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Ester Vaisman
Professora do Departamento de Filosofia
da Universidade Federal de Minas Gerais
sobre si mesmo para falar sobre as coisas, mentos de sua obra. Poderíamos dizer que
ou seja, deixa que as coisas “falem” e “fa- Marx, assim, se move, no campo originá-
çam” o pensamento, já que este, em Marx, rio de significação da filosofia conquanto
é histórica e socialmente constituído, como amor (carência) de saber. Logo, em lugar
aludimos acima. Nesse sentido, a razão do saber, da filosofia especulativa, tem-se
é transcendida pelo mundo, condiciona o saber, a filosofia transformadora.
a visão sobre ele, porque é condiciona- Assim, a eliminação pura e sim-
da antes pelo próprio mundo. Ou me- ples da filosofia do pensamento marxia-
lhor, nesse processo, ora transcende, ora no, e a definição também pura e simples
é transcendida – condiciona por ter sido por uma ciência, a aproximação de algu-
condicionada, isto é, quando o faz, já o ma versão kantiana do conhecimento, ou
faz como resultado. Atente-se que, para seja, a substituição – de novo – pura
Marx, qualquer disjunção aqui é uma for- e simples da complexa questão da causa-
ma de renúncia da razão histórica e a for- lidade, substituindo-a, de algum modo,
ma pela qual ela pode ser edificada. pela mera interligação empírico/analítica
da convergência ou não da empiria, aca-
ba por desobrigar da revolução; esta pas-
sa a ser um mero apelo desiderativo, e
4_ Ciência “versus” Filosofia
não uma necessidade real.
ou saber especulativo “versus”
Num mundo inamovível e onde
saber da transformação? graça a inamovibilidade, essa desobriga-
É necessário ressaltar, ainda, passando ção conforta, um reconforto utópico sub-
para outro item, mas que guarda relação jetivo. Em outras palavras, quando o mun-
direta com o anterior, que a contraposi- do aparece incapaz de se mexer, e, em
ção que se pode encontrar em Marx, bem grande medida não se mexe, a única coisa
entendido, não é entre Ciência e Filoso- que se agita é o espírito. Aqui o espírito
fia, como querem alguns, mas a contra- volta a ser a revolução do mundo, tal co-
posição entre “saber” especulativo e sa- mo os neohegelianos de quem Marx nos
ber da transformação. Ou seja, um saber fala criticamente não apenas em A ideolo-
que saiba das coisas, para que estas pos- gia alemã, mas também, como é sabido,
sam ser alteradas; portanto, não é uma em outras obras do mesmo período.
ciência anormativa, digamos, que ele rei- Quando a solução materialista não
vindica por várias vezes e em vários mo- é capaz de dar conta do lado ativo, o idea-
lismo assume a cena e se expande para desse espaço de investigação, a tal ponto
entusiasmo da maioria. Não é sobre ques- que se tornou quase assustador nele aden-
tões dessa ordem que Marx se pronuncia trar, implicando, acima de tudo, uma pos-
na primeira tese Ad Feuerbach? tura irredutivelmente ambígua, feita de
Mas, retornando ao tema central cautela e ousadia. Assim, estas notas cons-
do presente artigo, depois desse necessá- tituem esforço de circunstância(s), mas
rio volteio, é preciso que fique claro que de uma circunstância, em especial, da
metodologia marxiana é objeto de uma vontade, até aqui muitas vezes contraria-
antiga preocupação, cifrada, grosso mo- da, de voltar-se longa e sistematicamente
do, na dupla convicção de que se trata de sobre o método de Marx. Sobre o tempo
um assunto decisivo, e de que é imperioso – inelástico – recai a responsabilidade,
saldar um antigo débito: atingir a elevação uma vez que o trabalho acadêmico e in-
de seu tratamento global e sistemático. telectual tem sua própria lógica e urgên-
Não será ainda, é óbvio, desta vez. cias; em especial, se o intelectual não po-
E não se trata de mera e simples limita- de fazer de seu próprio paladar e prefe-
ção de fôlego ou de tempo dos intelectu- rências a urgência maior. Daí porque,
ais que se voltaram sobre a questão. Para nessas notas, as questões apareçam, como
além disso, é fato que deve ser assumido disse Sartre em Questão de método, “abor-
em sua inteireza: versa sobre a reconheci- dadas de viés”. Mas esse viés não é des-
da complexidade do problema que, ao vio – com base em outro assunto tomado
longo do tempo, só fez complicar-se. como centro – nem aproximação fortui-
ta, imprópria ou casual – como um tro-
peço acidental sob o empuxo do objeto
5_ O materialismo marxiano: tratado –, mas, ao contrário, é proposta
as teses Ad Feuerbach de elevação imprescindível ao essencial,
Da promessa não cumprida de Marx, de sem o que o que está sendo feito não se
um dia “escrever um breve estudo sobre faz. O viés é, pois, remissão ao decisivo,
a lógica de Hegel”, aos nossos dias, me- é o recolher-se, por um momento que se-
deia mais de um século de interpretações, ja, à pedra de toque que motiva, em su-
imputações, polêmicas, ataques, contra- ma, toda iniciativa intelectual de alguma
propostas, simbioses e tenebrosas sim- seriedade, pois, valendo-me novamente
plificações, que acabaram por tomar conta das palavras de Sartre:
são, sem dizer do que consiste e qual é de-se atinar com o caroço racional da-
sua natureza, o que é feito pela elimina- quela: pelo estudo das coisas se encontra
ção do conteúdo preciso da frase, qual o coágulo racional da lógica hegeliana, ou
seja – a de que a dialética hegeliana é uma dia- seja, “as formas gerais do movimento”,
lética da cabeça, ou baseada na cabeça, do ou ba- porque “no entendimento positivo do
seado no pensamento, razão, faculdade de pen- existente /.../ [se] apreende cada forma
sar, entendimento, etc. Vale dizer, Marx não existente no fluxo do movimento” – ou
refere de imediato uma inversão, mas seja, quando se apreende o movimento
aponta ou denuncia antes, criticamente, das coisas pode-se expor “as formas ge-
o caráter, ou melhor, o elemento do qual rais do movimento”. De modo que o que
é extraída, melhor ainda, diz que a dialéti- Hegel supõe sejam os movimentos da
ca hegeliana, repousando sobre a cabeça, idéia nada mais são do que os movimen-
seria uma exposição das “formas gerais tos gerais das coisas, que ele expõe de mo-
do movimento do pensamento”, e con- do mistificado, lógico, especulativo. Essa
quanto tal se apresenta sob invólucro mistificação, logicismo ou especulativida-
mistificado. Na seqüência de seu raciocí- de está em supor que seja do pensamento
nio é que aparece uma proposta de inver- aquilo que é das coisas, dos seres. A inver-
são, não propriamente uma constatação são exigida por Marx é, portanto, de or-
de inversão: “É necessário virá-la, para dem ontológica. E o verdadeiro território
descobrir o caroço racional dentro do ôntico se deixa ver pelos apontamentos
envoltório místico” (Man muß sie umstül- da seqüência da exposição marxiana:
pen, um den rationellen Kern in der mystischen
Em sua forma mistificada, a dialéti-
Hülle zu entdecken) (Marx, 1983, p. 21). ca foi moda alemã, porque ela parecia glo-
Passar da cabeça às coisas, eis a rificar o existente. Em sua configura-
proposta de inversão; não se trata de fa- ção racional é um incômodo e um horror
zer inversões [...] na dialética hegeliana, para a burguesia e para os seus porta-vozes
mas passar da plataforma do pensamento à doutrinários, porque, no entendimen-
plataforma das coisas para descobrir o caro- to positivo do existente (positiven
ço racional na dialética de Hegel; não é Verständnis des Bestehenden), ela
uma proposta de correção da dialética inclui ao mesmo tempo o entendimento da
hegeliana para a passagem do ideal para o sua negação, da sua desaparição inevitá-
material e real, mas, a partir deste, po- vel; porque apreende cada forma existente
no fluxo do movimento, portanto também
com seu lado transitório; porque não se dei- tes conceitos e idéias particulares como
xa impressionar por nada e é, em sua essên- ‘autodeterminação’ de o conceito que se
cia, crítica e revolucionária (Marx, 1983, p. 21). desenvolve na história. É então também
natural que todas as relações dos homens
Note-se aqui a emergência a con-
possam ser deduzidas do conceito de ho-
cepção de ser em sua dinâmica proces-
mem, do homem representado, da essência
sual, origem, desenvolvimento que desem- do homem, de o homem. Assim proce-
boca em sua “desaparição inevitável”, ou deu a filosofia especulativa. O pró-
seja, em sua morte. Desaparição por con- prio Hegel confessa no final da Filo-
ta da própria lógica ou dinâmica das coi- sofia da História (1830) que ‘só consi-
sas, não por um pretendido movimento dera o progresso do conceito’ e que
dissolutivo da consciência como dialéti- expõe na história a ‘verdadeira teo-
ca negativa.2 dicéia’ (Marx e Engels, 1996, p. 76).
2 O ser, portanto, não é Podem-se encontrar antecedentes Na mesma obra, como reforço do
eterno, nem imutável como na textuais ao acima referido de crítica à es- exposto, sob o aspecto da recusa do espí-
metafísica – substância peculatividade mistificadora de Hegel, por rito de sistema em Filosofia, tem-se o se-
aristotélica. É interessante exemplo, em A ideologia alemã, nos se-
observar que o “ser para a guinte fragmento:
morte” é a exageração ou
guintes termos: Até em seus últimos esforços, a crítica ale-
absolutização do momento de Toda essa aparência, a aparência de que a mã não abandonou o terreno da filosofia.
extinção do ser mutável; nessa dominação de uma classe determinada é Longe de examinar seus pressupostos filo-
transgressão é conferida ao ser somente a dominação de certas idéias, de- sóficos gerais, todas as suas questões bro-
uma essência de algo quando
saparece natural, por si mesma, tão logo a taram de um sistema filosófico determina-
já não é ser; o ser é destacado
pelo momento em que deixa a dominação de classe deixe de ser a forma do, o sistema hegeliano. Não apenas em suas
forma de – ser, de ser da ordem social, tão logo não seja mais ne- respostas, mas já nas próprias questões ha-
humano, regredindo na escala cessário apresentar um interesse particu- via uma mistificação. Essa dependência de
do ser; o ser é ser pelo seu lar como geral ou ‘o geral’ como domi- Hegel é a razão pela qual nenhum desses
devir em não-ser. Em Hegel nante.3 Uma vez que as idéias dominan- novos críticos tentou uma crítica de con-
vai-se do nada ao ser; em
tes tenham sido separadas dos indivíduos junto do sistema hegeliano, embora cada
Heiddegger, do ser ao nada.
3 Como variante desse
dominantes e, principalmente, das rela- um deles afirme ter ultrapassado Hegel.
ções que nascem de uma dada fase do modo Em suas polêmicas contra Hegel, e entre
trecho, poder-se-ia ter: de
apresentar um interesse de produção, e que com isso se chegue ao re- eles a isto se limitavam, cada qual isola
particular, no plano prático, sultado de que na história as idéias sem- um aspecto do sistema hegeliano e o volta,
como interesse comum a pre dominam, é muito fácil abstrair dessas ao mesmo tempo, contra o sistema inteiro e
todos e, no plano teórico, idéias ‘a idéia’ etc. como o dominante na contra os aspectos isolados pelos outros.
como interesse geral. história e nesta medida conceber todos es- Inicialmente, tomam-se categorias hegelia-
nas puras, isentas de falsificação, tais os jovens hegelianos têm que lutar apenas
como as de substância e autoconsciência; contra essas ilusões da consciência. Uma
depois, as categorias são profanadas com vez que, segundo suas fantasias, as rela-
nomes mais mundanos, tais como os de ções humanas, toda a sua atividade, seus
Gênero, o Único, o Homem etc. (Marx e grilhões e seus limites são produtos de sua
Engels, 1996, p. 23-24). consciência, os jovens hegelianos, conse-
E depois de denunciar de Strauss a qüentemente, propõem aos homens este
postulado moral: trocar sua consciência
Stirner por se terem limitado à crítica das
atual pela consciência humana, crítica ou
representações religiosas, que passaram a
egoísta, removendo com isso seus limites.
englobar todas as formas de representa-
Assim, exigir a transformação da cons-
ção, de tal sorte que “toda relação domi- ciência vem a ser o mesmo que interpretar
nante era uma relação religiosa /.../ e o diferentemente o existente, isto é, reconhe-
mundo se viu canonizado”, Marx conduz cê-lo mediante outra interpretação. /.../
uma reflexão particularmente significativa: Os mais jovens dentre eles descobriram a
Os velhos hegelianos haviam compreen- expressão exata para qualificar sua ativi-
dido tudo, desde que tudo fora reduzido dade quando afirmam que lutam unica-
a uma categoria da lógica hegeliana. Os jo- mente contra ‘fraseologias’. Esquecem
vens hegelianos criticaram tudo, intro- apenas que opõem a estas fraseologias nada
duzindo sorrateiramente representações re- mais do que fraseologias e que, ao comba-
ligiosas por baixo de tudo ou proclamando terem as fraseologias deste mundo, não
tudo como algo teológico. Jovens e velhos he- combatem de forma alguma o mundo real
gelianos concordavam na crença no domínio existente. /.../ A nenhum destes filósofos
da religião, dos conceitos e do universal no ocorreu perguntar qual era a conexão en-
mundo existente. A única diferença era que tre a filosofia alemã e a realidade alemã, a
uns combatiam como usurpação o domínio conexão entre a sua crítica e o seu próprio
que os outros aclamavam como legítimo. meio material (Marx e Engels, 1996, p. 25-26).
Desde que os jovens hegelianos considera-
Esse longo extrato faz lembrar da
vam as representações, os pensamentos, os
conceitos – em uma palavra, os produtos
herança iluminista: contra o espírito de
da consciência, por eles tornada autônoma sistema em Filosofia, contra a especulati-
– como os verdadeiros grilhões dos homens vidade e o propósito prático do saber,
(exatamente da mesma maneira que os ve- marcando uma posição teórica ativa e
lhos hegelianos neles viam os autênticos la- operativa, que parte do reconhecimento
ços da sociedade humana), é evidente que do mundo e para este se volta.
Referências biliográficas