Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
*
Texto da comunicação feita no Seminário “Arquivo & Pesquisa - Caminhos sem fronteiras: o arquivo de
Sergio Buarque de Holanda”. Campinas, Siarq/Unicamp, 7 de maio de 1997.
2
não está necessariamente presente. Aquilo que, não estando presente, eu trago até mim
com as palavras. Trata-se de um problema fascinante, como fascinante é deter-se sobre
as palavras na obra de Sergio Buarque de Holanda.
Uma empresa como essa, porém, não é apenas fascinante, mas muito complexa
e, ao mesmo tempo, muito prazerosa. Isso porque acredito ser exatamente nas palavras
e em sua composição, ou seja, no texto , que se encontra em grande medida o valor da
contribuição que nos dá o autor de Raízes do Brasil, no terreno da história das idéias.
Quando preparava esta breve exposição, vinha -me à mente, com freqüência,
uma observação que ouvi, há bem pouco tempo, de um professor desta universidade. A
tentativa de acompanhar a aventura da linguagem na obra de Sergio Buarque de
Holanda o fazia lembrar de Montaigne, para quem importava sobretudo a maneira por
que algo é discutido, mais até do que aquilo que se elege para discutir. “Não se preste
atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão-somente à maneira por que as
trato”, diz Montaigne no capítulo “Dos Livros”, em seus Ensaios (Montaigne, Michel de.
Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. Montaigne. Os Pensadores . S.Paulo: Nova Cultural, 1996,
vol.1, p.349).
Talvez a primeira impressão disso tudo seja a de um simples jogo retórico, mas
decididamente não é este o caso. A atenção - que acredito que se deva dar - à “maneira
por que se diz“ é na verdade a atenção à forma pela qual se constrói a argumentação no
**
Mestre em Sociologia e doutorando em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas.
3
texto, isto é, à forma pela qual se convence o leitor, pela qual o leitor é envolvido pelas
palavras, pelos argumentos e pelos conceitos. No limite, talvez seja a maneira pela qual o
leitor é seduzido pelas palavras, convencido pelos argumentos e esclarecido através
dos conceitos.
Dito dessa forma, parece uma atividade amena, ou algo quase prosaico: uma
simples conversa com as fontes, com os documentos, ou seja, uma conversa com outros
4
textos. Só que aqui se estabelece, mais de que um amigável encontro, uma verdadeira
batalha com os outros textos. Um diálogo, de fato. Lembrando a etimologia da
expressão, o diálogo seria algo como o rasgar, o entrar pelo meio do logos . O que
decididamente não é uma tarefa simples, muito menos fruto de um contato
despreocupado e ameno com o texto.
Mas então o testemunho dos cronistas - para nos atermos aqui a um só exemplo
- não é uma fonte isenta. O terreno em que se movimentam as palavras desses
escritores coloniais, isto é, o campo da linguagem na crônica colonial, é já um campo de
batalha. Porque não é exatamente o campo da pura descrição. Nem é um campo onde
os nomes correspondam exatamente às coisas, para retornar ao problema inicial dessa
comunicação. A questão da significação é fundamental, se o historiador quiser entrar no
terreno do testemunho passado.
múltiplos. Não há univocidade nos vocábulos. Não há sequer uma linguagem “científica”
unívoca. Há - e sempre haverá - a batalha dos sentidos.
Quando o historiador entra no reino das palavras alheias, ele lida com um
estoque semântico que muitas vezes é riquíssimo, acessível somente através da
compreensão do texto, que o obriga praticamente a promover um reordenamento das
palavras, encontrando as conexões de sentido, para utilizar uma expressão weberiana,
que possam esclarecê-lo. Aliás, não é à toa que a idéia da “cultura” como “texto” apareça
para um antropólogo contemporâneo exatamente a partir de uma crença weberiana.
Lembro aqui de Geertz, é claro.
Aparentemente, tudo se inicia com uma crítica mordaz que faz o autor de Raízes
do Brasil a um texto de Carlos Guilherme Mota, em que se analisa o militarismo na
Colônia e onde, segundo Sergio Buarque, comete -se um equívoco com as palavras.
Porque, ainda de acordo com o crítico, Mota parece reforçar suas teses com uma
afirmação de Vilhena sobre a muita “gente policiada” que havia em Salvador, no século
XVIII. Para Sergio Buarque, Carlos Guilherme Mota teria caído numa armadilha, ao ler o
termo “policiada” como a maioria de nós o leríamos hoje. Ocorre que a “polícia” tem o
6
sentido expresso, no século XVIII, de “civilização”. Mas “civilização”, nesse nosso sentido
atual, é um termo da segunda metade do século XVIII, que ganharia de fato a rua com o
sucesso da Revolução Francesa... Nós, de nosso lado, sabemos da importância, por
exemplo, desse termo “civilização”, para a própria conceituação da “cultura” no
pensamento alemão. As considerações muito fecundas de Norbert Elias vão exatamente
atrás desses sentidos múltiplos, ou, dito de outra forma, desses sentidos cambiantes.
Lembre-se que se a história é viva, é movimento e processo, é exatamente porque quem
a faz são os homens, mas não só os donos da política oficial. E há, indubitavelmente, a
história das palavras, que também é viva, é processo e movimento. Quem faz essa
história também são os homens, mas não só os donos das letras, ou os donos das
palavras.
Pois a crítica a Carlos Guilherme Mota vai exatamente nessa direção: segundo
Sergio Buarque, há uma espécie de “petrificação” da palavra no texto daquele
historiador, ou em sua postura diante de certas palavras. (Não à toa, as severas críticas
de Mota aos “explicadores” do Brasil recairão sobre o ecletismo de sua terminologia,
revelando, segundo ele, uma percepção generalizante da cultura brasileira, desapegada
da dinâmica social das classes. Cf. Mota, Carlos Guilherme. Os fazendeiros do ar. O
Estado de S. Paulo, 2 set.1975. Suplemento Literário, n.840.) Avançando o raciocínio de
Sergio Buarque e misturando um pouco das minhas palavras às dele, o excesso de zelo
com uma linguagem “científica” acabaria imobilizando as palavras e sufocando seus
sentidos latentes. É como se um universo totalmente turbulento, em que os sentidos se
compõem, se confrontam e se contraditam, fosse “domado” de uma forma
completamente tirânica, para se chegar, digamos assim, ao porto seguro da
univocidade, ou da pretensa “cientificidade”.
A relação dos homens com as palavras, se esses homens e essas palavras não
quiserem se acomodar completamente, deverá necessariamente ser tensa. O bem
escrever, como se sabe, nunca é completamente prazeroso, nunca é uma atividade
amena. É uma guerra com as palavras. Quero crer que vá ficando claro que a
encruzilhada em que nos encontramos, nesse ponto, é nossa e é dos modernistas. Afinal,
o problema deles era também o da linguagem.
Isso pode nos lembrar as palavras do jovem Sergio Buarque, com seus 22 anos
de idade, escrevendo na revista Estética: “As palavras depositaram tamanha confiança
no espírito crédulo dos homens, que estes acabaram por lhes voltar as costas”
(Holanda, Sergio Buarque de. Perspectivas. In: O Espírito e a Letra: Estudos de Crítica
Literária. S.Paulo: Cia. das Letras, 1996, p.214). Isto é, toda a tensão entre o mundo e a
expressão do mundo, de que nasce toda a arte (e toda a ciência, por que não?), termina
por ser elidida se os homens se acreditarem donos das palavras, ou donos do sentido
das palavras.
No artigo em que se inicia essa polêmica com Carlos Guilherme Mota, intitulado
“Sobre uma doença infantil da historiografia” e publicado no Suplemento Literário d’O
Estado de S. Paulo em 1973, Sergio Buarque chega a comparar essa crença absurda
nas palavras à crença nos fatos, que pautava antigamente (?) muitos historiadores.
Então, diz ele,
“não há como negar que a superstição do fato, o fato puro, ante o qual um
historiador se omitia tanto quanto possível, provinha de um afã louvável, mas falacioso,
de objetividade. Ora, precisamente o mesmo se pode dizer do tipo de historiografia
que, com modos parecidos, procura preencher a lacuna alargada com o declínio da
história simplesmente fatual. A diferença entre uma e outra é grande: à velha
8
Acidez, diria eu, devidamente retornada à origem, já que essa crítica é, ela
mesma, uma torrente de palavras ácidas. Só que, diferentemente das “palavras
expurgadas e palavras-chaves”, essas palavras do historiador pretendem justamente
exorcizar a magia do “vocábulo puro”. É de qualquer forma muito interessante: conclama-
se o léxico para exorcizar o próprio léxico.
sarcástico que aparece também no artigo, embora um pouco atenuado. Por exemplo, no
que se refere a essa utilização da palavra “fatal”, diz o historiador:
“Na aversão de G. M. [Giselda Mota] pela palavra ‘fatal’, aversão que não revela
por inúmeras outras que podem ser entendidas ainda mais arbitrariamente (...) é
possível que tivesse em mente o latim fatum , que apesar de várias acepções toleráveis
numa proposição científica, admite outras bastante misteriosas e naturalmente
condenáveis. Porque aquele que só se quisesse valer de vocábulos perfeitamente
‘neutros’ e ‘unívocos’, apelando para a etimologia, acabaria sem poder avançar nem
recuar no seu trabalho. Sobretudo recuar não lhe seria lícito, se fosse imaculado
decoro, pois quem não sabe que ‘recuar’ pela origem é gesto pouco decente e só
explicável por meio de palavrão? Mas ‘palavrão’? Trata-se do aumentativo de palavra,
que vem de parábola, e cientista não pode falar por meio de parábolas, senão cai em
literatura .” (Siarq/Unicamp, Fundo Privado SBH, P.11, Cp.349.)
do uso das palavras (...)é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem
sua língua materna. Chamarei esses jogos de ‘jogos de linguagem’, e falarei muitas
vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem. E poder-se-iam
chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e
da repetição da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao se brincar
de roda. Chamarei também de ‘jogos de linguagem’ o conjunto da linguagem e das
atividades com as quais está interligada.” (Wittgenstein, Ludwig. Investigações
Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. Wittgenstein. Os Pensadores . S.Paulo: Nova
Cultural, 1996, p.29-30.)
“´Entre a ordem e sua execução há um abismo. Este deve ser preenchido pela
compreensão.’ ‘Apenas compreendendo é que sabemos que temos de fazer ISTO. A
ordem - na verdade, são apenas sons, traços de tinta.’ Todo signo sozinho parece
morto. O que lhe dá vida? - No uso, ele vive . Tem então a viva respiração em si? - Ou o
uso é sua respiração?” (Idem, ibidem, p.129.)
Creio que o que nos resta de mais instigante seja essa espécie de “guerra”, ou
“batalha” a que está fadado (esse o verdadeiro fatum ...) todo o escritor, todo o crítico,
historiador ou sociólogo. Uma batalha com as palavras, contra o enfeitiçamento da nossa
inteligência (idéia de Wittgenstein), buscando, no fim de tudo, recuperar a palavra no seio
do texto e do contexto .
Mas nós já vimos que esse signo respira no seu uso. E que a palavra respira na
imaginação do leitor, até mesmo no seu ouvido (há muito de musicalidade em Raízes do
Brasil). O leitor é quem mobiliza as palavras, encontrando o fio da exposição. É ele quem
cria novos fios para explicar a exposição, recriando a trama do texto. O leitor é portanto
um interlocutor ativo e pressuroso.
Se a prosa ensaística é boa - e isso pode-se aprender com Adorno, por exemplo
-, não há espaço para as afirmações categóricas, para o texto fechado. Essa espécie de
círculo de eterno retorno que todo o texto faz, que é o caminho da própria significação -
do signo a nós e de nós ao signo, das palavras ao leitor e do leitor às palavras -, essa
espécie de movimento circular tem sempre o leitor como mediação. Mais que isso, tem o
leitor como motor, como aquele que movimenta o texto, dando partida à caixinha de
música.
não são desenhados com a maior firmeza de traços, se a forma permanece um pouco
indefinida, como que desaparecendo numa sombra, essa impressão de secura e
rigidez [das pinturas anteriores] será evitada. Aí está a famosa invenção de Leonardo a
que os italianos chamam sfumato - um lineamento esbatido e cores adoçadas que
permitem a uma forma fundir-se com outra e deixar sempre algo para alimentar a
nossa imaginação”. (Gombrich, E.H. A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. R.Janeiro:
LTC, 1993, p. 228.)
É uma opção sem dúvida muito radical, que delega ao leitor um papel talvez
excessivamente importante. Mas, ainda assim, acredito ser esta uma das melhores
maneiras para se adentrar os caminhos que a obra de Sergio Buarque abre a todos nós,
seus leitores. Porque as palavras só podem despertar no momento em que nos
apossamos delas. No limite, elas somente respiram no instante em que toda a reverência
é perdida, em que toda a autoridade do vocábulo se esvai, e somos capazes de brincar
com as palavras alheias.