
mente) derivada da primeira, nós p o d e m o s c h a m a r de ciência técnica o u
aplicada - a qual, c o m o não p o d e m o s esquecer, s e m p r e é ainda "teoria"
e m r e f e r ê n c i a a o p r ó p r i o a g i r , p o r q u e a p r e s e n t a as r e g r a s e s p e c í f i c a s d o
agir c o m o partes de u m t o d o racional, e n ã o t o m a decisões ( e x e m p l o : as
ciências da engenharia). A execução concreta m e s m a não t e m n e n h u m a
teoria p r ó p r i a , n e m p o d e ter. A p e s a r de a p l i c a r a t e o r i a , ela n ã o é s i m -
p l e s m e n t e d e r i v a d a d a t e o r i a , m a s e n v o l v e u m a d e c i s ã o b a s e a d a n o jul-
gamento; e não existe u m a ciência do j u l g a m e n t o ( t a m p o u c o quanto
u m a c i ê n c i a d a d e c i s ã o ) - i s t o é, j u l g a m e n t o n ã o p o d e s e r s u b s t i t u í d o
p o r c i ê n c i a , n e m s e r t r a n s f o r m a d o e m c i ê n c i a , p o r m a i s q u e p o s s a u t i li-
zar-se d o s r e s u l t a d o s , e m e s m o d a s d i s c i p l i n a s i n t e l e c t u a i s d a c i ê n c i a , e
p o r m a i s q u e ele p r ó p r i o s e j a u m a e s p é c i e d e c o n h e c i m e n t o . J u l g a m e n -
t o , diz K a n t , é u m a c a p a c i d a d e d a s u b s u n ç ã o d o p a r t i c u l a r s o b o u n i v e r -
sal; e c o m o a razão é a c a p a c i d a d e d o universal, e a ciência o a c i o n a m e n -
t o d e s t a c a p a c i d a d e , o j u l g a m e n t o q u e se o c u p a c o m o p a r t i c u l a r e n c o n -
tra-se n e c e s s a r i a m e n t e f o r a d a c i ê n c i a , s e n d o p r e c i s a m e n t e a p o n t e q u e
l i g a as a b s t r a ç õ e s d a r a z ã o c o m a c o n c r e t u d e d a v i d a .

No primeiro estágio, o da ciência pura, a f o r m a de afirmação é cate-


g ó r i c a : A é P, B é P, ... N o s e g u n d o , o e s t á g i o a p l i c a d o , a f o r m a é h i p o t é t i -
c a : se f o r P, e n t ã o h á d e t e r s i d o o u A o u B ... N a s c o n s i d e r a ç õ e s d o j u l g a -
m e n t o prático, a f o r m a afirmativa é p r o b l e m á t i c a : as coisas particulares
222 O princípio vida

f, g , ... q u e e s t ã o d i s p o n í v e i s n a s i t u a ç ã o , c u m p r e m t a l v e z (e n ã o : c u m -
p r e m e m p a r t e ) as e x i g ê n c i a s d o s u n i v e r s a i s A o u B o u . . . ; p o r i s s o b e m
q u e elas p o d e m ( n ã o : elas p o d e m e m parte) ser a p r o p r i a d a s p a r a p r o d u -
zir P. I n v e n ç ã o é t i p i c a m e n t e u m a t a l c o m b i n a ç ã o d e j u l g a m e n t o c o n c r e -
to c o m ciência abstrata.

É nesta esfera d o j u l g a m e n t o c o n c r e t o q u e o u s o p r á t i c o da teoria en-


c o n t r a s e u l u g a r . D e o n d e se s e g u e q u e o u s o d a t e o r i a n ã o f o r n e c e n e -
n h u m a t e o r i a d e si m e s m o : se se t r a t a r d e u m u s o i l u m i n a d o , s u a luz p r o -
cede d a reflexão, e não é a b o n d a d e de u m a teoria q u e g a r a n t e u m b o m
s e n t i d o p a r a o particular, de q u e a reflexão t e m necessidade. E este co-
n h e c i m e n t o que é capaz de j u l g a r o uso é diferente, não só do conheci-
m e n t o da teoria usada no caso concreto, m a s t a m b é m do de toda teoria
e m s i , e se a d q u i r e o u se a p r e n d e p o r c a m i n h o s d i f e r e n t e s d o s d a t e o r i a .
Por esta razão, Aristóteles n e g a v a q u e pudesse existir u m a ciência de po-
l í t i c a e é t i c a p r á t i c a ; o onde, quando, para quem... n ã o se d e i x a r e d u z i r
a p r i n c í p i o s gerais. A s s i m , existe teoria e uso da teoria, m a s n ã o existe
u m a teoria do uso da teoria. #

Ma e x t r e m i d a d e o p o s t a d a e s c a l a e n c o n t r a - s e o c o n h e c i m e n t o dos
f i n s , q u e r e p e t i d a m e n t e a b o r d a m o s , e d e q u e h o j e n ã o s a b e m o s se ele
a d m i t e u m a teoria, c o m o a n t e s c l a r a m e n t e p a r e c i a ser o c a s o . S ó este
c o n h e c i m e n t o permitiria q u e se distinguisse validamente entre uso d i g n o
e indigno, desejável e não-desejável, permitido e não-permitido da ciên-
cia, ao passo que a ciência m e s m a não permite senão a distinção de seu
u s o c e r t o o u e r r a d o , a d e q u a d o o u i n a d e q u a d o , eficaz o u i n e f i c a z . M a s é
c o m e s t a c i ê n c i a , d e q u e n ã o se d u v i d a , q u e p r e c i s a m o s o c u p a r - n o s a g o -
ra, e interrogar-nos quais as peculiaridades que habilitam interiormente
este t i p o de teoria ao u s o d o m u n d o das coisas.

S o b r e a f o r m a ç ã o da teoria, u m de seus mestres d o século 19, Hein-


r i c h Hertz, teve a dizer o s e g u i n t e : " M ó s s e m p r e c r i a m o s d e n t r o de nós
i m a g e n s aparentes o u s í m b o l o s d o s o b j e t o s e x t e r n o s , e o f a z e m o s de tal
f o r m a q u e as c o n s e q ü ê n c i a s logicamente necessárias das imagens
s e m p r e s e j a m m a i s u m a vez i m a g e n s das c o n s e q ü ê n c i a s naturalmente
necessárias dos objetos r e p r e s e n t a d o s " . Esta é u m a a f i r m a ç ã o elíptica:
4

p o i s as " i m a g e n s a p a r e n t e s o u s í m b o l o s " , q u e s ã o c r i a d o s e u s a d o s ,

4 . H. Hertz. Die Prinzipien der Mechanik in neuem Zusammenhange dargestellt. Leip-


z i g , 1 8 9 4 , p. 1.
10. Do uso prático da teoria 223

não são imagens dos objetos externos imediatos, c o m o pedras e árvo-


res, n e m m e s m o de classes inteiras o u d e t i p o s g e n é r i c o s destes o b j e -
tos, e sim símbolos para os p r o d u t o s residuais de u m a análise e s p e c u -
lativa d o s o b j e t o s d a d o s e de seus e s t a d o s e relações - p r o d u t o s resi-
duais que não a d m i t e m outra coisa senão u m a representação simbóli-
ca, m a s que são admitidos hipoteticamente c o m o servindo de base p a r a
o s o b j e t o s , e e m s e g u i d a t r a t a d o s c o m o se e l e s m e s m o s f o s s e m " o b j e -
tos externos", e m substituição aos objetos originais.

A palavra-chave aqui é "análise". Análise é a característica q u e distin-


gue a p e s q u i s a física desde o s é c u l o 17, m a i s p r e c i s a m e n t e a análise da
n a t u r e z a em ação e m seus fatores d i n â m i c o s mais simples. Estes fatores
são e x p r e s s o s e m valores u n i f o r m e s e q u a n t i t a t i v o s , para q u e p o s s a m ser
introduzidos, ligados e t r a n s f o r m a d o s e m equações. O m é t o d o analítico
p r e s s u p õ e , p o r t a n t o , u m a redução ontológica original da natureza: e m
s u a a p l i c a ç ã o à n a t u r e z a e s t a é a n t e r i o r à m a t e m á t i c a o u às o u t r a s f o r m a s
s i m b ó l i c a s . U m a vez e n t r e g u e s à e l a b o r a ç ã o , o s p r o d u t o s r e s i d u a i s d e s t a
r e d u ç ã o ( m a i s p r e c i s a m e n t e , suas m e d i d a s ) , a m a t e m á t i c a p o d e e n t ã o , a
partir deles, c o m e ç a r a reconstruir f e n ô m e n o s c o m p l e x o s , de u m a m a n e i -
ra q u e v a i a l é m d o s d a d o s o r i g i n a i s d a e x p e r i ê n c i a p a r a f a t o s a i n d a n ã o
o b s e r v a d o s o u ainda a ser e s p e r a d o s o u p r o d u z i d o s . (Os três casos repre-
s e n t a m descoberta, predição e orientação técnica.) Q u e a natureza pres-
te-se a e s t a e s p é c i e d e r e d u ç ã o , f o i e s t a a d e s c o b e r t a f u n d a m e n t a l , n a r e a -
lidade a expectativa Tunda/nental no início d a física m e c â n i c a .

N e s t a r e d u ç ã o , as " f o r m a s s u b s t a n c i a i s " , i s t o é, a t o t a l i d a d e como


c a u s a a u t ô n o m a n o q u e se r e f e r e à s s u a s c o m p o n e n t e s , e p o r c o n s e -
g u i n t e c o m o r a z ã o d o p r ó p r i o vir-a-ser, c o m p a r t i l h a r a m d o d e s t i n o d a s
causas finais. Na física n e w t o n i a n a , a t o t a l i d a d e integral d a f o r m a , sobre
a q u a l se b a s e a v a a o n t o l o g i a c l á s s i c a e m e d i e v a l , f o i d i v i d i d a e m f a t o r e s
e l e m e n t a r e s , p a r a os q u a i s o p a r a l e l o g r a m a d a s f o r ç a s é u m s í m b o l o g r á -
fico adequado. A presença antecipada do futuro, entendido c o m o poten-
c i a l i d a d e d o vir-a-ser, c o n s i s t e a g o r a n a p o s s i b i l i d a d e d e c a l c u l a r a o p e r a -
ç ã o das f o r ç a s q u e e m u m a d a d a c o n f i g u r a ç ã o p o d e m ser d i s t i n g u i d a s
c o m o encontrando-se e m ação. N ã o mais u m a coisa original por direito
p r ó p r i o , a f o r m a é a g o r a o c o m p r o m i s s o c o r r e n t e e n t r e os p r o c e s s o s b á -
sicos na matéria agregada. N ã o foi t a n t o a m a ç ã a cair q u e foi elevada a o
g r a u de m o v i m e n t o c ó s m i c o , q u a n t o este ú l t i m o q u e foi r e b a i x a d o a o
p l a n o d a m a ç ã q u e c a i . Isto e s t a b e l e c e u m a n o v a u n i d a d e d o u n i v e r s o ,
p o r é m de u m a maneira diferente da c o s m o l o g i a grega: a aristocracia da
f o r m a é substituída pela d e m o c r a c i a d a m a t é r i a .

Q u a n d o , de a c o r d o c o m esta " d e m o c r a c i a " , o t o d o são m e r a s s o m a s ,


então suas qualidades aparentemente autênticas são apenas o resultado
224 O princípio vida

de u m a c o m b i n a ç ã o quantitativa mais o u m e n o s c o m p l i c a d a de certos


substratos e de sua d i n â m i c a . De m a n e i r a geral, a c o m p o s i ç ã o e o grau de
c o m p o s i ç ã o o c u p a m o l u g a r d e t o d a s as o u t r a s d i s t i n ç õ e s o n t o l ó g i c a s .
A s s i m , p a r a f i n s d e e x p l i c a ç ã o , as p a r t e s s ã o c o n v o c a d a s a p r e s t a r c o n t a s
d o t o d o , e isto significa q u e o primitivo deve responder pelo m a i s diferenci-
ado, o u , n u m a m a n e i r a de falar mais arcaica, o inferior pelo superior.

S e n ã o e x i s t e u m a h i e r a r q u i a d o ser, m a s a p e n a s d i s f a r c e s d e u m
substrato uniforme, então toda explicação t e m que c o m e ç a r de baixo
para c i m a , p o d e n d o de fato deixar o nível d o c h ã o . O mais elevado é o
m a i s baixo disfarçado, onde o disfarce é produzido pela c o m p o s i ç ã o : c o m
a a n á l i s e d o ú l t i m o , o d i s f a r c e se d i s s o l v e , e a a p a r ê n c i a d o m a i s e l e v a d o
fica reduzida à realidade do elementar. D a física, este e s q u e m a p e n e t r o u
e m t o d a s as p r o v í n c i a s d o s a b e r , e s t a n d o a g o r a t ã o b e m a c o m o d a d o n a
psicologia e na sociologia q u a n t o nas ciências naturais, onde teve o r i g e m .
O reino das paixões já não é mais caracterizado c o m o ausência da razão,
m a s a razão caracterizada c o m o disfarce e c o m o serva das paixões. A vi-
são d o m u n d o t r a n s c e n d e n t e de u m a sociedade não é outra coisa senão a
s u p e r e s t r u t u r a i d e o l ó g i c a (e c o m i s t o o d i s f a r c e ) d e s e u s i n t e r e s s e s v i t a i s ,
q u e r e f l e t e m n e c e s s i d a d e s o r g â n i c a s c o n d i c i o n a d a s p e l a c o n s t i t u i ç ã o fí-
s i c a . O r a t o n o l a b i r i n t o n o s diz o q u e n ó s s o m o s . E m t o d a p a r t e , o s u p e r i -
or é e x p l i c a d o pelo inferior, salientando-se na análise c o m o sua verdade.

M a s antes de q u a l q u e r efetiva aplicação, esta análise ontológica pos-


s u i e m si u m a i m p l i c a ç ã o t e c n o l ó g i c a . E s t a ú l t i m a s ó é p o s s í v e l g r a ç a s
ao a s p e c t o m a n i p u l a t i v o inerente à idéia teórica de m o d e l o da ciência
m o d e r n a c o m o t a l . Q u a n d o se m o s t r a c o m o as c o i s a s s ã o c o m p o s t a s
p o r s e u s e l e m e n t o s , f u n d a m e n t a l m e n t e se e s t á m o s t r a n d o t a m b é m q u e
elas p o d e m s e r c o m p o s t a s d e s t e s e l e m e n t o s . C o m p o r , a o c o n t r á r i o d e
criar, é e s s e n c i a l m e n t e o reunir tais m a t é r i a s existentes de a n t e m ã o , o u o
r e a l o c a r p a r t e s p r e e x i s t e n t e s . D e m o d o s e m e l h a n t e , o c o n h e c i m e n t o cientí-
f i c o é e s s e n c i a l m e n t e u m a a n á l i s e d a d i s t r i b u i ç ã o , i s t o é, d a s c o n d i ç õ e s
s o b as q u a i s os e l e m e n t o s estão r e l a c i o n a d o s entre si, n ã o e s t a n d o , p o r
conseguinte, o n e r a d o c o m a tarefa de c o m p r e e n d e r a essência m e s m a
desses elementos. O t e m a q u e a ciência p o d e e precisa perseguir não é o
q u e eles s ã o e m s i , m a s s i m c o m o se c o m p o r t a m s o b e s t a s c o n d i ç õ e s e s -
p e c í f i c a s , i s t o é, n e s t a s r e l a ç õ e s d e c o m b i n a ç ã o . E s t a r e s t r i ç ã o é b á s i c a
para o conceito m o d e r n o do c o n h e c i m e n t o , pois, ao contrário das natu-
r e z a s s u b s t a n c i a i s , as o r d e n a ç õ e s d e c o n d i ç õ e s p o d e m s e r r e c o n s t r u í -
d a s , o u m e s m o c o n s t r u í d a s l i v r e m e n t e , e m m o d e l o s m e n t a i s , desta for-
m a p e r m i t i n d o u m a c o m p r e e n s ã o . E t a m b é m , diferentemente das " n a t u -
rezas", elas p o d e m de fato ser repetidas o u m o d i f i c a d a s e m u m a i m i t a -
ç ã o h u m a n a d a n a t u r e z a , i s t o é, n a t é c n i c a , d e s t a m a n e i r a permitindo
10. Do uso prático da teoria 225

u m a manipulação. A s duas coisas, o c o m p r e e n d e r tanto quanto o c o m -


por, t ê m q u e v e r c o m relações e n ã o c o m essências. D e f a t o , esta espé-
cie d e c o m p r e e n s ã o é ela p r ó p r i a u m a e s p é c i e d e p r o d u ç ã o i m a g i n á r i a ,
o u de i m i t a ç ã o de seus objetos, e esta é a verdadeira razão que permite
a aplicação tecnológica da ciência natural m o d e r n a .

N o início d o s é c u l o 18, V i c o p r o c l a m o u o p r i n c í p i o de q u e o ser h u -


m a n o s ó p o d e c o m p r e e n d e r a q u i l o q u e ele p r ó p r i o fez. D a í ele c o n c l u i u
q u e n ã o é a n a t u r e z a q u e , c o m o c r i a d a p o r D e u s , se o p õ e a o s e r h u m a -
no, m a s s i m a h i s t ó r i a , q u e é criatura d o ser h u m a n o , q u e p o d e p o r este
ser c o m p r e e n d i d a . S ó u m factum é q u e p o d e s e r u m uerum - só o q u e
foi feito é q u e p o d e ser v e r d a d e . P o r é m , ao o p o r este p r i n c í p i o à ciência
natural cartesiana, V i c o n ã o p e r c e b e u a c i r c u n s t â n c i a de q u e o p r i n c í p i o
- c o n t a n t o q u e a m p l i a d o d o "ter sido feito" p a r a o " p o d e r ser f e i t o " - a p l i -
ca-se m e l h o r à n a t u r e z a d o q u e m e s m o à h i s t ó r i a ( o n d e d e f a t o s u a v a l i -
dade não é t ã o c e r t a ) . Pois, c o m o m o s t r a m o s , o c o n h e c i m e n t o de u m
processo natural de a c o r d o c o m o e s q u e m a m e c â n i c o n ã o t e m a v e r
c o m as p a r t e s d a s i t u a ç ã o c r i a d a s p o r D e u s - c o m a n a t u r e z a i n t e r n a d a s
substâncias q u e dela t o m a m parte - m a s s i m c o m as c o n d i ç õ e s variá-
v e i s q u e - p r e s s u p o s t a s as s u b s t â n c i a s - d e t e r m i n a m o p r o c e s s o . R e p e -
tindo estas c o n d i ç õ e s , e m p e n s a m e n t o o u e m u m a m a n i p u l a ç ã o efetiva,
pode-se reproduzir o p r o c e s s o s e m produzir o substrato. D e entender o
s u b s t r a t o o ser h u m a n o é t ã o i n c a p a z q u a n t o de criá-lo. M a s de criá-lo até
m e s m o a n a t u r e z a é-incapaz, j á q u e , u m a vez c r i a d a e m seus c o m p o n e n -
tes s u b s t a n c i a i s , d a í p o r d i a n t e ela n ã o p o d e " c r i a r " s e n ã o m a n i p u l a n d o
estes c o m p o n e n t e s , i s t o é, r e a g r u p a n d o as r e l a ç õ e s . C o n d i ç õ e s e r e l a -
ç õ e s s ã o o v e í c u l o p a r a as p r o d u ç õ e s n ã o c r i a t i v a s d a n a t u r e z a c r i a d a , d a
m e s m a f o r m a q u e p a r a o c o n h e c i m e n t o d a n a t u r e z a p e l o ser h u m a n o
criado, e t a m b é m para a i m i t a ç ã o técnica da m a n e i r a de p r o d u ç ã o d a n a -
tureza. Era este o sentido da célebre m á x i m a de B a c o n , de q u e a n a t u r e -
za só p o d e s e r d o m i n a d a q u a n d o se l h e o b e d e c e . A s m a n e i r a s q u a s e - t é c -
nicas de p r o d u ç ã o da natureza - o u a natureza c o m o p r o d u t o r a e p r o d u -
to dela p r ó p r i a - são seu ú n i c o a s p e c t o q u e p o d e ser c o n h e c i d o e i m i t a -
d o , e n q u a n t o a s e s s ê n c i a s e m si n ã o s ã o e l a s p r ó p r i a s r e c o n h e c í v e i s ,
p o r q u e n ã o p o d e m ser p r o d u z i d a s . A p a r á b o l a d a " o f i c i n a da n a t u r e z a " ,
da qual a ciência d e v e f o r n e c e r u m a visão p a r a d e s c o b r i r s u a m a n e i r a de
proceder, expressa p o p u l a r m e n t e o p e n s a m e n t o de q u e a distinção en-
tre n a t u r a l e artificial, p o r mais f u n d a m e n t a l que tenha sido para a filoso-
fia c l á s s i c a , d e i x o u d e t e r s e n t i d o . " M ã o v e j o n e n h u m a d i f e r e n ç a " , e s c r e -
v e D e s c a r t e s , " e n t r e as m á q u i n a s f e i t a s p o r a r t e s ã o s e as d i f e r e n t e s e s p é -
c i e s d e c o r p o s q u e s ã o c o m p o s t o s u n i c a m e n t e p e l a n a t u r e z a . . . T o d a s as
r e g r a s d a m e c â n i c a p e r t e n c e m à f í s i c a , d e m o d o q u e t o d a s as c o i s a s p r o -
226 O princípio vida

duzidas pela arte são c o m isto t a m b é m n a t u r a i s " . N o m e s m o espírito, 5

Descartes p ô d e dizer: " D a i - m e m a t é r i a e m o v i m e n t o , e e u farei o m u n d o


n o v a m e n t e " - u m a palavra i m p o s s í v e l de ser e n c o n t r a d a na b o c a de
qualquer pensador p r é - m o d e r n o . Conhecer u m a coisa significa saber
c o m o ela é f e i t a o u c o m o p o d e s e r f e i t a , e p o r t a n t o e s t a r e m c o n d i ç õ e s
de repetir, ou de variar o u de antecipar, o p r o c e s s o de p r o d u ç ã o . N ã o i m -
p o r t a se o s e r h u m a n o , c o m a s f o r ç a s d e q u e d i s p õ e , s e m p r e p o d e e f e t i -
v a m e n t e d i s p o n i b i l i z a r o s f a t o r e s q u e c o n s t i t u e m as c o n d i ç õ e s n e c e s s á -
r i a s ; s e , p o r c o n s e g u i n t e , ele é c a p a z d e p r o d u z i r o r e s u l t a d o d e s e j a d o . O
ser h u m a n o n ã o p o d e r e p r o d u z i r u m a n e b u l o s a c ó s m i c a , m a s , a d m i t i n -
d o - s e q u e ele s a i b a c o m o u m a n e b u l o s a é p r o d u z i d a n a n a t u r e z a , e m
p r i n c í p i o ele e s t a r i a e m c o n d i ç õ e s d e p r o d u z i - l a , se f o s s e s u f i c i e n t e m e n t e
g r a n d e e p o d e r o s o - e é isto o q u e significa ter u m c o n h e c i m e n t o das ne-
bulosas cósmicas. Expresso e m forma de senha, o m o d e r n o conheci-
m e n t o da natureza, diferentemente do antigo, é u m "saber c o m o " , e não
u m "saber q u ê " , desta m a n e i r a t o r n a n d o verdadeira a a f i r m a ç ã o de Ba-
c o n de q u e saber é p o d e r .

Entretanto isto n ã o é ainda o t o d o d o a s p e c t o t e c n o l ó g i c o próprio da
teoria científica. Teoria é u m fato interior e u m agir interior. M a s sua relação
c o m o agir exterior, a l é m de m e i o para o f i m e m a p l i c a ç ã o extracientífica,
p o d e ser t a m b é m o c o n t r á r i o : i s t o é, t a n t o o a g i r p o d e ser u s a d o a s e r v i ç o d a
teoria c o m o a teoria estar a serviço d o agir. A l g u m a relação de c o m p l e m e n -
t a r i d a d e e n t r e estes d o i s a s p e c t o s é s u g e r i d a d e s d e o i n í c i o : é p e r f e i t a m e n t e
p o s s í v e l q u e s ó p o s s a vir a s e r u m m e i o p a r a a p r á t i c a a t e o r i a q u e t e n h a a
p r á t i c a e n t r e s e u s p r ó p r i o s m e i o s . Q u e este é o c a s o , f i c a c l a r o q u a n d o c o n -
sideramos o papel d o e x p e r i m e n t o n o processo científico.

5 . Princípios da filosofia IV, art. 2 0 3 . M a s serão " t o d a s as regras da m e c â n i c a " a m e s m a


coisa q u e todas as regras da física"? A v e r d a d e , f a c i l m e n t e a d m i t i d a , de q u e as regras da
m e c â n i c a " p e r t e n c e m " à física, p o d e e n c o b r i r a i n s i n u a ç ã o b a s t a n t e diferente de q u e elas
e s g o t a m o c ó d i g o d e regras d a física (isto é, da n a t u r e z a ) . A p a s s a g e m c o m p l e t a dos
Princípios, de o n d e p r o v é m a c i t a ç ã o a c i m a , é de c a p i t a l i m p o r t â n c i a c o m o a n ú n c i o de
u m p r i n c í p i o r e a l m e n t e n o v o , q u e desde e n t ã o p a s s o u a d o m i n a r a ciência e a filosofia
naturais. Suas i m p l i c a ç õ e s t é c n i c a s são ó b v i a s . A n o v a d o u t r i n a de u m a natureza unifor-
m e , q u e surge a q u i dos e s c o m b r o s d o edifício m e d i e v a l d o m u n d o , a d m i t e i n g e n u a m e n t e
a i g u a l d a d e de m a c r o e m i c r o f o r m a s n o a c o n t e c e r n a t u r a l , o q u e n ã o foi c o n f i r m a d o pela
física m o d e r n a . P o r é m , m e s m o se a b s t r a i n d o d e d e s c o b e r t a s p o s t e r i o r e s , seria possível -
poder-se-ia desde o p r i n c í p i o o b j e t a r - , p o r razões lógicas, q u e d o f a t o d e as m á q u i n a s
t r a b a l h a r e m i n t e i r a m e n t e s e g u n d o os p r i n c í p i o s da natureza n ã o se segue q u e a natureza
n ã o t e n h a outras f o r m a s de p r o c e d i m e n t o a l é m d a q u e l a s q u e o h o m e m é capaz de e m -
pregar e m suas c o n s t r u ç õ e s . M a s era p r e c i s a m e n t e esta v i s ã o da natureza (não a visão
i n o c e n t e da m e c â n i c a h u m a n a ) q u e c o n s t i t u í a a v e r d a d e i r a c o n v i c ç ã o de Descartes: seu
espírito, q u e ia m u i t o a l é m d e u m m e r o e x p e r i m e n t o c o m a n a v a l h a d e O c c a m , explica a
relativa c o n f i a n ç a da c i t a ç ã o a seguir n o t e x t o .
10. Do uso prático da teoria 227

A aliança antevista por B a c o n entre o conhecer e o m o d i f i c a r o m u n -


d o é de fato m u i t o m a i s p r o f u n d a d o que o conseguiria a m e r a d e l e g a ç ã o
d e r e s u l t a d o s t e ó r i c o s p a r a u s o p r á t i c o , i s t o é, a a p l i c a ç ã o d a c i ê n c i a
post factum. Se tiver q u e a p r e s e n t a r resultados de i m p o r t â n c i a p r á t i c a , o
p r ó p r i o p r o c e s s o d a c i ê n c i a t e r á q u e ser p r á t i c o , i s t o é, e x p e r i m e n t a l . D e -
v e m o s , diz B a c o n , " f o r ç a r a n a t u r e z a " e f a z e r a l g u m a c o i s a p a r a o b r i g á - l a
a entregar seus segredos n a resposta q u e nós p r o v o c a m o s , "já q u e a n a -
t u r e z a d a s c o i s a s se r e v e l a m a i s s o b a t o r t u r a d a a r t e d o q u e e m s u a n a t u -
ral l i b e r d a d e " . A s s i m , s o b d o i s a s p e c t o s a c i ê n c i a m o d e r n a e s t á l i g a d a a o
m o d i f i c a r a t i v o d a s c o i s a s : n a p e q u e n a e s c a l a d o e x p e r i m e n t o ela p r o v o -
ca a variação, c o m o meio necessário para o c o n h e c i m e n t o da natureza,
i s t o é, u s a a p r á t i c a p a r a o s f i n s d a t e o r i a ; e a t e o r i a a s s i m a d q u i r i d a e s t á
h a b i l i t a d a às m o d i f i c a ç õ e s d e l a r g a e s c a l a d e s u a a p l i c a ç ã o t é c n i c a - e a
elas c o n v i d a . A a p l i c a ç ã o t é c n i c a , p o r sua vez, p a s s a a ser u m a f o n t e de
c o n h e c i m e n t o s teóricos, q u e n ã o p o d e r i a m ter sido a l c a n ç a d o s e m esca-
la l a b o r a t o r i a l - a b s t r a i n d o - s e d o f a t o d e q u e ela f o r n e c e o s i n s t r u m e n t o s
p a r a u m t r a b a l h o l a b o r a t o r i a l m a i s eficiente, q u e p o r s u a vez f o r n e c e
t a m b é m novos acréscimos à ciência, e assim por diante, e m u m ciclo
c o n t í n u o . Desta f o r m a a fusão de teoria e prática torna-se inseparável,
n u m a m e d i d a q u e n ã o é m a n i f e s t a d a pelas m e r a s e x p r e s s õ e s " c i ê n c i a
p u r a " e "ciência aplicada". Provocar m u d a n ç a s na natureza c o m o um
meio para conhecê-la m e l h o r e c o m o resultado deste c o n h e c i m e n t o , são
d u a s coisas i n s e p a r a v e l m e n t e i n t e r l i g a d a s , e u m a vez q u e esta c o m b i n a -
ç ã o e s t e j a a t u a n t e , "já n ã p i m p o r t a m a i s se a d e t e r m i n a ç ã o pragmática
d a t e o r i a ( p o r e x e m p l o p o r p a r t e d o c i e n t i s t a " p u r o " ) é o u n ã o é a c e i t a ex-
pressamente. O próprio processo da aquisição do c o n h e c i m e n t o , atra-
v é s d a m a n i p u l a ç ã o , l e v a as c o i s a s a s e r e m c o n h e c i d a s , e e s t a o r i g e m ,
p o r si m e s m a , faz c o m q u e o s r e s u l t a d o s t e ó r i c o s s e j a m a d e q u a d o s a
u m a a p l i c a ç ã o . P o s s i b i l i d a d e e s t a a q u e n ã o se p o d e r e s i s t i r - a t é m e s m o
n o i n t e r e s s e d a t e o r i a , p a r a n ã o f a l a r d o i n t e r e s s e p r á t i c o , q u e r e s t e s se-
j a m ou não sejam inicialmente visados.

VI

M a s a o m e s m o t e m p o a p e r g u n t a s o b r e q u a l seja o v e r d a d e i r o f i m h u -
m a n o , se a v e r d a d e o u a u t i l i d a d e , p e r m a n e c e i n t e i r a m e n t e e m aberto
p e l o f a t o d e as d u a s a n d a r e m j u n t a s , n ã o s e n d o s u b s t a n c i a l m e n t e a f e t a d a
p e l a visível p r e p o n d e r â n c i a n o p r e s e n t e d o e l e m e n t o p r á t i c o . A r e s p o s t a é
d e t e r m i n a d a pela i m a g e m d o ser h u m a n o , de q u e nós n ã o t e m o s certeza.
O q u e é c e r t o é o q u e f o i a p r e n d i d o a n t e s , q u e se o f i m é a " v e r d a d e " , n ã o
se t r a t a d e u m a v e r d a d e d e p u r a c o n t e m p l a ç ã o . A d e s c o b e r t a m o d e r n a d e
que conhecer a natureza exige q u e nós a f o r c e m o s - u m a descoberta que
228 O princípio vida

vai além da ciência natural - corrigiu e m definitivo a visão " c o n t e m p l a t i v a "


de Aristóteles a respeito da teoria. E v i d e n t e m e n t e , no ideal da c o n t e m p l a -
ção havia algo mais e m jogo do que apenas u m a concepção do m é t o d o
teórico: deve estar e m j o g o algo mais d o q u e u m a c o r r e ç ã o da última, que
t e n h a m o s q u e d e i x a r p a r a t r á s - u m d e i x a r p a r a t r á s t a n t o m a i s difícil d e
aceitar q u a n t o mais for entendida sua necessidade.

A c o n v i c ç ã o de Aristóteles era q u e , e m ú l t i m a análise, nós a g i m o s


para o c o n t e m p l a r , e não q u e c o n t e m p l a m o s para o agir - ao q u e moder-
n a m e n t e g o s t a - s e d e c o m e n t a r q u e i s t o n ã o r e f l e t e o u t r a c o i s a a n ã o ser a
atitude de u m a classe ociosa e m u m a sociedade de escravos. E m nossa
a t m o s f e r a p r a g m á t i c a , é r a r o q u e n o s d e m o s a o e m p e n h o d e p e r g u n t a r se
A r i s t ó t e l e s - q u e r ele t e n h a o u n ã o t e n h a s i d o l e v a d o p o r p r e c o n c e i t o s so-
ciais - n ã o p o d e r i a e s t a r c o m a r a z ã o . A f i n a l d e c o n t a s , ele n ã o era s u r d o
às e x i g ê n c i a s d a " r e a l i d a d e " . A r i s t ó t e l e s diz e x p r e s s a m e n t e q u e as n e c e s -
s i d a d e s v i t a i s p r e c i s a m s e r g a r a n t i d a s p r i m e i r o , a t r i b u i n d o esta t a r e f a à c i -
v i l i z a ç ã o ( i s t o é, à f o r m a ç ã o d e u m a s o c i e d a d e d e d i v i s ã o d o t r a b a l h o ) . S ó
q u e ele v i a e s t a t a r e f a c o m o s e n d o f i n i t a , e n ã o c o m o i n f i n i t a o u irrealizá-
vel, c o m o p o d e r i a p a r e c e r por outras atitudes e experiências. M e s m o
c o m e s t a s , p o r é m , s e r i a b o m l e v a r e m c o n t a as r e f l e x õ e s d o s g r e g o s s o b r e
este a s s u n t o , c o m o f i m d e c o l o c a r m o s s o b u m a p e r s p e c t i v a c o r r e t a o d i -
n a m i s m o c o n t e m p o r â n e o da vida ativa. Certas considerações simples ain-
da serão vistas c o m o acertadas. É irrefutável, p o r e x e m p l o , o a r g u m e n t o
d e A r i s t ó t e l e s d e q u e n ó s f a z e m o s g u e r r a p a r a o b t e r p a z , e se g e n e r a l i z a r -
m o s isto d i z e n d o q u e f a z e m o s o e s f o r ç o a f i m d e o b t e r r e p o u s o , será u m a
c o i s a p e l o m e n o s e x t r e m a m e n t e r a z o á v e l . O b v i a m e n t e , o r e p o u s o a ser
6

desfrutado n ã o p o d e consistir na o m i s s ã o de t o d a espécie de atividade,


m a s d e v e s e r ele p r ó p r i o u m a f o r m a d e v i d a , i s t o é, d e v e t e r s e u c o n t e ú d o
e m u m a atividade própria - que para Aristóteles é o "pensar". - Tendo
p a g o a e s t e p o n t o d e v i s t a o t r i b u t o q u e ele m e r e c e , resta a i n d a dizer q u e
ele se b a s e i a s o b r e v i s õ e s , t a n t o d a c i v i l i z a ç ã o q u a n t o d o p e n s a m e n t o , q u e
à luz d a e x p e r i ê n c i a m o d e r n a t o r n a r a m - s e q u e s t i o n á v e i s n o t o c a n t e à c i v i -
lização e insustentáveis no t o c a n t e ao p e n s a m e n t o .

N o q u e diz r e s p e i t o à c i v i l i z a ç ã o , A r i s t ó t e l e s c o n s i d e r a c o n v e n i e n t e
q u e , q u a n d o a l c a n ç a r u m e q u i l í b r i o s u s t e n t á v e l e n t r e n e c e s s i d a d e s legíti-
m a s e m e i o s p a r a s u a s a t i s f a ç ã o , ela p o s s a a p l i c a r o e x c e s s o p a r a t o r n a r
p o s s í v e l a v i d a f i l o s ó f i c a , a v i d a d o p e n s a r - o v e r d a d e i r o f i m d o ser h u m a -
no. Hoje nós t e m o s boas razões para d u v i d a r j á d a m e r a possibilidade de
a l c a n ç a r t a l e q u i l í b r i o . P o r i s s o n ã o v e m o s m e i o m e l h o r p a r a este " e x c e s -
so", o u n ã o t e m o s o u t r a e s c o l h a , s e n ã o r e a l i m e n t á - l o n o p r o c e s s o de rea-
justar o desequilíbrio, sempre n o v a m e n t e p r o v o c a d o , e cujo resultado é o

6. Ética a Nicômaco, X 7, 1177 b.


10. Do uso prático da teoria 229

progresso: u m a u t o m a t i s m o a u t o - a l i m e n t a d o , e m q u e a p r ó p r i a teoria está


incluída c o m o fator e c o m o função, e do qual n ã o p o d e m o s ver ( n e m m u i -
t o m e n o s l h e p o d e m o s i m p o r ) l i m i t e s . M a s se o p r o c e s s o d a c i v i l i z a ç ã o é
i n f i n i t o , e n t ã o ele e x i g e o c u i d a d o c o n s t a n t e d o s m e l h o r e s e s p í r i t o s - i s t o
é: s u a c o n s t a n t e o c u p a ç ã o n a " c a v e r n a " .

M a s n o q u e diz r e s p e i t o a o p r ó p r i o " p e n s a m e n t o " , a m o d e r n a a v e n t u -


ra d o saber c o r r i g i u a v i s ã o g r e g a sobre o m e s m o , s o b u m a s p e c t o dife-
rente d o de sua possível s e p a r a ç ã o da prática, e e n q u a n t o c o n s e g u i m o s
e n x e r g a r , o fez d e m a n e i r a d e f i n i t i v a . P a r a os g r e g o s , s e j a P l a t ã o o u A r i s -
tóteles, o n ú m e r o das coisas a serem realmente conhecidas é finito, e a
apreensão dos primeiros princípios, q u a n d o alcançada, é definitiva -
m e s m o n e c e s s i t a n d o p e r i o d i c a m e n t e d e u m a r e v i s ã o , ela n ã o e s t á s u j e i -
ta ao e n v e l h e c i m e n t o p o r u m a n o v a d e s c o b e r t a o u p o r u m a m e l h o r abor-
d a g e m . P a r a a m o d e r n a e x p e r i ê n c i a d o c o n h e c i m e n t o , n ã o se p o d e i m a -
ginar que u m estado qualquer da teoria, inclusive o sistema conceituai
dos p r i m e i r o s princípios q u e a r e g e m , seja m a i s d o q u e u m a c o n s t r u ç ã o
t e m p o r á r i a , d e s t i n a d a , q u a n d o t o d a s as i m p l i c a ç õ e s f o r e m c o m p a r a d a s
c o m t o d o s os f a t o s , a s e r s u p e r a d a p e l a p r ó x i m a v i s ã o a q u e ela p r ó p r i a
a b r i u as p o r t a s . N o u t r a s p a l a v r a s , o c a r á t e r hipotético da ciência moder-
na qualifica cada u m a de suas realizações explicativas e integrativas co-
m o p o n t o de partida para o l e v a n t a m e n t o de n o v o s p r o b l e m a s , e não
c o m o garantia de u m a visão c o n c l u s i v a d o o b j e t o .

N a raiz d e s t a d i f e r e n ç a se e n c o n t r a , n a t u r a l m e n t e , a d i f e r e n ç a e n t r e o
moderno nominalismo, c o m sua compreensão do caráter tentativo de
t o d o s i m b o l i s m o , e o r e a l i s m o c l á s s i c o . Para e s t e ú l t i m o , o s c o n c e i t o s re-
f l e t e m as f o r m a s a u t o - e x i s t e n t e s d o ser e se lhes a s s e m e l h a m , e e s t a s n ã o
se m o d i f i c a m ; p a r a o p r i m e i r o , o s c o n c e i t o s s ã o c r i a ç õ e s d o e s p í r i t o h u -
m a n o , o esforço de u m sujeito t e m p o r a l , e por isso, c o m o este, sujeitos à
m u d a n ç a . O e l e m e n t o d e i n f i n i t u d e n a ô c c o p í a g r e g a refere-se à p o t e n c i a l
i n f i n i t u d e d a s a t i s f a ç ã o n o c o n t e m p l a r o e t e r n o , o q u e n u n c a m u d a ; o ele-
m e n t o d o i n f i n i t o n a t e o r i a m o d e r n a refere-se a o c a r á t e r i n c o m p l e t o d o
p r o c e s s o e m q u e as h i p ó t e s e s t e n t a d a s s ã o r e f u t a d a s e a s s u m i d a s e m i n -
tegrações simbólicas m a i s elevadas. Desta f o r m a , a idéia de u m p r o g r e s s o
p o t e n c i a l m e n t e infinito perpassa o m o d e r n o ideal do c o n h e c i m e n t o c o m a
m e s m a necessidade q u e o m o d e r n o ideal da civilização ; e a s s i m vale q u e , 7

m e s m o abstraindo do m ú t u o e n v o l v i m e n t o de a m b o s , o ideal c o n t e m p l a t i -
v o tornou-se inválido e m si, o u m e s m o ilógico, pela m e r a a u s ê n c i a d a q u e -
las p r e t e n s a s c o i s a s d e f i n i t i v a s , d o s " s u p r e m o s o b j e t o s " p e r m a n e n t e s e m

7 . E, c o m o ela, p e n e t r a a m o d e r n a idéia da natureza o u realidade: j á a p r ó p r i a teoria d o


ser, n ã o a p e n a s a d o c o n h e c i m e n t o e d o h o m e m , foi a r r a s t a d a p a r a o s i m b o l i s m o d o p r o -
gresso e da m u d a n ç a .
230 O princípio vida

cuja c o m p r e e n s ã o o c o n h e c i m e n t o chega ao repouso, passando à busca


da c o n t e m p l a ç ã o .

VII

Parece, p o r t a n t o , q u e prática e teoria conjuraram-se para nos entre-


gar a u m incessante d i n a m i s m o , e a nossa vida, privada de u m presente
d u r a d o u r o , s e m p r e está voltada para o f u t u r o . O que Nietzsche c h a m o u
" o s o b e r a n o vir- a-ser", p a r e c e n o s h a v e r a g a r r a d o p e l o p e s c o ç o , e a t e o -
ria, l o n g e de p o s s u i r u m p o n t o de r e f e r ê n c i a m a i s d i s t a n t e , está a t r e l a d a
ao seu c a r r o , a m a r r a d a à sua frente o u a r r a s t a d a atrás dele - q u a l das
d u a s c o i s a s , difícil d e distinguir-se na p o e i r a d o c a m i n h o , e a ú n i c a cer-
t e z a é q u e q u e m d i r i g e o c a r r o n ã o é a t e o r i a . M u i t o s se r e j u b i l a m c o m a
onda q u e os arrasta, e d e s p r e z a m p e r g u n t a r " p a r a o n d e ? " ; v a l o r i z a m
a m u d a n ç a pela m u d a n ç a , o infindo a v a n ç o da vida para o sempre
n o v o e o d e s c o n h e c i d o , o d i n a m i s m o e m si. M a s para q u e a m u d a n ç a
seja u m valor, c e r t a m e n t e é i m p o r t a n t e s a b e r q u e coisa é q u e está m u -
d a n d o ( m e s m o a b s t r a i n d o d e s a b e r p a r a quê)*; e de_ a l g u m a m a n e i r a a
s a b e d o r i a q u e lhe s e r v e de f u n d a m e n t o t e m q u e p o d e r ser definida c o m o
a q u e l a n a t u r e z a d o " s e r h u m a n o c o m o s e r h u m a n o " , q u e faz a r e a l i z a -
ção s e m f i m de suas possibilidades na m u d a n ç a aparecer c o m o u m a
e m p r e s a q u e c o m p e n s e o e s f o r ç o . E n t ã o a l g u m a i m a g e m se e s c o n d e
na a f i r m a ç ã o da m u d a n ç a e m si. E se u m a i m a g e m t a m b é m u m a nor-
m a , e se u m a n o r m a t a m b é m a l i b e r d a d e da n e g a ç ã o , n ã o a p e n a s a en-
t r e g a d a a f i r m a ç ã o , e s t a l i b e r d a d e t r a n s c e n d e n d o ela p r ó p r i a o f l u x o e
a p o n t a n d o para outra espécie de teoria.

Esta teoria teria q u e a s s u m i r n o v a m e n t e a p e r g u n t a pelos fins, q u e


deixa e m a b e r t o a radical indefinição d o c o n c e i t o de "felicidade", e o n d e
a ciência, e n t r e g u e à a q u i s i ç ã o d o s m e i o s p a r a a felicidade, não t e m direi-
to a ter voz. A a d v e r t ê n c i a a q u e a ciência seja a p r o v e i t a d a no interesse
do ser h u m a n o , no interesse de seu m a i o r b e m , p e r m a n e c e vazia en-
q u a n t o n ã o for c o n h e c i d o q u a l é o m a i o r b e m d o ser h u m a n o .

T e n d o diante d o s olhos a a m e a ç a de u m a catástrofe, c o m o a t e m o s


hoje e m m a i s de u m a s p e c t o , n ó s p o d e m o s n o s sentir dispensados de in-
vestigar os fins, já que o evitar a catástrofe é s e m dúvida n e n h u m a u m
primeiro alvo, que provisoriamente suspende qualquer discussão sobre
u m f i m último. Talvez nós estejamos c o n d e n a d o s a conviver por muito
t e m p o c o m situações de tão urgente necessidade p o r nós m e s m o s cria-
das, e t u d o o q u e p o d e m o s fazer talvez seja a p e n a s b u s c a r estacas de
apoio e antídotos de curto prazo, e não o planejamento para u m a vida
b o a . A estaca de a p o i o c e r t a m e n t e n ã o necessita da filosofia. Para en-
f r e n t a r a s i t u a ç ã o de n e c e s s i d a d e q u e c o n s t a n t e m e n t e r e t o r n a , p a r a isto
devia bastar a espécie de c o n h e c i m e n t o q u e a j u d o u a criá-la, a ciência
10. Do uso prático da teoria 231

tecnológica, pois esta s e m p r e a j u d o u através d o êxito c o m q u e defron-


tou-se c o m o que a p r e c e d e u .

M a s se c o n f i a r m o s s e m p r e t o t a l m e n t e n a m e c â n i c a a u t o - r e g u l a d o r a
d a i n t e r a ç ã o c i ê n c i a - t é c n i c a , o u se a ela n o s e n t r e g a r m o s , n ó s t e r e m o s
p e r d i d o a b a t a l h a e m t o r n o d o s e r h u m a n o . Pois q u a n d o s u a a p l i c a ç ã o é
regida u n i c a m e n t e por sua lógica própria, na realidade a ciência n ã o deixa
e m a b e r t o o s e n t i d o d e f e l i c i d a d e : ela j á p r e j u l g o u a r e s p o s t a , a p e s a r d e
sua própria isenção d o s valores. O a u t o m a t i s m o d o seu uso - na m e d i d a
e m q u e este v a i a l é m d a r e s p o s t a à s i t u a ç ã o d e n e c e s s i d a d e q u e c r i o u - j á
estabeleceu e m p r i n c í p i o q u a l é o c o n t e ú d o da felicidade: deixar-se levar
ao e m p r e g o das coisas. N o c a m p o de forças destes dois pólos, o da neces-
sidade e o de deixar-se levar, o d a inventividade e o d o h e d o n i s m o , q u e é
f o r m a d o p e l o p o d e r s e m p r e c r e s c e n t e s o b r e as c o i s a s , a d i r e ç ã o d e t o d o s
os esforços, e c o m isto a p e r g u n t a pelo b e m , corre o risco de ser d e c i d i d a
de a n t e m ã o . M a s n ã o p o d e m o s deixar q u e esta p e r g u n t a seja decidida na
estrada da o m i s s ã o .

A s s i m , m e s m o sob a pressão das necessidades q u e nos a m e a ç a m ,


n ó s p r e c i s a m o s t e r u m a v i s ã o q u e as u l t r a p a s s e , p a r a q u e p o s s a m o s e n -
frentá-las c o m a l g o m a i s d o q u e a p e n a s seus p r ó p r i o s p o n t o s de vista. J á
s e u p r ó p r i o d i a g n ó s t i c o ( q u a n d o n ã o se t r a t a d e u m e x t r e m o p e r i g o )
p r e s s u p õ e pelo m e n o s u m a idéia d a q u i l o q u e n ã o seria u m a s i t u a ç ã o de
necessidade, a s s i m c o m o a d o e n ç a p r e s s u p õ e u m a idéia de saúde. E a a n -
tevisão do êxito, inerente a t o d a luta contra o perigo, a miséria e a injusti-
ç a , t e m q u e o l h a r de frente a p e r g u n t a sobre a v i d a q u e c o n v é m a o ser
h u m a n o , depois de as virtudes da necessidade - c o r a g e m , c o m p a i x ã o e
justiça - h a v e r e m realizado sua obra.

VIII

Q u a i s q u e r q u e s e j a m a s v i s õ e s d a q u e l a " o u t r a " t e o r i a a q u e se d á o
n o m e d e f i l o s o f i a , e o q u e q u e r q u e p o s s a s e r p o r ela a c o n s e l h a d o - o u s o
da teoria científica n ã o p o d e parar, pois deter seu e m p r e g o significa deter
a p r ó p r i a t e o r i a ; e o c u r s o d o s a b e r n ã o p o d e p a r a r - se n ã o p e l o s l u c r o s
q u e traz, ao m e n o s pelos c u s t o s q u e exigiu. E n e m a h o n e s t i d a d e n e m a
lógica t a m b é m d e i x a m aberto o c a m i n h o de volta para a posição clássi-
c a . A t e o r i a p a s s o u a s e r ela m e s m a u m p r o c e s s o , e, c o m o v i m o s , u m
processo q u e e n v o l v e c o n t i n u a m e n t e seu p r ó p r i o uso prático; e não é
possível " p o s s u í - l a " a n ã o ser desta m a n e i r a . Por isso, c i ê n c i a é ao m e s -
m o t e m p o teoria e arte. Mas e n q u a n t o nas outras artes a posse e o uso da
h a b i l i d a d e s ã o d u a s c o i s a s d i f e r e n t e s , d e m o d o q u e q u e m as p o s s u i t e m
a liberdade de aplicar o u n ã o aplicar, e de decidir q u a n d o aplicá-la; a ha-
b i l i d a d e d a c i ê n c i a t é c n i c a c o m o p o s s e c o l e t i v a g e r a p o r si p r ó p r i a o s e u
uso. Chega-se a s s i m a q u e o hiato entre dois estádios e m q u e j u l g a m e n -
232 0 princípio vida

t o , s a b e d o r i a e l i b e r d a d e t ê m s e u e s p a ç o l i v r e d e a ç ã o se e n c o l h e p e r i g o -
samente: a habilidade t o m a posse do q u e a possui.

A teoria p a s s o u a ser u m a f u n ç ã o d o u s o n a m e s m a m e d i d a e m q u e
o uso é u m a função da teoria. A partir dos resultados práticos da aplica-
ç ã o , n o v a s t a r e f a s s ã o a p r e s e n t a d a s à t e o r i a , as s o l u ç õ e s m a i s u m a v e z
postas e m prática no uso, e assim sucessivamente. Desta maneira a teo-
ria p e n e t r o u p r o f u n d a m e n t e n a p r á t i c a . C o m e s t e m e c a n i s m o d e feed-
back r e c í p r o c o , a teoria t r o u x e à existência u m n o v o m u n d o de necessi-
d a d e - p o r a s s i m dizer u m a s e g u n d a natureza e m lugar da p r i m e i r a , de
c u j a n e c e s s i d a d e a teoria deveria livrar o ser h u m a n o . A esta s e g u n d a na-
tureza, q u e n ã o é m e n o s d e t e r m i n a n t e p o r ser artificial, o ser h u m a n o
está t ã o sujeito q u a n t o havia estado à natureza original, e a própria teoria
lhe está sujeita e n q u a n t o c o n t i n u a a o c u p a r - s e c o m ela.

Se i d e n t i f i c a r m o s o reino da n e c e s s i d a d e c o m a " c a v e r n a " de Platão,


e n t ã o n e m a teoria científica nos tira da c a v e r n a n e m sua aplicação práti-
ca é u m retorno à caverna. Desde o início a teoria jamais a b a n d o n o u a
caverna. Ela é inteiramente da c a v e r n a , e p o r conseguinte não é n e n h u -
m a "teoria" no sentido platônico. Mão obstante, a possibilidade da teoria
exige, e sua realidade atesta c o m o c o n d i ç ã o necessária u m a "transcen-
d ê n c i a " n o p r ó p r i o ser h u m a n o , ü m a liberdade p a r a a l é m das necessida-
des da c a v e r n a manifesta-se na relação c o m a v e r d a d e , s e m a q u a l a
ciência n ã o p o d e existir. Esta r e l a ç ã o - u m a capacidade, u m a obriga-
ç ã o , u m a b u s c a , e m s u m a , a q u i l o q u e faz c o m q u e a c i ê n c i a seja h u m a -
n a m e n t e p o s s í v e l - é ela p r ó p r i a u m f a t o e x t r a c i e n t í f i c o . Por i s s o , p o r
m a i s q u e e m seus objetos e e m seu u s o a c i ê n c i a seja da c a v e r n a , e m sua
c a u s a g e r a d o r a n a a l m a ela n ã o é. A i n d a c o n t i n u a e x i s t i n d o a " t e o r i a
p u r a " c o m o d e d i c a ç ã o à v e r d a d e e c o m o d e v o ç ã o a o ser, o c o n t e ú d o d a
verdade. A ciência é a forma m o d e r n a desta dedicação.

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