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αὐτοδίδακτος δ᾽ εἰμί,
Autodidata sou:
θεὸς δέ μοι ἐν
é que o deus, dentro de mim,
φρεσὶν οἴμας
e dentro da minha vontade mental
παντοίας ἐνέφυσεν:
todas as coisas entranhou...
Barthes: s/d: 21
Tanto na poesia homérica quanto na prosa influenciada pelo dialeto jônico
(musicalmente “homérica”) como a de Heródoto, o verbo grego διδάσκω sugere
“ensinar música” e não apenas ensinar. Nas Histórias (Hdt. 1.23.1), o citaredo Arion
teria ensinado a cantar o ditirambo (διθύραμβον διδάξαντα) de Dioniso em
Corinto, fazendo desse professor famoso e músico premiado o primeiro “didata” (ou
ensinador musical) da história ocidental.
Ensinar música, ou ser didata, era ligar-se ao deus; desde 60.000 a.C.,
quando nossa arqueologia viu num osso com quatro furos a prova do nosso
imaginário religioso-cultural, que transitamos da flauta de Pã a flauta de Krishna.
Os antigos gregos usavam uma flauta dupla, a αὐλα (pronuncia-se “aula”),
documentada neste fragmento de Arquíloco:
Nosso maior helenista ativo, Jaa Torrano (1991), no prefácio à sua tradução
da Teogonia, leu bem o “mundo” e seu universo semântico cósmico: “Mundus -
puro, con-sagrado”, (de onde vêm i-mundo, não puro...), “é o Canto das Musas, as
quais não são senão a teo-cosmofânica função do Cantar, explicitações do Ser de
Zeus e da Memória (e estes Zeus e Memória são explicitações do Ser inconcusso e
primordial da Terra-Mãe, Fundamento de Tudo e de todos os mortais e Imortais);
— e, sensuais e fecundas, infundindo a volúpia de ouvir, ver e Ser, as Musas são o
Canto Mundificante (teogônico = cosmogônico e con-sagrado): Ouvido por Si
Mesmo Que O Canta” (1991: 81). É a música da flauta- αὐλα epifânica, no seu
augÊxtase; mas como o cósmico vem atrelado ao cômico, além da vontade, temos
bastante representação. Aprender exige de-cisão, romper a partir de algo. Isso
também conVersamos: quando descobrirmos nosso poder, um tipo de fé ou força de
gerar quase o impossível, por nós mesmos, passamos a entender que o universo
deve ter uma lógica, um funcionamento, um agente para a evolução. Para conceber
essa ideia, a intenção e a sinceridade deve ser reinar, a mente deve estar sempre
esclarecida. Reclamaram de certo cinismo que alguns professores passam. “No
dark sarcasm in the classroom!”
Gostaria de Adornar o que foi até aqui apresentado, contrapondo ao conceito
de racionalidade, o conceito de dominação. Qualquer teoria social contemporânea
parte da Dialética do Esclarecimento:
— Vocês se sentem dominados?
Alumnus vem de aloĕre, alimentar, derivando alimentum. Aluno é o
buscador de alimento e procura na aula aplacar sua fome:
“Uma aula é como comida. O professor é o cozinheiro. O
aluno é quem vai comer. (...) Quando se obriga a criança
a comer quando ela está sem fome, há sempre o perigo de
que ela vomite o que comeu a acabe por odiar o ato de
comer. É assim que muitas crianças acabam por odiar as
escolas. O vômito está para o ato de comer como o
esquecimento está para o ato de aprender. Esquecimento
é uma recusa inteligente da inteligência. (...) O corpo é
um sábio. Etimologicamente a palavra sábio quer dizer
“eu degusto”. O corpo não é um porco que come tudo que
jogam para ele, como se tudo fosse igual. Ele opera com
um delicado senso de discriminação. Algumas coisas ele
deseja. Prova. Se são gostosas, ele come com prazer e
quer repetir. Outras não lhe agradam, e ele recusa.
(Alves: 2003: 82.)
Comunicar a aula pelo idioma-terno; Barthes: maternagem, seduzir ao
conhecimento pela linguagem da mãe, onde o aluno realmente é a criança de peito,
lactente, ansiando de seu mestre-Nutriz sua nutrição. Até fortalecer-se e
surpreender seu mestre. Um ex-aluno da nossa professora Leyla Perrone-Moisés
estava na aula inaugural do Collège de France; normalmente professores odeiam
que gravem suas aulas; mas aquele era o evento: Roland Barthes ia falar em ato
histórico, portanto, digno de ser documentado e memorado. Pois este rapaz grava o
discurso de Barthes numa fita cassete e despacha a gravação pelo correio, de Paris
até o Brasil, para a professora Leyla, que amorosamente ouviu tudo e traduziu para
nós. A Leçon, quase sempre citada no quesito linguagem.
Covardia é a agressão aos jovens e crianças nas escolas. Vítimas de palavras.
Aboliu-se palmatórias e castigos físicos, mas permanece a tortura verbal. O discurso
ouvido na escola perfura vagarosamente o coração, promessas a prometeus cujas
vísceras dia a dia regeneram doloridas. Os medicamentos das políticas educacionais
infeccionam ainda mais a ferida; mas a vida pode ser salva pela arte.
O cartunista Julien Berjeaut retratou Deleuze descansando num jardim,
enquanto nos subterrâneos, rizomas e mais rizomas iam crescendo ligados a ele.
Assim Deleuze leu o mundo: não há começo nem lado certo para se entrar ou se
espalhar. O que vale da arte e da ciência é o uso que fazemos delas. Com esta
imagem povoando nossas mentes, deixo alastrar outro rizoma crescido do poeta
que escreve este relato:
Vidyām cāvidyām
o Aprender e o desAprender;
ca yas
aquele que
tat vedobhayam
sabe-os – tanto um quanto o outro –
saha
simultaneamente –
avidyayā mṛtyum
o desAprender mata,
tirtvā
transcende totalmente
cāvidyām āmṛtyum
o desAprender. Não morre nunca
aśnavat
(então), a Alegria (do Aprender).
Isa Upanisad 11, tradução minha
Convivas da nossa conVersa: