Isla Bucaneira

Por Mago D´Zilla

O oceano: a fronteira mortal! Essas são as
viagens da nau Altaneira, capitânea da frota de
Deheon, em sua missão para buscar novos mares,
encontrar novos povos, novas culturas,
audaciosamente indo onde nenhum artoniense
jamais esteve!
Mares Bravios
EPISÓDIO 02: ISLA BUCANERA
Diário de bordo, Cyd 11 de 1400 C.E. Há três
dias estamos costeando Galrasia sem maiores
incidentes além do avistamento casual de alguma
fera voadora da ilha. Os poucos reparos de que
precisávamos após a luta com os navios do pirata
Mão Negra foram efetuados a contento pela
equipe de Mestre Mac, e o sossego está me dando
nos nervos. Quanto tempo mais durará essa
bonança? Bem pouco, eu suspeito.
Uma batida na porta da cabine coincidiu com
fechamento do diário de bordo. Ao comando
imediato Saddrek Ahr entrou, fechou a porta
permaneceu em pé ao lado dela. Kirlian guardou
livro, a pena e a tinta e voltou-se para
comandante.
- Bem, Saddrek, veio me dizer algo ou vamos jogar
"20 perguntas"?
- Capitão, avistamos atividade suspeita em uma das
ilhotas adiante de nós. Pode ser a base dos piratas
que atacam na região. Corvo pediu para investigar a
ilha para nós, senhor.
- Diga a Corvo que tenho um arcabuz carregado
com argemp só para o caso de ele se transformar em
pássaro sem minha ordem
expressa. Como vai indo o rapaz, por falar nele?
- Trabalha pouco, lamenta-se muito e bajula a todos
sem parar. Os homens estão a ponto de perder a
paciência com ele.
- Veja que qualquer "lição" que planejem para ele
não exceda os limites, imediato. Mas voltando à
suas suspeitas, diga à toda a flotilha para recolher as
velas e lançar âncoras. E prepare um escaler, vamos
investigar essa ilhota ainda antes do por do sol.
Saddrek saiu da cabine do capitão já gritando as novas
ordens enquanto Kirlian preparava suas coisas, sorrindo
em antecipação a como o imediato detestaria sua idéia.
Se fosse mesmo uma base pirata, não conviria a oficiais
da Marinha de Deheon serem vistos ali como tal.
***
Correndo pelos vãos entre as casas o pequeno
Kouma ia escapando de seus perseguidores, um
bando de adolescentes com intenções nada saudáveis
para com sua pessoa. Em poucos lugares de Arton a
pele escura era motivo de discriminação, mas
infelizmente para o garoto a Ilha Ferren era um
desses lugares.
A turma de Ghorn, o rapaz cujo pai era líder daquela
colônia "não-oficial" de Portsmouth, não perdia uma
o
oportunidade de espicaçar o filho da criada. Kouma, por
o
outro lado, não deixava nenhuma provocação sem
e
resposta, o que invariavelmente acabava nessas
o
correrias pelo povoado. Só que hoje o pai de Ghorn não
o
estava na ilha para controlá-lo, e o desfecho poderia ser
no mínimo desagradável, potencialmente letal!
- Volte aqui, seu koboldezinho! - gritava Ghorn,
babando de raiva. - Hoje eu vou te dar a lição que você
merece!
Kouma, é claro, não pretendia facilitar em nada para o
corpulento rapaz. Conhecia uma fresta onde Ghorn
ficaria entalado até seu pai voltar se insistisse em
persegui-lo por ali, e bastaria uma curva...
Para ser cercado por três dos outros rapazes! Ao invés
de tentar parar Kouma acelerou o passo de sua corrida e
saltou sobre um deles, usando-o para tomar impulso e
desviar para dentro da mata. O alvo de sua manobra
tentou agarrá-lo, mas perdeu o equilíbrio e caiu sobre os
outros dois. Ghorn, correndo quase nos calcanhares de
Kouma, acabou derrubando a todos numa maçaroca de
pernas, braços e corpos contundidos.
Apesar de a ilha Ferren não ser habitada por outras

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criaturas de grande porte, havia insetos gigantes,
serpentes peçonhentas e plantas venenosas
suficientes para desencorajar até mesmo adultos a se
aventurar ali. Kouma na verdade nãopensara muito
antes de executar seu "Plano B" ou teria evitado tão
temerária manobra. Mas agora voltar seria pior,
teria que passar o dia ali e retornar à casa apenas à
noite. Se tivesse sorte, escaparia de uma surra.
Mas aparentemente Nimb não estava do seu lado
hoje. Mal perdera Ghorn e seu bando de vista,
percebeu que estava sendo observado. Um animal
grande devia estar espreitando pelo barulho que
fazia e Kouma, exaurido emocional e fisicamente,
quedou-se paralisado de medo. Não tinha mais
idéias, não tinha mais energia, o que quer
que fosse o pegaria ali mesmo, indefeso.
Mas de dentro da mata o que saiu foi um grupo de
piratas estranhos. Três homens usando roupas
surradas, um deles com um tapa-olho esquerdo e um
corvo sobre o ombro. Outro, um pouco mais baixo e
parecendo o líder do grupo, falou com ele numa voz
pastosa, como se embargada por muito rum.
- Hey, garoto! Passamos um mau bocado nós aqui,
só diga-nos onde estamos, e deixaremos que fique
com sua língua!
- I-i-i... ilha Ferren, senhor! - conseguiu gaguejar
Kouma.
- HAAHHH! Ferren, ouviu Bocanegra? - disse o
líder, dando um sonoro tapa nas costas do homem
do tapa-olho. - Ferren!! Eu disse a você!! Vamos,
garoto, leve-nos para sua vila, temos fome e sede.
Principalmente sede!!
Ghorn estava plantado à beira da mata, pensando
em deixar alguém de guarda ali para o caso do
moleque tentar voltar, quando o estranho grupo saiu
de lá. O líder olhou para ele, cuspiu para o lado -
quase no pé do tal Bocanegra - e gargalhou.
- HAAHHH! Quero ser uma craca se esse não for
filho de Ian Redstone! Diga que estou certo, rapaz,
vamos!
- É. - disse apenas Ghorn. O estranho conhecia seu
pai, mas não era ninguém da colônia. - Quem é
você?
- Quem eu sou?! Viu só, Bocanegra, eu segurei o
fedelho no colo, e hoje ele pergunta quem eu sou! Ora,
quem eu sou... nunca ouviu falar em Blastus, o pirata?
Não, hein? Eu vou ter uma conversinha com seu pai, ah
se vou! Esquecer o velho Blastus aqui, hein,
Bocanegra? Vamos, vamos, garoto, precisamos falar
com seu pai.
- Ele não está na ilha. - disse o rapaz, levando-os até
uma casa grande na vila. -Foi ao mar, pilhar uma carga
de ouro que saiu de Calacala.
A casa era uma taverna, com pouco movimento já que
grande parte de seus fregueses se fizera ao mar. Dessa
forma os recém-chegados foram recebidos com muito
interesse pelas "funcionárias" do lugar.
- Parabéns, capitão. – murmurou "Bocanegra", às vezes
também conhecido como Saddrek, para "Blastus" que
usualmente atendia como Kirlian. - Seu plano de nos
infiltrarmos despercebidamente na ilha está indo muito
bem.
- Sarcasmo não lhe cai bem, imediato. - respondeu o
capitão, também à meia-boca e sorrindo para a moça
que trazia generosas canecas de rum. - Além do que,
ninguém percebeu que não somos piratas, e se você
ajudar ninguém vai perceber por um bom tempo! Um
pouco mais de sentimento nessa interpretação, sim? E
dê um jeito nessa bebida toda, não pretendo ficar
bêbado de verdade.
Gesticulando discretamente sobre as canecas
"Bocanegra" usou sua magia para anular o álcool da
beberagem, bem como qualquer veneno que porventura
ali estivesse. O resultado era quase insuportavelmente
doce, mas inócuo - a menos, é claro, que se fosse
diabético. Kirlian então bebeu grandes goles de sua
caneca e depois bateu-a de volta na mesa, no que foi
imitado por seus companheiros. Admiradas, as garotas
trouxeram mais bebida para os recém chegados e o
ritual repetiu-se várias vezes, com muito riso e
alacridade. Saddrek e Mestre Mac entreolhavam-se de
vez em quando, como se perguntando um ao outro se
algum dia o capitão sairia daquela personagem.
Um pouco mais tarde um homem muito idoso veio
juntar-se a eles na mesa."Blastus" fez algumas piadas
sobre o "velho da taverna", mas o idoso não mostrou
reação.
- Quem são vocês? - perguntou secamente.
- Até que enfim alguém se preocupou com isso, hein,
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Bocanegra? Digo, três estranhos chegam, bebem,
comem, e ninguém se preocupa com a segurança do
esconderijo? Não, meu amigo, já era hora de
alguém chegar, eu digo! Eu sou Blastus, o
Temerário - ei, recebi esse apelido, não inventei ele!
Aqui tenho meu segundo, Bocanegra, e o Caveira
ali é o melhor canhoneiro que você encontrará em
qualquer frota, esses somos nós. E agora você...
- Blastus está morto! Devia ter inventado uma
história me...
- HAAHHH!! Essa é ótima, velho, muito boa
mesmo! Um não me conhece, o outro diz que estou
morto, Bocanegra! - Kirlian repentinamente mudou
a expressão para outra mortalmente séria,
lembrando-se de manter um enevoado ar de
embriaguez. - Eu sempre digo que se você quer
matar alguém, tem que fazer o serviço direito,
velho. Os cabeças de boi lá em Calacala deviam ter
lembrado disso quando me condenaram àquela
gaiola no quebra-mar deles. É simples, sem cadáver,
não tem morto!
Saddrek empalideceu sob seu disfarce. Em seu
ombro Corvo começara a crocitar ameaçando
revelar toda a farsa, mas o grito de "Blastus"
impediu-o, e agora o velho sustentava o olhar de seu
capitão com uma expressão indecifrável no rosto.
Mas então o velho começou a rir. Kirlian
acompanhou-o, e por baixo da mesa puxou a camisa
encardida de Saddrek para que ele e Mestre Mac
fizesse o mesmo.
- Desculpe um velho por ser cauteloso, Blastus, mas
estamos há muitos dias sem notícias de muitos dos
homens daqui. Mão Negra e Nick Arpoador
deveriam ter se juntado a nós há dias, e Ian
Redstone levou todos os barcos para saquear aquele
ouro de Tapista. Onde está seu barco?
- Ah, meu velho, uma história triste... demos de cara
com o maldito Kirlian e sua Altaneira, e ele nos pôs
a pique. Não tivemos nem mesmo a chance de lutar,
eles têm um novo canhão que parece a fúria dos
deuses, um único tiro partiu meu navio em pedaços!
A própria água ao nosso redor ferveu, digo a você, e
os homens que caíram ao mar vivos morreram
cozidos como caranguejos na panela! Serão tempos
difíceis para nós se todos os navios da Frota do
Reino tiverem essa arma, meu amigo! Tempos
muito difíceis...
Remexendo-se Kirlian tirou do bolso duas peças de
prata e bateu-as no balcão. A seguir, queixando-se de
mal-estar pediu um quarto na estalagem, onde
pretendiam esperar que todos dormissem para voltar à
Altaneira. Já sabiam tudo o que precisavam saber.
- Capitão! - queixou-se o imediato quando estavam
sozinhos. - Sua conduta gerou uma atenção no mínimo
indesejada sobre nós. Certamente haverá ao menos uma
pessoa nos vigiando agora.
- Com o vilarejo tão vazio teríamos essa atenção
quiséssemos ou não, Saddrek. Precisamos agir como se
não nos importássemos com isso para levantar apenas o
mínimo de suspeitas. Mestre Mac, o que você achou do
lugar?
- Bem, capitão, eles têm um lugar bom demais para
reles piratas, vou dizer! O porto é bem construído, a
vila é toda planejada, as casas têm boas instalações
sanitárias... não se compara a Okeanna, claro, mas
claramente há o apoio de muito dinheiro e muito
conhecimento aqui. E isso mais o nome que a ilha
recebeu...
- Ilha Ferren! - murmurou Kirlian sombrio. - Como em
Ferren Asloth, conde de Portsmouth. É pouco para
provar seu envolvimento direto, mas o suficiente para
uma razoável suspeita!
- Meu capitão, - crocitou Corvo, em sua forma ornítica -
eu poderia voar até a Altaneira e levar essas
informações a eles em seu nome. Eu... eu...
O simples olhar de Kirlian bastou para calar o espião
transmorfo. Corvo fora agregado à tripulação da
Altaneira vindo de um dos navios do pirata Mão Negra,
onde era mantido cativo segundo suas próprias
palavras. Ninguém confiava nele, e ele sabia disso. Mas
em voz alta Kirlian disse apenas:
- Não, obrigado, Corvo. Nosso plano original deve
servir. Agora vão dormir um pouco, você e Mestre Mac.
Eu e Saddrek devemos ficar acordados para o primeiro
turno de vigilância. Partimos à meia-noite.
Na hora marcada o grupo esgueirou-se pela vila, Kirlian
tomando o cuidado de manter a postura de "Blastus", e
dirigiram-se ao litoral para contornar a ilha até o ponto
onde desembarcaram em seu escaler (atravessar a mata
infestada de animais perigosos à noite estava fora de
questão, claro). Mal haviam atingido a orla da vila
quando ouviram atrás de si um gemido abafado, e um
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baque característico de um cadáver caindo ao chão.
Voltaram-se apenas para ver o velho da taverna
caído ao chão, e uma altiva mulher negra em roupas
simples de criada com uma adaga ensangüentada
nas mãos.
- Seu barco foi encontrado, capitão Kirlian, e há
vários rapazes lá prontos para emboscá-los. O Rei
Thormy não deseja que seu melhor capitão tenha
um fim tão indigno, então mandou-me abandonar
meu posto aqui e juntar-me à sua tripulação.
- Mesmo? - abandonando a agora inútil impostura,
Kirlian postou-se entre seus tripulantes e a estranha.
- E como teria o Rei entrado em contato com você?
Um grifo correio, talvez?
- Eu sou uma devanista, capitão, uma telepata
especialista em comunicações através dos sonhos. O
Rei Thormy recebe meus relatórios enquanto
dormimos, e esta noite ele transmitiu-me essas
ordens. Sua Majestade sabia que uma prova seria
necessária, e mandou-me dizer: "A sombra da
Princesa não motivou minhas decisões".
Ao lembrar de suas suspeitas de que a descoberta do
dublê ilusório da princesa Rhanna motivara sua
missão em busca de terras além-mar, Kirlian passou
a considerar as palavras da estranha. No entanto,
restava o pequeno problema de retornar à Altaneira.
- Bem, parece que teremos que pegar emprestada
uma das embarcações menores do porto. Você teria
alguma indicação para nos, senhorita...?
- Astella Nordis, capitão. E sim, há uma embarcação
no porto que satisfaz suas necessidades imediatas.
Venham comigo.No barco indicado, um grande bote
dotado de quatro remos e um pequeno mastro, outra
surpresa os aguardava: o garoto que encontraram
quando chegaram à vila estava lá, junto com alguns
pacotes.
- Minha bagagem, capitão, e meu filho Kouma o
senhor já conhece. Vamos?
- Sim. - disse o capitão. E acrescentou: - Corvo,
precisaremos de seus braços agora! Assuma forma
humana!Sob o olhar desaprovador de Saddrek,
Corvo saltou do ombro do imediato e no pequeno
convés da embarcação cumpriu a ordem. Em pouco
tempo estavam navegando.
- Posso perguntar como pretende se orientar no escuro,
capitão?
- Temos as estrelas, sra. Nordis, sabemos a posição de
nosso navio, e nosso amigo Saddrek ali é capaz de
enxergar muito bem no escuro. Tire esse lenço da
cabeça e esse tapa-olho, Saddrek, os disfarces são
inúteis agora.
- Apesar, devo salientar, - retrucou o imediato, tirando
os adereços mencionados,- de sua "brilhante" atuação
como Blastus, capitão.
- Na verdade, sr. Saddrek, - esclareceu Astella, com um
riso franco nos lábios -estavam todos acreditando que o
capitão era quem dizia ser até que ele contasse aquela
história absurda sobre a poderosa nova arma da
Altaneira. Ninguém com um pingo de juízo iria crer
naquela bobagem.
- Fascinante! - comentou o imediato, enquanto assumia
sua posição de navegador. Com Kirlian e Mestre Mac
nos remos, em pouco tempo deixavam o porto para trás.
Ao amanhecer Astella despertou para uma manhã
nevoenta e quatro tripulantes preocupados. Não haviam
encontrado a Altaneira na posição esperada, e o
nevoeiro surgira logo antes do raiar do dia, tornando
impossível qualquer navegação por meios normais.
- Alguma notícia por parte de Sua Majestade, sra.
Nordis?
- Receio que o Rei Thormy tenha tido outra de suas
crises de insônia logo após nosso último contato,
capitão. E se vou ser sua tripulante, pode tratar-me por
Astella.
- Bem, Astella, parece que estamos com problemas.
Não temos como nos orientar nesse nevoeiro, não
temos provisões, e a Altaneira não estava na posição em
que a deixamos, só posso especular o motivo
para isso.
- Eu pude sentir algumas mentes hostis ao nosso redor
logo antes de despertar, capitão. Pensei que se tratava
apenas de um pesadelo, mas agora creio que era uma
impressão real, o que pode significar...
- ...que Ian Redstone e os outros voltaram de sua
pilhagem. - completou o capitão. - A Altaneira deve ter
deslocado a flotilha para evitar o combate. Para eles o
nevoeiro veio a calhar, mas para nós...
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Kirlian evitou completar seu pensamento funesto,
preferindo concentrar-se em uma solução para seu
dilema. Se apesar do nevoeiro fossem encontrados
pelos navios piratas, estariam perdidos. Mas se a
Altaneira os encontrasse nessa baixa visibilidade,
poderiam muito bem ser afundados com arpões
antes mesmo de poderem se identificar. Se os
piratas e a Altaneira se encontrassem, no entanto... e
Kirlian começou a perseguir essa linha de
raciocínio. Um combate se iniciaria imediatamente,
e se os canhões Azgher fossem disparados não
apenas a batalha seria facilmente localizada como
possivelmente o próprio nevoeiro seria dispersado
pelo calor da deflagração.
- Astella, tem algum material de escrita aí? -
perguntou subitamente.
- Escrita? Bem, tenho um pote de tinta, mas não
tenho pena ou pergaminho nenhum!
- Capitão, francamente, não creio que seja o caso de
escrever o diário de bordo!
- Não mesmo, sr. Saddrek. No entanto, precisamos
improvisar. Dê-me sua camisa. E Corvo, preciso
que assuma sua forma de pássaro.
- Posso perguntar por quê, ó magnânimo...?
- Porque, entre outras coisas, pássaros têm penas, sr.
Corvo.
***
Ohara Sato observava apreensivo a flotilha
quase além de seu alcance visual. Quando os
navios piratas surgiram no horizonte, o nevoeiro
surgiu como se fosse a resposta às suas preces,
mas agora a ausência de seus companheiros o
preocupava. Se Kirlian e os outros voltassem,
teria uma respeitosa porém incisiva conversa
com o capitão sobre deixar o navio sem seus
principais oficiais comandantes. Bem, ao menos
com o sr. Saddrek. Talvez.
Um tumulto surdo correu pelo barco e chamou sua
atenção. O silêncio imperava no convés devido à
presença de naus inimigas ao largo, mas ainda assim
toda a tripulação começara a murmurar
raivosamente.
Logo viu o motivo. Empoleirado no mastro principal
um pássaro negro parecia exausto, mas insistia em abrir
e fechar suas asas chamando silenciosamente a atenção
sobre si.
- Corvo! - rosnou Sato entredentes. - Esse maldito
traidorzinho...
Subiu ele mesmo ao mastro, alcançando o pássaro em
segundos. Corvo disparara a falar assim que o vira.
- Senhor Sato, graças aos Deuses eu os achei! Não
agüentava mais voar em círculos cada vez maiores em
meio à essa neblina, e quase aaAAARG!! -
interrompeu-se o espião, quando a mão do timoneiro
fechou-se ao redor de seu pescoço.
- Se traiu o capitão, seu verme emplumado, juro que vai
preferir ter morrido com Mão Negra! - disse o
timoneiro, sussurrando mas com energia suficiente na
voz para disparar um canhão.
- Gak... Aakk... imploro sua paciência, Mestre da
Navegação, mas antes de condenar esse pobre
mensageiro, ao menos leia a mensagem do capitão.
- Mensagem? - disse o rapaz, só então notando um
pedaço de tecido que Corvo segurava com as garras.
Era um trapo tão encardido que a tinta usada nele mal
havia sido absorvida, e a letra manuscrita era mesmo a
do capitão.
Precisou ler toda a mensagem três vezes até entender e
acreditar no que lera, mas a assinatura de Kirlian no
documento era inquestionável. Desceu ao convés e
distribuiu as ordens conforme as instruções que
recebera pelo documento, só então lembrando-se de
soltar o pescoço de Corvo.
- Vá ao seu posto no cesto da gávea e fique lá. Não
pense que uma ordem cumprida a contento muda
alguma coisa.
Em poucos minutos a Altaneira afastava-se da flotilha,
buscando uma distância segura para a manobra a seguir.
Quando não mais puderam avistar os outros navios por
mais de uma hora, toda a tripulação começou a cantar e
gritar no convés. Sato até mesmo acendeu alguns dos
fogos de artifício que trouxera como sinalizadores
a serem usados em emergências. - "E essa É uma
emergência, se é que conheço uma."
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Não demorou muito e os três navios piratas
surgiram de entre o nevoeiro. Apesar de virem
pesados dos saques e pilhagens, estavam preparados
para mais combates, e sedentos de vingança contra
o navio que tantos colegas seus condenara.
Mas a Altaneira não estava menos preparada. Os
canhões de bombordo foram expostos assim que os
piratas surgiram, e em breve uma saraivada de tiros
ecoava pela região. Aproveitando uma brecha no
cerco dos piratas, Sato ordenou que seguissem
naquela direção a todo pano.
As três naus piratas então vieram em perseguição.
Ordens e confirmações eram gritadas a plenos
pulmões no navio da Frota Real, e mesmo perdendo
o contato visual os piratas continuavam na pista de
sua presa. Ou assim achavam eles.
- Vamos ver como anda nossa sorte. CANHÕES
AZGHER DE POPA, PREPARAR E DISPARAR!
De seu posto no timão Sato ouviu as canhoneiras de
popa estalando e dando passagem aos enormes
canhões dourados, e preparou-se. Ambos os canhões
de popa dispararam ao mesmo tempo, fazendo com
que a proa da Altaneira afundasse e a nau adernasse
e rangesse como se estivesse indo a pique, o que
não estava longe da verdade. Por um instante o
mundo ao redor deles converteu-se em uma esfera
de luz perolada quando a energia do disparo das
poderosas armas refletiu-se no nevoeiro ao redor.
Depois, como música, vieram os estrondos dos
balaços atingindo seus alvos, e os gritos de
desespero dos navios piratas.
Sato adoraria dar meia volta e combater os
sobreviventes, mas seu próprio navio necessitava de
cuidados agora. Primeiro teria que estabilizar sua
navegação, depois ordenar que as equipes de
manutenção trocassem todos os reforços estruturais
antes que os danos causados à própria Altaneira
pelo disparo dos canhões Azgher se agravassem.
- ARPOADORES A POSTOS! - ordenou o jovem
timoneiro. Por uns bons minutos essa seria sua
única defesa contra possíveis atacantes, longos e
excruciantes minutos.
Como efeito colateral dos disparos, o nevoeiro
começou a dispersar a partir do ponto zero das
explosões. A água do mar ainda borbulhava em
torno de uma série de destroços, testemunhas mudas
de naufrágios ocorridos ali. Mas um dos navios piratas
ainda flutuava, mesmo apresentando severos danos. Sua
tripulação ainda vivia, e apontaram seu navio para uma
rota de colisão com a nau da Frota Real. Eles tentariam
abordar.
- CURSO DE REPAROS! - gritou Sato. Se não tivesse
toda sua capacidade combativa em breve, não teriam
chance nenhuma. A resposta demorou demais, mas
quando veio trouxe um sorriso aos lábios do
tamuraniano.
- ACABADOS! - gritou Kovaks, subindo ao convés
com a equipe de manutenção pronta para o combate.
- SALVA DE BORESTE, PREPARAR E DISPARAR! -
manobrando a Altaneira enquanto os homens
aprumavam os canhões normais de boreste Sato
apontou-os diretamente à terceira nau pirata. A salva
colheu-os de chofre, causando severos danos não
apenas ao casco mas também ao convés, derrubando o
mastro principal e reiniciando incêndios recentemente
controlados a bordo. Afastando-se a velocidade de
cruzeiro a Altaneira meramente observou o navio pirata
lentamente afundar e sua tripulação, morrer.
- Ó DE BORDOOO! - o grito vindo diretamente de
além proa trouxe alívio e alegria a todos a bordo. Em
uma pequena baleeira o capitão e todo o grupo
avançado sãos e salvos, ainda que o pobre sr. Saddrek
tremesse de frio sem sua camisa. Todos eles mais os
passageiros foram trazidos a bordo entre vivas da
tripulação. A Altaneira estava inteira novamente.
***
Um dia depois Astella observava desapaixonada a
bordo da Altaneira a vila da Ilha Ferren ardendo em
chamas após o ataque deflagrado pelo navio. O
capitão Kirlian aproximou-se.
- Tivemos que fazê-lo, Astella. Sinto muito se você...
- Não precisa se desculpar, capitão. Aquela vila era um
ninho de víboras, e precisava ser destruída. Agora, para
o melhor ou para o pior, meu destino está ligado ao de
vocês. O passado pode muito bem queimar em paz.
- A propósito - continuou a devanista - Esta noite Sua
Majestade e eu conseguimos contato, e ele ficou muito
satisfeito em saber que você retornou em segurança. Ele
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aguarda ansioso os próximos relatórios de nossa
missão, à qual relega imensa importância
estratégica.

- Deve estar falando da construção do Forte Galran.

- Não, capitão. Sua Majestade sabe de sua amargura

em relação à Jornada Oeste, e garante que você foi
escolhido por não haver ninguém mais capaz ou
confiável. Ele o tem em alta conta, acredite.

Afastando-se, Astella deixou o capitão Kirlian

contemplando os tons rubros do por do sol
abatendo-se sobre o incêndio na Ilha Ferren. Outra
etapa em sua jornada literalmente queimada.

- Quantas mais? - murmurou melancólico. - Quantas

mais ainda, Capitão Jor?

FIM
do episódio

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