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A αὐλα antiga nas aulas de hoje

Relato con-verso para uma versidade da verdade

Reginaldo Jurandyr de Matos


2980807
Relato reflexivo dos Momentos de Estágio, apresentado à Profª Drª

Cecília Hanna Mate, no âmbito da disciplina Didática.


αὐτὸς ἐξάρχων πρὸς αὐλὸν (...) παιήονα
À música da αὐλα (aula) conduz o meu ser.
Arquíloco, in Athenian Drinking-Songs, 4. (5) 180e, tradução minha

αὐτοδίδακτος δ᾽ εἰμί,
Autodidata sou:
θεὸς δέ μοι ἐν
é que o deus, dentro de mim,
φρεσὶν οἴμας
e dentro da minha vontade mental
παντοίας ἐνέφυσεν:
todas as coisas entranhou...

Odisseia 22. 347-8, tradução minha

...saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia...

Barthes: s/d: 21
Tanto na poesia homérica quanto na prosa influenciada pelo dialeto jônico
(musicalmente “homérica”) como a de Heródoto, o verbo grego διδάσκω sugere
“ensinar música” e não apenas ensinar. Nas Histórias (Hdt. 1.23.1), o citaredo Arion
teria ensinado a cantar o ditirambo (διθύραμβον διδάξαντα) de Dioniso em
Corinto, fazendo desse professor famoso e músico premiado o primeiro “didata” (ou
ensinador musical) da história ocidental.

Ensinar música, ou ser didata, era ligar-se ao deus; desde 60.000 a.C.,
quando nossa arqueologia viu num osso com quatro furos a prova do nosso
imaginário religioso-cultural, que transitamos da flauta de Pã a flauta de Krishna.
Os antigos gregos usavam uma flauta dupla, a αὐλα (pronuncia-se “aula”),
documentada neste fragmento de Arquíloco:

αὐτὸς ἐξάρχων πρὸς αὐλὸν (...) παιήονα


αὐτὸς é si-mesmo referenciado; ἐξάρχων é a ex-arquia, o “supra-liderar”, o
comando que sai para fora, transborda; a forma participial passiva sugere o seguir
incondicional, sem poder resistir. αὐλὸν é acusativo de αὐλός (no dialeto ático), que
no jônico é αὐλα: a flauta dupla de bocal único simulando dois chifres saindo da
mesma cabeça, a eterna correspondência e completude natural: yinYang. πρὸς é a
preposição da posição: a direção, o sentido, a meta, a escolha do Ir. Essa última
palavra, παιήονα, vem de Pean, o deus Apolo, e é também substantivo simples: peã,
a música religiosa. Tudo isso formata o didata antigo.
Analogamente, o didata de hoje é ensinador musical a seu modo: executa seu
peã; extrai as notas de seu ser para compor (pois é em si mesmo o deus que invoca) e
usa sua αὐλα (“aula”), a flauta dupla, como via de mão dupla para receber e oferecer.
O ato didático é a performance da ária da vida, cujo meio é sua flauta- aula,
instrumento oco por onde os sons e sopros recíprocos dele-didata, e dos alunos, vão
se harmonizando lentamente até chegar à escala subtônica da sensibilidade do deus,
subindo num crescendo até o εν-θεός-ιασμο, o entusiasmo! deixando o deus de
dentro irradiar!
Etimologistas canônicos dirão: “Ora! Aula, “aulé”, palácio...” e lembrarão que
na Roma antiga algo como a escola estava se formando anexado à corte.
No entanto, ao escolher [escolha no sentido herético de αἵρεσια, “heresia”,
exatamente o sentido e uso nas Histórias: por ex.: Hdt. 1.11.2] trazer a aula do
dialeto jônico [linguagem poética] e não do ático [linguagem da prosa], como
tradicionalmente se faz, destaco sua semântica mais radical (na visão marxista de
raiz). No entanto, é uma proposta dialogadora, e não pretende transgredir o
conhecimento etimológico tradicional.
Trans-gredir, literalmente, é o fluxo do agredir; o mover-atitude cujo meio é a
violência. Moção, motim: tentativa desesperada do indivíduo de se mover, levar à
frente um movimento. Mais salutar que se mover desse modo, é o coMover-se,
deixar que a ação conjunta harmonize e sensibilize o corpo individual ao corpo
social. Mesmo ações justas não se legitimam apenas devido à sua finalidade. Os
meios devem justificar e dar justiça aos fins. Por isso, defendo, na educação, não a
transgressão, mas a conVersa, também em seu sentido radical: Versar/Poetar
junto, a Construção Coletiva pela Palavra, tecer a Urdidura de Aracne e de
Penélope, mesmo sob pressão ou violência externa. Prescindir a conVersa é precisar
de agressão do predador, acuadora e covarde; ou da transgressão da presa
ameaçada, obrigada a maquinar subterfúgios de autodefesa.

Fragmentos, “rajadas de linguagem, que lhe brotam graças a


circunstâncias íntimas, aleatórias” (Barthes, 1978: 12)
Deleuze aconselha a traçar um plano sobre o caos. Não justifico uma “origem”
palaciana da aula, ligando a escola à corte e ao poder absolutista. Colaborar com o
caos e desagregar da arte, a ciência e a filosofia, naturais Brahmás sobre o mesmo
pescoço, e isolá-las, é fraudar o conhecimento universal.
Refletindo artística científica e filosoficamente o quanto significa dar αὐλα,
relato minha vivência como participante de momentos da vida escolar no meu
bairro. Como completei minhas horas de estágio de Didática logo em seguida às
horas de regência para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa,
tive a Boa Fortuna de me equipar qual Arion pronto para saltar no mar; pude vestir
todo o aparato musical a tempo: consagrar amizade com a professora e fortalecer
um projeto com alunos de dois nonos anos.
Práticas comuns da Mila, professora que acompanhei, como ditar as lições e
ditar a correção em seguida, foi abolida depois de dois meses de minha presença ali;
ela passou a confiar em mim: eu passava na lousa o conteúdo (ela odiava sujar as
mãos de giz), sobrando mais tempo para falar naturalmente com eles, enquanto eu
conferia a tarefa de carteira em carteira e tutoriava alguns pessoalmente.
Após minha regência (20 aulas sobre poesia, redação e escrita), encerrei o
“curso” com um encontro na sala dos tatames da escola, nas minhas horas finais de
estágio, para a disciplina Didática. Ali, éramos obrigados, espacialmente, a nos
sentar no chão em roda, pois a sala não tinha mobília alguma: o que era ótimo para
a conVersa. Tentei ser didata, conforme preambulei acima, ouvindo a musicalidade
da vida deles, tentando preencher o vazio da flauta-αὐλα com alguma canção que
fizesse sentido para eles e para mim. Senti na pele e na carne (e na alma) isso: A
aula é a αὐλα mesmo! oca, a ser preenchida pelos dois ares, o meu-neles, os deles-
em-mim! Se eu vomitar qualquer conteúdo não-pensado (que não possa ser
conversado) em cima deles, instalarei mal-estar geral.
ConVersamos: sugeri ouvirmos “o Reggae” da Legião Urbana, e vi como se
identificaram com algum trecho (ou toda) a letra da música.
Ainda me lembro aos três anos de idade:
O meu primeiro contato com as grades!
O meu primeiro dia na escola,
Como eu senti vontade de ir embora!
Fazia tudo o que eles quisessem,
Acreditava em tudo o que eles me dissessem,
Me pediram pra ter paciência,
Falhei!
Gritaram: - cresça e apareça!
Cresci e apareci e não vi nada,
Aprendi o que era certo com a pessoa errada
Assistia o jornal da TV
E aprendi a roubar pra vencer,
Nada era como eu imaginava
Nem as pessoas que eu tanto amava,
Mas e daí? se é mesmo assim,
Vou ver se tiro o melhor pra mim!
Me ajuda se eu quiser, me faz o que eu pedir
Não faz o que eu fizer,
Mas não me deixe aqui!
Ninguém me perguntou se eu estava pronto
E eu fiquei completamente tonto
Procurando descobrir a verdade,
No meio das mentiras da cidade!
Tentava ver o que existia de errado
Quantas crianças Deus já tinha matado?
Beberam o meu sangue e não me deixam viver
Tenho o meu destino pronto e não me deixam escolher,
Vêm falar de liberdade pra depois me prender,
Pedem identidade pra depois me bater!
Ó, tiram todas as minhas armas,
Como posso me defender?
Vocês venceram essa batalha!
Quanto à guerra,
Vamos ver!

Há cinco vozes distintas que fi-los notar. “Eles”, a macro-educação, (“o


sistema é mau...”), as políticas públicas com suas avaliações de competências, que o
poeta não se identifica; “você”, o alento, amigo ou amor, o amparo identificador, (“o
sistema é mau, mas minha turma é legal” - versos de outra canção posterior de
Renato Russo); “vocês”: diretamente fala com “eles”, como se dissesse, sei quem
vocês são, vocês venceram esse primeiro embate comigo, mas esperem! porque
“nós”: o eu forte, corajoso, está pronto para a luta, pois já não se vê sozinho e fraco.
Há quantas batalhas forem necessárias numa guerra. E a voz principal: o eu. Mas
identidade não significa autonomia:

“Em vez de percorrer o eixo consciência-conhecimento-


ciência (…) a arqueologia percorre o eixo prática
discursiva-saber-ciência e encontra o ponto de
equilíbrio de sua análise no saber (…) onde o
sujeito é necessariamente situado e dependente,
sem que jamais possa aí ter o papel de titular...
(Foucault: 1972: 2o7, grifos meus)

Tucídides: παλαιὰ τοιαῦτα ηὗρον: “nas antigas isto descobri”. A arqueologia


de Tucídides é o estudo do passado, em que o homem tem certo poder e domínio
sobre a história; Foucault analisa a linguagem ao estudar a história, e concentra sua
análise no saber como estudo do discurso. Nessa trilha, vê o sujeito dependente pela
linguagem. O sujeito não é livre, tem que se “sujeitar”. Usei o recurso da linguagem
para tentar redenção; falei com eles [não, Almodóvar, jamais este Benigno tratou-
os com(o) (m)Alicia] que nossa vida do dia a dia não podia ser tão repetitiva como
linha de produção de acontecimentos, e a poesia e a arte podiam dar mais sentido à
existência. Senão, mesmo o trabalho desgastante (que deveria ser a vocação de
servir à sociedade pelos talentos naturais pessoais) não passará de ilusão. Um devir
guiou nossa memória discursiva naquela hora... Bem depois, rememorando tudo,
lembrei disto,

Quanto mais nossa vida cotidiana parece (…)


estereotipada, (…) mais deve a arte ligar-se a ela. (…)
Reproduzir esteticamente as ilusões (…) que
constituem a essência real desta civilização, tudo
isso para que, finalmente, a Diferença se
expresse, (…) uma liberdade para o fim de um
mundo. (Deleuze: 1988: 460, grifos meus)

Fazer diferença é fazer história. Nossa grandeza no pequeno dia a dia.


Tucídides, discursivamente, fez questão de confrontar a grandeza: μέγαν, μεγίστη,
πλεῖστον, δύνατα, πλῆθος, μακρότατον, μεγάλα, πλειόνων, περιουσίαν, πολλά,
semanticamente símiles: gigantesco, imenso, poderoso, numeroso, excessivo...
chamando a si mesmo de “sinégrafo”, disse ter ξυν-έγραψε (“sinegrafado”, escrito-
junto) sua história da guerra do Peloponeso, frisando que vivera os acontecimentos,
e essa escolha de escrever “engaja a quem a escreve” (Gagnebin, 1997: 30).
Schopenhauer declarou que depois de Tucídides ninguém mais precisaria escrever
História, dado o rigor empregado no método, dada a repetição cíclica dos eventos
políticos, das disputas de poder e hegemonia entre as nações, diante do poder
retórico e de persuasão dos discursos políticos e dos debates. Atuou lado a lado de
seu objeto de estudo e investigação; enquanto general participou in loco da guerra
por ele narrada, vivenciou seu objeto de estudo, da mesma forma que este escriba
conVersador executou sua flauta-aula e quis estudá-la, pô-la à prova pela razão:

τὰ γὰρ πρὸ αὐτῶν καὶ τὰ ἔτι παλαίτερα σαφῶς μὲν


εὑρεῖν διὰ χρόνου πλῆθος ἀδύνατα ἦν, ἐκ δὲ τεκμηρίων
ὧν ἐπὶ μακρότατον σκοποῦντί μοι πιστεῦσαι ξυμβαίνει
οὐ μεγάλα... de fato antes destas e ainda antes das mais
antigas, claramente, por causa do longo tempo, era
impossível descobrir, com provas e mesmo examinando
com grande extensão, ocorreu-me confiar, não nas
grandes... (THUCYDIDES, grifos meus, tradução
minha)
σαφῶς claramente, com sapiência no claro pensar, bem consciente; εὑρεῖν
ἀδύνατα ἦν, era impossível descobrir, ἐκ δὲ τεκμηρίων a partir dos indícios de que
eu dispunha, usando todas as provas possíveis, ὧν ἐπὶ μακρότατον, diante da
grandiosidade; superlativo; σκοποῦντί investigando, estudando, fechando com o
foco da visão, escopo; μοι πιστεῦσαι ξυμβαίνει ocorreu-me confiar, de repente pus
fé, [a fé é necessária...Deleuze: 1970: 2o7] οὐ Não! μεγάλα nas “τὰ” grandes... Esse
τὰ em grego é plural neutro de artigo, mas a sintaxe obriga-nos a lê-lo como
pronome genérico; os tradutores publicados optam por desenvolver pelo contexto:
“as coisas da guerra”; mas Tucídides ainda está dissertando, não narrando a guerra.
Posiciona-se: não confiei nas grandezas, mas optei pelo pequeno.

A microeducação ou educação menor, a particularidade em foco, o talento


pessoal, o espaço da sala de aula e principalmente o espaço da carteira, do caderno
do aluno... e por que não, da mente dele? Assim como os bárions e mésons dos
quarks do átomo concentram tamanha energia a ponto de explodirem em uma
bomba, esse τὰ do Tucídides, essa pequena marca gramatical, indica sua maior
αἵρεσια: a tremenda força do pequeno que pode explodir um mundo! Não “o”
mundo! Retomando Deleuze: a essência real desta civilização só consegue se
manifestar se conseguirmos fazer com que a Diferença se mostre. Para isso, o que
mais se exige é uma liberdade (não “a” liberdade), certa liberdade específica num
campo específico, o da arte fundida à ciência e à filosofia; para que haja o fim de
um mundo falso, o macro-espaço burocrata e aulético, palaciano.

A ação é muito importante. O conhecimento é o que dá sentido e finalidade


para a ação. O Peloponeso foi invadido pelos exércitos áticos, mas bastava apenas
um Tucídides ali com eles; assim também, as ações da música da aula são
executadas pelos alunos, que dão o andamento e a toada; ao maestro cabe conduzir,
mas sem ele, nada acontece. Isso é prática discursiva.

Imaginei, como estratégia, se pudesse fatiar a aula percentualmente: 80%


seriam dedicadas à dialogAção, 16% à tarefa ou anotação escrita e 4% ao silêncio
refelexivo. Plano ideal. Participei de muita aula que era 1oo% cópia de lousa, ou
80% silêncio-terror “quietos-no-lugar-fazendo-a-lição...”, ou casos de colocação
inteligente de aluno no meio da aula, desincentivada pelo professor. Também
percebi e testei coisas que são de praxe e que nunca dão certo. A “leitura individual
silenciosa” é apenas possível em casa, numa cultura de vida de estudante.
Outro rizoma surgido na conVersa: ouve-se muito sobre igualdade, discursa-
se que todos são iguais com os mesmos direitos. Descrevi minha experiência: tento
amar e cuidar de meus filhos igualmente; mas seres diferentes in-dividuados, não-
divididos, singulares. Um adora meus pratos veganos e outro só come com carne.
Não existe igualdade na natureza, nenhuma rosa é igual a outra! Sim, Deleuze, a
Diferença se expressa o tempo todo, e cada ser diferenciado merece o medicamento
singular que o curará. Cada aluno merece sua aula redentora, que o liberte para
conhecer a si mesmo.

Tanto debate (e embate) em torno da igualdade é apenas uma das formas


inventadas de se obter liberdade. Os muitos atalhos, caminhos errados e vias tortas
que nossa pedagogia de deprimidos faz está explícita e escandalosamente
deflagrada na conduta dos professores “auleiros”, pole position nas atribuições,
burocratas do diário de classe; e os verdadeiros autores da música- αὐλα, os
pequenos músicos continuam ali, cada um com seu instrumento singular e único,
apenas esperando um único gesto real de seu maestro para começar a sinfonia.

Considero a prática essencial. A integridade nas ações coordenarão a mente-


filosofia, o corpo-ciência e a palavra-arte – todos os três, Nossa Crença e Nossa Fé:

“É o vínculo do homem com o mundo que se rompeu. Por


isso, é o vínculo que deve tornar-se objeto de crença: ele é
o impossível, que só pode ser restituído por uma fé.
(…) Somente a crença no mundo pode religar o
homem com o que ele vê e ouve. (…) Precisamos de
uma ética ou de uma fé, o que faz os idiotas rirem; não é
uma necessidade de crer em outra coisa, mas uma
necessidade de crer neste mundo... (Deleuze: 1970:
2o7.209, grifos meus)

Nosso maior helenista ativo, Jaa Torrano (1991), no prefácio à sua tradução
da Teogonia, leu bem o “mundo” e seu universo semântico cósmico: “Mundus -
puro, con-sagrado”, (de onde vêm i-mundo, não puro...), “é o Canto das Musas, as
quais não são senão a teo-cosmofânica função do Cantar, explicitações do Ser de
Zeus e da Memória (e estes Zeus e Memória são explicitações do Ser inconcusso e
primordial da Terra-Mãe, Fundamento de Tudo e de todos os mortais e Imortais);
— e, sensuais e fecundas, infundindo a volúpia de ouvir, ver e Ser, as Musas são o
Canto Mundificante (teogônico = cosmogônico e con-sagrado): Ouvido por Si
Mesmo Que O Canta” (1991: 81). É a música da flauta- αὐλα epifânica, no seu
augÊxtase; mas como o cósmico vem atrelado ao cômico, além da vontade, temos
bastante representação. Aprender exige de-cisão, romper a partir de algo. Isso
também conVersamos: quando descobrirmos nosso poder, um tipo de fé ou força de
gerar quase o impossível, por nós mesmos, passamos a entender que o universo
deve ter uma lógica, um funcionamento, um agente para a evolução. Para conceber
essa ideia, a intenção e a sinceridade deve ser reinar, a mente deve estar sempre
esclarecida. Reclamaram de certo cinismo que alguns professores passam. “No
dark sarcasm in the classroom!”
Gostaria de Adornar o que foi até aqui apresentado, contrapondo ao conceito
de racionalidade, o conceito de dominação. Qualquer teoria social contemporânea
parte da Dialética do Esclarecimento:
— Vocês se sentem dominados?
Alumnus vem de aloĕre, alimentar, derivando alimentum. Aluno é o
buscador de alimento e procura na aula aplacar sua fome:
“Uma aula é como comida. O professor é o cozinheiro. O
aluno é quem vai comer. (...) Quando se obriga a criança
a comer quando ela está sem fome, há sempre o perigo de
que ela vomite o que comeu a acabe por odiar o ato de
comer. É assim que muitas crianças acabam por odiar as
escolas. O vômito está para o ato de comer como o
esquecimento está para o ato de aprender. Esquecimento
é uma recusa inteligente da inteligência. (...) O corpo é
um sábio. Etimologicamente a palavra sábio quer dizer
“eu degusto”. O corpo não é um porco que come tudo que
jogam para ele, como se tudo fosse igual. Ele opera com
um delicado senso de discriminação. Algumas coisas ele
deseja. Prova. Se são gostosas, ele come com prazer e
quer repetir. Outras não lhe agradam, e ele recusa.
(Alves: 2003: 82.)
Comunicar a aula pelo idioma-terno; Barthes: maternagem, seduzir ao
conhecimento pela linguagem da mãe, onde o aluno realmente é a criança de peito,
lactente, ansiando de seu mestre-Nutriz sua nutrição. Até fortalecer-se e
surpreender seu mestre. Um ex-aluno da nossa professora Leyla Perrone-Moisés
estava na aula inaugural do Collège de France; normalmente professores odeiam
que gravem suas aulas; mas aquele era o evento: Roland Barthes ia falar em ato
histórico, portanto, digno de ser documentado e memorado. Pois este rapaz grava o
discurso de Barthes numa fita cassete e despacha a gravação pelo correio, de Paris
até o Brasil, para a professora Leyla, que amorosamente ouviu tudo e traduziu para
nós. A Leçon, quase sempre citada no quesito linguagem.
Covardia é a agressão aos jovens e crianças nas escolas. Vítimas de palavras.
Aboliu-se palmatórias e castigos físicos, mas permanece a tortura verbal. O discurso
ouvido na escola perfura vagarosamente o coração, promessas a prometeus cujas
vísceras dia a dia regeneram doloridas. Os medicamentos das políticas educacionais
infeccionam ainda mais a ferida; mas a vida pode ser salva pela arte.
O cartunista Julien Berjeaut retratou Deleuze descansando num jardim,
enquanto nos subterrâneos, rizomas e mais rizomas iam crescendo ligados a ele.
Assim Deleuze leu o mundo: não há começo nem lado certo para se entrar ou se
espalhar. O que vale da arte e da ciência é o uso que fazemos delas. Com esta
imagem povoando nossas mentes, deixo alastrar outro rizoma crescido do poeta
que escreve este relato:
Vidyām cāvidyām
o Aprender e o desAprender;
ca yas
aquele que
tat vedobhayam
sabe-os – tanto um quanto o outro –
saha
simultaneamente –
avidyayā mṛtyum
o desAprender mata,
tirtvā
transcende totalmente
cāvidyām āmṛtyum
o desAprender. Não morre nunca
aśnavat
(então), a Alegria (do Aprender).
Isa Upanisad 11, tradução minha
Convivas da nossa conVersa:

ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de


Janeiro: Zahar: 1985.
ALVES, Rubem. Por uma educação romântica. São Paulo: Papirus, 2003.
ARCHILOCHUS. Elegy and Iambus, (greek text). M. Edmonds. Cambridge, MA.
Harvard University Press/London: William Heinemann: 1931.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s/d.
_____________. Fragmentos de um Discurso Amoroso. Lisboa: Edições 70,
1978.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1970.
____________. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1972.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história . Rio de
Janeiro: Imago, 1997.
HERODOTUS, (greek text). Cambridge: Harvard University Press. 1920.
MATE, Cecília Hanna. Didática e História: encontros possíveis. Tese de livre-
docência. Faculdade de Educação - USP, 2010.
TORRANO, José Antônio Alves. O Sentido de Zeus: O mito do mundo e o modo
mítico de ser no mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996.
______________________. O mundo como função de musa. In HESÍODO.
Teogonia: A Origem dos Deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 1991.
THUCYDIDES. Historiae in two volumes (greek text). Oxford: Oxford University
Press, 1942.

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