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Sergio Buarque de Holanda e as palavras*

Pedro Meira Monteiro**

Inicialmente, agradeço ao Siarq da UNICAMP pelo convite que me foi feito e


aproveito o ensejo para cumprimentá-los pela iniciativa deste ciclo de seminários, de que
este, sobre Sergio Buarque de Holanda, é o primeiro. Creio que, habitualmente,
estejamos acostumados a efetuar uma radical separação entre o trabalho dos
bibliotecários em geral, e dos arquivistas em particular, e o trabalho dos pesquisadores.
Como se a uns coubesse a reflexão e a outros apenas o ordenamento do material de
pesquisa. No entanto, ordenamento do material e reflexão são dois momentos
intimamente ligados, já que todo o ordenamento é também uma reflexão e, por outro
lado, toda a reflexão é necessariamente um ordenamento. Portanto, acredito
sinceramente que este seja um momento privilegiado, para pesquisadores e arquivistas,
porque de certo modo reencontramos aqui a raiz comum de nossos trabalhos, que não
teriam sentido sem os dois lados desta moeda.

Quanto ao título desta comunicação, talvez soe excessivamente pretensioso. E


seguramente o é. Ocorre que nós somos muitas vezes chamados a nomear essas
apresentações antes que se tenha escrito ou preparado algo. Este é o meu caso, neste
momento. Pode acontecer então de haver um descompasso entre o título e o conteúdo
da fala, entre o nome da apresentação e a expectativa que ele pode criar, isto é, um
descompasso entre o nome e as coisas de que se quer falar.

De qualquer maneira, esse já é um fascinante problema de linguagem. A


distância do nome à coisa, ou do nome àquilo que se quer expressar, traz até nós um
problema filosófico, que é o nascimento da linguagem e o nascimento, por assim dizer,
das próprias palavras. As palavras afinal designam, ou pretendem significar, aquilo que

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Texto da comunicação feita no Seminário “Arquivo & Pesquisa - Caminhos sem fronteiras: o arquivo de
Sergio Buarque de Holanda”. Campinas, Siarq/Unicamp, 7 de maio de 1997.
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não está necessariamente presente. Aquilo que, não estando presente, eu trago até mim
com as palavras. Trata-se de um problema fascinante, como fascinante é deter-se sobre
as palavras na obra de Sergio Buarque de Holanda.

Uma empresa como essa, porém, não é apenas fascinante, mas muito complexa
e, ao mesmo tempo, muito prazerosa. Isso porque acredito ser exatamente nas palavras
e em sua composição, ou seja, no texto , que se encontra em grande medida o valor da
contribuição que nos dá o autor de Raízes do Brasil, no terreno da história das idéias.

Ao sugerir que a contribuição de Sergio Buarque venha sobretudo do campo da


linguagem, não quero dizer que ele se preocupe unicamente com a forma da exposição
e, assim procedendo, se despreocupe com o conteúdo, relegando-o a segundo plano.
Se tal cisão entre conteúdo e forma já de si não é muito convincente, no caso de nosso
autor ela convence menos ainda. Eu até diria - não sem certa pretensão - que essa cisão
não tem sentido prático algum para a análise da maioria dos textos de Sergio Buarque.
Porque, na melhor tradição alemã, a resolução do problema da compreensão na obra do
historiador não se faz senão pelas palavras, através delas e mesmo nelas . Mas vamos
devagar.

Quando preparava esta breve exposição, vinha -me à mente, com freqüência,
uma observação que ouvi, há bem pouco tempo, de um professor desta universidade. A
tentativa de acompanhar a aventura da linguagem na obra de Sergio Buarque de
Holanda o fazia lembrar de Montaigne, para quem importava sobretudo a maneira por
que algo é discutido, mais até do que aquilo que se elege para discutir. “Não se preste
atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão-somente à maneira por que as
trato”, diz Montaigne no capítulo “Dos Livros”, em seus Ensaios (Montaigne, Michel de.
Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. Montaigne. Os Pensadores . S.Paulo: Nova Cultural, 1996,
vol.1, p.349).

Talvez a primeira impressão disso tudo seja a de um simples jogo retórico, mas
decididamente não é este o caso. A atenção - que acredito que se deva dar - à “maneira
por que se diz“ é na verdade a atenção à forma pela qual se constrói a argumentação no

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Mestre em Sociologia e doutorando em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas.
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texto, isto é, à forma pela qual se convence o leitor, pela qual o leitor é envolvido pelas
palavras, pelos argumentos e pelos conceitos. No limite, talvez seja a maneira pela qual o
leitor é seduzido pelas palavras, convencido pelos argumentos e esclarecido através
dos conceitos.

A preocupação com a forma - ou com a linguagem - começa assim, segundo


entendo, a ganhar um sentido muito especial na análise da obra de Sergio Buarque,
especialmente na apreciação de seu texto. Aliás, depois de alguns anos de uma
trabalhosa pesquisa sobre Raízes do Brasil, convenci-me de que análise e apreciação,
ou análise e fruição, são dois momentos indissociáveis para se estudar esse autor.

Por um lado, isso é muito interessante, porque torna agradável a leitura e a


releitura do texto (constantes numa pesquisa “monográfica” como essa), mas, por outro
lado, é um dado um pouco perigoso, na medida em que facilmente se baixa a guarda
crítica, já que o enlevo com as palavras é notável. O próprio jogo imagético que as
palavras produzem, ou reproduzem, é incrivelmente envolvente e convence com muita
facilidade.

Deixando-me levar um pouco por um veio barroco - que não me parece


completamente ausente da prosa de nosso autor, embora não me pareça
fundamentalmente explicativo de seu texto - e lembrando um pouco uma época passada,
eu diria que Sergio Buarque se empenha em trazer à luz - aí quase a consubstanciação
da imagem - aquilo que se encontra oculto no mundo. Claro que não é uma revelação de
ordem divina, como era na imaginação barroca, mas de qualquer modo o engenho do
historiador opera muitas vezes de modo a maravilhar as vistas de quem lê, ouve ou vê
(um tema aliás muito caro a Sergio Buarque em Visão do Paraíso).

Fechando esse parêntese barroco um pouco temerário, suponho que a invenção,


ainda assim, seja um dado fundante na escrita do historiador. Uma invenção constante,
de alguém que toma para si certos documentos, certas fontes, e dialoga com eles. O que
significa dizer que existiria algo como uma conversa com os documentos.

Dito dessa forma, parece uma atividade amena, ou algo quase prosaico: uma
simples conversa com as fontes, com os documentos, ou seja, uma conversa com outros
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textos. Só que aqui se estabelece, mais de que um amigável encontro, uma verdadeira
batalha com os outros textos. Um diálogo, de fato. Lembrando a etimologia da
expressão, o diálogo seria algo como o rasgar, o entrar pelo meio do logos . O que
decididamente não é uma tarefa simples, muito menos fruto de um contato
despreocupado e ameno com o texto.

O que se estabelece é fundamentalmente uma tensão entre dois pólos: de um


lado o texto que se quer interpretar, com o qual se quer dialogar, e de outro lado o texto
do próprio escritor, do historiador. É claro que esse diálogo é diferente, por exemplo,
daquele diálogo que porventura existe na atividade do crítico literário. Porque o texto
literário naturalmente não tem a pretensão, necessariamente ao menos, de dizer o que
aconteceu de fato. Já a crônica da época colonial, por exemplo, tem a pretensão de
narrar - ou descrever - fidedignamente o que se via. É claro que ao narrar fidedignamente
o que se via, ela dá um testemunho veraz não tanto do que se via, mas d o como se via.

Dá um testemunho portanto de uma sensibilidade passada. A menos que se


acredite na descrição do “fato puro”, ou nessa superstição do “fato puro”, torna -se
impossível imaginar que o historiador vá entregar ao leitor um material textual
completamente isento, imparcial. Isso é quase óbvio, tratando-se, como se trata, de um
autor marcadamente anti -positivista, como Sergio Buarque de Holanda.

Mas então o testemunho dos cronistas - para nos atermos aqui a um só exemplo
- não é uma fonte isenta. O terreno em que se movimentam as palavras desses
escritores coloniais, isto é, o campo da linguagem na crônica colonial, é já um campo de
batalha. Porque não é exatamente o campo da pura descrição. Nem é um campo onde
os nomes correspondam exatamente às coisas, para retornar ao problema inicial dessa
comunicação. A questão da significação é fundamental, se o historiador quiser entrar no
terreno do testemunho passado.

Eu diria que o historiador - pensando, claro, em Sergio Buarque - deve fazer um


trabalho hermenêutico com os documentos com que lida. Afinal, não são dados isolados,
ou variáveis discretas, segundo uma linguagem matemática, que se encontram no texto.
Pelo contrário, o texto é a própria significação em curso, em movimento. O texto,
qualquer que seja, lida com um estoque de palavras que não são isentas de significados
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múltiplos. Não há univocidade nos vocábulos. Não há sequer uma linguagem “científica”
unívoca. Há - e sempre haverá - a batalha dos sentidos.

Quando o historiador entra no reino das palavras alheias, ele lida com um
estoque semântico que muitas vezes é riquíssimo, acessível somente através da
compreensão do texto, que o obriga praticamente a promover um reordenamento das
palavras, encontrando as conexões de sentido, para utilizar uma expressão weberiana,
que possam esclarecê-lo. Aliás, não é à toa que a idéia da “cultura” como “texto” apareça
para um antropólogo contemporâneo exatamente a partir de uma crença weberiana.
Lembro aqui de Geertz, é claro.

Encontrar ou reencontrar conexões de sentido é um desafio semiótico a que


todos nós que freqüentamos os arquivos estamos fadados. Aliás, aproveitando que o
mote desta reunião é “Arquivo & Pesquisa”, retomo aqui uma polêmica interessantíssima
que envolve alguns historiadores - uns talvez “mais”, outros talvez “menos” científicos - em
torno do tema das palavras. Uma polêmica que pode-se acompanhar através de alguns
livros e artigos, mas também através da documentação pessoal de Sergio Buarque de
Holanda, guardada pelo Arquivo Central desta universidade.

Trata-se de uma polêmica razoavelmente conhecida, envolvendo os


historiadores Carlos Guilherme Mota, Giselda Mota e o próprio Sergio Buarque. Alfredo
Bosi entra literalmente sem querer nessa polêmica, mas, sendo sua participação de fato
periférica, abstenho-me de inclui-lo em minhas considerações. (Há neste arquivo uma
carta de Bosi, datada de 1980, desfazendo qualquer mal-entendido a propósito de sua
postura pessoal em relação a Sergio Buarque de Holanda, sua obra e suas posições
ideológicas.)

Aparentemente, tudo se inicia com uma crítica mordaz que faz o autor de Raízes
do Brasil a um texto de Carlos Guilherme Mota, em que se analisa o militarismo na
Colônia e onde, segundo Sergio Buarque, comete -se um equívoco com as palavras.
Porque, ainda de acordo com o crítico, Mota parece reforçar suas teses com uma
afirmação de Vilhena sobre a muita “gente policiada” que havia em Salvador, no século
XVIII. Para Sergio Buarque, Carlos Guilherme Mota teria caído numa armadilha, ao ler o
termo “policiada” como a maioria de nós o leríamos hoje. Ocorre que a “polícia” tem o
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sentido expresso, no século XVIII, de “civilização”. Mas “civilização”, nesse nosso sentido
atual, é um termo da segunda metade do século XVIII, que ganharia de fato a rua com o
sucesso da Revolução Francesa... Nós, de nosso lado, sabemos da importância, por
exemplo, desse termo “civilização”, para a própria conceituação da “cultura” no
pensamento alemão. As considerações muito fecundas de Norbert Elias vão exatamente
atrás desses sentidos múltiplos, ou, dito de outra forma, desses sentidos cambiantes.
Lembre-se que se a história é viva, é movimento e processo, é exatamente porque quem
a faz são os homens, mas não só os donos da política oficial. E há, indubitavelmente, a
história das palavras, que também é viva, é processo e movimento. Quem faz essa
história também são os homens, mas não só os donos das letras, ou os donos das
palavras.

Pois a crítica a Carlos Guilherme Mota vai exatamente nessa direção: segundo
Sergio Buarque, há uma espécie de “petrificação” da palavra no texto daquele
historiador, ou em sua postura diante de certas palavras. (Não à toa, as severas críticas
de Mota aos “explicadores” do Brasil recairão sobre o ecletismo de sua terminologia,
revelando, segundo ele, uma percepção generalizante da cultura brasileira, desapegada
da dinâmica social das classes. Cf. Mota, Carlos Guilherme. Os fazendeiros do ar. O
Estado de S. Paulo, 2 set.1975. Suplemento Literário, n.840.) Avançando o raciocínio de
Sergio Buarque e misturando um pouco das minhas palavras às dele, o excesso de zelo
com uma linguagem “científica” acabaria imobilizando as palavras e sufocando seus
sentidos latentes. É como se um universo totalmente turbulento, em que os sentidos se
compõem, se confrontam e se contraditam, fosse “domado” de uma forma
completamente tirânica, para se chegar, digamos assim, ao porto seguro da
univocidade, ou da pretensa “cientificidade”.

A crença absoluta nos vocábulos seria então uma espécie de entrega ao


conteúdo inequívoco e inquestionável do sentido único. O medo da imprecisão vocabular
terminaria por esterilizar o pensamento e a imaginação. A linguagem científica pode ser
uma prisão, se houver a crença incondicional no rótulo do “científico”. Se o historiador
acredita unicamente naquilo que o estatuto científico permite, ele talvez se tranque num
universo semântico completamente limitado, porque definitivamente estabelecido.
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A relação dos homens com as palavras, se esses homens e essas palavras não
quiserem se acomodar completamente, deverá necessariamente ser tensa. O bem
escrever, como se sabe, nunca é completamente prazeroso, nunca é uma atividade
amena. É uma guerra com as palavras. Quero crer que vá ficando claro que a
encruzilhada em que nos encontramos, nesse ponto, é nossa e é dos modernistas. Afinal,
o problema deles era também o da linguagem.

Isso pode nos lembrar as palavras do jovem Sergio Buarque, com seus 22 anos
de idade, escrevendo na revista Estética: “As palavras depositaram tamanha confiança
no espírito crédulo dos homens, que estes acabaram por lhes voltar as costas”
(Holanda, Sergio Buarque de. Perspectivas. In: O Espírito e a Letra: Estudos de Crítica
Literária. S.Paulo: Cia. das Letras, 1996, p.214). Isto é, toda a tensão entre o mundo e a
expressão do mundo, de que nasce toda a arte (e toda a ciência, por que não?), termina
por ser elidida se os homens se acreditarem donos das palavras, ou donos do sentido
das palavras.

O que seria então voltar as costas às palavras? Seria justamente acreditar


plenamente que o seu sentido já está estabelecido. Acreditar que não há o que discutir,
que não há guerra a ser deflagrada. Pois os modernistas teimaram em deflagrar uma
guerra. E nesse ponto, da “guerra” com as palavras, o historiador, o crítico literário e o
militante modernista se encontram.

No artigo em que se inicia essa polêmica com Carlos Guilherme Mota, intitulado
“Sobre uma doença infantil da historiografia” e publicado no Suplemento Literário d’O
Estado de S. Paulo em 1973, Sergio Buarque chega a comparar essa crença absurda
nas palavras à crença nos fatos, que pautava antigamente (?) muitos historiadores.
Então, diz ele,

“não há como negar que a superstição do fato, o fato puro, ante o qual um
historiador se omitia tanto quanto possível, provinha de um afã louvável, mas falacioso,
de objetividade. Ora, precisamente o mesmo se pode dizer do tipo de historiografia
que, com modos parecidos, procura preencher a lacuna alargada com o declínio da
história simplesmente fatual. A diferença entre uma e outra é grande: à velha
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superstição do fato puro substitui-se a nova superstição do vocábulo puro ou seja


perfeitamente unívoco, petrificado, e válido para todo o sempre. Resultado: em vez
daquelas coleções de fatos e datas rigorosamente obtidas por métodos críticos
conduzidos até a última perfeição, estaríamos para assistir ao surto de uma desinteria
torrencial de palavras expurgadas e palavras-chave, próprias para balizar o fluxo dos
acontecimentos. Como sucede a todos os simplificadores, os vassalos desses critérios
põem neles uma inexpugnável confiança e voltam-se contra os mais céticos com uma
suficiência e um glorioso azedume, parente daquela acidez de mulher feia de que
falava, se não me engano, o célebre Dr. Johnson há coisa de dois séculos” (Holanda,
Sergio Buarque de. Sobre uma doença infantil da historiografia. O Estado de S. Paulo,
17-24 jun.1973. Suplemento Literário, p.6).

Acidez, diria eu, devidamente retornada à origem, já que essa crítica é, ela
mesma, uma torrente de palavras ácidas. Só que, diferentemente das “palavras
expurgadas e palavras-chaves”, essas palavras do historiador pretendem justamente
exorcizar a magia do “vocábulo puro”. É de qualquer forma muito interessante: conclama-
se o léxico para exorcizar o próprio léxico.

Exorcizar era aliás uma tarefa muito própria do historiador, no entender de


Sergio Buarque. A crítica a Giselda Mota, que acompanha a crítica a Carlos Guilherme
Mota, vai também nessa direção, procurando exorcizar as palavras, subtraindo delas
qualquer conteúdo mágico. Daí as palavras muito duras dirigidas à historiadora, que
preparara e comentara uma “Bibliografia Crítica” da Independência brasileira, no livro
1822: Dimensões, organizado pelo mesmo Carlos Guilherme.

A simples utilização da palavra “fatal”, numa frase de um trabalho de Sergio


Buarque e em alguns outros textos, pareceu suficiente a Giselda Mota para detectar,
nesses autores, alguma “fatalidade” na análise da história. Há aqui no Siarq, em meio à
correspondência do autor de Raízes do Brasil (a publicar-se muito brevemente, graças à
diligência de Vera Cristina Neumann), uma carta escrita por ele a Carlos Guilherme
Mota, carta que talvez nunca tenha sido remetida, tendo porém servido largamente para a
feitura daquele artigo publicado pelo O Estado de S. Paulo. Em tal carta, há um tom
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sarcástico que aparece também no artigo, embora um pouco atenuado. Por exemplo, no
que se refere a essa utilização da palavra “fatal”, diz o historiador:

“Na aversão de G. M. [Giselda Mota] pela palavra ‘fatal’, aversão que não revela
por inúmeras outras que podem ser entendidas ainda mais arbitrariamente (...) é
possível que tivesse em mente o latim fatum , que apesar de várias acepções toleráveis
numa proposição científica, admite outras bastante misteriosas e naturalmente
condenáveis. Porque aquele que só se quisesse valer de vocábulos perfeitamente
‘neutros’ e ‘unívocos’, apelando para a etimologia, acabaria sem poder avançar nem
recuar no seu trabalho. Sobretudo recuar não lhe seria lícito, se fosse imaculado
decoro, pois quem não sabe que ‘recuar’ pela origem é gesto pouco decente e só
explicável por meio de palavrão? Mas ‘palavrão’? Trata-se do aumentativo de palavra,
que vem de parábola, e cientista não pode falar por meio de parábolas, senão cai em
literatura .” (Siarq/Unicamp, Fundo Privado SBH, P.11, Cp.349.)

É interessante como a “brincadeira” com as palavras e um tom até um pouco


deselegante - sejamos francos - traz, através desse documento privado, um problema
fundamental da filosofia da linguagem, de extrema importância para Sergio Buarque.
Recuar (desculpem-me a expressão chula...) até a origem das palavras significa
porventura refazer algumas daquelas cadeias com que os lingüistas às vezes procuram
iluminar o desenvolvimento mesmo da linguagem.

Retomando especificamente um filósofo muito caro a Sergio Buarque, cuja teoria


seria inclusive empunhada contra Giselda Mota, venho a supor que nessa “brincadeira”
deliberada com os vocábulos se recupere o sentido original da própria linguagem e o
aspecto lúdico, enfim, do falar e do comunicar.

Retomemos então Wittgenstein para esclarecer, através das suas “Investigações


Filosóficas”, o sentido daquilo que ele denomina “jogos de linguagem”. Daí aliás o lúdico
do falar. Diz o seguinte o filósofo vienense:

“Na práxis do uso da linguagem, um parceiro enuncia as palavras, o outro age


de acordo com elas; na lição de linguagem, porém, encontrar-se-á este processo: o
que aprende denomina os objetos. (...)Podemos também imaginar que todo o processo
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do uso das palavras (...)é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem
sua língua materna. Chamarei esses jogos de ‘jogos de linguagem’, e falarei muitas
vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem. E poder-se-iam
chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e
da repetição da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao se brincar
de roda. Chamarei também de ‘jogos de linguagem’ o conjunto da linguagem e das
atividades com as quais está interligada.” (Wittgenstein, Ludwig. Investigações
Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. Wittgenstein. Os Pensadores . S.Paulo: Nova
Cultural, 1996, p.29-30.)

A proposição do jogo é fundamental. Mas onde se dá o jogo? Onde ele se


apóia? Como se estabelecem as regras, o alcance e os limites do jogo de linguagem,
em que se movimentam as palavras, os signos? Apoiando-se em Wittgenstein, Sergio
Buarque dirá que o signo ganha sentido apenas no seu uso. Aqui retomo o trecho das
Investigações Filosóficas de que o historiador se utiliza em sua carta, porém alargando
um pouco a citação. Referindo-se então àquele parceiro que age de acordo com as
regras que são ditadas por uma determinada pessoa, diz o seguinte o nosso filósofo:

“´Entre a ordem e sua execução há um abismo. Este deve ser preenchido pela
compreensão.’ ‘Apenas compreendendo é que sabemos que temos de fazer ISTO. A
ordem - na verdade, são apenas sons, traços de tinta.’ Todo signo sozinho parece
morto. O que lhe dá vida? - No uso, ele vive . Tem então a viva respiração em si? - Ou o
uso é sua respiração?” (Idem, ibidem, p.129.)

Esvaziam-se portanto de sentido o puro som, as palavras sozinhas, os “riscos de


tinta”, a mera imagem (o significante , nos termos de outro lingüista), para se encontrar a
significação no uso dos signos. Por isso essa bonita imagem: o signo respira no uso. Ele
precisa de nós para respirar. A palavra precisa do leitor para viver.

Poderíamos estender-nos em citações e em referências, especialmente porque


há questões particularmente curiosas e trechos realmente hílares nessa carta, mas minha
intenção não é, de modo algum, retomar a polêmica em si, ou reavivar quaisquer
fantasmas, e sim verificar o que pode haver de estimulante nela.
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Creio que o que nos resta de mais instigante seja essa espécie de “guerra”, ou
“batalha” a que está fadado (esse o verdadeiro fatum ...) todo o escritor, todo o crítico,
historiador ou sociólogo. Uma batalha com as palavras, contra o enfeitiçamento da nossa
inteligência (idéia de Wittgenstein), buscando, no fim de tudo, recuperar a palavra no seio
do texto e do contexto .

O que Sergio Buarque reclama fundamentalmente de Giselda Mota, além de


alguns erros algo grosseiros que ela parece cometer em sua listagem bibliográfica, é a
preocupação excessiva com o vocábulo, em detrimento da sintaxe. Porque é na sintaxe
que se articulam afinal os sentidos do texto. É na sintaxe, ou seja, na composição, na
semeadura das palavras, que vive o vocábulo, que respira o signo.

Mas nós já vimos que esse signo respira no seu uso. E que a palavra respira na
imaginação do leitor, até mesmo no seu ouvido (há muito de musicalidade em Raízes do
Brasil). O leitor é quem mobiliza as palavras, encontrando o fio da exposição. É ele quem
cria novos fios para explicar a exposição, recriando a trama do texto. O leitor é portanto
um interlocutor ativo e pressuroso.

Se a prosa ensaística é boa - e isso pode-se aprender com Adorno, por exemplo
-, não há espaço para as afirmações categóricas, para o texto fechado. Essa espécie de
círculo de eterno retorno que todo o texto faz, que é o caminho da própria significação -
do signo a nós e de nós ao signo, das palavras ao leitor e do leitor às palavras -, essa
espécie de movimento circular tem sempre o leitor como mediação. Mais que isso, tem o
leitor como motor, como aquele que movimenta o texto, dando partida à caixinha de
música.

Lembro-me, bem a propósito, de uma observação de Ernst Gombrich em sua A


História da Arte , exatamente sobre o movimento na pintura, ou sobre a vida nos
quadros. Gombrich pergunta por que as figuras retratadas por Leonardo da Vinci
contemplam mais o movimento que as figuras retratadas por pintores anteriores? A
resposta é a seguinte:

“...só Leonardo encontrou a verdadeira solução para o problema [do


movimento]. O pintor deve deixar ao espectador algo para adivinhar. Se os contornos
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não são desenhados com a maior firmeza de traços, se a forma permanece um pouco
indefinida, como que desaparecendo numa sombra, essa impressão de secura e
rigidez [das pinturas anteriores] será evitada. Aí está a famosa invenção de Leonardo a
que os italianos chamam sfumato - um lineamento esbatido e cores adoçadas que
permitem a uma forma fundir-se com outra e deixar sempre algo para alimentar a
nossa imaginação”. (Gombrich, E.H. A História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. R.Janeiro:
LTC, 1993, p. 228.)

Pensando simultaneamente na pintura e na escritura, os espaços apenas


parcialmente definidos, por conta do sfumato , são aqueles espaços em que adentra o
olhar do espectador, dando partida à sua imaginação. É daí, por certo, que nasce o
movimento. É daí que a figura desperta de seu sono de Bela Adormecida e respira.

A prosa de Sergio Buarque advém de uma semeadura muito bem pensada.


Com ela, deixam-se espaços vazios entre as palavras para que o leitor os preencha com
a imaginação. Para que possa encontrar, enfim, a sintaxe que aproxime e amalgame as
palavras, criando o discurso. Se o leitor é quem no fundo vai criar, ou recriar, o discurso,
é porque é ele quem vai dar vida aos signos, quem vai fazê-los respirar. O uso da
palavra, quem faz é o leitor, quase tanto quanto o escritor.

É uma opção sem dúvida muito radical, que delega ao leitor um papel talvez
excessivamente importante. Mas, ainda assim, acredito ser esta uma das melhores
maneiras para se adentrar os caminhos que a obra de Sergio Buarque abre a todos nós,
seus leitores. Porque as palavras só podem despertar no momento em que nos
apossamos delas. No limite, elas somente respiram no instante em que toda a reverência
é perdida, em que toda a autoridade do vocábulo se esvai, e somos capazes de brincar
com as palavras alheias.

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